A exceção de pré-cognição

Há algum tempo já se admite a Exceção de Pré-Executividade, que serve ao executado para opor-se ao processo executivo, mesmo sem a garantia do juízo e o oferecimento dos embargos à execução meio clássico de defesa, em via de ação, que suspende a execução.

Na Exceção de Pré-Executividade o objeto é mostrar ao juízo que o processo de execução não reúne suas características elementares como título executivo, faltando-lhe liquidez, certeza e/ou exigibilidade. A ausência desses mínimos pressupostos poderia, e deveria, ser notado de ofício pelo juízo, não dependendo de qualquer manifestação da parte executada. Todavia, como isso pode não ocorrer, a exceção torna-se meio legítimo da parte afetada de salientar ao juízo a ausência desses elementos mínimos que ensejariam o título executivo, contribuindo para destacar a falta de condições para o processamento da ação.

Nos primeiros momentos em que se trabalhou a idéia da exceção de pré-executividade, muita resistência foi criada à sua aceitação. E o principal argumento para repelir esse caminho foi o de que não está contemplado na lei, havendo ausência de previsão na ritualística do processo para tal manifestação.

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Entretanto, a resistência foi superada, e hoje a exceção de pré-executividade é via amplamente utilizada e largamente aceita pela doutrina e jurisprudência. Aliás, inúmeras obras doutrinárias foram lançadas especialmente sobre o assunto.

Agora, especula-se sobre uma outra novidade, muito semelhante, porém de aplicação distinta e muito interessante – A Exceção de Pré-Cognição.

Esta pretende opor-se ao recebimento e desenvolvimento regular do processo de conhecimento. Nesse momento, pode estar passando por sua mente, “mas, se no processo de conhecimento haverá o exercício amplo do direito de defesa a ser desenvolvido pelo réu, então por que se falar em exceção, se o que na exceção puder ser carreado, poderá também ser combatido no exercício da regular defesa, como no processo civil, na contestação, inclusive por meio de argüição de preliminares e prejudiciais? E, no processo penal, pela Defesa Prévia e, posteriormente, pelas Alegações Finais?”.

Sem dúvida, a indagação é muito pertinente, por isso mesmo essa medida deve ser vista como diz sua denominação, uma EXCEÇÃO, que se aplicará apenas a algumas hipóteses, cujo processamento da ação não possa ser obstado desde o princípio, com o regular exercício da defesa, previsto no ordenamento processual, e a continuidade do processo de conhecimento represente grande nocividade para o requerido.

Esse exemplo é freqüente na esfera do processo penal, eis que recebida a peça acusatória (denúncia ou queixa), não poderá ser extinto, salvo a extinção de punibilidade que se admite a qualquer tempo, senão na própria sentença de mérito que se dará após ultimada a fase do art. 500 do CPP (alegações finais), o que pressupõe todo o curso do processo de conhecimento em primeira instância.

Aliás, o próprio ordenamento processual contempla a hipótese de uma exceção de pré-cognição, porém, com denominação diversa, quando prevê a manifestação da defesa antes do juízo de admissibilidade da ação, como, por exemplo, o funcionário público e a resposta preliminar (art. 514 do CPP), nas ações de improbidade administrativa e a defesa (art. 17, da Lei nº 8.429/92), na nova lei de entorpecentes (art. 38, da Lei nº 10.409/2002), no crime de imprensa (art. 44, da Lei nº 5.250/67), nos crimes contra a honra (art. 520 do CPP), no rito dos juizados especiais (art. 81,da Lei nº 9.099/95), além de outras.

Essa previsão legal preocupa-se em permitir o exercício da defesa, notadamente, sobre o foco da admissibilidade da ação, pela ausência de requisitos elementares para seu processamento, reconhecendo dois aspectos importantes: primeiro, que o juiz pode ser alertado da ausência de condições e pressupostos essenciais para a admissão da ação; segundo, que representa nocividade ao réu que deseja evitar o processamento de ação sem as mínimas condições para o seu curso regular.

Todavia, em que pesem muitas hipóteses contempladas na legislação, sobre essa resposta da defesa antecedente ao juízo de admissibilidade da ação, o que equivale a uma exceção de pré-cognição, diversas outras não guardam previsão semelhante, comportando, portanto, pela excepcionalidade, a Exceção de Pré-Cognição.

E isto porque se o ordenamento processual não fez previsão de uma oportunidade em que a Defesa pudesse salientar ao juízo, a inocorrência das condições e pressupostos válidos para o processamento da ação, embora tenha previsto o juízo de admissibilidade da ação por parte do juiz, é porque identificou essa análise relevante para admitir-se a ação. Porém, deixou tal análise apenas ao diagnóstico do juiz, sem a intervenção da defesa, o que, sem dúvida, facilita a ausência de constatação de certos detalhes que poderiam ser visualizados pelo auxílio do exercício da defesa.

É exatamente esse o objetivo da Exceção de Pré-Cognição – aclarar a visualização de certos detalhes que poderão passar desapercebidos pelo juiz, no juízo de admissibilidade da ação, o que implicaria em admitir ação que não deveria ser admitida, o que, então, no geral, só poderia ser combatido, em matéria processual penal, pela via da ação de Habeas Corpus, onde se pretenda o trancamento da ação penal, o que se reconhece ser reduzida a viabilidade para esse fim, face às peculiaridades dessa impetração.

Nem há que se dizer que, se a legislação processual não prevê essa manifestação da defesa anteriormente ao juízo de admissibilidade da ação, embora a preveja em alguns ritos processuais, é porque não é admissível sua intervenção nos demais casos. Tal assertiva iria se confrontar com alguns preceitos constitucionais relevantes, a saber: primeiro, o princípio da ampla defesa (art. 5º, LV da CF), que não cerceia nenhuma manifestação, dando plenitude a esse direito; segundo, ao direito constitucional de petição (art. 5º, XXXIV, “a”), que estabelece a ampla liberdade de peticionar; e também ao direito de acesso à prestação jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV), que define que a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito, por conseguinte, não seria a ausência de previsão da lei que impediria o direito de levar ao juiz o conhecimento de que admitir a ação representará ameaça ou lesão a direito do réu.

Ademais, é oportuno recordar que já é pacífico na jurisprudência que o despacho do juiz que recebe a ação penal não necessita ser fundamentado, sem que tal viole o art. 93, inciso IX da Constituição Federal, enquanto que o despacho que rejeita a denúncia ou queixa deve ser fundamentado. Embora guarde muitas reservas quanto a esse entendimento predominante de desnecessidade de fundamentação da decisão judicial que admite a ação penal, o que importa, nesse momento da discussão, é perceber que se o juiz não é obrigado a fundamentar o despacho que recebe a denúncia ou queixa, o que efetivamente ocorre com o simples despacho: “recebo a denúncia”., fica favorecido o seu natural relaxamento na análise efetiva das condições e pressupostos da ação, tendendo até para a lei do menor esforço, que a admita sem uma reflexão apropriada para aquele momento.

A admissibilidade da ação pode, em tais hipóteses, ser um ato meramente mecânico, enquanto que deveria ser sempre um ato de inteligência, fruto da análise e reflexão.

Nessa lógica, se não é preciso fundamentar, que certeza estará oferecendo de ter avaliado apropriadamente as condições e pressupostos da ação?! Muito melhor seria se fosse levado a refletir, sob a ótica desenvolvida pela defesa, de que não há justificativa para o recebimento da peça acusatória, então poderia se concluir com mais eficiência se a Defesa está certa ou não, e, por conseguinte, proferir despacho fundamentado acolhendo a exceção e rejeitando a peça acusatória, ou inversamente, rejeitando a exceção e recebendo a ação penal.

Certamente, muito mais qualidade haveria nessa decisão judicial, fruto de uma necessária reflexão, provocada pela manifestação da exceção de pré-cognição, bem como, nesse caso, exigiria que a decisão fosse fundamentada, eis que afinal está apreciando uma petição da defesa, com as considerações nela formuladas, merecendo assim o enfrentamento de seus argumentos postos sobre o foco da inadmissibilidade da ação penal.

Nesse passo é de se notar que, mesmo não prevista no ordenamento processual, admite-se a exceção de pré-cognição, como meio para salientar ao juiz a ausência de elementos mínimos justificadores da ação, a recomendar seja esta repelida quando analisada a sua admissibilidade.

Roteiro prático para “A exceção de pré-cognição”

Superada a questão quanto ao cabimento da Exceção de Pré-Cognição, relevante é estabelecer um roteiro lógico e prático para se saber quando, porquê e como utilizá-la. Assim, vamos procurar nos ater a sua utilização na esfera processual penal.

Quando utilizar?

Primeiramente, para responder a essa indagação, precisaremos conhecer com segurança o rito processual do caso em apreço, e nele verificar se está previsto algum momento inicial em que a defesa poderá manifestar-se antes de exercitado o juízo de admissibilidade da ação penal. Se prevista essa hipótese, então não haverá justificativa para a utilização da Exceção, eis que o que nela poderia ser argumentado poderá ser articulado nessa defesa prevista no rito procedimental.

Considerando que não há previsão dessa manifestação, passa-se à segunda análise: o juiz já procedeu à admissibilidade da ação penal, ou não? Se já recebeu a queixa ou denúncia, então os argumentos que seriam utilizados na Exceção poderão ser articulados na defesa no curso do processo, seja na prévia, inclusive por meio de preliminares, seja nas alegações finais.

Se não exarou o despacho de admissibilidade da ação penal, então, a Exceção de Pré-Cognição seria muito mais oportuna.

Porém, há que se refletir e enfrentar um aspecto importante para esse momento. É admissível a Exceção de Pré-Cognição após o despacho de recebimento da denúncia ou queixa, ou não? Embora o momento anterior fosse mais oportuno para excepcionar, não é absurda a hipótese de exceção após esse momento, eis que em se tratando de questões de ordem pública, em que o juiz poderia ter negado a admissibilidade de ofício, face à ausência das condições mínimas para o seu processamento, não é de se excluir essa possibilidade de mais tarde ele reconhecer essa ausência quando alertado pela Defesa.

Claro que a questão é polêmica, uma vez que há o entendimento de que, recebida a denúncia, o juiz não poderá desfazer sua decisão anterior, dando necessário curso ao processo. Todavia, o que deve ser ponderado para evoluir essa compreensão é de que não se está desfazendo decisão anterior, mas proferindo nova decisão, provocada pela solicitação da parte, que tem o direito constitucional de ter o seu pedido decidido pelo juiz, e que este não poderá negar essa jurisdição. E ainda, adicionando-se a esse aspecto que, em sede de processo penal, o próprio juiz pode conceder habeas corpus de ofício, e porque não poderia conceder contra ato presente, inclusive seu, de estar conduzindo processo em desacordo com a lei, o que configura constrangimento ilegal ao direito de locomoção do acusado.

Ademais, se no ordenamento processual não há previsão, em todos os casos, para a interposição de recurso contra o despacho que recebe a denúncia ou queixa, embora exista para a hipótese de rejeição, é porque a questão insere-se no princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias (aplicável no processo penal, com exceção daquelas hipóteses previstas no art. 581 do CPP), o que concede ao juízo prolator da decisão interlocutória irrecorrível, autoridade para apreciar pedido incidente que o faça rever seu entendimento anterior, proferindo, então, agora, decisão definitiva que extinga o processo com ou sem julgamento do mérito, a depender do conteúdo de sua análise.

Em outras palavras, quer dizer que o fato de ter recebido anteriormente a denúncia não faz coisa julgada que não possa ser modificada futuramente, com um superveniente entendimento diverso que, até mesmo, venha a reconhecer que, antes do recebimento da denúncia, já havia ocorrido, por exemplo, a extinção da punibilidade por qualquer causa, embora tal não houvesse sido percebida no momento em que despachou pela admissibilidade  da ação.

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Nessa lógica, embora não seja o melhor momento para a utilização da exceção, não se descarta seu uso após o despacho de admissibilidade da ação, pois é essa  a lógica da exceção da pré-executividade, que sobrevém no curso da execução, enquanto o juiz de ofício já poderia ter indeferido  a inicial da execução e extinto o processo, por reconhecer de ofício a ausência das condições mínimas para o processamento da execução.

Além dessas análises, outra merece reflexão: dever-se-á utilizar a exceção quando potencializar que os argumentos concretos, que poderão ser apresentados sobre o caso específico, possam ser convincentes a ponto de levar, desde logo,  ao não recebimento da denúncia ou queixa, sua rejeição, ou mesmo a extinção do feito, com ou sem o julgamento do mérito.

Por que utilizar?

Se até aqui já se estudou que a matéria a ser laborada na Exceção pode ser conhecida de ofício pelo juiz, bem como introduzida no seio da defesa no curso do processo de conhecimento, natural é indagar-se: por que devo utilizar a Exceção de Pré-Cognição?

A resposta é bastante singela, devo utilizar porque as questões, embora possam ser conhecidas de ofício, podem não ser, atentamente, observadas, sendo esta uma das missões da defesa, salientar tudo aquilo que o juiz deve considerar.

Poderia acrescentar a essa resposta que, ao se visualizar a potencialidade de eximir de um processo penal quem a ele não deveria responder, evitando o constrangimento do processo ilegal, o custo de uma longa demanda, o risco de uma decisão desfavorável, e o desgaste de enfrentar um processo, e ainda ver excluídos benefícios da lei em outros casos ou eventuais acusações futuras, como, por exemplo, a suspensão do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/95), que não se dá a quem responde a outro processo, bem como o risco de ser discriminado em concursos públicos por estar respondendo a processo penal, a que não precisava responder, não é razoável que deixe de explorar essa significativa via de defesa, que poderia alcançar tantos benefícios.

Logo, deve-se utilizar a Exceção de Pré-Cognição  porque ela é uma criação jurídica que se coaduna com o preceito constitucional da ampla defesa, representando a plenitude desse exercício e objetivamente apresentando pretensões razoáveis e úteis aos interesses da defesa.

Como utilizar ?

A última importante indagação que enfrentaremos nesse breve estudo prático é: como devo utilizar a Exceção de Pré-Cognição? Para que ela represente um meio de defesa importante, sem, contudo, prejudicar futuros exercícios de defesa, com a antecipação de teses que seriam mais oportunas se aduzidas em alegações finais de defesa, para que dela não tome conhecimento a acusação.

A resposta é igualmente singela. A Exceção de Pré-Cognição deve limitar-se às questões que se conectam com aquelas que devem ser analisadas no juízo de admissibilidade da ação penal, deixando as questões de mérito que se referem às provas do caso, ou argumentos de defesa que não se conectam às condições da ação, possibilidade jurídica do pedido ou legitimidade das partes, para só serem agitadas futuramente, se não prosperarem aquelas pertinentes à Exceção de Pré-Cognição.

A matéria a ser veiculada na exceção é a que se refere aos requisitos da peça acusatória (denúncia ou queixa) descritos no art. 41 do Código de Processo Penal, ou aquelas previstas no art. 43 do mesmo diploma legal, que tratam sobre as hipóteses de rejeição da peça acusatória, como: a conduta descrita ser evidentemente atípica; existir causa de extinção da punibilidade (previstas no art. 107 do Código Penal); faltar condição da ação, legitimidade das partes, ou pressuposto indispensável ao regular processamento dos autos, como, por exemplo, a condição de procedibilidade (representação nos crimes de ação penal pública condicionada).

Assim, deve-se utilizar a Exceção, limitando-a aos assuntos pertinentes a essa medida de excepcionalidade, que são aqueles tratados nos artigos 41 e 43 da lei adjetiva penal, evitando o mero adiantamento de teses de defesa que não possam interferir, efetivamente, nesse momento, justificando a recomendar a rejeição da peça acusatória ou a imediata extinção do processo.

Essa é a cautela necessária para a utilização dessa via, respeitando-se os limites de sua utilização, para que estrategicamente não represente um prejuízo à defesa, com o conhecimento prematuro de suas teses, pela acusação que poderá, então, conduzir a instrução criminal para o esvaziamento da tese de defesa, ou buscar, nas argumentações que sustentará nas alegações finais de acusação, antítese para os argumentos que a defesa apresentará na fase do art. 500 do CPP.

A boa utilização da Exceção de Pré-Cognição implica em saber do seu cabimento e quando se deve utilizar, o momento processual mais oportuno, a visualização da ocorrência das hipóteses do art. 43 do CPP, ou a fragilidade da peça acusatória frente aos requisitos do art. 41 do CPP, a potencialidade do acolhimento desses argumentos pelo juízo; a observância técnica dos limites desses argumentos, com a preocupação estratégica de preservar, oculta a revelação das demais teses de defesa para momento posterior, se frustrada a pretensão da exceção. E, por fim, quais os benefícios que objetivamente poderão ser alcançados com a utilização da Exceção, no caso concreto.

A questão é nova e merece ser pensada e testada por vários operadores do Direito, notadamente pelos advogados. Certamente a sua plena aceitação na doutrina e na jurisprudência dependerá do aprimoramento dessa própria discussão e de como será recebida na prática forense. A semente está lançada, fomos conclamados a meditar sobre o tema e exercitar a experiência, eis o convite e o desafio.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Asdrubal Junior

 

Advogado, sócio da Asdrubal Júnior Advocacia e Consultoria S/C, pós-graduado em Direito Público pelo ICAT/UniDF, Mestre em Direito Privado pela UFPE, Professor Universitário, Presidente do IINAJUR, organizador do Novo Código Civil da Editora Debates, Coordenador do Curso de Direito da UniDF, Diretor da Faculdade de Ciências Jurídicas da UniDF, Consultor das Nações Unidas – PNUD, Editor da Revista Justilex, integrante da BRALAW – Aliança Brasil de Advogados.

 


 

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