Resumo: O presente texto é dedicado ao estudo da temática da eficácia dos direitos fundamentais nas relações estabelecidas entre particulares, com foco no plano material e no ordenamento jurídico português. Após traçar um breve escorço histórico do assunto, o presente ensaio passa a tratar da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, examinando de que forma e com que intensidade esta vinculação se opera. Nesse percurso, serão abordadas as diversas teorias construídas para lidar com essa problemática, a posição da jurisprudência portuguesa sobre o tema e, por fim, será proposta a sistematização dos critérios que podem ser adotados para solucionar as multifacetadas questões advindas do tema examinado.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Direitos Fundamentais. Relações Jurídico-Privadas. Eficácia. Ordenamento Português.
Abstract: This article is dedicated to the study of the effectiveness of fundamental rights in relations between private individuals, with a focus on the material plane and the Portuguese legal system. After tracing a brief history of the subject, this paper goes on to discuss the binding effect of fundamental rights in relations between private individuals, examining how and to what extent this effect operates. Along the way, we will discuss the various theories built to handle this problem, the position of the Portuguese jurisprudence on the subject and, finally, will be proposed to systematize the criteria that can be adopted to address the multifaceted issues arising from the examined subject.
Keywords: Constitucional Law. Fundamental Rights. Relations between private individuals. Effectiveness. Portuguese legal system.
Sumário: 1. Introito: 1.1. Generalidades. 1.2. Apresentação e circunscrição do tema. 1.3. A terminologia adotada. 2. Histórico do problema. 2.1. Do Estado Liberal ao Estado Social. 2.2. Estado Social em Crise e Globalização. 3. As diversas teorias. 3.1. Considerações gerais. 3.2. A doutrina da State Action. 3.3. A teoria da eficácia direta e imediata. 3.4. A teoria da eficácia indireta e mediata. 3.5. Teoria dos deveres de proteção. 4. A necessidade de modalidades eficaciais distintas para cada caso. A indispensabilidade da ponderação no caso concreto. 4.1. Algumas premissas. 4.2. Proposta metódica. 5. A questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares na jurisprudência constitucional portuguesa. Conclusão.
1. Introito
1.1. Generalidades
Em linha de princípio, convém situar o tema a ser abordado no contexto sócio-político, econômico e cultural dentro do qual se insere e, mais do que isso, sofre grande influência[1].
Se é certo que a evolução da Humanidade trouxe muitos benefícios para os indivíduos, notadamente no campo da interação global, com maior dose de razão pode-se afirmar que trouxe a reboque muitas mazelas. A desigualdade e exclusão social são realidades cristalinas, diante das quais ao cidadão — e muito menos ao jurista — é defeso cerrar os olhos. A má distribuição de renda, o crescimento vertiginoso do desemprego e a falta de políticas sociais compensatórias eficazes — isso para ficar em uns poucos exemplos — são questões cuja gravidade compromete a própria sustentabilidade da sociedade.
Os modelos de Estado até hoje vivenciados pela sociedade ocidental já se revelaram incapazes de promover a justiça social. O liberalismo burguês, centrado numa ótica extremamente egoísta, e sua faceta econômica (liberalismo econômico), revelou-se inapto para tal incumbência, uma vez que a historia já demonstrou que a auto regulação do mercado não é suficiente para garantir o gozo efetivo dos direitos fundamentais para toda a população. De sua parte, o Estado Social, não obstante os mecanismos compensatórios, se mostrou igualmente incapaz de resolver de maneira satisfatória tais problemas.
O fato é que assistimos, cada vez mais, ao fenômeno do enfraquecimento das estruturas estatais, que, se no contexto de outrora já se mostravam incapazes de concretizar as diversas facetas dos direitos fundamentais propiciadores da desejada justiça social, agora, com o aparecimento de poderes sociais privados, cuja potencialidade para atingir os direitos fundamentais é incontestável, apresentam-se ainda mais frágeis.
É nesse cenário de extrema vulnerabilidade no qual, atualmente, o homem se vê oprimido pelos poderes sociais, por um lado, e carente da proteção estatal, por outro, que a problemática da eficácia dos diretos fundamentais nas relações privadas adquire relevo.
É dizer: o rumo tomado pela sociedade contemporânea[2] fez com que se procedesse à mudança da antiga concepção que via nos direitos fundamentais apenas um verdadeiro escudo de defesa dos particulares frente à ameaça constituída pelo Estado para uma postura mais moderna e consentânea à nova formatação adquirida pela sociedade, que estende o âmbito de incidência dos direitos fundamentais às relações entre particulares.
1.2. Apresentação e circunscrição do tema
Tendo em vista a liberdade de associação e de filiação partidária, poderia uma empresa privada celebrar contratos de trabalho em que os empregados ficassem proibidos de filiar-se a partidos políticos ou sindicatos? Considerando a liberdade de constituir família constitucionalmente assegurada, poderia uma escola particular promover a contratação de uma professora vinculando-a a cláusula do celibato?[3] Poderia uma associação civil impedir o ingresso de novos integrantes que não professassem determinado credo, tendo em vista o principio da liberdade de religião?[4] Poderia uma empresa de material esportivo celebrar contrato de patrocínio com um atleta no qual ele se obrigasse a não participar de quaisquer competições esportivas, haja vista o direito ao livre desenvolvimento da personalidade?[5] Um clube poderia excluir um dos seus associados sem que lhe fosse dada oportunidade de defesa, diante da previsão constitucional do contraditório e da ampla defesa? Um clube social dedicado à prática de esportes pode recusar a aceitação de novos sócios que tenham determinada orientação política?
Muito embora as questões suscitadas, ou outras semelhantes, possam encontrar solução sob diversas perspectivas, é na seara da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas que elas encontram sua sede precisa.
Longe de ser uma temática ultrapassada, a questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas encontram-se plenamente atual[6], sendo bastante discutida sob a perspectiva jus-privatista, no bojo da chamada “constitucionalização do direito civil”, tendência que, em apertada síntese, procura enfatizar a influência da Constituição na conformação/aplicação do Direito Privado.
Todavia, considerando as nuances existentes na relação entre direitos fundamentais e o Direito Privado, no âmbito mais genérico da relação entre a Constituição e o Direito Privado, bem como as limitações deste trabalho, cumpre esclarecer que o presente estudo não cobrirá tamanha área, antes irá focar-se no problema específico, pontual, da eficácia dos direitos fundamentais nas relações estabelecidas entre particulares.
Neste ponto, afigura-se oportuna nova delimitação do assunto.
A análise dos direitos fundamentais, com especial atenção aos sujeitos que se encontram normativamente obrigados (destinatários), deve apontar no sentido da distinção entre “eficácia vertical” e “horizontal” (adiante se verá críticas à validade dessa distinção e nomenclatura). Contrapõe-se, dessa forma, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações verticais de poder, travadas entre particulares e Estado, e a sua eficácia (horizontal) nas relações entre indivíduos ou entidades em posição de igualdade formal.
A questão de eficácia vertical, conquanto interessante e rica em problemática, não será abordada, de modo que nos cingiremos à outra vertente de eficácia.
Nesse âmbito especifico, cabe nova ressalva delimitadora, com vistas a trazer a lume a dupla dimensão do problema, a processual e a material, que, mesmo possuindo estreita ligação, não se confundem, ensejando enfoques distintos.
Assim, no plano material, investiga-se a existência da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, a fim de, num segundo momento, verificar-se de que forma e com que intensidade esta se opera. No processual, trata-se de estudar os meios processuais para efetivação dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Cabe salientar, por oportuno, que somente o aludido prisma material do assunto será aqui abordado. De referência ao prisma processual, convém apenas noticiar a discussão que tem havido, sobretudo na Alemanha e na Espanha, quanto à possibilidade e aos limites da interposição, respectivamente, da queixa constitucional e do recurso de amparo quando estiver em causa a violação de um direito fundamental de um cidadão perpetrada por um sujeito privado.
Uma vez circunscrito o tema, é imperioso afirmar que não há qualquer acha de dúvida quanto à existência da dita vinculação, vale dizer, é impossível negar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre sujeitos privados, conforme se demonstrará ao longo desse estudo.
A controvérsia que grassa na doutrina constitucionalista, rendendo ensejo a teorias diversas, diz respeito ao modo e ao grau de intensidade que com tal eficácia se dá.
Nesse passo, a proposta deste trabalho não é esgotar o tema, mesmo com os recortes que lhe foram dados, uma vez que a dimensão do assunto e os limites deste trabalho não permitem. Além disso, seria muita pretensão fazê-lo, considerando a envergadura dos juristas que já se ocuparam do tema e, nada obstante, não lhe puseram a derradeira pá de cal.
O que se objetiva é trazer o tema, sobretudo seus aspectos mais interessantes, à apreciação dos leitores, permeado pelos aportes jurisprudenciais luso-brasileiros, de modo que possam, a partir daqui, conhecer os pontos básicos de tão relevante e atual problemática.
Sem embargo, ao final, empreendemos esforço no sentido de sugerir uma sistematização — que não se pretende inédita, pois feita com base em abalizada doutrina —, refletindo a nossa compreensão quanto aos critérios que podem ser adotados para solucionar as multifacetárias questões advindas do tema examinado.
Por fim, diga-se que não se ocupará este ensaio da eficácia de tal ou qual direito fundamental nas relações privadas, sendo o problema tratado com respeito à generalidade desta categoria de direitos.
1.3. A terminologia adotada
Não fosse bastante a polêmica que gravita em torno da temática abordada no presente estudo, deparamo-nos, ainda, com a discussão acerca de qual seria a terminologia mais correta para designá-la.
A questão costuma ser tratada sob as mais diversas rúbricas. Fala-se em “eficácia frente terceiros” ou “Drittwirkung” dos direitos fundamentais; em eficácia externa; “eficácia horizontal”[7]; “eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares”[8] e “vinculação dos particulares — ou entidades privadas — aos direitos fundamentais”[9]. Há, inclusive, quem considere incorreto o uso da expressão eficácia, preferindo utilizar o termo validade, por entender que aquela respeita à aludida dimensão processual da problemática[10].
Sem embargo, na esteira do entendimento dominante, entendemos que o termo eficácia, por dizer respeito à aptidão da norma para produzir efeitos jurídicos (plano substancial, portanto)[11], apresenta-se mais correto para designar o fenômeno.
Superada essa primeira controvérsia, convém analisar as denominações acima apontadas.
As denominações “eficácia entre terceiros” ou “Drittwirkung” dos direitos fundamentais, “eficácia externa” dos direitos fundamentais e “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais, foram criadas pela doutrina constitucional germânica e acabaram por gerar grande oposição, sendo alvo de críticas inclusive dentro de seu próprio país.
Em relação às duas primeiras, costuma-se argumentar que carregam o equívoco de considerar que o particular não poderia ocupar o pólo passivo da relação jurídica relativa aos direitos fundamentais (por isso eficácia externa), e que estes seriam restritos às relações Estado-Indivíduo, de modo que, quando se falasse na eficácia de tais direitos entre particulares, estar-se-ia diante de “terceiros”, vez que estranhos a citada relação[12]. Tal concepção baseia-se na já superada teoria liberal dos direitos fundamentais, não sendo mais sustentáveis as compreensões acima referidas.
Também não concordamos com a expressão “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais, pois esta enseja o entendimento de que tais direitos seriam dotados de eficácia não apenas nas relações verticais, travadas entre o indivíduo e o Estado, mas também naquelas entre particulares, que seriam “horizontais”, devido à existência de igualdade entre as partes[13]. Conforme se verá a seguir, hoje, é forçoso reconhecer a existência de relações entre indivíduos nas quais uma das partes possui poder sobre a outra, descaracterizando-se essa suposta igualdade, de maneira a não se poder falar em relação horizontal. Aliás, semelhantes relações de poder são verdadeiramente similares às entabuladas entre indivíduo e Estado (verticais).
De nossa parte, aceitando a pertinência das críticas acima alinhadas e reconhecendo a importância da precisão da linguagem na ciência do Direito, preferimos usar as expressões “eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas” (ou pequenas variações desta que não comprometam o seu sentido, como, por exemplo, eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, entidades privadas, entre sujeitos privados ou nas relações jurídico-privadas) e “vinculação dos particulares — ou entidades privadas — aos direitos fundamentais” por acreditar que elas melhor denotam as escorreitas dimensões do problema.
2. Histórico do problema
Os direitos fundamentais, como já se afirmou, constituem categorias jurídicas que sofrem grande influência do contexto sócio-político, econômico e cultural em que se encontram inseridos.
Diante desta realidade, convém fazer um breve escorço histórico da evolução do conceito destes direitos.
2.1. Do Estado Liberal ao Estado Social
O advento do Estado Liberal — marco da “tomada do poder” pela classe burguesa, antes oprimida pelo regime absolutista — trouxe consigo, sob o ponto de vista dos direitos do homem, o entendimento de que era preciso defender o indivíduo da ameaça representada pelo Estado, encarado como o grande inimigo das liberdades individuais.
O Estado deveria restringir sua atuação ao mínimo indispensável (segurança pública, defesa da liberdade, do direito à propriedade e da autonomia privada), abstendo-se de se imiscuir na seara econômica. A sociedade guiava-se pela idéia da liberdade econômica, crendo-se regida pela “mão invisível” do mercado, que a levaria sempre ao melhor dos destinos[14].
A sociedade e o Estado eram considerados realidades distintas, cada qual dotada de uma dinâmica própria, compreensão que, no plano do direito, era traduzida através da dicotomia: Direito Público e Direito Privado. Assim, ao Direito Público caberia reger a vida do Estado, disciplinada na Constituição, ao passo que o Direito Privado teria a função de reger as relações entre os indivíduos, tendo no Código Civil sua “verdadeira carta constitucional”[15], consagradora da autonomia privada e da liberdade contratual.
É, pois, fundada nessa ordem de valores que os direitos fundamentais passam a ser vistos como direitos públicos subjetivos oponíveis unicamente ao Estado.
Nesse passo, a marcha da história logrou demonstrar que o modelo de Estado Liberal implementado pela burguesia, embora se lhe reconheça o mérito de ter firmado as liberdades individuais, era incapaz de resolver, de forma aceitável, os problemas enfrentados pela sociedade. A auto regulação do mercado, dogma do liberalismo sustentando com todas as forças, revelara-se um mecanismo falho, incapaz de assegurar a dignidade da pessoa humana.
A revolução industrial, a concentração de capitais nas mãos de grandes grupos econômicos, a formação de monopólios e oligopólios, e o conseqüente esmagamento dos empresários menores, eram sinais de que o próprio modelo capitalista estava ruindo e necessitava de reparos. Não fosse bastante, as doutrinas socialista e comunista passaram a ganhar terreno, minando as bases do modelo liberal e do capitalismo que ele encetava.
É, assim, nesse turbilhão de acontecimentos históricos, dos quais a Crise de 1929 e a Revolução Russa são expoentes, que começa a formar-se a convicção de que de nada adianta assegurar aos indivíduos liberdades se não lhes são garantidas as condições mínimas para desfrutá-las.
Nesse passo, com o fim da hegemonia burguesa no parlamento, devido à ampliação do direito de voto, os direitos sociais (direito à saúde, à educação etc.) passam a gozar de assento constitucional na tentativa de assegurar aos indivíduos esse “mínimo existencial” necessário para o exercício dos direitos liberais.
Ocorre que tal sorte de direitos demanda uma atuação estatal para sua concretização, isto é, passa a exigir-se do Estado não apenas a garantia das liberdades individuais, mas prestações positivas que viabilizem a efetivação desses direitos sociais.
Fundado na exigência de implementar os direitos sociais, e, em última instância, de assegurar a dignidade humana, o Estado, agora chamado de Social (Welfare State), abandona o abstencionismo que tinha sido a tônica do Estado Liberal e passa a atuar com mais intensidade na vida social[16], inclusive na esfera econômica.
Visando corrigir as desigualdades que latejam sob a igualdade pretensamente existente na lei, o Estado começa a imiscuir-se na seara privada, daí que se passa a notar grande influência do Direito Público sobre o Privado. Exemplo disso é a grande profusão de normas cogentes de Direito Privado, editadas com o fito de limitar a autonomia privada, e a edição de normas trabalhistas, agora apartadas do direito civil, com vistas a proteger o trabalhador dos abusos perpetrados pelos empregadores. Nesse sentido, a Constituição deixa de ser o estatuto do poder público para consagrar-se na Lei do Estado e da Sociedade.
No campo dos direitos fundamentais, as transformações sofridas pela sociedade vão engendrar uma mudança na maneira como estes são encarados. O fenômeno do poder, antes confinado exclusivamente ao Estado, é “pulverizado”[17], passando às mãos de instituições não estatais (grupos intermediários que se colocam entre o Estado e os indivíduos, como, por exemplo, partidos políticos, sindicatos, associações diversas e grupos econômicos), que passam a representar, ao lado do Estado, verdadeira ameaça aos direitos humanos, de modo que a proteção por estes conferida deve voltar-se também contra as entidades privadas.
O Estado Social, dessa forma, cria condições extremamente favoráveis ao reconhecimento da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.
2.2. Estado Social em Crise e Globalização
O Estado Social, no afã de sepultar os males causados pela idéia de Estado Mínimo liberal, acabou incorrendo exatamente no equívoco oposto: agigantou-se e tornou-se burocrático de tal forma que as tarefas que assumira para si eram irrealizáveis no cenário de escassez de recursos vivido.
A crise do Estado-Providência foi agravada pelo fenômeno multifacetário da Globalização. A dimensão transnacional adquirida pela economia gerou um acirramento da concorrência industrial e comercial, que tem como conseqüência imediata a redução dos postos de trabalho, a mecanização das linhas de produção e o afrouxamento da legislação trabalhista, tudo com o objetivo de reduzir os custos e aumentar a competitividade das empresas. A economia foge completamente ao controle do Estado, ficando a mercê dos grandes grupos econômicos e do capital especulativo.
Frágil, portanto, revela-se o Estado incapaz de promover as políticas públicas tendentes à realização da justiça social.
O flanco aberto por esta crise permite o ressurgimento das idéias liberais que pregavam o Estado Mínimo e livre regulação do mercado, corrente agora denominada de Neo-Liberalismo. Desenvolve-se a idéia do Estado subsidiário, que traz a reboque a privatização das empresas estatais e a prestação dos serviços públicos por entes privados.
Verifica-se, outrossim, o aumento significativo da terceirização e a redução do mercado formal de trabalho, ao passo que o poder dos agentes econômicos agiganta-se, passando mesmo a influir na formulação das leis (lex mercatoria).
Desse modo, com a redefinição do papel do Estado e o incremento das atividades e do poder da iniciativa privada[18], os riscos de lesão aos direitos fundamentais por parte de entidades privadas alcança níveis consideráveis, impondo-se, por conseguinte, a necessidade de ampliar a proteção aos direitos fundamentais.
3. As diversas teorias
3.1. Considerações gerais
De fora parte a doutrina da State Action americana[19], cujo caráter vacilante termina, por vezes, a negar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, é tida como pacífica hoje, na maioria dos sistemas jurídicos de origem romano-germânica[20], a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Como dito alhures, o ponto nevrálgico da questão é saber a forma pela qual se opera essa eficácia, isto é, como e com que intensidade estão os particulares vinculados aos direitos fundamentais.
O início da discussão sobre tal questão remonta a década de cinquenta na Alemanha, quando, batizado por Ipsen[21] como Drittwirkung (eficácia perante terceiros), deu azo a grande celeuma na doutrina e jurisprudência alemã, passando logo a ser objeto de discussão em vários países do mundo.
Das diversas teorias criadas em torno dessa problemática, convém, num esforço de síntese, apontar as principais.
3.2. A doutrina da State Action
Antes, porém, de adentrar nas citadas teorias, cabe dar uma breve mostra de como a questão é vista no âmbito do direito constitucional norte-americano[22].
Com exceção da décima terceira emenda, que diz respeito à escravidão, entende a Suprema Corte Americana que os direitos fundamentais previstos na Carta Estadunidense dirigem-se apenas contra o Estado.
Argumenta-se que nas cláusulas relativas aos direitos fundamentais constantes da Carta Magna Americana não haveria qualquer remissão aos particulares, de modo que tais direitos somente seriam oponíveis aos poderes públicos. Subjaz a essa aparente interpretação literal da Constituição o entendimento de que estender a eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas seria comprometer demasiadamente a liberdade individual, com risco de malferir a autonomia privada.
Por outro lado, coloca-se como obstáculo à dita eficácia o fato de que nos Estados Unidos, com exceção das questões relacionadas ao comércio internacional e interestadual, cabe aos Estados Federados legislar sobre Direito Privado. Desde a década de sessenta, contudo, já se reconhece à União competência legiferante em tema de direitos fundamentais, independente da presença de um ente estatal[23].
Com vistas a contornar os absurdos a que exclusão total da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares poderia levar, desenvolveu-se, na Suprema Corte, a doutrina da “public function theory”, segundo a qual, exercendo o particular funções típicas do Estado, ficará ele vinculado as limitações constitucionais, inclusive no que tange aos direitos fundamentais.
Diversos são os casos[24] em que a Suprema Corte, dando aplicabilidade a essa doutrina, fez valer entre particulares a proteção constitucional dos direitos fundamentais. Em outros[25], todavia, deixou de reconhecer tal eficácia.
Dessa forma, a doutrina da State Action, mesmo com os temperamentos dados pela public function theory, devido ao seu caráter vago e aos erros a que conduzia, não dá resposta satisfatória à necessidade de proteger os direitos fundamentais de atores privados, quando ofendidos ou ameaçados por outros de mesma natureza.
De mais a mais, como nos dá notícia Daniel Sarmento[26], a própria doutrina constitucional americana encarregou-se de derrubar a base em que se assentava a teoria da State Action. Nesse sentido, segundo o professor Erwin Chemerinsky, “afirmar que a doutrina da state action é desejável porque preserva a autonomia e a liberdade é olhar apenas para um dos lados da equação (…). De fato, de acordo com a doutrina da state action, os direitos do violador privado são sempre favorecidos em relação aos direitos das vitimas. Dessa forma, a state action só promove a liberdade se se considerar que a liberdade de violar a Constituição é sempre mais importante do que os direitos individuais que são infringidos”[27].
Quanto à questão federalista, o mesmo autor americano objeta que a autonomia dos Estados encontra limite na Constituição, não podendo a esta ser oposta.
Assim, a tendência da doutrina americana mais moderna aponta no sentido de substituir tal modelo por um que priorize a ponderação, no caso concreto, sobre o que deve prevalecer, se a proteção ao direito fundamental da vitima supostamente ofendida ou a liberdade do sujeito particular acusado (Chemerinsky), ou por um modelo de ponderação de interesses (Ronald D. Rotunda e John E. Nowak). Segundo estes últimos, seria “sempre possível encontrar uma ação estatal, ainda que omissiva, por detrás da violação de direitos constitucionais”[28], pois se a conduta do particular, não coibida pelas leis, agride direitos fundamentais de outro indivíduo, existe uma falha omissiva do Estado.
3.3. A teoria da eficácia direta e imediata
Embora não goze de muito prestígio na Alemanha, a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais tem prevalecido na península ibérica[29].
Criada por Hans Carl Nipperdey, no principio da década de cinquenta, e desenvolvida por Walter Leisner, a teoria sob análise pregava a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas de forma direta, imediata, sem a necessidade da mediação de qualquer órgão estatal[30] [31].
Convém, nesse passo, destacar os principais fundamentos utilizados pelos defensores dessa concepção para justificar suas conclusões.
Em linha de princípio, costuma-se enfatizar que a visão do constitucionalismo de matriz liberal burguesa, de acordo com a qual a Constituição seria o estatuto do Poder Público, regulando apenas as relações do indivíduo com o Estado, resta hoje superada pela doutrina constitucional contemporânea.
A Constituição, com efeito, apresentaria-se como a norma sobre a qual se assenta todo o ordenamento jurídico, cuja força normativa deveria atuar também nas relações privadas. O Direito Privado, sob essa perspectiva, não estaria à margem da Constituição.
Precisa, a esse respeito, a colocação de Bilbao Ubillos, para o qual “la constituición ha dejado de ser, simplemente, el estatuto del poder público para convertirse en el ‘orden jurídico fundamental de la comunidad’, de acuerdo con la conocida fórmula de Hesse”[32].
Nesse diapasão, cumpriria reconhecer aos direitos fundamentais a qualidade de ordem de valores, cuja influência se operaria por toda a ordem jurídica, em decorrência do postulado da unidade desta[33].
Demais disso, a constatação de que a ameaça aos direitos fundamentais, atualmente, não está sempre ligada à ação do Estado, mas, ao contrário, provém, cada vez mais, de atores privados detentores de poder social, reafirmaria, a par dos argumentos alinhados, a necessidade de estender o âmbito de proteção dos direitos fundamentais.
Precisas, nesse sentido, as palavras de Vasco Pereira da Silva: “Na verdade, tendo sido os direitos fundamentais concebidos para defesa do cidadão face ao poder e tendo deixado este de ser privilégio do Estado, não faria, mais, sentido, não alargar a protecção dos cidadãos através dos direitos fundamentais a todas as situações de poder [34].”
Com esses fundamentos, abrir-se-ia a possibilidade de os atores particulares, nas relações jurídicas com outros sujeitos de mesma natureza, invocarem diretamente as normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais, independentemente da intermediação de qualquer órgão estatal[35].
Importante deixar claro que os defensores da teoria em foco não propõem sua aplicação radical em todas as situações, de modo que se corra o risco de restringir indevidamente a autonomia pessoal e a liberdade negocial, ao revés, advogam uma concepção que permita a conciliação, no caso concreto, destes valores e daqueles subjacentes aos direitos fundamentais[36].
A eficácia direta teria que ser posta de modo a não sacrificar a autonomia privada, devendo ser aplicada com temperamentos, a fim de não ofender a lógica do direito privado. E não seria pelo fato desta possuir limites, quanto à sua aplicabilidade, que se poderia negar sua eficácia direta[37].
3.4. A teoria da eficácia indireta e mediata
Criada por Günter Dürig, a teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais (Mittelbare Drittwirkung) nas relações privadas é, atualmente, a que goza de maior prestígio na Alemanha, sendo adotada pela maioria dos juristas e pelo Tribunal Constitucional do referido país, tendo prevalecido também na França e na Áustria[38].
A teoria em tela posicionando-se entre aqueles que negam a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas e os que reconhecem a sua eficácia direta e imediata, não nega que tais direitos vinculam os particulares, mas, por outro lado, assevera que esta vinculação não se daria de forma imediata, derivada diretamente da Constituição, antes se realizaria através da mediação de um órgão estatal.
Esta mediação ou, nas palavras de Vasco Pereira da Silva, essa “recepção dos direitos fundamentais pelo direito privado”[39] encontraria justificativa na “necessidade de coordenação dos direitos fundamentais com os direitos subjetivos privados, levando em conta as especificidades das relações interprivadas”[40].
Ao legislador caberia, em primeira linha, ante ao dever de proteção dos direitos fundamentais que lhe incumbe – obrigação derivada da dimensão objetiva destes direitos[41], a função de determinar, a nível legal, a amplitude com que devem atuar na esfera privada.
Ao realizar tal operação, o Legislativo deveria fazer a ponderação dos valores constitucionais passíveis de conflito, fixando “pautas para uma correta articulação” entre estes, de modo a conseguir uma “acomodação razoável” dos mesmos[42].
Em termos porventura mais claros, assevera Daniel Sarmento que “dentre as várias soluções possíveis no conflito entre direitos fundamentais e autonomia privada, competiria à lei a tarefa de fixar o grau de cedência recíproca entre cada um dos bens jurídicos confrontantes”[43].
Note-se, assim, que os preceitos consagradores dos direitos fundamentais penetrariam nas relações privadas de forma indireta, “pegando carona” nas normas e princípios de direito privado.
Sob essa perspectiva, os direitos fundamentais não seriam direitos subjetivos (privados) dos cidadãos, invocáveis diretamente da Constituição. A rigor, seriam normas objetivas que apenas irradiariam seus efeitos sobre a legislação privada[44]. Parte-se da concepção de que os direitos fundamentais fariam parte de uma ordem de valores objetiva que influenciaria todo o sistema jurídico[45].
Na ausência de normas jurídico-privadas, a mediação, ou melhor, a operatividade dos direitos fundamentais na relação privada objeto de discussão, seria feita através das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados (boa fé, bons costumes, ordem pública etc.) introduzidos pelo legislador exatamente com o fito de dar maior flexibilidade à atividade do juiz[46].
Nesse sentido, essas cláusulas e conceitos seriam preenchidos no caso concreto pelo juiz, em interpretação que privilegiasse os valores constantes das normas veiculadoras de direitos fundamentais[47], mas sempre mantendo o espírito privado, de maneira que a influência do Direito Constitucional sobre o Direito Privado se desse de forma suave, por meio dessa espécie de depuração procedida pelos magistrados[48].
Aos juízes, então, caberia um duplo papel: a uma, havendo normas de direito privado referentes à controvérsia, deveria o magistrado aplicá-las, interpretando-as à luz dos direitos fundamentais, ou declará-las inconstitucionais, caso sejam inconciliáveis com tais direitos; a duas, inexistindo normas privadas específicas sobre a questão, cumpriria ao julgador dar conteúdo, no caso concreto, aos conceitos indeterminados e cláusulas gerais cunhadas pelo legislador privado, observando igualmente os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais.
Somente em hipóteses raríssimas, isto é, quando não houvesse norma de Direito Privado regulando a questão, nem mesmo cláusula geral ou conceito indeterminado, passível de ser preenchida segundo os direitos fundamentais, é que, segundo os defensores dessa teoria, poder-se-ia admitir a eficácia direta dos direitos fundamentais na relação entre privados.
Esses direitos, então, preencheriam as lacunas do ordenamento (Wertschutzlückenschliessung), mas sempre de acordo com o “espírito” jusprivatista[49] [50].
Para os defensores da corrente em foco, admitir a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares seria matar a autonomia da vontade e tornar o Direito Privado mero vassalo do Direito Constitucional, além de que representaria a atribuição de muito poder ao Judiciário, visto que as cláusulas relativas aos direitos fundamentais seriam dotadas de grande generalidade.
3.5. Teoria dos deveres de proteção
Defendida por autores de grande envergadura como Claus-Wilhelm Canaris, Joseph Isensee e Klaus Stern, aproxima-se, em grande medida, da teoria da eficácia indireta.
De acordo com autorizadas vozes da doutrina constitucional contemporânea[51], a vinculação do Estado aos direitos fundamentais compreenderia duas vertentes. Se por um lado, na qualidade de sujeito passivo de tais direitos, está obrigado a respeitá-los e a não atentar contra eles, bem como promover a sua efetiva realização (todas dimensões de um dever principal), por outro, cabe-lhe protegê-los de quaisquer ameaças (dever de proteção).
Por força desse dever de proteção, derivado da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, não só a atividade do Poder Executivo (Administração) deve estar conforme os preceitos relativos aos direitos fundamentais (dever principal), como também a atividade dos poderes Legislativo e Judiciário deve caminhar no sentido de assegurar a efetiva proteção que eles encartam.
É dizer, os direitos fundamentais, num primeiro momento, teriam como destinatário o Estado, que, além de estar obrigado a respeitá-los (dever de abstenção), e a criar condições para a efetiva realização desses, tem o dever de defendê-los, por meio de todos os seus órgãos, de quaisquer ameaças que lhes sejam dirigidas, inclusive das advindas de outros particulares[52] [53].
Desse modo, ao legislador caberia disciplinar as condutas privadas — e poderia fazê-lo de forma bastante densa —, levando em conta os preceitos relativos aos direitos fundamentais, de modo a evitar a ocorrência de ofensas aos direitos fundamentais por parte de atores não estatais.
Sob essa perspectiva, os atos dos particulares teriam de observar os parâmetros estabelecidos na legislação e não aqueles estabelecidos diretamente na Constituição[54]. Para Claus-Wilhelm Canaris, essa intermediação ainda poderia ser feita pelo juiz através do preenchimento das cláusulas indeterminadas.
Nesse diapasão, quando o legislador falhasse no exercício desse dever de proteção, seja por disciplinar mal a questão, seja por omitir-se quanto a ela, caberia ao Judiciário, por estar igualmente obrigado a atender a esse imperativo, proceder ao controle de constitucionalidade das normas de Direito Privado.
O dever de proteção apresentar-se-ia, visto de outro ângulo, como imperativo de proteção suficiente, visto no seu sentido negativo, isto é, como principio da proibição do déficit (Untermassverbot), que constituiria um critério orientador no sentido de que o Estado, ao engendrar a proteção aos direitos fundamentais, deve fazê-lo com atenção ao princípio da proporcionalidade (quando estes colidirem com outros direitos ou interesses relevantes, especialmente com a autonomia privada).
Nessa conformidade, não se poderia deixar de levar em consideração a liberdade constitutiva que o legislador deve possuir para graduar essa proteção segundo a dimensão da ameaça, a possibilidade de autodefesa do sujeito privado e os valores em questão[55].
Como se percebe, embora formulada sob outra roupagem, possui a presente teoria elementos estruturais comuns à teoria da aplicabilidade indireta dos direitos fundamentais, na medida em que estes, para ambas, somente vinculam os particulares por intermédio da legislação privada.
4. A necessidade de modalidades eficaciais distintas para cada caso. A indispensabilidade da ponderação no caso concreto
4.1. Algumas premissas
A análise das diversas propostas doutrinais acima tratadas, se feita com boa dose de objetividade, conduz a algumas conclusões que servem de instrumental teórico para a formulação do entendimento que perfilhamos.
Antes, porém, faz-se mister a enunciação de algumas premissas.
Em primeiro lugar, cremos restar fora de dúvida a existência da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, devendo-se sepultar a concepção liberal burguesa dos direitos fundamentais.
Se essa conclusão é válida em geral, com maior dose de razão o será no ordenamento jurídico português, em razão do disposto no art.18º/1 da Constituição da República, que assim dispõe: “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.”
A clareza solar do texto normativo em tela dirime qualquer dúvida acerca da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, fato reconhecido pela mais autorizada doutrina portuguesa[56]. Já o problema de saber em que medida se opera essa vinculação é questão controvertida e, ao que nos parece, não pode ser solucionada somente pela interpretação literal do dispositivo[57].
Em segundo lugar, faz-se imperiosa a análise do fenômeno das relações privadas de poder.
Devido às transformações operadas na estrutura da sociedade — noticiadas sucintamente no item 1.1. —, o fenômeno do poder deixou de pertencer exclusivamente ao Estado para passar também às mãos de entidades particulares, intermediárias entre aquele e os indivíduos, dando origem a verdadeiros centros de poder privado.
A existência de igualdade entre os indivíduos no desenrolar de suas relações privadas[58] passa a ser um dogma insustentável à luz dessa nova realidade.
Sob essa perspectiva, diversas são as situações em que se poderia imaginar que uma entidade privada, através do exercício de um poder real[59], tivesse meios de impor sua própria vontade a outros indivíduos ou mesmo de condicionar o comportamento ou as decisões destes[60].
A seara contratual, nesse particular, se apresenta como campo fértil para o surgimento de situações nas quais se verifique a existência de um efetivo desequilíbrio entre as partes. Basta que se pense naquelas hipóteses de efetiva sujeição[61] — os contratos de adesão e os laborais, por exemplo — nas quais não se abre à parte mais fraca a possibilidade de conformar, de maneira equilibrada, os contornos da relação contratual.
Para além destes casos, poderíamos elencar outros[62] em que se percebe a existência de poder privado, quais sejam: a) quando os grupos ou associações exercem poderes, notadamente de exclusão e disciplinar, sobre seus membros, como no caso dos sindicatos, associações, partidos políticos e entidades religiosas; b) nas relações de poder semelhantes às “‘relações especiais de poder’” típicas do direito administrativo, nas quais empresas e entidades desportivas acabam exercendo poderes regulamentares e disciplinares assimiláveis aos exercidos pelos superiores hierárquicos nas relações especiais de direito de administrativo; c) entidades privadas detentoras de poder real capaz de influir em quadrantes importantes da vida dos indivíduos, do que seriam exemplos as empresas monopolistas, aquelas em situação de quase-monopólio de facto, nomeadamente as fornecedoras de bens ou serviços essenciais, e; d) entidades privadas com a mesma força conformadora referida na alínea anterior, mas dotadas de poderes normativos, “tolerados ou institucionalizados”[63], como “é o caso das federações desportivas, relativamente ao desporto federado, bem como, em certa medida, o caso dos sindicatos e associações patronais em matéria de contratação colectiva (na medida em que sejam susceptíveis de extensão e que o respectivo incumprimento configure uma contraordenção) ou dos acordos entre empresas sobre condições negociais, na medida em que não afetem as leis de defesa da concorrência”[64].
Bem vistas as coisas, é lícito afirmar que a existência desse poder de fato – e sua titularidade por parte de entidades não estatais – provoca a diminuição na esfera de liberdade dos indivíduos, na medida em que reduz, quando não suprime, o espaço de autonomia pessoal.
A presença de poderes de fato no tecido social e a sua potencialidade de causar danos aos direitos fundamentais dos indivíduos[65] em posição de inferioridade apresentam-se como realidades inexoráveis, que em tudo impõem a necessidade de dispensar especial tratamento às relações jurídicas privadas nas quais se verifique a presença do mencionado poder.
Importante, outrossim, que esse tratamento resulte, respeitados alguns limites, na maior ampliação possível do espectro de proteção dos direitos fundamentais, pois, como assevera Bilbao Ubillos “Los derechos fundamentales deben protegerse, portanto, frente al poder, sin adjetivos, y el sistema de garantias, para ser coherente y eficaz, debe ser polivalente, deve operar en todas lãs direcciones. No hay ninguna razón para pensar que el problema de fondo cambia en función de cuál sea el origen de la agresión que sufre una determinada libertad. El tratamiento ha de ser, en lo esencial, el mismo.[66]”
Por último, urge salientar que, a pretexto de conferir aos indivíduos uma ampla proteção no que concerne aos aludidos direitos, não se afigura razoável que se reconheça a estes, nas relações entre particulares, uma tal carga de eficácia capaz de diminuir intoleravelmente, ou mesmo anular, a autonomia pessoal e a liberdade negocial, valores também prestigiados pela constituição.
É levando em linha de conta tais premissas que propomos, aqui, algumas diretrizes que talvez ajudem o operador do Direito a encontrar os melhores caminhos para chegar a uma resolução justa e coerente da variada gama de situações que podem surgir devido à incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Não se irá, naturalmente, apresentar nenhuma fórmula mágica, apta a solucionar as infindáveis questões que podem aparecer no âmbito da problemática ora tratada.
Sob essa perspectiva, entendemos que, seja qual for a direção a ser tomada, deve-se ter em mente que os melhores critérios para a solução dos problemas relacionados à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais não serão encontrados exclusivamente em umas das teorias apontadas, resultando, na verdade, na compatibilização de ambas.
Isto porque entendemos que as teorias da eficácia direta e indireta[67], ao contrário do que pode parecer, não se excluem[68], antes cobrem situações distintas, conforme se demonstrará.
4.2. Proposta metódica
Fincadas essas premissas, julgamos que o melhor caminho consiste em procurar “soluções diferenciadas” para cada caso concreto[69].
A busca dessas soluções deve perpassar pelo exame das seguintes questões: a) o tratamento constitucional do direito fundamental em questão; b) o tratamento infraconstitucional a este dispensado; c) a existência de uma situação desequilíbrio causada pela presença de um poder real de uma parte sobre a outra; d) por fim, ao cabo desse percurso investigativo, caberá a ponderação dos direitos e interesses conflitantes, de modo a se saber qual deverá prevalecer na situação em causa[70].
São essas as idéias que analisaremos agora.
a) O tratamento constitucional do direito fundamental em questão
Verificando-se que os direitos fundamentais em causa são disciplinados pela Constituição de forma que somente ao Estado se possa atribuir a qualidade de sujeito passivo destes, como, por exemplo, as garantias do processo penal (art. 32º), o habeas corpus (art. 31º) e o direito de asilo, de não extradição e expulsão (art. 33º), não se colocará, como é intuitivo, a questão da vinculação das entidades particulares a tais direitos.
Noutra quadra, conforme reconhecido por autorizada doutrina lusitana[71], impende salientar que a própria Constituição portuguesa estabelece, desde logo, a eficácia de certos direitos fundamentais nas relações privadas. Assim, quando as normas constitucionais vincularem, de forma expressa, as condutas dos sujeitos privados, cremos que os particulares poderão invocá-las diretamente — sem a necessidade de mediação de um órgão estatal, portanto — contra outros sujeitos de mesma natureza[72].
A título ilustrativo, pode-se apontar como exemplo desses direitos: a inviolabilidade do domicílio e da correspondência (art. 34º/1), os relativos à família, casamento e filiação (art. 36º/3/4), o direito de resposta, retificação e indenização pelos danos sofridos (art. 37º/4), o direito dos jornalistas de participar na orientação dos órgãos de comunicação e sua liberdade de expressão e criação (art. 38º/2/a), a liberdade de não se associar (art. 46º/3) e a proibição do lock-out (art. 57º/4).
Nessas hipóteses, estaríamos diante de caso em que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas se deu de forma direta.
b) O tratamento infraconstitucional dispensado ao direito fundamental em causa
Não sendo possível solucionar a questão nos termos propostos, impende verificar o tratamento infraconstitucional dispensado ao direito em questão.
Nesse diapasão, quando estivermos diante de uma situação em que o direito fundamental em causa estiver expressamente regulado na legislação privada, ou ainda quando a questão possa se resolver através da aplicação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados nela inseridos, julgamos que a vinculação dar-se-á de maneira indireta, através da mediação das normas de direito privado[73].
A aplicação de tais preceitos, por sua vez, deverá ser feita mediante interpretação conforme a Constituição. Se esta, entretanto, revelar-se insuficiente para adequar a aplicação das normas privadas aos valores constitucionais atinentes aos direitos fundamentais, caberá o afastamento, por vício de inconstitucionalidade, destas disposições.
c) A existência de uma situação desequilíbrio causada pela presença de um poder real de uma parte sobre a outra
Fora das hipóteses apontadas, isto é, naquelas em que não só a constituição deixa de estabelecer a eficácia do direito fundamental em causa nas relações entre particulares, como também a legislação privada não regula a matéria (nem mesmo com o recurso aos conceitos indeterminados e cláusulas gerais), é que o problema adquire maior relevo.
Em semelhantes situações, deverá avançar o operador para a apreciação do terceiro aspecto do processo metódico proposto. Cumpre verificar, pois, se há a presença do poder real e da situação de desigualdade por ele causada[74], como nas hipóteses aventadas no item 4.1.
Sendo positiva a resposta, entendemos que se deve aceitar a invocação direta das normas constitucionais consagradoras dos direitos fundamentais nas relações entre sujeitos privados[75]. As entidades privadas seriam, nesta conformidade, sujeitos passivos dos direitos fundamentais.
A justificativa para tolerar essa transposição direta reside na impossibilidade de na ausência de lei ou insuficiência dela deixar-se desprotegido o indivíduo em posição de inferioridade.
De mais a mais, se os direitos fundamentais foram pensados como mecanismos de defesa do indivíduo contra o Estado, na medida em que este, por ser titular de poder sobre aquele, representava ameaça a tais direitos, é plenamente justificável que, passando esse poder às mãos de outros sujeitos — agora privados, a proteção deferida aos direitos fundamentais, nessa nova relação de poder, seja análoga à outra[76].
Vale frisar que não se está sustentando uma eficácia absoluta, em termos tais que reste sacrificada a autonomia pessoal e a liberdade negocial[77], pois o fato de se reconhecer que um direito fundamental, em determinadas situações, vincula diretamente às entidades privadas não significa, só por isso, que esse mesmo direito vá prevalecer em relação a outro.
d) A ponderação dos direitos e interesses conflitantes
Nesse ponto, alcançamos o quarto degrau de nossa escalada metódica.
As situações em que a existência de um poder real pode levar ao desequilíbrio entre as partes da relação privada são tantas e tão variadas — podendo, inclusive, variar a intensidade com que tal poder se manifesta (alterando, por conseguinte, o grau de desequilíbrio), que não seria razoável definir, em abstrato, em quais delas prevaleceriam os direitos fundamentais esgrimidos, por um particular, contra uma entidade dotada de tal poder.
A isso se acresce o fato de que as entidades particulares, a par de serem tidas como sujeitos passivos dos direitos fundamentais nessas situações de desequilíbrio, também são titulares de direitos de mesma natureza e de outros igualmente tutelados pela constituição[78], de modo que a vinculação destas aos citados direitos não pode se dar nos mesmos termos do poder público.
Cumprirá ao operador, portanto, efetuar a ponderação, em concreto, dos direitos e interesses conflitantes, levando em consideração as circunstâncias acima apontadas e a natureza destes.
Assim quanto maior a intensidade do poder a que o particular se vê submetido e, conseqüentemente, a desigualdade verificada no caso concreto, maior será a sujeição da entidade poderosa ao direito fundamental em causa e a margem de sacrifício da autonomia pessoal admitida[79].
Nessas situações, a presença da desigualdade acaba por reduzir a esfera de liberdade de um dos sujeitos, de maneira que, quanto menor seja a liberdade da parte fraca, maior deve ser a intensidade da proteção.
Assim, afastada a liberdade e igualdade entre os sujeitos da relação, que constituem, segundo a melhor doutrina, as razões justificadoras da proteção conferida à autonomia pessoal, descabe protegê-la em detrimento dos direitos fundamentais lesados.
Nesse passo, caso a resposta à indagação antes formulada (“c”) seja negativa, vale dizer, tratando-se de relações entre sujeitos privados em situação de efetiva igualdade, o tratamento da questão sofrerá algumas adaptações.
Vale lembrar que valem aqui as mesmas considerações feitas nas alíneas anteriores[80]. O que ora se vai expor diz respeito às situações — entre indivíduos em posição de igualdade — em que não exista preceito legal expresso regulando o caso, e que não seja possível resolvê-lo através dos conceitos indeterminados e cláusulas gerais de direito privado.
Ausente a situação de poder conducente à fragilidade de uma parte em relação à outra, deverá o operador, mais uma vez, recorrer à técnica da ponderação. Terá, pois, que verificar se o direito fundamental invocado pelo indivíduo deve prevalecer em face do direto ou interesse da outra parte. Vale dizer, cumprirá examinar se a invocação direta do preceito constitucional consagrador do direito fundamental em causa é justificada pelas circunstâncias do caso concreto.
Julgamos, a princípio, que, em face da posição de igualdade entre os sujeitos, não se poderá admitir essa vinculação direta, de forma a atribuir ao indivíduo a posição de sujeito passivo dos direitos fundamentais em causa.
Os indivíduos, valendo-se do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e da liberdade negocial, estariam livres para pautar seus comportamentos e ajustar entre si mesmos seus direitos e interesses. A liberdade seria, pois, a regra nas relações entre sujeitos iguais.
É essa, aliás, a lição de Vieira de Andrade: “Por isso, propomos que a nossa Constituição seja interpretada no sentido de consagrar o princípio da liberdade como regra das relações entre indivíduos iguais. Os indivíduos, no uso do seu livre direito ao livre desenvolvimento da personalidade, devem poder autodeterminar os seus comportamentos e conduzir o seu projeto de vida, tal como lhes compete em primeira linha harmonizar e ajustar entre si, no uso da liberdade negocial, os seus direitos e interesses[81]”.
Afirmar a liberdade enquanto regra, contudo, não significa atribuir ao indivíduo a possibilidade de comportar-se — ante a lacuna do ordenamento privado e pressuposta a igualdade — de maneira a violar o direito fundamental de outro sujeito de mesma natureza.
É sob essa ótica que se impõe a fixação de limites a essa compreensão.
Ao nosso ver, o limite à liberdade — na dimensão em que foi referida — deve ser buscado na dignidade da pessoa humana, enquanto conteúdo essencial de todos os direitos fundamentais[82]. Vale dizer, não se deverá tolerar nenhum comportamento que ponha em risco tal valor, vez que “a dignidade humana, enquanto conteúdo essencial absoluto do direito, nunca pode ser afectada – essa é a garantia mínima que se pode extrair da Constituição[83].”
Nessa mesma linha, conclui Vasco Pereira da Silva, que, “entre iguais, fora do âmbito das relações de poder, não faz sentido falar de destinatários dos direitos, liberdades e garantias. Aqui, só se justifica a aplicação dos direitos fundamentais enquanto dimensão objectiva da ordem jurídica, impondo limites à liberdade individual, evitando que os cidadãos ponham em causa, pela sua actuação, o núcleo essencial dos direitos fundamentais de outrem[84].”
Por fim, diga-se que, embora se possa admitir a “diminuição” do âmbito de proteção encartado pelos preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais, mesmo nos casos em que a ameaça aos valores contidos em tais direitos seja tolerada pelo próprio indivíduo, como nas hipóteses de renúncia e auto-restrição, não se poderá aceitar que ele disponha do núcleo essencial, pois esse seria indisponível[85] até para o seu próprio titular.
5. A questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares na jurisprudência constitucional portuguesa
Inicialmente, cumpre lembrar que, no ordenamento jurídico português, não existe um meio específico para a defesa dos direitos fundamentais à semelhança do recurso de amparo espanhol ou da queixa constitucional, presentes nos direitos alemão, belga e suíço[86]. Isto não quer dizer, todavia, que, no cenário lusitano, tais direitos restem desprotegidos, pois o Tribunal Constitucional poderá tutelá-los através dos mecanismos de controle de constitucionalidade.
Sem caber aqui, por restrição temática, a análise destes mecanismos, limitar-nos-emos a referir que é no controle concreto, por via do recurso de inconstitucionalidade, que o Tribunal Constitucional encontra, em princípio, a sede oportuna para se pronunciar sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais[87].
Apesar da sonoridade que a presente discussão adquiriu em terras lusitanas, vale dizer que ainda não há, por parte do Tribunal Constitucional, qualquer manifestação expressa sobre a forma e a intensidade da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, não tendo esta Corte adotado ou rejeitado qualquer das teorias aqui tratadas, conforme nossa pesquisa jurisprudencial nos levou a concluir e segundo a abalizada afirmação de Gomes Canotilho[88].
Sem embargo, algumas decisões merecem referência.
No acórdão 198/85[89], relatado por J. M. Cardoso da Costa, o Tribunal Constitucional, analisando a argüição de inconstitucionalidade do art. 1216º do Código de Processo Civil, que autoriza o administrador da massa a abrir toda correspondência dirigida ao falido, asseverou que “independente do preciso significado que deva atribuir-se em geral, ou no âmbito de outros direitos fundamentais, à extensão da vinculatividade de tais direitos também às entidades privadas, o que é dizer, às relações jurídico-privadas (art. 18º, n.º 1, da Constituição), afigura-se indiscutível que o direito ao sigilo de correspondência é um daqueles que, por sua natureza, não pode deixar de ter um alcance erga omnes, impondo-se não apenas ao poder publico e a seus agentes, mas igualmente no domínio das relações entre privados.”
Note-se que a Corte Constitucional portuguesa, embora reconhecendo que certos direitos fundamentais foram talhados para valeram (rectius: terem eficácia) também nas relações entre particulares, limita-se a insinuar a existência do problema, sem, no entanto, posicionar-se em relação à extensão e forma da vinculação a que tais relações estariam submetidas.
Noutro caso, decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão 205/00, postulavam os autores o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e uma casa de habitação nele edificada, ao passo que os réus queriam, em reconvenção, que fossem eles, proprietários da referida casa, declarados igualmente proprietários do respectivo logradouro, adquirido por acessão.
Todas as instâncias, inclusive o Superior Tribunal de Justiça, deram ganho de causa aos réus, por força do art. 1340º do Código Civil português, aplicado no sentido de que “se alguém, autorizado pelo proprietário de um terreno, nele construir uma obra que lhe acrescente um valor superior ao que ele tinha antes, o autor da incorporação adquire automaticamente a propriedade do terreno, pagando o valor que este tinha antes da obra”. Essa, pois, a norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada.
argumentavam os recorrentes “que o direito de propriedade, sendo um direito constitucionalmente garantido e análogo aos direitos, liberdades e garantias, vincula directamente entidades públicas e privadas e só pode ser restringido com respeito pelas exigências definidas no artigo 18º da Constituição, nomeadamente a de que as restrições se limitem aos casos expressamente previstos na Constituição. Ora, a Constituição não permite a expropriação senão por utilidade pública, devendo entender-se que a acessão se traduz numa expropriação por utilidade particular. Assim, não existindo norma constitucional que admita a expropriação por utilidade particular, o artigo 1340º do Código Civil ‘constitui uma restrição ao direito constitucional fundamental de propriedade privada, restrição essa que não está expressamente prevista na Constituição como impõe o n.º 2 do artigo 18.º’, sendo portanto inconstitucional”.
Deixando-se de lado a solução normativa e os reparos às premissas dos recorrentes feitos pelo Tribunal Constitucional, atendo-nos, assim, aos aspectos relevantes para o tema ora tratado, percebe-se no acórdão em cotejo, embora não diretamente e tampouco com a intenção de fixar posição, que se cuida de situação na qual se opera a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais por intermédio da mediação do legislador.
Como se pode constatar de sua leitura mais atenta, ao asseverar que “(…) a acessão constitui, antes de mais, um mecanismo de resolução de um conflito de direitos, gerado pela sobreposição vertical de duas propriedades, a do dono da obra e a do dono do solo onde ela foi incorporada” e que “na verdade, perante a ocorrência de uma sobreposição de duas propriedades distintas, não suportada por um direito de superfície validamente constituído (nem em nenhuma outra situação legalmente admitida de sobreposição de propriedades), a lei vem arbitrar o possível conflito daí emergente, mediante a fixação abstracta de um critério de prevalência”, está o Tribunal Constitucional a afirmar que cabe ao legislador, através das leis, dar o alcance dos direitos fundamentais nas relações entre particulares[90].
Isto não significa, entretanto, que se possa dizer que esta decisão consagre a teoria da eficácia mediata, pois o entendimento de que cabe a lei, num primeiro plano, regular as situações conflituosas entre os direitos fundamentais dos sujeitos privados, também é sustentado pelos defensores da eficácia imediata[91], consoante supra exposto.
Por fim, cite-se o acórdão 259/98, no qual o Tribunal Constitucional, apreciando recurso que tem como pano de fundo ação de despejo, na qual se discutia o limite ao exercício, pelo senhorio, do direito de denúncia do arrendamento, em razão de alteração no Regime de Arrendamento Urbano, reconhece a noção dos direitos fundamentais como ordem objetiva de valores, cuja influência irradia por todo o sistema normativo, inclusive no Direito Civil, que deve observá-la na elaboração das suas normas.
Eis a passagem da decisão onde a questão é abordada: “Mas o sistema de Direito Civil é influenciado jusfundamentalmente como os demais âmbitos do Direito. Isso é uma consequência do efeito de irradiação dos direitos fundamentais e da sua ‘propriedade como direito constitucional objectivo vinculante’ (H. C. Nipperdey). As normas sobre direitos fundamentais, enquanto princípios objectivos, valem para todos os âmbitos do direito. ‘O Estado está obrigado a tê-las em conta na legislação civil’ (Alexy)”.
Sucede que a mera afirmação acerca da noção de direitos fundamentais enquanto ordens de valores pouco ou nada diz quanto a adoção de qualquer das teorias de eficácia destes direitos entre particulares, uma vez que a mesma é reconhecida por todas as teorias, como retro apontado[92].
Conclusão
O tema tratado no presente estudo, conforme visto, pode ser enfocado sob várias perspectivas. A problemática aqui ventilada, qualquer que seja a abordagem escolhida, poderá dar margem ao surgimento de uma vasta gama de questões, que podem ir desde o sentido a ser dado ao instituto dos direitos fundamentais na ordem jurídica, até mesmo a definição do papel dos poderes Judiciário e Legislativo no âmbito da divisão dos poderes.
A problemática da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, portanto, longe de estar encerrada, encontra-se palpitante e verdadeiramente sedutora para aqueles que pretenderem empreender algum esforço investigativo em direção à essa questão.
Conforme enfatizado no início deste estudo, não pretendíamos esgotar o tema, mas apenas apresentá-lo, sem embargo de tentar — num esforço sobretudo simplificador, frise-se — dar o nosso contributo ao entendimento do assunto, oferecendo critérios coerentes e adequados à ordem jurídica portuguesa.
Esperamos, pois, que nossa empreitada tenha se revelado, em alguma medida, útil.
Informações Sobre o Autor
Fabricio Torres Nogueira
Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Professor de Direito Administrativo da Faculdade Ruy Barbosa Grupo DeVry. Procurador do Banco Central do Brasil