A ilegalidade do bloqueio do Whatsapp pela visão de Kant

Resumo: Este artigo tem como escopo trazer as visões filosóficas de Kant para o presente contemporâneo, vislumbrando seu conceito de liberdade no âmbito do direito em relação ao bloqueio da rede social mais utilizada pela sociedade atual: o Whatsapp. Primeiramente, apresentam-se as máximas kantianas e o como elas se coadunam com as visões culturais modernas, de modo que possam ser utilizadas para a verificação da legalidade ou ilegalidade de ações jurídicas. A seguir, norteia-se o questionamento entre a colisão de normas e princípios, que não são por Kant defendidas, visto que para ele, um dos fundamentos é um dever e o outro não o é, portanto um deve ser utilizado e o outro descartado, mediante o caso concreto. E ao final, demonstra-se o quanto tal decisão de bloqueio é ilegal na visão kantiana e prejudica inúmeros cidadãos de forma desnecessária e desproporcional, afetando a liberdade dos cidadãos, portanto afetando seus direitos.

Palavras-chave: Kant. Whatsapp. Liberdade. Direito. Colisão de normas.

Abstract: This article is scoped to bring philosophical visions of Kant for this contemporary, glimpsing his concept of freedom under the law in relation to the blocking of the most used social network by current society: Whatsapp. First, the kantianas peak and how they fit with the modern cultural visions, so that they can be used for the verification of the legality or illegality of legal actions. The following guides the questioning between the collision of norms and principles, which are not by Kant held, since to him, one of the foundations is a duty and the other isn't, therefore a must be used and the other thrown upon the case. And at the end, demonstrates how such a decision is illegal on Kantian view and harms many citizens unnecessarily and disproportionately affecting the freedom of citizens, thus affecting their rights.

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Keywords: Kant. Whatsapp. Freedom. Right. Collisionofnorms.

Sumário: Introdução. 1. O caso do bloqueio de aplicativo Whatsapp. 1.1. A visão de Kant sobre a colisão de normas. 2. Constituição Federal x Marco Civil da Internet. Conclusão. Referências.

Introdução

Baseando-se na obra de grande renome de Immanuel Kant, “A Metafísica dos Costumes”, tem-se como cerne deste artigo a explicitação da ideia de legalidade do direito na visão kantiana. Kant (2003) afirma que o direito se baseia na ideia de liberdade. E a ideia de liberdade é a única ideia que deve pautar o direito, chamando-a de “factum da razão”, ou seja, a existência de seres racionais que representam para si próprios os princípios obrigantes de sua vontade, demonstrando que a ideia de liberdade é real, é efetiva.

Porém, como cada pessoa tem sua própria liberdade, torna-se necessário coordenar a ação de vários seres racionais, através do direito. Desta feita, Kant apresenta o conceito racional do direito da seguinte forma: “o direito é a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade” (KANT, 2003, p. 76).

Assim, na medida em que seres racionais vivem ou precisam conviver, o direito se torna necessário para criar as condições sob as quais o arbítrio (a escolha de cada um) pode coexistir com o arbítrio de todos os outros, de acordo com uma lei universal da liberdade. Ou seja, para Kant, o direito se torna uma necessidade para garantir a coexistência de seres racionais, na medida em que esses seres racionais representam para si próprios as máximas que governarão a sua vontade, visto que determinadas ações não podem coexistir com a liberdade das outras pessoas, tornando-se, o direito, uma necessidade. Uma necessidade na medida em que é preciso limitar certas formas de uso da liberdade de modo que as formas de uso que não podem coexistir sejam cerceadas.

O direito estabelecido pelo Estado tem a finalidade de proteger as formas de uso da liberdade que sejam compatíveis ou que possam coexistir com a liberdade das outras pessoas, ao mesmo tempo em que devem proibir certas formas de uso da liberdade que não podem coexistir com a liberdade das outras pessoas, afirmando Kant que:

“Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal (KANT, 2003, p.76-77)”.

Ou seja, o princípio universal do direito significa que o direito deve permitir ou proibir determinados comportamentos, tendo como finalidade assegurar a todos uma igual esfera de liberdade. Por exemplo, o Código de Trânsito Nacional (CTN), em seu artigo 306, proíbe a pessoa de conduzir veículo automotor sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa. Isso significa que o CTN proíbe essa forma de uso da liberdade, na medida em que esse uso não pode coexistir com a liberdade das outras pessoas, as que querem transitar nas vias públicas de forma segura, de modo a evitar acidentes.

Em resumo, Kant (2003) afirma que toda ação que puder coexistir com a liberdade das outras pessoas deve ser permitida pelo Direito, não sendo justo restringir esta forma de uso da liberdade. Por outro lado, o filósofo afirma que certas formas de uso não podem coexistir, e nesse caso o direito deve proibir.

Porém, existem casos em que o Estado deve perceber o que é melhor para o coletivo ou o que é melhor para a vida privada.

1. O caso do bloqueio de aplicativo Whatsapp

Um caso concreto que a sociedade brasileira já viveu em 2015 e vive novamente em 2016 é em relação ao bloqueio temporário do aplicativo de troca de mensagens gratuito mais famoso da atualidade, o Whatsapp.

A decisão mais atual de bloqueio foi do juiz Marcel Montalvão, da cidade de Lagarto em Sergipe, na qual exigiu a quebra de sigilo em mensagens do WhatsApp. Vale lembrar que em dezembro passado, o aplicativo de mensagens chegou a ficar temporariamente inacessível por determinação da 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo, de São Paulo, até que essa decisão fosse derrubada por uma liminar.

Em divulgação na imprensa por meio de nota oficial, o Tribunal de Justiça de Lagarto informou que o magistrado atendeu a uma medida cautelar da Polícia Federal por conta do não cumprimento da determinação judicial de quebra de sigilo de mensagens do aplicativo para uma investigação sobre tráfico de drogas em Lagarto, em relação a um processo que tramita em segredo de Justiça.

Ou seja, essa determinação judicial é uma forma de punir a empresa que hospeda o aplicativo Whatsapp, visto que ela descumpriu uma determinação judicial. Porém, mais de 100 milhões de brasileiros usam tal aplicativo, tanto para interações sociais quanto trabalhistas, ficando a par do Estado uma decisão de cerceamento da liberdade de vários indivíduos em favor de alguns mínimos.

1.1 A visão de Kant sobre a colisão de normas

Pelos ideais kantianos, que se percebem nos estudos de sua doutrina, essa determinação é totalmente ilegal, visto que se trata de um conflito de normas.

A questão do conflito de deveres na filosofia moral de Kant fica evidente em uma famosa passagem da Doutrina das Virtudes, na qual faz clara alusão quanto à impossibilidade de que deveres possam conflitar:

Um conflito de deveres seria uma relação recíproca na qual um deles [dos deveres] cancelasse o outro (inteira ou parcialmente). Mas visto que dever e obrigação são conceitos que expressam a necessidade prática objetiva de certas ações, e duas regras mutuamente em oposição não podem ser necessárias ao mesmo tempo, se é um dever agir de acordo com uma regra, agir de acordo com a regra oposta não é um dever, mas mesmo contrário ao dever; por conseguinte, uma colisão deveres é inconcebível. Entretanto, um sujeito pode ter uma regra que prescreve para si mesmo dois fundamentos de obrigação (rationesobligandi), sendo que um ou outro desses fundamentos não é suficiente para submeter o sujeito à obrigação (rationesobligandi non obligantes), de sorte que um deles não é um dever (KANT, 2003, p. 67).”

Através da análise dessa passagem é possível notar que o pensador exprime claramente a impossibilidade da “colisão de deveres” e, além disso, conecta essa ideia com o fato de que um dos fundamentos é um dever e o outro não o é, portanto um deve ser utilizado e o outro descartado.

Além disso, tem-se ainda uma menção a esta impossibilidade de conflitos em outra passagem, que também merece análise:

“Para qualquer dever singular, só pode ser encontrado um fundamento de obrigação; e, se alguém produz duas ou mais provas para um dever, é um sinal seguro de que ou não encontrou ainda uma prova válida ou que tomou dois ou mais deveres distintos por um (KANT, 2003, p. 245).”

Nota-se que o Estado está naquele âmbito em que Barroso (2010) chama de “desacordo moral razoável”, ou seja, “dois lados têm argumentos que merecem consideração e respeito, sendo que o papel do Estado e do Direito não é escolher um dos lados, mas assegurar que cada um viva sua crença, que cada um viva a sua autonomia privada”. Complementando que “nessas matérias que dividem a sociedade, o papel do Direito e do Estado é assegurar que cada um viva seus próprios valores, e não impor autoritariamente uma visão de mundo”. (BARROSO, 2010)

No caso Whatsapp verifica-se dois lados. De um toda a população geral que possui a sua necessidade em relação ao aplicativo. De outro, a sanção ao aplicativo como forma de fazê-lo de exemplo, para que não descumpra mais aquela imposição feita pela Justiça, qual seja a de quebra de sigilo da comunicação.

Ora, Kant (2003) já afirmava que a sanção por parte do Estado não poderia ter por objetivo produzir nenhum outro bem ou finalidade, a não ser retribuir o mal produzido por aquele que deve ser punido. O autor diz ser imoral tratar o punido como uma mera coisa, de forma a garantir o próprio interesse de um. O ser deve ser punido, essencialmente, para retribuir o mal cometido, em virtude de sua ação voluntária de produzir um mal para outra pessoa. Nas palavras do próprio: “qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (KANT, 2003, p.64).

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Segundo o filósofo, não é digno de cidadania aquele que não realiza o que a lei dispõe. Sendo responsabilidade de o Estado impor a sanção a este indivíduo e não da própria vítima. Vale lembrar, que este filósofo encara a lei como sendo um imperativo categórico, ou seja, determinado mandamento não segue outra finalidade a não ser a sua própria representação. Em termos simples: você deve agir sempre baseado naqueles princípios que desejaria ver aplicados universalmente.

Kant (2003) não concorda com a doutrina do utilitarismo, ou seja, a de que "os fins justificam os meios", realizando o seguinte questionamento:

“Como podemos nortear nossas ações com base nos resultados, se até mesmo os planos mais bem traçados podem ser desvirtuados? O resultado do que fazemos, muitas vezes, não é absolutamente o que pretendíamos, portanto é um desvirtuamento moral basear nossos julgamentos nos resultados”.

Para ele, a pena deve ser aplicada simplesmente porque o mandamento legal foi violado, sem se preocupar se a pena trará algum benefício para o acusado ou para a sociedade, importando apenas o castigo ao indivíduo. Contudo, o pensador não deixou de falar da espécie e da medida da sanção, optando por defender o ius taliones (Código de Talião), porém seguindo a pretensão do Estado e não do particular, no qual, afirma, “o mal não merecido que fazes a teu semelhante, o fazes a ti mesmo, se o desonras, desonras a ti mesmo, se o maltratas ou o matas, maltrataste e matas a ti mesmo”.

2. Constituição Federal x Marco Civil da Internet

A decisão que bloqueia o aplicativo Whatsapp para mais de 100 milhões de brasileiros possui um conflito visível entre duas normas. De um lado se tem a lei específica do Marco Civil da Internet, a lei nº 12.965 de 2014 e do outro, a Constituição Federal de 1988.

Vislumbra-se que a medida cautelar que impôs o bloqueio ao aplicativo, baseou sua decisão no Marco Civil da Internet, mais precisamente nos artigos 11, 12, 13 e 15 da lei, in fine:

“Art. 11.  Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros.

§1º O disposto no caput aplica-se aos dados coletados em território nacional e ao conteúdo das comunicações, desde que pelo menos um dos terminais esteja localizado no Brasil.

§2º O disposto no caput aplica-se mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil.

§3º Os provedores de conexão e de aplicações de internet deverão prestar, na forma da regulamentação, informações que permitam a verificação quanto ao cumprimento da legislação brasileira referente à coleta, à guarda, ao armazenamento ou ao tratamento de dados, bem como quanto ao respeito à privacidade e ao sigilo de comunicações.

§4º Decreto regulamentará o procedimento para apuração de infrações ao disposto neste artigo.

Art. 12.  Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:

I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;

II – multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;

III – suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art 11; ou

IV – proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11.

Parágrafo único.  Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País.

Art. 13.  Na provisão de conexão à internet, cabe ao administrador de sistema autônomo respectivo o dever de manter os registros de conexão, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 1 (um) ano, nos termos do regulamento.

§1º A responsabilidade pela manutenção dos registros de conexão não poderá ser transferida a terceiros.

§2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderá requerer cautelarmente que os registros de conexão sejam guardados por prazo superior ao previsto no caput.

§3º Na hipótese do §2º, a autoridade requerente terá o prazo de 60 (sessenta) dias, contados a partir do requerimento, para ingressar com o pedido de autorização judicial de acesso aos registros previstos no caput.

§4º O provedor responsável pela guarda dos registros deverá manter sigilo em relação ao requerimento previsto no §2º, que perderá sua eficácia caso o pedido de autorização judicial seja indeferido ou não tenha sido protocolado no prazo previsto no §3º.

§5º Em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser precedida de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo.

§6º Na aplicação de sanções pelo descumprimento ao disposto neste artigo, serão considerados a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do infrator e a reincidência.

Art. 15.  O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.

§1º Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores de aplicações de internet que não estão sujeitos ao disposto no caput a guardarem registros de acesso a aplicações de internet, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado.

§2º A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§ 3o e 4o do art. 13.

§3º Em qualquer hipótese, a disponibilização ao requerente dos registros de que trata este artigo deverá ser precedida de autorização judicial, conforme disposto na Seção IV deste Capítulo.

§4º Na aplicação de sanções pelo descumprimento ao disposto neste artigo, serão considerados a natureza e a gravidade da infração, os danos dela resultantes, eventual vantagem auferida pelo infrator, as circunstâncias agravantes, os antecedentes do infrator e a reincidência.”

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Ao determinar a sua sentença, são estes os artigos por ele utilizados, visto que se tratam da proteção, sigilo e armazenamento dos dados por provedores de conexão e de aplicações de internet. Além disso, o magistrado Montalvão (2016), em sua sentença, alega ainda que uma empresa estrangeira responde pelo pagamento de multa por uma “filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no país” e que as empresas que fornecem aplicações devem prestar “informações que permitam a verificação quanto ao cumprimento da legislação brasileira referente à coleta, à guarda, ao armazenamento ou ao tratamento de dados, bem como quanto ao respeito à privacidade e ao sigilo de comunicações”.

Porém, é justamente aí que se encontra o principal equívoco, segundo o jurista Ramos (2016):

“As sanções previstas para os provedores de aplicações de internet, como o Whatsapp, em caso de descumprimento de suas obrigações legais, devem ser aplicadas ‘conforme o caso’, como está expressamente disposto no caput do art.12 do Marco Civil na Internet. Ou seja, as sanções a que se sujeitam os provedores, dentre as quais a suspensão temporária de atividades, não são aplicáveis de forma automática a toda e qualquer infração à lei, mas sim, de acordo com as peculiaridades de cada caso. Deve-se avaliar, principalmente, o efeito que a sanção poderá surtir, não só para o provedor em questão, mas, principalmente, para os seus usuários, antecipando-se, dessa forma, a repercussão que a medida poderá produzir e os benefícios que realmente oferecerá à sociedade como um todo”.

Além disso, percebe-se que tal decisão foi uma afronta ao direito constitucional assegurado a todo cidadão brasileiro, qual seja, o direito ao acesso à informação, visto que:

“Tal aplicativo é hoje utilizado por milhões de usuários para fins de integração social e econômica. Muitas pessoas e empresas têm na ferramenta um importante instrumento para a realização de suas atividades profissionais e comerciais. Ao se aplicar uma pena tão drástica, certamente não se levou em consideração todo o prejuízo causado ao cotidiano de milhões de pessoas. (RAMOS, 2016).”

 A coletividade não pode ser responsabilizada por a ação errônea de uns. Mormente, sequer a população tem conhecimento do por que ficou eivada de poder utilizar tal programa. Sendo assim, não foi apenas a parte do processo ou a empresa que foi penalizada, mas todas as pessoas que fazem uso do aplicativo ora explanado.

Para Kant (2003) há um conflito de deveres, em que um deve-se sobrepor sobre o outro, preservando o preceito da liberdade, na qual a escolha de um não pode se sobrepor a escolha de outro. Desta forma, explica que:

“Um conflito de deveres seria uma relação recíproca na qual um deles cancelasse o outro (inteira ou parcialmente). Mas visto que dever e obrigação são conceitos que expressam a necessidade prática objetiva de certas ações, e duas regras mutuamente em oposição não podem ser necessárias ao mesmo tempo, se é um dever agir de acordo com uma regra, agir de acordo com a regra oposta não é um dever, mas mesmo contrário ao dever; por conseguinte, uma colisão de deveres e obrigações é inconcebível. Entretanto, um sujeito pode ter numa regra que prescreve para si mesmo dois fundamentos de obrigação, sendo que um ou outro desses fundamentos não é suficiente para submeter o sujeito à obrigação, de sorte que um deles não é um dever. Quando dois fundamentos tais conflitam entre si, a filosofia prática diz não que a obrigação mais forte tem precedência, mas que o fundamento de obrigação mais forte prevalece. (KANT, 2003, p.67)”

Diante disso, tem-se também a explanação de Barroso (2010), na qual afirma que:

“Vivemos uma época em que estão superados os dogmas da neutralidade científica da interpretação, superado o mito do juiz como alguém que desempenha apenas uma função técnica de conhecimento para revelar a solução que está presente na norma. Sobretudo na interpretação constitucional, o juiz é um coparticipante do processo de criação do Direito. Soluções jurídicas são criadas argumentativamente e é preciso demonstrar à luz de cada caso concreto porque aquela razão é a melhor solução.”

Dessa forma, percebe-se que penalizar toda uma população vai contra a segurança jurídica. Não há que se pensar que a justiça pode cercear a liberdade de comunicação de toda uma população apenas para obrigar uma empresa a obedecer a suas ordens. 

O entendimento do doutrinador Carlos Aurélio Mota de Souza é de que a questão da segurança jurídica está atrelada ao significado de justiça, ao valor dela. Portanto, para que uma norma possa estar sendo perfeitamente aplicada em nossa legislação, mister é que ela traga segurança ao ordenamento jurídico. Portanto, esse princípio está atrelado ao Estado garantidor de direitos, porque não é possível dar-se credibilidade a um ordenamento que está sempre sofrendo modificações, sem se preocupar com o próprio povo.

Ou seja, alterar a legislação conforme o entendimento de cada magistrado estaria comprometendo a confiança inserida pela população em seu Governo.

Além disso, percebe-se que o magistrado Montalvão fez uma interpretação isolada da lei 12.965/14, que acabou por prejudicar milhões de pessoas e razão da resolução de um processo criminal pontual, deixando de lado, também, os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Nesse sentindo, o doutrinador Ávila (2006) preceitua que:

“Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável, a um determinado caso se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um principio que institua uma razão contrária.”

E complementando, afirma que “a razoabilidade exige uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona”.

Diante disso, fica claro como o sol do meio dia que o juiz de Lagarto (SE) não observou os parâmetros menores antes de aplicar a maior sanção possível ao caso concreto, o que nos dá azo para um rompimento com a segurança jurídica outrora tão buscada no ordenamento jurídico brasileiro.

Nesse aspecto, volta-se para Kant (1993), onde ele preleciona que a liberdade é a independência do arbítrio de outro, entendendo-se por arbítrio como a concepção individual de como se deve agir. Quando uma decisão judicial impõe uma obrigação gerada tão somente na concepção individual do julgador sobre o que é justo ou correto, ela é arbitrária. Ao deixar de observar qual é a lei geral, ela implicitamente afirma que os homens não são livres e que, portanto, podem ser submetidos ao arbítrio de outro, no caso, do julgador.

Como já foi visto inicialmente, no pensamento kantiano, há somente um único direito natural, inato, independente do direito positivo: a liberdade, na medida em que possa subsistir com a liberdade de todos, segundo uma lei universal. A isto, Kant (1993) designa como igualdade natural, que é “a impossibilidade moral de ser obrigado pelos demais a mais coisas do que aquelas a que estão obrigadas com respeito a nós”.

Aprofundando ainda mais a matéria, Kant (1993) alega que o poder legislativo só deve pertencer ao povo, ou seja, que não pode ficar ao arbítrio de um único homem, qual seja, o magistrado. E isto se harmoniza com sua ideia de que “se alguém ordena algo contra o outro, é sempre possível que lhe faça injustiça; porém nunca no que decreta para si mesmo”.

A partir do momento que se considera que a decisão judicial também é capaz de criar um “dever-ser”, e efetivamente o é, então fica claro que a criação deste “dever-ser” deve se dar de forma igual para todos, ou seja, por uma lei universal. Assim, diz-se, e nem Kant o diz, que o magistrado deve se ater somente ao legalismo ou ao formalismo. O que se afirma, dentro da doutrina kantiana, é o fato de as decisões judiciais criarem regras, e estas regras, para serem justas, devem limitar de forma igual à liberdade de todos.

Tido assim, comprova-se que a liberdade de todos foi completamente difamada de forma injusta, visto que os envolvidos no processo criminal deveriam ser punidos ao justo modo e na proporcionalidade de seus próprios atos. E não toda a população brasileira que nada fez para com isso.

Considerações Finais

De fato, tem-se de um lado um magistrado que atua de forma desproporcional e de outros milhares de cidadãos punidos. Vale destacar que a sanção do juiz seria para conseguir provas de uma conversa entre pessoas, referente ao tráfico de drogas, ao qual o empresário, dono do Whatsapp, já proferiu em juízo que não havia como coletar estas provas, visto que o serviço não é responsável pelo o que as pessoas postam, ele é apenas o mensageiro, não absorve todas as mensagens dos usuários, até porque isso feriria a privacidade de todos os indivíduos.

Então, percebe-se que o juiz sequer tem uma solução argumentativa capaz de auferir confiabilidade à sua decisão. O juiz deveria utilizar-se de argumentos sólidos para gerar o fundamento conclusivo, de forma que não houvesse nenhum argumento mais válido para tal caso.

Seria bela se não fosse errônea, tal decisão. Visto que os noticiários brasileiros enfocam a toda hora a quantidade de ligações e conversas que são transmitidas das próprias penitenciárias. Fato este que nunca se tornou impossível desabilitar sinal telefônico em suas redondezas. Mas afetar milhões de brasileiros que nada fizeram para serem penalizados no mesmo caso torna-se algo efêmero.

Talvez se sustentem a futilidade de tal aplicativo social, porém o trabalho não se funda nessa sentimentalidade, mas sim na frustração de ter um serviço indisponível de forma constragível, visto que os usuários sequer foram devidamente informados sobre tal e sofreram punições sem sequer tomar conhecimento do caso ao qual foram punidos conjuntamente.

Na visão de Kant, nada mais foi do que uma decisão ilegal, uma decisão que constrange a liberdade de todos, que fere a liberdade do outro, negando o arbítrio e auferindo poder a um juiz, ao qual não tem poder para deliberar conforme os seus próprios métodos e pensamentos.

Referências
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
BARROSO, Luís Roberto. Conversas Acadêmicas. Disponível em: http://www.osconstitucionalistas.com.br/conversas-academicas-luis-roberto-barroso-i. Acesso em: 02/05/2016.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 374.
KANT, Immanuel. Doutrina do Direito, 2ª Ed. São Paulo, Ícone, 1993.
_______. A Metafísica dos Costumes. Trad. de Edson Bini. 1ª ed. Bauru: Edipro, 2003.
_______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2001.
LEMISZ, Ivone Ballao. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 1ª ed. Bauru: Edipro, 2004.
RAMOS, Luiz Gustavo de Oliveira Ramos. Análise – Bloqueio do Whatsapp é sanção descabida. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,analise—bloqueio-do-whatsapp-e-sancao-descabida,1813018. Acesso em: 03/05/2016.
SOUZA, Carlos Aurélio Mota de – Segurança Jurídica e Jurisprudência: um enfoque filosófico-jurídico – São Paulo: LTr, 1996.

Informações Sobre o Autor

Adara Gomes Barbosa de Sousa

Advogada formada pela Faculdade CEUT em Teresina-PI. Atuando nas áreas: trabalhista cível e criminal. Pós Graduada em Direito Constitucional pela Faculdade Estácio Teresina e Pós Graduada em Ciências Criminais pela Faculdade PUC-MG


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