A água é um elemento da natureza indispensável à vida. Sem ela não existe respiração, reprodução, fotossíntese, tampouco nenhum processo que assegure a existência dos seres vivos. É também um dos elementos que integra o meio ambiente natural e como tal recebe a proteção do Estado.
Um bem juridicamente protegido está sob o manto de um dispositivo legal e no caso dos recursos hídricos verifica-se que a sua tutela advém não apenas da legislação ordinária, como também da própria Constituição Federal, que na está no topo das leis que regem um país.
Domínio numa concepção jurídica de direito privado tem conotação de “propriedade” como bem se depreende do conceito inserto no art. 98 do Código Civil vigente, senão vejamos:
“Art.98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno;
Art. 99. São bens públicos:
I – os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;”
Considerando, porém, que a água é um dos elementos naturais do meio ambiente e que este, na definição de Toshio Mukay, está inserido na categoria dos direitos difusos, isto é, daqueles direitos pertencentes a uma coletividade indeterminada e que transcende a classificação tradicional de direito privado e direito público, tem-se que o conceito de dominialidade das águas não pode ser visto sob o ângulo do Direito Privado. Nesse sentido é preciso entender que a dominialidade inerente aos recursos hídricos não tem sinônimo de apropriação do bem, mas sim de gerenciamento.
Isso se dá porque de acordo com a definição contida no art. 225 da Constituição Federal o meio ambiente é “bem de uso comum do povo” e por isso não pode ser qualificado como um bem que pertença a uma pessoa física ou jurídica privada ou pública, mas sim como um bem pertencente a uma coletividade indeterminada.
Compreendido sentido da nominação “dominialidade”, passemos a verificar o que nos diz a nossa lei maior sobre a água.
A Constituição Federal no artigo 20, inciso III, estabelece que são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais.
São exemplos desses bens citados no inciso III, o Rio São Francisco que banha os Estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, o Rio Paraná que se estende entre Brasil, Uruguai e Argentina.
A nossa lei maior também estabeleceu quais os bens hídricos dos Estados da Federação através do artigo 26, I:
“Art. 26 Incluem-se entre os bens dos Estados:
I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras públicas da União.”
São exemplos desses bens citados no inciso I: o Rio Jaguaribe no Ceará, Rio Tietê em São Paulo, Lagoa dos Patos no Rio Grande do Sul, Rio Paraguaçu na Bahia, etc.
Mais uma vez deixamos claro que o fato de o constituinte ter anunciado que os bens do inciso III do artigo 20 “são da União”, não transforma o Poder Público Federal em “proprietário” da água, mas sim em gestor daquele bem em benefício de e no interesse de todos. Da mesma forma os bens indicados no inciso I do art. 26, dentre eles, as águas subterrâneas, são bens que devem ser gerenciados pelos respectivos Estados que os tenham sob o domínio dos seus respectivos territórios.
Isso porque a própria Constituição ao estabelecer o meio ambiente como bem jurídico tutelado, deixou expresso de que ele é bem de uso comum do povo, ou seja, que não pertence a uma entidade privada ou a uma entidade pública, mas sim a toda uma coletividade indeterminada.
No mesmo sentido a Lei n.º 9.433 de 8 de janeiro de 1997 que instituiu a Política Nacional dos Recursos Hídricos, deixou expresso logo no artigo primeiro que constitui-se como um dos fundamentos dessa política nacional o fato de considerar a água como bem de domínio público.
“Art. 1º A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I – a água é um bem de domínio público;”
Analisando o aspecto da dominialidade das águas José Afonso da Silva (2004) faz uma reflexão interessante sobre o art. 22, IV da Constituição Federal, mormente no que pertine a exclusividade da União para legislar sobre águas.
O referido autor traça uma crítica ao constituinte visto que este atribuiu aos Estados o domínio de águas superficias e subterrâneas, consoante disposição expressa no art. 26, I acima transcrito, entretanto deixou de lhes conferir competência para legislar sobre águas.
“Não é muito coerente atribuir aos Estados o domínio de águas superficiais e subterrâneas, como já vimos (art. 26, I), sem lhes reconhecer a competência para legislar, ainda que fosse apenas suplementarmente, sobre águas. Como poderão os Estados administrar suas águas se a competência para legislar sobre elas é privativa da União?” (SILVA, 2004, p.22).
Ele ressalta, porém, que os Estados não se omitiram na consideração da matéria e pautados na competência comum para proteger o meio ambiente e combater a poluição em todas as suas formas, também previstos no art. 23, VI, bem como na competência para legislar concorrentemente sobre a proteção do meio ambiente, controle da poluição e responsabilidade por dano ao meio ambiente preencheram suas Constituições Estaduais com disposições pertinentes à proteção dos recursos hídricos.
Essa situação é claramente observada na Constituição do Estado do Ceará, a qual, no Capítulo XI referente a Política Agrícola e Fundiária, traçou diretrizes sobre a gestão dos recursos hídricos, estabelecendo, inclusive, que os Municípios devem fazer constar em suas leis orgânicas disposições relativas ao uso, à conservação, à proteção e ao controle dos recursos hídricos, superficiais e subterrâneos com a finalidade de atender uma série de disposições descritas nos incisos do art. 320, quais sejam:
“Art. 320. Constarão das leis orgânicas municipais disposições relativas ao uso, à conservação, à proteção e ao controle dos recursos hídricos, superficiais e subterrâneos, no sentido:
I – de serem obrigatórias a conservação e a proteção das águas e a inclusão, nos planos diretores municipais, de áreas de preservação daquelas utilizáveis para abastecimento das populações;
II – do zoneamento de áreas inundáveis, com restrições à edificação naquelas sujeitas a inundações freqüentes;
III – da manutenção da capacidade de infiltração do solo, para evitar inundações;
IV – da implantação de sistema de alerta e defesa civil, para garantir a segurança e a saúde públicas, quando da ocorrência de secas, inundações e de outros eventos críticos;
V – da implantação de matas ciliares, para proteger os corpos de água;
VI – do condicionamento e aprovação prévia, por organismos estaduais de controle ambiental e de gestão de recursos hídricos, dos atos de outorga, pelos Municípios, a terceiros, de direitos que possam influir na qualidade ou quantidade das águas, superficiais e subterrâneas;
VII – da implantação de programas permanentes de racionalização do uso das águas para abastecimento público, industrial e para irrigação.”
Também o art. 325 da CE ao determinar que as áreas de vazante dos açudes públicos estaduais deverão ser cedidas em comodato para o plantio dos trabalhadores rurais sem terra da região, estabeleceu no parágrafo único do mesmo dispositivo, que os proprietários de terra contínguas aos espelhos de águas de açudes construídos pelo poder público ou com a participação do Estado devem, obrigatoriamente estabelecer servidões com a finalidade de coletivizar o uso da água.
A CE não traz, porém, nenhum dispositivo específico sobre o acesso às águas das fontes situadas em terreno particular, todavia, como a finalidade social da norma é coletivizar o uso da água, parece-nos razoável, que também as servidões obrigatórias possam ou devam ser utilizadas similarmente, nos casos de acessos a água de fontes situadas em propriedade privada.
No que pese, porém, ao tema específico da dominialidade dos recursos hídricos antes da Constituição Federal, vale à pena analisar a legislação existente para conhecer as peculiaridades e os avanços no ordenamento jurídico.
O “Código de Águas” instituído través do Decreto n.º 24.643 de 10 de julho de 1934, previa a possibilidade de ter a água como bem particular, pois no art. 8º descrevia o seguinte:
“Art. 8º São particulares as nascentes e todas as águas situadas em terrenos que também o sejam, quando as mesmas não estiverem classificadas entre as águas comuns de todos, as águas públicas ou as águas comuns.”
Acontece que esse artigo, segundo uma das maiores autoridades em direito ambiental, o jurista Paulo Afonso Leme Machado, está revogado, ou seja, está sem efeito pelo fato de contrariar a nova lei que trata do gerenciamento dos Recursos Hídricos, Lei n.º 9.433/97 e também por ir de encontro ao que estabelece a Constituição Federal sobre meio ambiente.
Segundo a lei 9.437/97 a água não faz parte nem mesmo do patrimônio privado do Poder Público, pois “a outorga não implica a alienação parcial das águas que são inalienáveis, mas o simples direito de uso” (art. 18).
Diante, pois, do que assegura a lei maior do nosso país, isto é, Constituição Federal, podemos comungar com o pensamento de Machado de que a água é um bem de uso comum do povo competindo à União e aos Estados da Federação o domínio, enquanto gestor de bem de uso coletivo.
Na mesma linha de raciocínio Araújo Sá (2001, p. 210) reforça a idéia de que as águas são bens de uso comum de todos e que tal premissa está consagrada no art. 225 da Constituição Federal. O autor discorre sobre a publicização das águas após a CF de 88 enfatizando que o domínio de tais recursos foi partilhado entre a União e os Estados, alterando sensivelmente o regime do Código das Águas.
Contudo, as leis isoladamente não são capazes de assegurar o uso sustentável dos recursos hídricos, nem tampouco garantir o acesso a todas as pessoas desse bem indispensável à existência. Somada as disposições legais devem ser as ações conscientes de cada pessoa, seja pelo uso racional dos recursos hídricos, seja pela proteção e preservação ambiente como um todo, pois há uma cadeia de ligação entre todos os elementos da natureza e o próprio homem.
CONCLUSÃO
A elaboração do presente artigo nos reporta às seguintes conclusões:
1. O termo “domínio” utilizado nos instrumentos normativos que tratam do tema “Água” não tem conotação de propriedade nos termos da legislação civil pátria, posto que a água é elemento que compõe o meio ambiente e este, por imperativo constitucional, é bem de uso comum do povo;
2. O dispositivo que trata da exclusividade da União para legislar sobre recursos hídricos, qual seja, art. 22, IV da CF, não deve ser interpretado de forma isolada, posto que a Carta Magna também deixou expressa a competência comum dos entes federados para proteger o meio ambiente e combater a poluição em todas as suas formas, bem como a competência concorrente no controle da poluição e responsabilidade por dano ao meio ambiente;
3. A Constituição do Estado do Ceará no capítulo referente a Política Agrícola e Fundiária, traçou diretrizes sobre a gestão dos recursos hídricos estabelecendo que também os Municípios devem constar em suas leis orgânicas dispositivos voltados à conservação, à proteção dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos;
4. Embora a Constituição do Estado do Ceará não traga nenhum dispositivo sobre o acesso a água das fontes situadas em terreno particular, poder-se-ia fazer uso do analógico do disposto no art. 325 da referida norma, impondo-se o instrumento da servidão obrigatória para os proprietários que têm fontes situadas em seus terrenos;
Essa medida certamente iria assegurar o uso coletivo da água atendendo as prioridades estabelecidas na Lei de Política Nacional dos Recursos Hídricos.
5. Por fim, conclui-se que o regime das águas previsto no Código de 1934 foi alterado pela Constituição Federal e no que pese ao dispositivo referente a apropriação pelo particular das águas das fontes, resta sedimentado que este foi revogado por ser contrário à lei e ao conceito constitucional de bem ambiental.
Informações Sobre o Autor
Márcia Maria dos Santos Souza
Advogada, formada pela Universidade Regional do Cariri, Crato/CE. foi professora substituta do curso de Direito da Urca, e pós-graduada latu sensu em Direitos Humanos Fundamentais, assessora jurídica do Conselho de Políticas e Gestão do Meio Ambiente do Ceará.