A Ilegalidade do ISS incidente sobre os Serviços de Praticagem

Em dadas e não raras oportunidades, a senda arrecadatória do FISCO beira as raias do absurdo, rasga os escritos legais, viola os preceitos e princípios constitucionais e, nesse agir, provoca uma verdadeira contumélia de um sistema legal, jogando o contribuinte à marginalia da sonegação quando, em verdade, na marginalia está o fundamento legal à cobrança dos tributos.

Recentemente, sem qualquer melindre, regulamentando a Lei Complementar nº. 116/2003, os legislativos municipais trouxeram ao mundo jurídico o dever-obrigação ao recolhimento de Imposto sobre Serviços prestados nas mais diversas atividades.

Todavia, como adiante demonstrado, tal inserção mostra-se notadamente ilegal e inconstitucional porque em muitos dos casos, tanto a Lei Complementar antes mencionada, quanto as Leis Municipais, invadiram competência tributária estadual e federal e está, hoje, a pretender dar legalidade a cobrança do ISS por serviços que são prestados fora dos limites municipais.

E como agiu o corpo legislativo? Pois bem, vejamos:

Em face de novel legislação (Lei Complementar n. 116), restou alterado o dispositivo originário, para fazer constar, no item 20 da lista anexa ao regramento os seguintes serviços: ‘Serviços portuários, ferroportuários, utilização de porto, movimentação de passageiros, reboque de embarcações, rebocador escoteiro, atracação, desatracação, serviços de praticagem, capatazia, armazenagem de qualquer natureza, serviços acessórios, movimentação de mercadorias, serviços de apoio marítimo, de movimentação ao largo, serviços de armadores, estiva, conferência, logística e congêneres’.

Porém, tais serviços, em muitos dos casos – utilização de portos, reboque de embarcações e de escoteiros, atracação e desatracação, praticagem, de movimentação ao largo, por exemplo – são realizados fora dos limites municipais e, portanto, estranhos à base territorial do município.

O ISS é tributo municipal por excelência e como diz o próprio texto legal que o regulamenta, tem como fato gerador a prestação de serviços na base territorial do município.

Registre-se, por oportuno, que o ISS é incidente sobre a atividade-fim, ou seja, o serviço mesmo, de nenhuma importância tributária, assim, as atividades outras que são, digamos, derivadas daquela (atividade fim).

Seus sujeitos são o Município (ativo) e o Prestador de Serviços (Passivo).

No que concerne aos seus aspectos temporal e espacial, aquele é o serviço efetuado em si, do qual, tão logo prestado, gerar-se-á o dever do contribuinte ao recolhimento ao Erário da exação.

Quanto ao espacial, ex vi do disposto no art. 156, V, da Carta Política de 1988, é o território do município.

E aqui, justamente nesse limite territorial, é que as leis em comento estão maculadas e viciadas, porque somente se verifica o fato gerador do ISS, e o dever ao seu recolhimento, quando há efetiva prestação de serviços dentro dos limites territoriais do município.

Atenhamo-nos aos serviços de praticagem os quais, na lista taxativa da legis em comento, está prevista a incidência da tributação, em percentuais variáveis, sobre os serviços de praticagem, atividade esta que é regrada pela Lei nº. 9.537/97 regulamenta pelo Decreto nº. 2.596/98.

Em si, os serviços de praticagem estão disciplinados pelo disposto no Capítulo III, da Lei nº. 9.537/97, combinado com o disposto no Regulamento de Segurança do Tráfego Aquaviário em Águas sob Jurisdição Nacional que abaixo vão transcritos e de onde se extrai, tentando a síntese, que são o conjunto de atividades profissionais de assessoria ao Comandante de Embarcação, nacional ou não, requeridas por força de peculiaridades locais que dificultem a livre e segura movimentação da embarcação e que, a toda evidência, é prestado a bordo de embarcação, em águas territoriais brasileiras.

Tal prestação de serviços, quanto a sua consecução, é composto da efetiva prestação de mão de obra pelo Prático – aquaviários não-tripulantes que prestam serviços de praticagem embarcados – lancha e atalaia – conjunto de tripulantes da lancha. Mas vejam, somente quanto à sua efetivação, pois, em se tratando de atividade-fim, não há que se afastar o pensamento na conclusão única de que é a atividade profissional de assessoria ao Comandante da Embarcação, prestado a bordo desta.

Vitório Cassone, em sua obra Direito Tributário, da Editora Atlas, muito bem leciona que ‘O ISS é um imposto sobre a circulação de bens que não sejam ‘produtos’ ou ‘mercadorias’, ou melhor, que não sejam bem materiais. Seu objeto é a circulação econômica (venda) de bens imateriais (serviços).

E vai mais além para fazer o que omite a Legislação para conceituar serviço como sendo ‘bem imaterial que esteja na etapa de circulação econômica (colocada à disposição de terceiros mediante venda) – Serviço é qualquer prestação de fazer, de prestar atividade a outrem.

Mais uma vez, insurgimo-nos contra o texto legal.

É que se somente há geração do dever ao recolhimento do tributo, ou seja, só se verifica o fato gerador do ISS quando há efetiva prestação de serviços dentro dos limites territoriais do município e, como já dito acima e adiante demonstrado, os serviços de praticagem são, em sua integralidade, desenvolvidos fora deste espaço físico e por isso não poderia o Poder Legislativo fazer constar da listagem anexa à Lei Complementar n. 116/03, tampouco das listagens anexas às Leis Municipais, os serviços de praticagem.

Voltando aos textos legais, reza a Lei nº. 9.537/97, que:

Art. 12. O serviço de praticagem consiste no conjunto de atividades profissionais de assessoria ao Comandante requeridas por força de peculiaridades locais que dificultem a livre e segura movimentação da embarcação.

Art. 13. O serviço de praticagem será executado por práticos devidamente habilitados, individualmente, organizados em associações ou contratados por empresas.

§ 1º A inscrição de aquaviários como práticos obedecerá aos requisitos estabelecidos pela autoridade marítima, sendo concedida especificamente para cada zona de praticagem após a aprovação em exame e estágio de qualificação.

§ 2º A manutenção da habilitação do prático depende do cumprimento da freqüência mínima de manobra estabelecida pela autoridade marítima.

§ 3º É assegurado a todo prático, na forma prevista no caput deste artigo, o livre exercício do serviço de praticagem.

§ 4º A autoridade marítima pode habilitar Comandantes de navios de bandeira brasileira a conduzir a embarcação sob seu comando no interior de zona de praticagem específica ou em parte dela, os quais serão considerados como práticos nesta situação exclusiva.

Art. 14. O serviço de praticagem, considerado atividade essencial, deve estar permanentemente disponível nas zonas de praticagem estabelecidas.

Parágrafo único. Para assegurar o disposto no caput deste artigo, a autoridade marítima poderá:

I – estabelecer o número de práticos necessário para cada zona de praticagem;

II – fixar o preço do serviço em cada zona de praticagem;

III – requisitar o serviço de práticos.

Art. 15. O prático não pode recusar-se à prestação do serviço de praticagem, sob pena de suspensão do certificado de habilitação ou, em caso de reincidência, cancelamento deste.

E, regulamentando, dispõe o Decreto nº. 2.596/98 ao individualizar e tipificar cada grupo de ‘aquaviários’, dentre os quais se inclui o Prático:

Art. 1º Os aquaviários constituem dos seguintes grupos:

…omissis…

V – 5º Grupo – Práticos: aquaviários não-tripulantes que prestam serviços de praticagem embarcados;

…omissis…’

Reza, ainda, o Capítulo III, no art. 6º, do Regulamento supramencionado que:

Art. 6º A Aplicação do previsto no inciso II do parágrafo único do art. 14 da Lei nº. 9.537, de 11 de dezembro de 1997, observará o seguinte:

I – o serviço de praticagem é constituído de prático, lancha de prático e atalaia;

II – a remuneração do serviço de praticagem abrange o conjunto dos elementos apresentados no inciso I, devendo o preço ser livremente negociado entre as partes interessadas, seja pelo conjunto dos elementos ou para cada elemento separadamente;

III – nos casos excepcionais em que não haja acordo, a autoridade marítima determinará a fixação do preço, garantida a obrigatoriedade da prestação do serviço.

Ora, se o efetivo serviço de praticagem, sobre o qual pretensamente deve incidir o ISS é, como acima disposto pelo Decreto nº. 2.596/98, prestado a bordo da embarcação, a toda evidência que não há prestação de serviços dentro dos limites municipais.

Logo, não há fato gerador à exação em comento e isso porque, todo e qualquer serviço realizado fora dos limites municipais, ainda que por empresa prestadora de serviços estabelecida dentro dos limites territoriais, não dá ensejo à geração do dever ao recolhimento da exação porque este – estabelecimento – tampouco é fato gerador da exação.

Exemplificando: os serviços de praticagem no Porto do Rio Grande, Estado do Rio Grande do Sul, são realizados fora dos limites municipais, segundo os termos do disposto nos arts. 20 e 26 da Constituição Federal de 1988, ou ainda, quiçá, os termos das Normas e Procedimentos da Capitania dos Portos do Estado do Rio Grande do Sul – NPCP/2001 do Ministério da Defesa e da Portaria nº. 1.011/93, do Ministério dos Transportes, a qual indica as áreas físicas do Porto Organizado do Rio Grande.

Pela conjugação de tais dispositivos, dentre outros, é bem possível verificar que os serviços acima citados são realizados na extraterritorialidade municipal e, assim, não servem de fato gerador ao ISS como impõe as Leis em comento.

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao apreciar diversos Apelos que lá aportaram, em síntese, tem reiteradamente decidindo que ‘Competente para cobrar o ISS é o Município onde ocorre seu fato gerador, ou seja, o local de prestação do serviço.’ Assim é o que decidiu ao julgar a Apelação Cível nº. 70007184567 e a Apelação Cível nº. 70006992739, apenas a título exemplificativo.

Logo, se não há controvérsias que a atividade fim é o Serviço de Praticagem, estando este exercido pelos profissionais habilitados para tanto, que este serviço encontra-se perfeitamente tipificado e regulado pelos termos da Lei n. 9.537 de 1997, regulada pelo Decreto n. 2.596 de 1998, que este serviço é totalmente desenvolvido a bordo, em águas territoriais, seja da União ou do Estado, nos termos da legislação já invocada e apontada, sendo incontroverso que a base operacional ou seu estabelecimento é de nenhuma importância em termos tributários, levando-se em conta, ainda, que a Constituição Federal fixou que os municípios são entes autônomos e detentores de competência para, instituindo o ISS, tributarem todos os serviços – exceto os de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação – que forem prestados nos respectivos limites territoriais. Mais, que a instituição do ISS é de competência exclusiva dos municípios, decorrendo detalhadamente da Constituição Federal, cujo teor não deixou margem para o surgimento de conflitos, sendo desnecessária qualquer legislação complementar com finalidade de evitá-los.

Considerando, igualmente, que os termos do artigo 3º., da Lei Complementar n. 116 de 2003, ao dispor que o serviço é considerado prestado no território do município em que o prestador de serviços possui seu estabelecimento, ou domicílio, criou uma ficção jurídica que entra em choque com o norte traçado pela Carta Política, acarretando sua inconstitucionalidade porque somente o município em cujo território se deu a prestação do serviço é que está legitimado a exigir o respectivo imposto, ainda que de forma contrária estabeleça o citado artigo, pois sua competência não decorre deste, mas sim da Constituição Federal.

Inexorável é a conclusão de que a tributação do Imposto sobre Serviços, nos termos da Lei Complementar n. 116 de 2003, combinado com os termos das Lei Municipais que pretendam regulamentar tal Lei Complementar, violam os preceitos constitucionais relativos à exação em comento pois pretendem, em verdade, alterar o critério espacial para a fixação da tributação em fato gerador diverso do que estabeleceu o Legislador Constitucional.

Se fato incontroverso, como dito, que a atividade fim da Autora é o Serviço de Praticagem e que este, sem dúvida, é exercido a bordo das embarcações que chegam ou saem dos Portos, não há com pretender dar-se margem à manutenção da incidência do ISS sobre os serviços de praticagem.

E, por isso, o Imposto Sobre Serviços é indevido quando incidente sobre os Serviços de Praticagem, não possuindo os municípios legitimidade à pretensão da cobrança da exação, inobstante possuam, por força dos ditames legais citados, fundamento jurídico para suas condutas.

É o nosso entendimento.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Enio Fernandez Junior

 

Sócio de Fernandez & Ferreira S/C – Advogados Associados; Professor Assistente da Fundação Universidade Federal do Rio Grande; Especialista em Direito Civil e Empresarial; Doutorando em Ciências Jurídica e Sociais.
Rio Grande/RS.

 


 

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