O presente trabalho visa fixar noções basilares sobre a evolução histórica das tutelas de urgência, desde o advento da tutela interdital na Roma Antiga, até o surgimento das ordenações régias na França, no começo do século XIX, assim como no Reino Português, vindo a influenciar, de maneira direta, a construção da teoria das tutelas de urgência no processo civil pátrio moderno.
Introdução.
É plenamente possível se traçar um paralelo entre procedimentos do direito atual, que se iniciam com atos decisórios, precedidos de cognição sumária e coercitivos, com os interditos do antigo processo civil romano.
Roma Antiga.
A tutela interdital, na Roma Antiga, consistia em ordem emitida pelo "praetor" romano, impondo certo comportamento a uma pessoa, a pedido de outra, com nítida feição mandamental; ou promovendo atos executórios, como ocorria na "missio in possessionem".
Enquanto isso, o juiz privado ("iudex") do procedimento formulário e depois os magistrados do processo extraordinário – já na fase de declínio do Império Romano – se limitavam a produzir sentenças meramente declaratórias, insertas na "condemnatio".[1]
Desse modo, regulamentando-se direitos absolutos, o processo civil romano se valia da tutela emanada do "jus imperium" do pretor; enquanto que os direitos de obrigações eram amparados pela "actio", num juízo privado que inadmitia execução específica, e na qual havia pleno e absoluto contraditório.
Se assemelhava, assim, a tutela interdital romana com a técnica da antecipação de tutela, posto que o pretor antecipava a execução ou o mandamento no próprio processo cognitivo, independentemente de processo autônomo, mediante uma ordem liminar, com uma cognição sumária das afirmações do autor, se feitas conforme o édito.
Bedaque aponta doze exemplos de tutelas dessa natureza, sendo dez só nas Pandectas de Ulpiano e Paulo, como, v.g., a tutela sumária da posse ("actio exhibendum"), direito a alimentos, direito de menor e do nascituro à herança ("bonorum possessio ex carboniano e nasciturus"), dentre outros.[2]
Como antecedentes da moderna tutela cautelar, Bedaque aponta a "manus iniectio" e a "pignoris capio"[3], respectivamente, relacionadas com confissão de dívida e apossamento de coisa do devedor.
A técnica do processo sumário, mais abreviado e voltado para a solução de casos emergenciais, originou-se, assim, a partir dos interditos do antigo direito romano, sendo que o Direito canônico ampliou esta utilização, para hipóteses que envolvessem a posse de direitos pessoais[4], com os interditos possessórios da "juditia extraordinaria"[5].
Os dois sistemas de processo civil, então reinantes na Roma Antiga, acabaram por se unificarem, com a extinção do processo formulário na época do Baixo Império, decorrendo daí a publicização total da "actio", expressão que passou a englobar, também, os interditos, eliminando-se, assim, a fase particular ("in juditio").[6]
Idade Medieval.
A partir do Direito Canônico, desvirtuando-se a concepção clássica romana, passou-se a se usar o mecanismo sumário dos interditos em questões possessórias, já a partir do século XIII em inúmeras regiões européias, da Espanha à Alemanha, na qual eram nominados de "inhibitiones", enquanto ordens judiciais liminares para a tutela do interesse reclamado ("mandatum").
Tais mandados germânicos podiam ser expedidos com ou sem cláusula justificativa, já albergando em si noções a respeito de "periculum in mora" e "fumus boni iuris", vindo a se constituir no fundamento principal das atuais medidas cautelares, e do próprio mandado de segurança.
Observe-se que tal redescoberta da fórmula interdital romana no final da Idade Média e início do período renascentista deveu-se, em boa parte, ao aparecimento de novas relações jurídicas, impulsionadas por novas modalidades de conflitos de interesses, especialmente mercantis, e pela necessidade de suprimento de recentes peculiaridades do direito substancial, como o surgimento dos títulos executivos.
Os interditos romanos são indicados, pois, como antecedentes da tutela cautelar, já que assemelhados às liminares atuais, contendo ordem de tutela provisória. Diferem, no entanto, da tutela antecipatória, posto que, ao contrário desta, os interditos podiam implicar a satisfação definitiva da pretensão material.
Na Lei das XII Tábuas, se encontram modalidades de tutelas autônomas que se pareciam com a cautelar, a saber: o "addictus" e o "nexus".
Pelo primeiro, encontrado na Tábua III, o devedor era mantido em cárcere pelo credor por sessenta dias, como verdadeira garantia de crédito, até que pagasse o débito. Se não pagasse, a medida cautelar se convertia em executiva, podendo o devedor ser vendido além do Tibre ("trans Tiberium") e reduzido à escravidão, ou mesmo morto.
Pelo "nexus", o devedor se submetia espontaneamente ao credor e era liberado após pagar a dívida com seu serviço.
Tal período do processo civil romano ficou conhecido como das "legis actiones"[7], em que as partes em conflito dispunham das "ações da lei" (das XII Tábuas), na qual se tratava de um sistema nitidamente processual, em que as partes não invocavam "seus direitos", mas sim "suas ações"[8].
Dentre estas ações, na "legis actio sacramenti"[9], haviam algumas figuras com características cautelares, como a "vas", que garantia o comparecimento do réu, os "praede sacramenti", que asseguravam o cumprimento da aposta, através da figura do "praes", que garantia a dívida na ausência do devedor principal, e do "vindex" ou "praedes litis et vindiciarum", na já mencionada "legis actio per manus iniectionem"[10], que seria condenado ao pagamento em dobro.
A tutela cautelar, jurisdicional ou convencional, foi mantida pelo pretor romano, seja no período "per legis actiones", seja no período formulário[11], mediante providências como o seqüestro, a "operis novi nuntiatio" (nunciação de obra nova), interdito proibitório, "cautiones"[12], "missiones in possessionem", a "cautio damni infecti" (caução de dano não-feito), dentre outras.
Essas medidas cautelares visavam garantir a atuação prática da tutela concedida pelo "ius civile" ou pelo pretor contra eventuais violações.
De mais a mais, nota-se, de forma límpida, que a origem da tutela cautelar liga-se à garantir o próprio direito material, enquanto previsão estabelecida por acordo de vontades, dirigidas a assegurar o adimplemento das obrigações.
No direito intermédio, a expressão "cautio" não mais representava uma fórmula genérica de cautela, mas sim medidas específicas, a exemplo da fiança, constituição em penhor, depósito-seqüestro, imissão do credor na posse de uma coisa do devedor ou de terceiro e a "arrestverfüngung"[13] (fonte do moderno seqüestro conservativo).[14]
Com o advento do processo romano-canônico ("processo comum"), influenciado pelos glosadores, e pela presença marcante da Igreja Católica, viu-se que o mesmo era moroso, excessivamente formal e complicado.
Por influência da Decretal de Clemente V, de 1306, alcunhada "Clementina Saepe", surge o procedimento sumário, mais simplificado, seja com cognição plena ou sumária, designado por executivos. Nesses, pela regra decretal "in procedendo", atuava-se "simpliciter et de plano ac sine strepita et figura judiciis".
Com o surgimento do absolutismo monárquico, na França, as "ordennance" (ordenações régias) simplificavam o processo civil, abolindo as formalidades do processo romano-canônico, se caracterizando pela simplicidade, oralidade, publicidade e ampla dispositividade.
É famosa a "Ordonnance" de 1667 de Luís XIV, que foi praticamente transcrita no "Code de Procedure Civile" de 1807, influenciando os Códigos da Bélgica, Rússia, Holanda, e, indiretamente, o Código Italiano de 1865, a "Zivilprocessordnung" alemã de 1877 e o Regulamento Processual Austríaco de 1895.
Na península ibérica, por força das diversas invasões, até por árabes, o processo civil foi influenciado pelo Código de Alarico ("Breviarum Aalaricianum" ou "Aniani"), de 506, que era um extrato do sistema romano, e, depois pelo Código visigótico, também conhecido como "Fuero Juzgo" ou "Forum Judicum", de 693, diploma de fundo romano-gótico.
Quanto à legislação de Portugal, no campo processual, a "Fuero Juzgo" e algumas Cartas Forais vieram a ser substituídas pelas Ordenações Afonsinas, baixadas em 1446 pelo Rei Afonso V; após revogadas, em 1521, pelas Ordenações Manuelinas, pelo Rei D. Manuel. Posteriormente, e já influenciando o período colonial brasileiro, advieram as Ordenações Filipinas, do Rei Felipe II da Espanha e I de Portugal, que tratavam da parte processual em seu Livro III.[15]
Conclusões.
O antigo processo civil romano se dividiu em dois períodos bem delimitados: a "ordo judiciorum privatorum" e a "cognitio extra ordinem".
No primeiro, o processo se cindia em duas fases: "in iure" e "in juditio", e subdividido em dois procedimentos: o da "legis actiones" e o "per formulam". A fase "in iure" era a da escolha da ação da lei ou da fórmula, e a "in juditio", perante o "iudex" ou "arbiter", onde se sucediam a instrução e julgamento.
Já na "cognitio extra ordinem", enquanto embrião da atual jurisdição, há a atuação de funcionário do governo incumbido da solução dos conflitos judiciais.
Assim sendo, com as invasões bárbaras e o predomínio da defesa privada, para garantir a execução, se difundiu uma espécie de execução antecipada, incidente em princípio sobre a pessoa do devedor e secundariamente sobre seus bens.
Com o avanço da idéia de autoridade do magistrado, a situação se inverteu. Os sistemas germânico-barbáricos passaram a assumir feições semelhantes às existentes no direito romano clássico.
Notas
[1] SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, pp. 09-10. A "missio in possessionem" nada mais era do que o "seqüestro da coisa litigiosa", que era entregue a um terceiro eqüidistante com deveres-poderes de depositário enquanto pendia a causa, e na preparação para a expropriação através da "honorum vendito". Cf. FUX, Luiz. Tutela de segurança e tutela da evidência. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 165.
Informações Sobre o Autor
André Luiz Vinhas da Cruz
Procurador do Estado de Sergipe, Advogado, Tesoureiro da APESE (Associação dos Procuradores do Estado de Sergipe), Sócio do IBAP (Instituto Brasileiro de Advocacia Pública), Professor de Direito Empresarial da Faculdade São Luís (FSL/SE), da ESMESE (Escola Superior da Magistratura de Sergipe) e da Escola Superior da APESE, Professor de Direito Civil e Processual Civil do JUS FORUM, e Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (UGF/RJ)