Resumo: A pororoca é um fenômeno natural e majestoso que ocorre em muitos países, inclusive no Brasil. Trata-se do encontro pouco cordial entre águas oceânicas e águas fluviais, uma grande onda arrasadora que, de tempos em tempos, sobe os rios que desembocam no grande estuário do Amazonas, com grande estrondo e ímpeto devastador causando o desmoronamento das margens e carregando consigo árvores, embarcações e outros objetos que se interponham à sua passagem violenta. Em 2015, foi noticiada a extinção da ocorrência do fenômeno no Rio Araguari, no Amapá. Este artigo, utilizando o método indutivo e com uma abordagem qualitativa do tipo pesquisa bibliográfica, aborda como a extinção do fenômeno nesta região contrapõe-se ao princípio do direito ambiental da equidade intergeracional, trazendo para tanto, considerações a respeito do conceito deste princípio e do fenômeno da pororoca e a contraposição que existe entre eles. O estudo apresentado demonstra que é necessária maior atenção e fiscalização por parte do Poder Público, no sentido de este primar pela efetividade do Princípio ambiental norteador que pode ser dito, princípio da Solidariedade ou Equidade intergeracional, expresso na Carta Magna vigente. Principalmente em se tratando de preservar fenômenos naturais raros e que são de não apenas de importância ecológica, mas também no ambiente cultural, turístico, econômico e paisagístico. [i]
Palavras-chave: Pororoca. Solidariedade intergeracional. Meio ambiente
Sumário: Introdução. 1. O fenômeno pororoca. 1.1. A pororoca do rio Araguari: importância e extinção. 2. O princípio da equidade intergeracional. 3. A contraposição entre o princípio da equidade e a extinção da pororoca. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A pororoca é o fenômeno natural do encontro das águas oceânicas em nível mais elevado, com as correntes fluviais em menor nível de alguns rios que desembocam no mar. O termo pororoca tem origem na língua tupi poro’roca que significa estrondar.[ii]
O fenômeno ocorre em várias regiões do mundo, inclusive no Brasil. Contudo, em 2015, foi noticiada a extinção da pororoca na região do Amapá, especificamente no Rio Araguari, em virtude da construção de hidrelétricas, da abertura de canais para levar águas a fazendas e da degradação causada pelo pisoteio de búfalos na região.
Dentro deste contexto, este artigo, utilizando o método indutivo e com uma abordagem qualitativa do tipo pesquisa bibliográfica[iii], têm o objetivo de demonstrar como a extinção do fenômeno no Amapá contrapõe-se ao que prevê o princípio do direito ambiental da equidade intergeracional, já que este princípio, como ponto de partida, pressupõe a efetivação da precaução e obriga as gerações presentes a incluir como medida de ação e ponderação os interesses das gerações futuras[iv].
1 O FENÔMENO POROROCA
O fenômeno da natureza denominado pororoca é conhecido há mais de 500 anos, pois já a expedição de Vicente Yañes Pinzon nas águas do Rio Amazonas, mais precisamente em sua foz, atraiu sua atenção pela grandeza daquele mar de águas doce. O registro em seu diário de bordo ocorreu por ocasião de ele estar chegando à ilha de Marajó e ter tido a oportunidade de presenciar a ocorrência do fenômeno na região.[v]
Trata-se, na verdade, de uma grande onda arrasadora que, de tempos em tempos, sobe os rios que desembocam no grande estuário do Amazonas, com grande estrondo e ímpeto devastador, causando o desmoronamento das margens e carregando consigo árvores, embarcações e outros objetos que se interponham à sua passagem violenta.[vi]
É um fenômeno majestoso e praticamente anônimo na imensidão do litoral amazônico, conforme descreve Marcos Losekann[vii]:
“De um lado, o mar; do outro, o Araguari. Um confronto de gigantes duas vezes por dia… A maré é alta, justamente por causa da lua cheia, teima em não aceitar, digamos assim, o rio. É como se o mar empurrasse o rio de volta para o continente. Esse choque provoca uma onda gigantesca que percorre quilômetros e quilômetros do leito do Araguari no sentido contrário à correnteza. A água sobe o barranco e arrasta tudo o que há pela frente. “
Como se percebe, tal onda é causada pela elevação súbita da maré no oceano, em épocas de sizígia, isto é nas grandes marés causadas pela conjunção ou oposição da lua com o sol, ou seja, marés de lua nova e lua cheia. A elevação da maré represa os rios no estuário, fazendo com que suas águas recuem, formando uma grande corrente em sentido contrário ao seu curso normal. Havendo um estreitamento no rio, o nível da água se eleva muito repentinamente e, se houver alguma saliência no leito, os frequentes baixios formados pela deposição de sedimentos, esse obstáculo faz a água amontoar-se bruscamente, originando a onda que subindo sempre termina por rebentar fragosamente.[viii]
Este encontro pouco cordial entre águas oceânicas e águas fluviais ocorre em 17 países: Inglaterra, França, Canadá, China, Austrália, Indonésia, Malásia, Bangladesh, Índia, Papua Nona Guiné, Estados Unidos, Guiné Bissau, México, Moçambique e Rússia, sendo que, no Brasil, manifesta-se na foz do Rio Amazonas e afluentes do litoral paraense e amapaense, ou seja, Rio Araguari, Rio Maiacaré, Rio Guamá, Rio Capim, Rio Moju e na foz do Rio Mearim, no Maranhão.[ix]
As condições para a formação da pororoca passam pela amplitude de maré, sendo superior a 4 a 6 metros, e pelo direcionamento dos grandes volumes das águas para a foz estreita dos rios, geralmente em forma de funil. Dessa forma, as ondas provocadas pelo fenômeno podem ser classificadas pela sua intensidade em: giga, maxi, média, mini e micro e por este motivo, o fenômeno fluviomarítimo proporciona a prática de modalidades esportivas como o stand up padle, o caique e o surfe.[x]
1.1 A pororoca do rio Araguari: importância e extinção
O rio Araguari corta sete municípios, com uma bacia hidrográfica de 42.711 quilômetros, incluindo o Amapari como seu tributário. Nascendo a leste do estado do Amapá e desembocando no Oceano Atlântico, em menos de 300 quilômetros de extensão, o rio corta diferentes ecossistemas como matas equatoriais, cerrados, savanas mal drenadas e florestas de siriúbas.[xi]
É neste cenário que surgiu o surfe na pororoca do rio Araguari, e em 2005, a onda da pororoca do Araguari foi apontada pelo livro dos recordes, o Guiness Book, como a mais longa em duração do planeta. Segundo descreve o surfista Serginho Laus[xii], um dos maiores especialistas em ondas de rio da atualidade e diretor do Instituto Pororoca (IPO), o relevo do rio Araguari é perfeito, fazendo com que milhões de metros cúbicos de água da vazante do rio Amazonas retornem de uma vez só para dentro do seu leito, elevando ondas que já chegaram a quatro metros. Tanto que o rio foi transformado em cenário para o filme Surf Adventures 2 e chegou a receber a visita de nomes ilustres do surfe mundial, como o australiano Ross Clarke-Jones e o californiano Gary Linden.
No entanto, em 2015, manchetes anunciaram o fim do fenômeno na foz do rio Araguari. As possibilidades levantadas por especialistas para o fim da pororoca incluíam a soma de três fatores: a construção de três hidrelétricas, a abertura de canais para levar águas a fazendas e a degradação causada pelo pisoteio de búfalos na região.[xiii]
Conforme explica o pesquisador da Embrapa Raimundo Nonato Brabo Alves[xiv], os búfalos no Amapá, que em 2002 eram de 158.393 cabeças multiplicaram-se para 254.046 em 2012, um aumento de 60% do rebanho em 10 anos, vem atormentado a vida da população local, vez que prejudicam os frágeis ecossistemas de várzeas inundáveis, afetam a pesca e aceleram um fenômeno natural na região, conhecido como as terras caídas[xv], o que prejudica as moradias ribeirinhas. Houve orientação técnica para a criação confinada de búfalos na Amazônia, considerando que esses animais são ainda semidomesticados e facilmente retornam a vida selvagem, no entanto, alguns criadores fizeram exatamente o contrário, com criatórios extensivos.
Ademais, o desmatamento para formação espontânea de pastagens, a abertura de canais nas margens do rio pela intensa atividade dos bubalinos e a redução da vazão do rio provocada pelo represamento de hidroelétricas construídas no local, contribuíram para o assoreamento da foz e provocaram o isolamento do rio, que outrora desembocava no mar.[xvi]
Estima-se que a extinção do fenômeno é irreversível, sendo que o Ministério Público Federal apura a responsabilidade dos pecuaristas da região e também do Estado em relação ao impacto ambiental, de proporções ainda não calculadas pelos órgãos de conservação.[xvii]
2. O PRINCÍPIO DA EQUIDADE INTERGERACIONAL
O Direito Ambiental tem a tarefa de estabelecer normas que indiquem como verificar as necessidades de uso dos recursos ambientais, neste artigo tem-se o fenômeno da pororoca, como recurso do macrobem ambiental. Não basta a vontade de explorá-los. É preciso estabelecer a razoabilidade dessa utilização, devendo-se, quando a utilização não seja razoável ou necessária, negar o uso, mesmo que os bens não sejam atualmente escassos.[xviii]
Neste sentido, o princípio da equidade intergeracional busca assegurar a solidariedade da presente geração em relação às futuras, para que também estas possam usufruir, de forma sustentável, dos recursos naturais. E assim sucessivamente, enquanto família humana e o planeta Terra puderem coexistir pacificamente.[xix]
Criado por Edth Brown Weiss, o princípio da equidade intergeracional diz que cada geração humana recebe da anterior o meio ambiente natural e cultural com direito de usufruto e o dever de conservá-lo nas mesmas condições para a geração seguinte.[xx]
No ordenamento jurídico pátrio, o artigo 225, caput, da Constituição Brasileira de 1988, refere-se expressamente a solidariedade intergeracional, ao impor ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.[xxi]
Articulado com outros princípios, a equidade intergeracional impõe prioritariamente e antecipadamente a adoção de medidas preventivas e justifica inclusive a aplicação de outros princípios, como o da responsabilização e da utilização das melhores tecnologias disponíveis.[xxii]
Nota-se que esse é um princípio de justiça ou equidade que exige um desenvolvimento sustentável onde o dano ao meio ambiente seja compensado por medidas e projetos que agreguem algo em troca à natureza, de forma que as gerações próximas encontrem um estoque de recursos pelo menos equivalente ao encontrado pelos atuais habitantes da Terra.[xxiii]
Diante do exposto percebe-se que este princípio além de fonte para a ética e para o direito, é acima de tudo uma fonte do saber e do agir, especialmente em se tratando dos recursos naturais.
3. A CONTRAPOSIÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DA EQUIDADE E A EXTINÇÃO DA POROROCA
É sabido que, no reino da natureza, há forças de atração e repulsa, havendo também predadores e presas, tudo, no entanto, converge para um objetivo. Já entre os humanos, além daquelas antinomias, é bem conhecida a força dos instintos cegos que não obedecem nem à razão, nem à vontade esclarecida. Não obstante, existe um destino comum a ser alcançado.[xxiv]
Conforme demonstrado no item 1.1, a manifestação do fenômeno da pororoca existe há muitos anos e harmonicamente no reino da natureza. Tal fato, de certa forma, tem influência direta na formação do ecossistema local.
Portanto, a extinção deste fenômeno exige a necessidade de criteriosa avaliação de seus efeitos econômicos, sociais e ambientais, vez que dentre outras consequências, está a contraposição ao princípio da equidade intergeracional, que busca a proteção ao acesso aos bens ambientais.
Paulo Afonso Leme Machado[xxv] reforça que a prioridade do uso dos bens ambientais não implica exclusividade de uso. Os usuários prováveis ou simplesmente os que desejam usar os bens e não os usam precisam provar suas necessidades atuais. Os usuários só poderão usar os bens ambientais na proporção de suas necessidades presentes, não futuras.
Considerando o exposto percebe-se que o uso inadequado e sem planejamento do ecossistema da região do Amapá, onde havia a ocorrência do fenômeno da pororoca, a princípio, exauriu a possibilidade de deixar para futuras gerações esta herança ambiental. Como atesta Raimundo Nonato Brabo Alves[xxvi]: as pororocas do rio Araguari foram extintas pela mão do homem, e, lamentavelmente, estamos nos especializando na “façanha” de isolar nossos rios, que outrora desembocavam no mar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fenômeno da natureza denominado pororoca é conhecido há mais de 500 anos nas águas do Rio Amazonas. No Amapá, até o ano de 2015, a pororoca compôs o complexo ecossistema natural da região e ainda possibilitou a prática do turismo esportivo local, como o surfe.
Embora o princípio de direito ambiental da equidade intergeracional tenha a finalidade de proteger o meio ambiental de forma que as gerações futuras encontrem um estoque de recursos, pelo menos equivalente, ao encontrado atualmente, avalia-se que a ação não planejada do homem impossibilitou a continuidade do fenômeno dito pororoca no Rio Araguari no Amapá.
Por fim, conclui-se então que é necessária maior atenção e fiscalização por parte do Poder Público, no sentido de este primar pela efetividade do Princípio ambiental norteador que pode ser dito, princípio da Solidariedade ou Equidade intergeracional, expresso na Carta Magna vigente. Principalmente em se tratando de preservar fenômenos naturais raros e que são de não apenas de importância ecológica, mas também no ambiente cultural, turístico, econômico e paisagístico.
Informações Sobre o Autor
Alexandre César Reiser
Acadêmico de Direito da Univali