Resumo: A função social dos contratos (art. 421 do Código Civil de 2002) é uma inovação de destaque no direito contratual, pois provoca profundas discussões doutrinárias, não se atingindo posição consensual quanto a seu real significado, e nem consolidação na jurisprudência. Por essa razão faz-se imperativa a necessidade de estudos a cerca do assunto, em decorrência da sua importância no direito privado, visto que irradia-se em todo o sistema do Código Civil ou mesmo fora dele. A função social dos contratos, por corresponder a uma cláusula geral, de significado impreciso, e conteúdo que deve ser completado pelo juiz no caso concreto, tem ensaiado inquietações quanto a se estabelecer um fator de elevação do risco jurídico às relações contratuais entre os particulares. Portanto, o presente trabalho possui como objetivo descrever as principais disposições a respeito do assunto, bem como identificar na doutrina, a extensão dos riscos citados e os meios para sua mitigação.
Palavras-chave: direito privado, contratos, função social, cláusula geral, decisão judicial, risco, mitigação de risco.
Abstract: The social function of contracts (art. 421 of the Civil Code of 2002) is an outstanding innovation in contractual law , because it causes deep doctrinal discussions , not reaching consensus position regarding its actual meaning, nor jurisprudence consolidation. For this reason it is imperative to study about the subject, due to its importance in private law, as it radiates throughout the system of the Civil Code or even outside it. The social function of contracts, corresponds to a general clause, meaning inaccurate, and content that should be completed by the judge in this case has generated unease in establishing a factor of increased risk legal in contractual relations between particulars. Therefore, the present work aims to describe the main provisions on the subject, as well as identifying the extent of the risks cited by doctrine and ways to mitigate them.
Key words: private law, contracts, function social, general clause, judicial decision, risk and risk mitigation.
Sumário: 1 Introdução; 2 Teoria do negócio jurídico e o contrato; 2.1 As transformações contemporâneas do contrato; 2.2 Função Social; 3 A função social dos contratos e o sistema do código civil. A noção de sistema; 3.1 O sistema do novo código civil; 3.2 Função social dos contratos no processo legislativo do código civil. Uma análise das diretrizes da exposição de motivos; 3.2.1 O papel do código civil no âmbito do direito privado; 3.2.1.1 A unificação das obrigações civis e mercantis; 3.2.1.1.1 A eficácia imediata da função social dos contratos; 4 Risco jurídico inerente à função social dos contratos e sua mitigação. A aplicação pelos juízes, da cláusula geral do art. 421 do Código Civil; 5 Conclusão.
1 INTRODUÇÃO
A cláusula da função social dos contratos (art. 421 do Código Civil de 2002) provoca profundas discussões doutrinárias, até mesmo com matizes ideológicos, apesar de não ter atingido uma posição consensual quanto ao seu real significado.
A extensa gama de discussões a respeito da função social dos contratos, deve-se á sua importância no contexto do Direito Privado, uma vez que o assunto irradia-se em todo o sistema do Código Civil ou mesmo fora dele. Por esta razão, são destacáveis as apreensões na doutrina sobre a respectiva cláusula, considerada por boa parte de seus expoentes como a inovação de maior relevo no direito dos contratos, sendo vista como um atributo para a interferência externa na vontade dos contratantes, conforme o art. 421 do Código Civil, e somada às incertezas intrínsecas do ambiente pós-moderno, representa um fator adicional de risco a ser gerenciado nas relações contratuais, com diversos reflexos no ambiente de negócios.
O presente trabalho objetiva avaliar o posicionamento doutrinário sobre a função social dos contratos, demonstrando o alcance de riscos à segurança jurídica dos contratos entre particulares que sejam oriundos da aplicação dessa norma pelos juízes, e por conseguinte estabelecer, no mesmo ambientes doutrinário, meios para mitigação desses riscos.
Trata-se de uma revisão de literatura de natureza descritiva, com ênfase na teoria do negócio jurídico, teoria do contrato e teoria da função social, destacando-se que os aspectos jurisprudenciais serão conduzidos a exame a partir da doutrina, e análise da jurisprudência de forma mais ampla, dado que isso implicaria novo corte no escopo fixado.
2 TEORIA DO NEGÓCIO JURÍDICO E O CONTRATO
O art. 421 do Código Civil de 2002[1] [2] estabelece que o contrato não pode mais ser considerado como direito absoluto, devendo estar ligado ao instituto jurídico da igualdade, o que constitui o ponto de largada para o presente estudo, onde pretende-se analisar a sua função social, e identificar os limites e os controles a que são submetidos os juízes ao proferirem suas decisões, tendo como fundamento o referido dispositivo legal. Por essa razão, inicia-se este trabalho no ambiente do negócio jurídico, por estabelecer o gênero a qual pertence a espécie contrato.
O ordenamento jurídico é composto por normas que regulam a atividade humana ao preverem fatos e os respectivos comportamentos que, podem resultar no “suporte fático para a incidência da norma e o surgimento do fato jurídico” [3].
O fato jurídico classifica-se em fato material ou ajurídico, uma vez que estes não produzem efeitos jurídicos, não são compreendidos pela coercitividade da norma[4]. Conforme Pontes de Miranda, o fato jurídico é “o fato ou complexo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica; portanto, o fato de que dimana, agora, ou mais tarde, talvez condicionalmente, ou talvez não dimane, eficácia jurídica” [5].
Os fatos estão divididos em duas ordens: naturais ou fatos jurídicos em sentido estrito; e humanos, ou voluntários, ou jurídicos em sentido amplo. Os naturais, ou fatos stricto sensu, independem da vontade humana, contudo, por alcançarem as relações jurídicas e sendo o homem seu sujeito, são de interesse, a exemplo do nascimento e da morte das pessoas, do crescimento das plantas etc. Provém de simples ação da natureza. Já os fatos humanos, ou voluntários, ou fatos lato sensu, são decorrência da atuação humana, comissiva ou omissiva, e interferem nas relações de direito, podendo subordinar-se às normas preestabelecidas pelo ordenamento, ou delas discreparem[6].
Antônio Junqueira de Azevedo conceitua o negócio jurídico como:
“Todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide.”[7]
Conforme o citado autor, o negócio jurídico deixa de ser visto como ato de vontade do agente, passando a ser avaliado socialmente como “ato de vontade destinado a produzir efeitos jurídicos”. Nesta ótica a perspectiva é social, não mais psicológica. O negócio passa a ser avaliado como aquilo que a sociedade demonstra como declaração de vontade do agente, já não é o que o agente quer. [8]
Por conseguinte, Orlando Gomes afirma que “o contrato é uma espécie de negócio jurídico que se distingue, na formação, por exigir a presença de pelo menos duas partes. Contrato é, assim, negócio jurídico bilateral, ou plurilateral”. [9]
Esses conceitos traduzem os matizes predominantes na doutrina clássica, em geral. No entanto, o contrato percorreu longo caminho desde suas origens até aqui, acompanhando naturalmente os grandes movimentos políticos, econômicos, tecnológicos e sociais que o mundo tem vivenciado. Os passos seguintes objetivam acompanhar o que de mais importante aconteceu com o contrato nesse caminhar.
2.1 As transformações contemporâneas do contrato
Ao realizar um paralelo entre o modelo clássico com os atuais contratos massificados, ou de adesão, Orlando Gomes verificou que a proteção normativa do acordo de vontade quase não se aplica nestes. Uma vez que a preocupação nos contratos de adesão atualmente desloca-se para a defesa dos aderentes através da proibição normativa de cláusulas iníquas. [10]
Atualmente, são reconhecidos três fundamentais fatores para as transformações na teoria geral do contrato:
– a insatisfação de grandes estratos da população pelo desequilíbrio, entre as partes, atribuído ao princípio da igualdade formal;
– a modificação na técnica de vinculação por meio de uma relação jurídica;
– a intromissão do Estado na vida econômica. [11]
A respeito do primeiro fator, o autor afirma que “o desequilíbrio determinou a técnica do tratamento desigual, cuja aplicação tem no Direito do Trabalho o exemplo mais eloquente”. Quanto ao segundo, trata-se das técnicas “impostas pela massificação de certos contratos” e, por fim, no terceiro cuida-se da política de intervenção estatal, que “atingiu o contrato na sua cidadela”, ao restringir a liberdade de contratar na sua tríplice expressão de liberdade: de celebrar o contrato, de escolher o outro contratante e de determinar o conteúdo do contrato.[12]
Segundo Bruno Miragem, o instituto do contrato é “conceito que se encontra em transformação”, pois a base tradicional da prevalência da liberdade individual ou autonomia da vontade, abdica espaço à intervenção estatal – que ele conceitua “Estado-Legislador” e “Estado-Juiz” – a qual toma corpo na proteção do que se intitulou “nova concepção de contrato”.[13]
Esse novo entendimento é tratado por Cláudia Lima Marques[14] como “concepção social do contrato” que possui como pressuposto a proteção das relações entre as partes, seus interesses e a confiança, e os efeitos do contrato perante a comunidade vista como um todo.
Diante das mudanças do cenário, não se verifica a morte ou o declínio do contrato, mas o direito teve como resposta, em contrapartida, sua atualização e modernização através “da releitura e a reconstrução parcial de seus princípios”.
Assim no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988,[15] Wald[16] esclarece que:
“A sociedade necessita do bom funcionamento da circulação das riquezas e da segurança jurídica, que se baseiam na sobrevivência de relações contratuais eficientes e equilibradas. Num mundo em constante transformação, o contrato deixa de definir direitos necessariamente imutáveis e situações jurídicas estratificadas para ser um instrumento de parceria no qual as partes estabelecem um determinado equilíbrio econômico e financeiro que pretendem salvaguardar, fazendo as adaptações contratuais necessárias para tal fim. Não desaparecem, pois, nem a autonomia da vontade, nem a liberdade de contratar, mas ambas mudam de conteúdo e de densidade, refletindo a escala de valores e o contexto de uma sociedade em constante evolução, bem como de um Estado que precisa e deve ser eficiente por
mandamento constitucional.”[17]
Humberto Theodor Júnior sobrepõe outros princípios aos originais clássicos de matiz liberal, ao definir que “não há mais Estado que se abdique da atuação reguladora da economia” cujo efeito, a par de se imprimir menor rigidez ao direito contratual, se traduz em seu enriquecimento com “apelos e fundamentos éticos e funcionais”. [18]
Portanto, são três os princípios do direito contratual que existem desde o século passado; versam sobre a autonomia da vontade e portanto se estabelecem, conforme Antônio Junqueira de Azevedo:
“As partes podem convencionar o que querem e como querem, dentro dos limites da lei – princípio da liberdade contratual lato sensu; o contrato faz lei entre as partes (art. 1.134 do Código Civil francês), pacta sunt servanda – princípio da obrigatoriedade dos efeitos contratuais;
O contrato somente vincula as partes, não beneficiando nem prejudicando terceiros […] – princípio da relatividade dos efeitos contratuais.
Os grandes movimentos sociais do final do século passado e da primeira
Meade do século XX obrigaram os juristas a reconhecer o papel da ordem pública, acrescentando-se, pois, segundo alguns, um quarto princípio, dito ‘princípio da supremacia da ordem pública’ (na verdade, antes um limite que um princípio)”.[19]
Prossegue o ilustre professor, comparando o atual momento a “uma acomodação das camadas fundamentais do direito contratual, algo semelhante ao ajustamento subterrâneo das placas tectônicas”. Em suas próprias palavras:
“Estamos em época de hipercomplexidade, os dados se acrescentam, sem se eliminarem, de tal forma que, aos princípios que gravitam em volta da autonomia da vontade e, se admitido como princípio, ao da ordem pública, somam-se outros três – os anteriores não devem ser considerados abolidos pelos novos tempos, mas certamente, deve-se dizer que viram seu número aumentado pelos três novos princípios”. [20]
Portanto, conforme Antônio Junqueira, os três novos princípios são a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico do contrato e a função social do contrato. Para Humberto Theodoro Júnior, a incorporação desses princípios segue a melhor doutrina e legislação européias. [21]
Dentre estes, o presente trabalho destaca o princípio da função social, o qual, Antônio Junqueira de Azevedo afirma distinguir do da ordem pública, “tanto quanto a sociedade difere do Estado”.[22]
Eugênio Facchini Neto[23] explica que o contrato, visto pelo ângulo de suas funções clássicas, oferece previsibilidade, certeza e segurança jurídica para as partes. Nessa mesma compreensão clássica, conforme o Ministro Eros Grau, cada parte tem a aparente certeza e a segurança de que nessa relação, “na hipótese de descumprimento do contrato, poderá recorrer a meios jurídicos adequados à obtenção de reparação para esse descumprimento, ou mesmo a execução coativa da avença”. [24]
Na atualidade contratual, no que se refere Roppo, existiriam expressivas alterações na mística da vontade ou no exacerbado dogma da vontade. Existiria algo novo com estreita ligação com os Princípios da Dignidade Humana (art. 1º, III, CF) [25] e da Ordem Econômica (art. 170, CF), assunto a ser examinado a partir da próxima seção.
2.2 Função social
De acordo com Orlando Gomes,
“O fenômeno da contratação passa por uma crise que causou a modificação da função do contrato: deixou de ser mero instrumento do poder de autodeterminação privada, para se tornar um instrumento que deve realizar também interesses da coletividade. Numa palavra: o contrato passa a ter função social”.[26]
Afirma Miguel Reale que “é natural que se atribua ao contrato uma função social, a fim de que ele seja concluído em benefício dos contratantes, sem conflitos com o interesse público.” [27]
Tanto Miguel Reale quanto Antônio Junqueira de Azevedo[28] entrelaçam a ideia de função social do contrato ao valor social da livre-iniciativa. Miguel Reale relaciona a função social do contrato à função social da propriedade, conforme, a função social é “mero corolário dos imperativos constitucionais relativos à função social da propriedade e à justiça que deve presidir a ordem econômica”. [29]
No próximo passo, ver-se-á então a função social dos contratos no contexto do Código Civil de 2002.
3 A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS E O SISTEMA DO CÓDIGO CIVIL. A NOÇÃO DE SISTEMA.
É de fundamental importância a relação entre função social dos contratos e o sistema do Código Civil, pois trata de um dos pilares para a conclusão do problema do presente trabalho.
Conforme Judith Martins-Costa, “a noção de sistema supõe, em matéria jurídica, pelo menos a reunião de certos elementos em um conjunto organizado e ordenado e a unitariedade das fontes de sua produção”. Classifica-se em sistema externo e sistema interno. [30]
Sistema externo corresponde a noção de um todo ordenado, organizado conforme certos critérios, ou, de forma mais resumida, a reunião metodicamente ordenada da matéria jurídica. Nesta definição, sistema representará “a ordem através da qual vem exposto o resultado de certas pesquisas ou elaborações, ou um complexo de ideias, ou de matérias, ou a síntese destas”. [31]
Compreende-se por sistema aberto um sistema que se autorreferencia de maneira apenas relativa. Não é, deste modo, excludente do que está às suas margens, havendo mecanismos de captação do seu entorno e de ressistematização destes elementos. [32]
Destaca-se a diferença entre ordenamento e sistema. Conforme Judith Martins-Costa “ordenamento e sistema não são termos sinônimos”, pois ordenamento é o “conjunto das normas que regulam a vida jurídica em certo espaço territorial”; e o sistema “exprime as ligações, nem sempre existentes, entre estas normas”.
Ressalta a ilustre autora que seria impróprio definir como sistema os direitos que operam com base no raciocínio tópico, pois ele é assistemático, ou não-sistemático. Sobrando, portanto, apenas um conceito, o de códigos totais, que será abordado na sequência, quando então se identifica o sistema que caracteriza o Novo Código Civil.
3.1 O sistema do Novo Código Civil
Define Judith Martins-Costa como códigos totais aqueles “típicos da modernidade oitocentista, totalizadores e totalitários”. Esses códigos, interligando sistematicamente regras casuísticas, pretenderam cobrir todos os atos possíveis e os comportamentos devidos na esfera privada. Previa-se “soluções às variadas questões da vida civil em um mesmo e único corpus legislativo, harmônico e perfeito em sua abstrata arquitetura”. [33]
Os Códigos totais primam pela precisão da linguagem e expressam um sistema fechado porque:
“O modelo de sistema subjacente ao novo Código Civil, no entanto, segue em sentido oposto, porquanto adota outros pressupostos metodológicos. Foram adotadas, em sua construção, duas soluções técnicas diferentes, uma associada à responsabilidade da jurisprudência, que foi o emprego de cláusulas gerais; a outra, alusiva ao legislador, que, no futuro, se encarregará de editar leis aditivas ao Código.”[34]
O Código Civil, do ponto de vista da técnica legislativa, caracteriza-se como um “eixo central” e como um “sistema aberto”, segundo Judith Martins-Costa. Compreende-se portanto, que esta característica origina-se da linguagem utilizada, a qual possibilita permanentes incorporações e soluções de novos problemas, seja pela via jurisprudencial ou pela ação legislativa. [35]
Cabe agora, adentrar-se ao processo legislativo do Código Civil, para melhor entendimento acerca da forma como a cláusula geral de seu art. 421 foi então concebida e inserida no sistema.
3.2 Função social dos contratos no processo legislativo do Código Civil. Uma análise das diretrizes da Exposição de motivos.
A presente análise é fundamental à compreensão da função social dos contratos, compreendido que, mesmo sem a captação das ideias que orientaram o processo legislativo ou da concepção posta no Código Civil, “ainda é possível aplicar a disposição legal, dado o princípio de que ao juiz é vedado negar jurisdição, mas em tal caso estará faltando um alicerce minimamente sólido que permita o controle das decisões judiciais”. [36]
Indispensável é a compreensão da função social dos contratos, consecutivamente, examina-se as diretrizes da Exposição de motivos.
Na Exposição de Motivos, observa-se que as diretrizes para o estudo da função social dos contratos podem ser analisadas em três partes: diretrizes que versam sobre o papel do Código Civil no âmbito do Direito Privado; diretrizes que discutem a modificação e conservação do conteúdo do Código Civil; e diretrizes metodológicas para composição das normas e da linguagem do Código Civil. [37]
3.2.1 O papel do Código Civil no âmbito do direito privado
O legislador teve o cuidado de definir o Código Civil como lei básica, entretanto não o consolidou totalmente como do direito privado[38].
Por essa razão, a Comissão Elaboradora do Código Civil estabeleceu-o como eixo do direito privado:
“a) a unificação das obrigações civis e mercantis e seu tratamento conjunto no Código Civil;
b) a manutenção de uma parte geral do Código;
c) a utilização de técnica legislativa similar à do texto constitucional, no sentido de prever a integração do Código Civil com a legislação extravagante presente e futura;e
d) a eficácia imediata da função social dos contratos”.[39]
3.2.1.1 A unificação das obrigações civis e mercantis
A concepção de função social dos contratos no Código Civil, implica na unificação do Direito das Obrigações civis e mercantis, fato que possibilita o processo legislativo a partir do reconhecimento da teoria da empresa. [40] Ao final do processo, com o fortalecimento do direito comercial por meio do nascimento do direito da empresa, houve uma “comercialização” do direito privado, ao invés de sua “civilização”. [41]
Orlando Gomes, acerca dessa unificação do Direito das Obrigações, defende especial valor porque raciocinara do conceito funcional de empresa na proposta de reforma dos Códigos desde a primeira metade da década de 60, assegurando a necessidade de que a empresa cumprisse sua função social. [42]
A função social de que trata o art. 421 do Código Civil está fortemente relacionada ao conceito de empresário (art. 966 do Código Civil) uma vez que só faz sentido nas relações jurídicas que se constituam em decorrência das atividades econômicas que se organizem “sobre o plano funcional da unidade de fim”, cuja concretude lhe são conferidas pelo contrato.[43]
Portanto, classifica-se, dessa forma, o Código Civil, como eixo do Direito Privado, devido a sua condição de lei básica, ou seja, ao mesmo tempo em que unifica as obrigações civis e mercantis, conserva a flexibilidade que preserva cada uma delas em suas particularidades e, da mesma forma, as matérias de outras áreas, como as do direito do consumidor.[44]
3.2.1.1.2 A eficácia imediata da função social dos contratos
O parágrafo único do art. 2.035 do atual Código Civil[45] confere caráter de ordem pública à função social da propriedade e dos contratos, e subordina à função social, os efeitos de todos os negócios jurídicos, mesmo que celebrados no regime do Código anterior, disposição que resulta na eficácia imediata do princípio da socialidade, daí também conferir ao Código Civil a condição de eixo do direito privado. [46]
Por essa razão, o julgador permanece obrigado a satisfazer à teleologia do sistema, que condiciona a liberdade de contratar ao cumprimento da função social, pois a função hermenêutica da cláusula geral do art. 421 do Código Civil não está afastada. A lei, todavia, não pode ser aplicada retroativamente. A invalidação de cláusulas contratuais deve levar em conta os princípios e regras do período da celebração do contrato, tendo em vista que a funcionalização e socialidade já se faziam presentes no sistema jurídico anterior ao atual Código. [47]
4 RISCO JURÍDICO INERENTE À FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS E SUA MITIGAÇÃO. A APLICAÇÃO, PELOS JUÍZES, DA CLÁUSULA GERAL DO ART. 421 DO CÓDIGO CIVIL.
Através das diversas percepções doutrinárias sobre o risco jurídico inerente à função social dos contratos, procura-se compreender o conceito do mesmo, bem como identificar a classificação que melhor se adeque á sua natureza.
Segundo Gerson Luiz Carlos Branco, o art. 421 do Código Civil é “mais uma via, a par de tantas outras, de intervenção judicial no âmbito dos contratos”.[48] É ambiente favorável ao risco jurídico de que trata a conceituação retro, por conseguinte, o ambiente instituído pela introdução desse artigo no Código Civil assemelha-se ao que Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa denomina “terreno minado de riscos, em zona que embaralha autonomia privada e interferência estatal”. [49]
A extensão e eficácia que as decisões judiciais podem conferir ao art. 421 do Código Civil, segundo Gerson Luiz Carlos Branco, podem percorrer distintos caminhos entre dois extremos: primeiro, pouca aplicação prática, hipótese em que o artigo é tratado como uma norma com caráter programático; e, segundo, uma “carta branca” para a intervenção dos juízes em todo e qualquer contrato para “proteção dos interesses sociais, consubstanciados na ideia de que o contrato precisa cumprir uma função social”. [50]
Ruy Rosado de Aguiar Júnior compreende que, para a aplicação, pelos juízes, da cláusula geral do art. 421 do Código Civil, é adequada a técnica, por ele conceituada como "técnica de pensamento orientado por problemas, e serve para resolver a seguinte questão: o que, aqui e agora, é o justo”. Lembra, contudo, que “evidentemente isso gera insegurança, pois o contratante não sabe o que o juiz entenderá como sendo o comportamento devido; a descrição dessa conduta não está na lei”. [51]
Conforme Humberto Theodoro Júnior um grande risco ao contemporâneo momento de aplicação do conceito genérico da lei, a visão parcial do operador que, “por má-formação técnica ou por preconceito ideológico, opta, dentro do arsenal da ordem constitucional, somente um de seus múltiplos e interdependentes princípios, ou seja, aquele que lhe é mais simpático às convicções pessoais”. [52]
Segundo Timm, [53] a jurisprudência no Brasil, “como nos países de tradição romano-germânica em geral, é intensamente influenciada pela doutrina, que joga um papel constitucional na práxis jurídica”. Por isso os ensinamentos doutrinários refletem-se nos acórdãos dos tribunais. [54]
Demonstradas as preocupações, sobraria a busca por mecanismos limitadores dos fatores de risco relacionados à aplicação da norma, assim como os possíveis meios de controle que se aplicariam às decisões proferidas, tendo essa mesma norma como fundamento.
Arnold Wald compreende que o exame da real extensão da função social do contrato deve ser realizado dentro de uma visão sistêmica, fundamentando-se os valores constitucionais e a filosofia da nova lei civil. Nesse diapasão, é necessário extrapolar a equivocada ideia de função social representando somente a proteção à parte economicamente mais fraca da relação contratual, assim como o entendimento de que a referida norma faria tábua rasa do respeito a atos jurídicos perfeitos ou direitos adquiridos. [55]
5 CONCLUSÃO
De acordo com o estudo realizado, pode-se afirmar que a regra não permite receios, pois a função social é uma cláusula geral, prevista no Código Civil, que confere ao juiz maior liberdade para garantir a socialidade, sem, contudo, representar uma carta branca para que o magistrado delibere ao frisson da lei e de princípios sedimentados, uma vez que o contrato não deixa de exercer sua função econômica, constituindo um reflexo patrimonial da liberdade individual constitucionalmente garantida.
Pois somente acrescentou-lhe a função social para evitar atividades contrárias aos interesses da sociedade, que constituem verdadeiros abusos de direito ou desvios de poder (já condenados de modo implícito na legislação anterior e, agora, condenados explicitamente pela legislação vigente).
É dever criador do juiz, motivar suas decisões, mais que em outras ocasiões, pela explicação devida às partes e à comunidade jurídica sobre como e o porquê de sua escolha para aplicação ao processo, dessa ou daquela conduta, pois foi nessa norma de dever (criada por ele para o caso) que alicerçou a solução da causa.
Embora os limites do trabalho de criação não estejam no sistema legislado, pois o operador poderá ter de recorrer a dados e elementos metajurídicos, acredita-se que, com a Constituição de 1988, com tantos enunciados orientadores de direitos e de valores, dificilmente uma situação proposta em juízo não será resolvida a contento, de acordo com os princípios constitucionais a que remete a cláusula geral.
Por essa razão é de natureza social a responsabilidade do juiz que, na concreção da cláusula geral, utiliza mal os poderes que lhe são concedidos ou não os usa nos casos em que deveria fazê-lo.
Referências
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Poder Judiciário e a concretização das cláusulas gerais. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nº 18, Porto Alegre, p. 221-228, 2000.
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002.
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado (parecer). In:TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Apud FACCHINI NETO, Eugênio. A função social do Direito Privado. In:TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Função social dos contratos: interpretação à luz do código civil. São Paulo: Saraiva, 2009.
BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Limites da atuação judicial na aplicação da função social dos contratos. In: NICOLAU JÚNIOR, Mauro (Org.). Novos direitos. Curitiba: Juruá, 2007.
BRASIL. Lei. nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o novo Código Civil. DOU de 11.01.2002.
BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>.Acesso em: 09 agosto 2013.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
ENGELMANN, Fabiano. Apud TIMM, Luciano Benetti. Direito, Economia e a função social do contrato. In: TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
FACCHINI NETO, Eugênio. A função social do Direito Privado.In:TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral do direito. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2010.
FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. O contrato como regulador e como produtor de riscos. Disponível em:< http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/ocontrato.pdf>. Acesso em: 03 agosto 2013.
GRAU, Eros Roberto. Apud FACCHINI NETO, Eugênio. A função social do Direito Privado.In:TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
GOMES, Orlando. Apud FACCHINI NETO, Eugênio. A função social do Direito Privado. In:TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito.São Paulo: Quartier Latin, 2009.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 5.ed. São Paulo:Saraiva, 2007, v.1.
MARQUES, Cláudia Lima (Org.). A nova crise do contrato. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: RT, 2002, p.175. Apud MIRAGEM, Bruno. A função social do contrato, boa-fé e bons costumes: nova crise dos contratos e a reconstrução da autonomia negocial pela concretização das cláusulas gerais. In: MARQUES, Cláudia Lima (Org.). A nova crise do contrato. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
MELLO, Marcos Bernardes de. Apud, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral do direito. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2010.
MIRAGEM, Bruno. A função social do contrato, boa-fé e bons costumes: nova crise dos contratos e a reconstrução da autonomia negocial pela concretização das cláusulas gerais. In: MIRANDA, Pontes de.Apud FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral do direito. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2010.
PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e mercados. São Paulo: Campus, 2005. Apud TIMM, Luciano Benetti. Direito, Economia e a função social do contrato. In: TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
REALE, Miguel. Apud FACCHINI NETO, Eugênio. A função social do Direito Privado. In:TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
SILVA, Caio Mário Pereira da. Instituições de Direito Civil, 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v.1.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e sua função social. 3.ed.Rio de Janeiro: Forense, 2008.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. Disponível em:
<http://bdjur.stj.jus.br/xmlui/bitstream/handle/2011/20687/onda_reformista_direito_positivo.pdf?sequence=1>. Acesso em 2 agosto 2013.
WALD, Arnold. O interesse social no direito privado. In: TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 56. AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado (parecer). In:TIMM, Luciano Benetti & MACHADO, Rafael Bicca (Cord.). Função social do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
Notas:
>. Acesso em 2 agosto 2013.
Informações Sobre o Autor
Daniele Lemos Carvalho
Advogada especialista pós-graduada em Direito Público e Privado pela Escola Superior da Magistratura do Piauí – ESMEPI