Resumo: Pasquale Stanislao Mancini foi uma figura atípica na história italiana do século XIX. Político jurista e professor nas universidades de Nápoles de Roma e de Turim Mancini nasceu em Castel Baronia em 1817 e morreu em Nápoles em 1888. Tendo desempenhado diversas funções públicas uma de destaque talvez seja a de ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino da Itália. Neste cargo negociou e assinou o tratado que constituiu a Tríplice Aliança com Alemanha e o Império Austro-húngaro um instrumento que entrava em conflito direto com a teoria da nacionalidade que elaborara e com a sua história pessoal de homem de esquerda. Neste artigo cabe lembrar a importância e o reconhecimento que teve Mancini para formação de uma teoria científica do Direito Internacional bem verdade bastante incipiente. A autoridade reconhecida ao italiano projetou-se além das fronteiras do Reino ao passo que seus princípios de direito internacional privado passaram a ser definidos pelo mundo acadêmico como próprios da escola italiana.[1]
Introdução
Pasquale Stanislao Mancini, como nos informa Tito Ballarino[2], foi uma figura atípica na história italiana do século XIX. Político, jurista e professor nas universidades de Nápoles, de Roma e de Turim, Mancini nasceu em Castel Baronia, em 1817, e morreu em Nápoles, em 1888. Tendo desempenhado diversas funções públicas, uma de destaque talvez seja a de ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino da Itália. Neste cargo, negociou e assinou o tratado que constituiu a Tríplice Aliança, com Alemanha e o Império Austro-Húngaro, um instrumento que entrava em conflito direto com a teoria da nacionalidade que elaborara e com a sua história pessoal de homem de esquerda.[3]
O jurista italiano se tornou famoso devido ao emprego que fez do princípio de nacionalidade no campo do direito internacional privado. Em uma famosa conferência, intitulada Del principio della nazionalità come fondamento del diritto delle genti, proferida em 1851 e publicada posteriormente no volume Diritto internazionalle. Prelezioni, Mancini sustenta a tese que “[…] na gênese dos direitos internacionais, a Nação, e não o Estado, representa a unidade elementar, a mônade racional da ciência”.[4]
Ainda, Mancini considera que a consciência nacional é o grande princípio unificador da nação, salientando que todos os Estados que não têm por base uma nação são Estados artificiais. A nação, em contrapartida, "indica um particular conceito etnico‑histórico‑psicológico, dirigido a configurar um conjunto de homens vinculados por laços comuns de raça, história, língua, cultura e consciência nacional[5]". Nestes termos, a nação é "uma sociedade natural de homens com unidade de território, de origem, de costumes e de língua com uma comunidade de vida e de consciência social[6]", enquanto o Estado não passa do ordenamento jurídico da nação.
Nesse sentido, Ballarino[7], em introdução à publicação de Mancini em Língua Portuguesa, sabiamente propõe a pergunta: “à qual linha ideológica pertencia o princípio da nacionalidade elaborado por Pasquale Stanislao Mancini?”, ao que Erik Jayme prontamente responde:
“Ele utilizou o vocabulário abstrato do direito natural para apoiar a nova ideia da Nação que se realiza como pessoa concreta. Deste modo, ao mesmo tempo, ele traduzia as exigências do seu tempo, assim como estas encontraram expressão na literatura política. Em tal literatura, vem sobretudo colocada em evidência a ideia da soberania das Nações, à qual respeita a tarefa de despedaçar os grilhões da dominação estrangeira.” [8]
Por fim, nesta breve introdução, cabe-nos lembrar a importância e o reconhecimento que teve Mancini para formação de uma teoria científica do Direito Internacional, bem verdade, bastante incipiente. A autoridade reconhecida ao italiano projetou-se além das fronteiras do Reino, ao passo que seus princípios de direito internacional privado passaram a ser definidos pelo mundo acadêmico como próprios da “escola italiana”.
O trabalho aqui apresentado será dividido da seguinte maneira: na primeira parte, apresentaremos um breve antecedente histórico às ideias de Pasquale Mancini, tentando mostrar o contexto político e social em que se inseria o pensador italiano, sobretudo naquilo que se refere à ideia de cidadania e nacionalidade, e sua oposição aos ideias liberais; na segunda parte, analisaremos com mais profundidade a proposta apresentada por Mancini em Turim, em sua preleção ao Curso de Direito Internacional e Marítimo, posteriormente publicada sob o título Del principio della nazionalità come fondamento del diritto delle genti; por fim, na terceira parte, faremos considerações finais, à guisa de conclusão.
Da revolução americana ao estado liberal[9]
O movimento de independencia dos Estados Unidos foi fortemente conduzido pelo pensamento político de Thomas Jefferson e pela forma ele concebe a cidadania. De forte influência do direito romano clássico e do princípio de cidadania elaborado pelos juristas da Roma antiga, Jefferson sustentava que o sistema jurídico deveria criar e desenvolver, de forma constante, os pressupostos para a tutela dos direitos fundamentais dos seus cidadãos.[10] Ainda, defendia a existência de direitos naturais, inalienáveis e absolutamente auto-evidentes a todos.
A grande contribuição de Jefferson ao entendimento do conceito de cidadania é a introdução entre os direitos naturais do direito à busca da felicidade, o qual passou a ser intimamente ligado ao princípio da igualdade, uma vez que, segundo o ex-presidente americano, o combate às desigualdades era a única forma de se garantir o direito à busca da felicidade. Nesse sentido, apesar de ser fiel à ideia do Estado mínimo, Jefferson acredita que o Estado desempenha um papel central na luta contra as desigualdades, as quais tornam inefiz o direito, trazendo consequências que vão além dos princípios teóricos do liberalismo clássico.[11]
Como apresenta Dal Ri Jr., “os efeitos do processo de transição por qual passou o conceito de cidadania na Europa entre o fim da Revolução francesa e o início do Liberalismo se faz sentir durante todo o século XIX.” Nesse sentido, começou a nascer uma nova cultura jurídica e política, ligada à exaltação da singularidade e da individualidade das coletividades humanas: as nações. Desse modo, “o povo, vale dizer, a nação, dotada de própria individualidade, passa a ser o sujeito político”.[12]
Friedrich Carl von Savigny, jurista alemão, já em 1849, comentava o fato de a ideia de nação e nacionalidade ter se tornado uma das tendências dominantes na época.
Seguindo os passos da teoria de Savigny, a obra do jurista italiano Pasquale Stanislao Mancini pode ser apresentada como a primeira contribuição sistematizada sobre o princípio da nacionalidade na nascente ciência do direito internacional. Muito influenciado por Savigny, Mancini foi um dos principais pensadores que colaboraram para as tendências de exaltação da nação na Europa do século XIX. Para o jurista italiano, somente as nações deveriam ser consideradas sujeito de direito, uma vez que apresentam uma identidade com elementos naturais e históricos comuns, assim como uma consciência social.
A região, a raça, a língua, os costumes, a história, as leis e as religiões os elementos que compunham a natureza de cada povo e nação. “Desta intimidade comum, nasceria uma consciência comum, que serviria como “elemento espiritual animador das nacionalidades”.[13] A ideia mãe da nascente ciência do Direito Internacional de Mancini é, portanto, não o Estado, como queriam os liberais e contratualistas, mas a nacionalidade. A nação, em suma, mesmo diante do declínio do Estado, não pereceria – o que, muito depois de Mancini, poderia ser em parte verificado com o Império Russo, URSS e Federação Russa, ligados por passado e costume comuns.
À época em que o autor italiano escrevia, em pleno século XIX, iniciava-se o processo que iria realizar a unificação da Itália, cujo território encontrava-se, até aquele momento, retalhado em diversos principados e em pequenos Estados. Justamente por ser partidário da unificação do Reino, Mancini afirmativa suas teses de que, no direito internacional, seria a “Nação” o ator a ser levado em conta, e não o Estado, sustentando que aquela deveria tomar para si a condição de protagonista do direito no cenário internacional, lançando sua força de entidade natural contra a artificialidade daquele que, até então, por grande parte dos pensadores era considerado o sujeito por excelência: o Estado.[14]
A concepção de “Nação”:
[…] “historicamente construída, livre de conflitos ideológicos, políticos ou religiosos, mais unida pelo amor à pátria do que pelo ódio às demais nações, contextualiza o jurista italiano entre as correntes idealistas e românticas do século XIX. Trata-se de uma característica que propiciou a absorção de alguns dos principais elementos do universalismo proposto por Savigny no campo do direito internacional privado.”[15]
O Estado, por sua vez, constituir-se-ia a partir do momento em que a “Nação” houvesse iniciado seu processo de organização política, em uma segunda etapa de vida da coletividade humana, momento em que esta última já se reconhecesse como detentora de sua própria individualidade por meio de elementos historicamente bem definidos.
Del principio della nazionalità come fondamento del diritto delle genti
A Busca por uma Teoria Científica do Direito Internacional
Pasquale Mancini, em Del principio della nazionalità come fondamento del diritto delle genti, parece bastante preocupado com os caminhos que a ciência do século XIX estava tomando. Nos últimos cem anos, segundo ele, houvera uma mudança nas bases e no aspecto de todas as ciências, o que acabou transcorrendo infrutuosamente para aquela do Direito das Gentes.
Mancini, citando Pellegrino Rossi, sustenta que
“O Direito das Gentes está ainda no miserável estado do empirismo. Se em algumas obras aparenta formas científicas, não passa de aparência enganadora porque carece de princípios próprios que possam suportar todas as suas consequencias, de deduções necessárias que satisfaçam a inteligência e comandem a convicção, de regras que não estejam sufocadas por numerosas exceções, de doutrinas que não se vejam obrigadas a transigir sob duras condições com as doutrinas contrárias. Isso porque nele tudo ainda parece indeciso, móvel como os acontecimentos, como os interesses, como as opiniões e os desígnios daqueles que presidem as transações políticas dos grandes Estados, porque, finalemente, as fórmulas dessa ciência, na maior parte, não se tornaram senão uma tradução servil dos fatos e da vontade da diplomacia dominante, daquela cujos esforços, legítimos ou não, tenham sido coroados pelo sucesso.”[16]
A refundamentação do Direito das Gentes a que se propõe Mancini tem suas bases no pensamento de Giambatistta Vico, a quem Mancini faz elogios frenquentes, pelo fato de, segundo ele, “ter clareado com um raio de luz as cores opacas”[17] da evolução da ciência na Europa do século XIX. Vico, como ponto de partida para criação de uma nova ciência, assume múltiplos rostos e encerra em si o segredo da reforma de todas as disciplinas morais e sociais. “Mas qual é propriamente a nova ciência a que ele está ciente de ter encontrado e para cuja construção anseia com solicitude peculiar e ardor?[18]”, pergunta Mancini. A Filosofia da História, responde-se comumente. “E eu não nego que ela realmente, por obra dele, brote do estudo das leis que presidem as manifestações da humanidade”.[19]
Vico, em vida, declarava que “foi procurar os novos princípios do direito natural dos povos dentro daqueles da humanidade das nações, isto é, em sua natureza comum que descobre uma moral, uma política e uma jurisprudência naturalmente comuns a todas as nações”.[20]
Apesar dos esforços de Vico, Mancini, entretanto, lamenta que não houvesse editores que quisessem publicar seus livros, que as universidades para as quais Vico enviara seus textos não os leem, e que seu conceito fosse inutilmente ligado à posteridade que iria esquecê-lo. A olhada retrospectiva que demos aos primórdios e aos incrementos do direito internacional, à época de Mancini,
“Se de um lado chega a nos convecer da atual imperfeição da disciplina, naturalmente nos impele a perguntar se poderia se constituir num erro ou, sobtretudo para nós italianos, não deveria se constituir num dever e quase uma reparação, seguindo as pegadas de tão grandes nomes de nossos mestres, continuar sua obra que permaneceu até hoje infecunda e negligenciada e retomar as pegadas dos mesmos na busca dos princípios desta ciência.”[21]
Mancini, na tentativa de prosseguir com a “árdua tentativa” acredita que, para se chegar à verdade fundamental de uma ciência deve-se remontar sempre e necessariamente ao princípio de uma ciência mais geral,
“Na qual a outra esteja incluída na árvore genealógica do saber humano e, desta, ainda mais para o alto até atingir a filosofia primeira do entendimento que, ao preparar os fundamentos mais distantes de que os homens necessitam para atestar a verdade nas coisas particulares, bem mereceu ser chamada a ciência das ciências.”[22]
A observação do jurista italiano nos lembra daquele conceito aristotélico, o de dever encontrar na definição de qualquer objeto a ideia do gênero e aquela da diferença. A primeira seria, então, aquela dada por uma ciência mais ampla e abrangente. A segunda, pelo contrário, reinserida num elemento específico que encerre a própria natureza do ser e o distinga dos outros.
Disso se segue que
“A ciência do Direito Internacional, sendo daquela do Direito Humano Universal como espécie desse gênero, é imposta antes de tudo ao espírito a necessidade lógica de reconhecer como a base mais ampla e profunda, sobre a qual o edifício inteiro possa ser erguido, o próprio princípio gerador do Direito Universal.”[23]
O Princípio da Nacionalidade
Com as premissas até aqui apresentadas, pode-se dizer que está aberto o caminho para reconhecer na coexistência das nacionalidades, segundo a lei do Direito, o fato principal da ciência de Mancini, sua primeira verdade, sua teoria fundamental.
Assim que o Homem nasce, diz Mancini, ele conhece e ama aqueles de quem nascera e que o criaram, a casa ou cabana em que primeiro abriu os olhos. Depois que cresce um pouco, ainda na sua juventude, conhece e ama a terra em que habita, as muralhas do vilarejo natal, os homens que nem vivem juntamente com ele. “Esses instintos da criação são o germe de duas poderosas tendências do Homem adulto, especialmente de duas leis naturais, de duas formas perpétuas da associação humana: a família e a nação[24]”. A nação, portanto, em sua primitiva gênese histórica, não pôde ser senão a própria família, a qual se ampliou por descendência e por gerações sobre o espaço do território que ocupava ou uma associação de famílias unidas entre si por casamentos e alianças.
E, no entanto, a ciência dos primórdios da humanidade foi deixada de lado de tal forma que “enquanto em nossos dias vemos numerosos campeões levantarem-se em defesa da instituição da família ameaçada de ímpios desmandos, tão raras foram as vozes que se levantaram para defender a causa das nacionalidades oprimidas[25]”.
Mancini acredita que a ciência, em tamanha riqueza de variedades particulares, bem pode omitir todas aquelas que sejam realmente acidentais e de contingência fugaz. A região, a raça, a língua, os costumes, a história, as leis, as religiões, no entanto, são aquelas propriedades e fatos constantes a que a ciência deve se aferrar à análise, os quais, em conjunto, compõem a própria natureza de cada povo distinto.[26]
Nesse sentido, o elemento geográfico, que influenciaria as habilidades e o desenvolvimento civil e políticos dos homens nas várias regiões, a raça, expressão por excelência de uma identidade de origem e de sangue, a língua, vínculo mais forte da unidade nacional, e, em consequência destas, as crenças religiosas, os costumes, as leis e as instituições são, para Mancini, os elementos mais importantes para constituição da Nação. Sem a consciência da nacionalidade, “o sentimento que ela adquire de si mesma e que a torna capaz de se constituir internamente e de manifestar externamente[27]”, no entanto, não seria possível a constituição de uma nação. A consciência da nacionalidade é que irá formar a unidade moral de um pensamento comum, de uma ideia predominante que faz de uma sociedade o que ela é.[28]
Considerações finais
Se no direito das nacionalidades, como Mancini acreditava, está a raiz e o fundamento verdadeiro e primeiro de todos os demais direitos entre as nações, ou seja, se “na gênese dos direitos internacionais a Nação e não o Estado representa a unidade elementar, a mônade racional da ciência”[29], então a ideia mãe da ciência do direito internacional e das relações internacionais não é o Estado, mas a nacionalidade, que o precede e o sucede
“Nós não sonhamos certamente com um eventual Estado natural, anterior ao de sociedade, como a origem de qualquer direito do homem social. Mas se um imperioso comando da própria natureza social do homem levou as primitivas agregações humanas a constituir seus governos e tornar-se progressivamente Estados, em tal transformação tudo o que há de original e inato é aquela espontânea associação preexistente, esboço de nacionalidade, como se fosse imperfeitamente ordenada, sendo todo o resto evidentemente obra dos homens e de seu consenso.”[30]
Cabe, à guisa de conclusão, lembrar que a obra de Pasquale Mancini, embora tenha sido alvo de diversas críticas ao longo dos séculos XIX e XX, sustentou três princípios básicos, embora neste trabalho tenhamos tratado especificamente apenas do primeiro: o princípio da nacionalidade, o princípio da liberdade e o princípio da soberania. As teorias de Mancini foram acusadas de sustentar pressupostos que apresentavam elementos subversivos, excludentes e utópicos, justificando que tinham nascido em berço aos anseios unificadores do romantismo que envolvia a época de sua elaboração, sendo, por isso, datada, e em favor do patriotismo italiano. Independente das críticas, no entanto, é possível constatar que, de fato, o princípio da nacionalidade exercitou uma influência notável sobre o desenvolvimento das doutrinas de direito internacional privado, não só no âmbito da escola italiana, mas da matéria em geral.[31]
Referências:
COELHO, Nuno Manuel Morgadinho dos Santos. FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA INTERPRETAÇÃO DO DIREITO – O ROMANTISMO. Juiz de Fora: Rideel, 2012. Disponível em: <http://150.162.138.7/documents/2353>. Acesso em: 29 jun. 2014.
DAL RI JR., Arno. História do Direito Internacional: Comércio e Moeda, Cidadania e Nacionalidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
DAL RI JR., Arno; POZZATI JR., Ademar. A Construção da Cooperação Jurisdicional nos Pressupostos Teóricos da Obra de Pasquale Stanislao Mancini (1851-1872). Sequência, Florianópolis, v. 65, n. 65, p.1-32, 04 out. 2012. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2012v33n65p273>. Acesso em: 22 jun. 2014.
MANCINI, Pasquale Stanislao. Diritto Internazionale. Prelezioni. Ijuí: Unijuí, 2003.
Informações Sobre o Autor
Gabriel de Rezende Piccinini
Acadêmico de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina