A imposição do princípio da equivalência material na teoria contratual contemporânea

Sumário: Introdução; 1 Algumas considerações sobre o princípio da equivalência material; 1.1 A teoria da imprevisão; 1.2 O estado de perigo; 1.3 A lesão; Considerações finais; Referências.

Com a evolução da sociedade, os contratos sofrem transformações em sua configuração. A busca exclusiva da segurança jurídica, característica do espírito individualista e formalista predominante anteriormente, abre espaço para uma flexibilização nas contratações, em busca de uma maior justiça contratual. Nesse contexto, ressalta-se a importância dos institutos da lesão, do estado de perigo e da teoria da imprevisão dentro da teoria contratual contemporânea.

Introdução

O direito civil clássico tem um caráter formalista e patrimonialista, fruto do individualismo predominante durante toda a modernidade. De modo que havia maior preocupação com a segurança jurídica que com o equilíbrio das partes nas relações interprivadas. Nesse contexto, a igualdade formal entre os contratantes era considerada suficiente para uma suposta justiça contratual, pois a contratação seria fruto da livre convenção das partes envolvidas. Entretanto, as diversas formas de desigualdades sociais fizeram com que as partes mais fortes sempre conseguissem impor seus interesses na realização das contratações.

Na sociedade contemporânea, inicia-se um processo de revalorização do indivíduo, em detrimento de aspectos puramente patrimoniais. Para que uma relação obrigacional possa ser socialmente aceita, é preciso que os interesses das partes envolvidas estejam em harmonia, e que haja equilíbrio nas contraprestações convencionadas. Assim, atualmente o ordenamento jurídico estabelece diversos dispositivos para que se busque a efetiva igualdade nas relações. Tratar-se-á, assim, nesse breve estudo, da teoria da imprevisão, e dos institutos da lesão e do estado de perigo, sob a ótica do direito civil contemporâneo.

1 Algumas considerações sobre o princípio da equivalência material

O princípio da equivalência material é manifestação da busca da efetiva igualdade entre as partes na relação contratual. Quando a igualdade jurídico-formal característica da concepção liberal mostrou-se insuficiente para garantir o equilíbrio das prestações nos contratos, esse princípio passou a ter grande importância na teoria geral dos contratos. A equivalência material busca harmonizar os interesses das partes envolvidas, e realizar o equilíbrio real das prestações em todo o processo obrigacional (LOBO, 2002, p. 192).

Esse princípio relativiza o princípio clássico do pacta sunt servanda, que determina que, estabelecidas as condições do acordo, essas possuem força obrigatória e devem ser cumpridas a qualquer custo, independentemente da realidade fática. Isso porque com o reconhecimento de que a simples igualdade formal não basta para se alcançar a justiça contratual, foi preciso levar em consideração as condições reais para a execução do contrato realizado. Assim, o contrato continua obrigatório, mas à medida que se mantenha dos limites de equilíbrio entre as prestações.

É importante ressaltar que o princípio da obrigatoriedade foi abrandado, mas não desapareceu. Aliás, isso nem seria possível, em nome da segurança jurídica – valor tão importante para o Direito como os valores éticos e sociais. O que ocorre é não se admite mais que, em nome da obrigatoriedade, possa haver proveito injustificado de umas das partes em detrimento da outra conseqüência de disparidades entre elas (BIERWAGEN, 2002, p. 30).

Essa preocupação com a comutativadade nas prestações está expressa no Código Civil de 2002 com a previsão da teoria da imprevisão (art. 317 e 478 a 480/CC), e dos institutos do estado de perigo (art. 156/CC) e da lesão (art. 157/CC), que permitem a revisão das condições contratadas.

1.1 A teoria da imprevisão

Segundo Fiúza (2003, p. 297-298), o art. 317 do Código Civil, tal como se apresentava na redação aprovada inicialmente pela Câmara, disciplinava a aplicação da correção monetária. Após revisão final, foi suprimida tal referência e o dispositivo ficou com o mesmo sentido do disposto no art. 478/CC, que trata da imprevisão.

Na teoria da imprevisão (art. 478/CC), na hipótese de superveniência de acontecimentos imprevisíveis e extraordinários, que tornem a prestação excessivamente onerosa para um dos contratantes e extremamente vantajosa para o outro, é possível pedir a resolução do contrato ou a revisão de seus termos, para restabelecer o equilíbrio econômico entre prestação e contraprestação (THEODORO JUNIOR, 2003, p. 12; BIERWAGEN, 2002, p. 66-67).

A aplicação da fórmula rebus sic stantibus é possível nos contratos de trato sucessivo ou a termo, em que o princípio pacta sunt servanda, que rege a força obrigatória dos contratos, é limitado. Assemelha-se ao fato fortuito ou força maior, mas a diferença é que na onerosidade excessiva o evento extraordinário e imprevisível determina apenas uma dificuldade, e não a impossibilidade de prestar.

1.2  O estado de perigo

No estado de perigo, a parte, premida pela necessidade de se salvar, ou de salvar pessoa de sua família, de um grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação extremamente onerosa. O agente só assume a obrigação em razão de a vida ou a saúde, própria ou de seu familiar, estar em perigo. Em condições normais, a pessoa não assumiria tal negócio, pois paga-se o preço desproporcionado para obtenção de socorro.

Alguns exemplos de estado de perigo encontrados na doutrina: 1) Uma vítima de um acidente que, para ser salva logo, promete grande recompensa (por exemplo, doar todo o seu patrimônio) ou assume negócio exagerado. 2) Alguém, vendo um membro de sua família em grave estado de saúde, sob risco de morte ou mal grave, aceita contratar o único médico disponível ou que pôde ser encontrado naquelas circunstâncias (seja pela sua disponibilidade, seja pela sua especialidade, etc.), pagando honorários muito superiores ao de mercado. 3) Os pais, tendo o filho seqüestrado, vendem o patrimônio a preço inferior ao de mercado para pagar valor requisitado em resgate. 4) Um paciente chega em caráter de urgência ao hospital e é exigido de seus parentes a constituição de uma garantia cambial ou fidejussória para que possa ser prestado o atendimento.

A configuração do estado de perigo compõe-se de requisitos objetivos e subjetivos. O primeiro diz respeito à ameaça de grave dano – atual ou iminente – à própria pessoa ou à pessoa de sua família, que leva a pessoa à assunção de obrigação excessivamente onerosa. O segundo, ao conhecimento do perigo pela outra parte, que obtém vantagem com a situação (THEODORO JUNIOR, 2001, p. 252-253).

A ameaça de dano não significa desequilíbrio de prestações, pois o estado de necessidade pode conduzir a negócios unilaterais, em que a prestação assumida é exclusivamente pela vítima (v.g. remissão de dívida, promessa de recompensa, renúncia de direitos, testamento). Ou seja, o negócio acarreta uma oneração para a vítima do estado de perigo não compatível com o negócio que se praticasse fora do contexto de perigo (THEODORO JUNIOR, 2001, p. 252-253). O magistrado, ao verificar o estado de perigo, deverá examinar o caso concreto posto à análise, para verificar a onerosidade excessiva. Deve ser verificado caso a caso, pois o que é negócio onerosamente excessivo para uns, não o será para outros. Deverá, assim, ser levada em consideração a situação financeira do promitente. O juiz decidirá pelo bom senso, conforme determina o art. 5º/LICC.

O estado de perigo se encontrava, em restritas hipóteses, dentro da coação. Segundo Humberto Theodoro Junior (2001, p. 252), o estado de perigo se aproxima da coação moral, porque a vítima que contrata sob seu impacto não tem, praticamente, condições para declarar livremente sua vontade negocial. Mas o estado de perigo difere da coação porque nele “o beneficiário não empregou violência psicológica ou ameaça para que o declarante assumisse obrigação excessivamente onerosa. O perigo de não salvar-se, não causado pelo favorecido, embora de seu conhecimento, é que determinou a celebração do negócio prejudicial” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 380).

1.3 A lesão

A lesão configura-se quando uma das partes obtém uma vantagem desproporcional, em prejuízo da parte que contratou por inexperiência ou diante de uma necessidade urgente (art. 157, caput/CC). Muitas vezes significa “o abuso do poder econômico de uma das partes, em detrimento da outra, hipossuficiente na relação jurídica” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 370).

Alguns exemplos de lesão encontrados na doutrina: 1) A venda de um computador com configuração ultrapassada, que, embora anunciado corretamente (modelo, capacidade de memória, periféricos, etc.), é vendido por um preço exorbitante, aproveitando-se da inexperiência do comprador. 2) Alguém prestes a ser despejado, procura outro imóvel para morar, cujo proprietário, mesmo não tendo conhecimento do fato, eleva o preço do aluguel. Diante da necessidade de abrigar sua família, o inquilino acaba aceitando o contrato, para evitar a situação vexatória. 3) Um agricultor lavra a terra pela primeira vez, e necessita de produtos químicos para acabar com as pragas em sua plantação. Ele contrata livremente com o vendedor, que se aproveita da sua inexperiência na agricultura e cobra preço excessivo. O lavrador, por ser inexperiente, não conhece a verdadeira qualidade, nem o custo real do produto. Ele paga o preço cobrado, diante da necessidade que tem de evitar a praga que pode se alastrar por toda a plantação.

Na constatação da premente necessidade, da inexperiência ou da leviandade, deve-se levar em consideração as condições pessoais do lesado, assim como ocorre na apreciação da coação. Mas na lesão, diferentemente do estado de perigo, é irrelevante a situação econômica do lesado.

Como ensinam Gagliano e Pamplona Filho (2002, p. 374), a premente necessidade tem fundamento econômico e reflexo contratual. Trata-se de uma necessidade contratual, que se caracteriza uma situação extrema, que impõe ao necessitado a celebração do negócio prejudicial. Pode ser de ordem material ou espiritual, desde que se tratem de coisas importantes para a sobrevivência digna da pessoa.

A inexperiência pode ser entendida como a falta de habilidade para o trato nos negócios, mas não significa, necessariamente, falta de instrução ou de cultura geral. Essa definição aproxima a lesão do erro, mas no caso da lesão, a inexperiência é aproveitada pelo contratante mais forte, capaz ou conhecedor, em detrimento do débil ou inexperiente, sem se configure o erro ou mesmo o dolo. O inexperiente nota a desproporção, mas em razão da falta de experiência de vida, acaba concordando irrefletidamente com ela, sem perceber as conseqüências prejudiciais que trará, chegando a um resultado que, conscientemente, não desejaria. Até mesmo uma pessoa culta pode ser lesada, se desconhecer certas circunstâncias que a levem a se envolver, especialmente em determinados tipos de contratos, que exigem conhecimentos técnicos ou de usos e costumes locais, não acessíveis a ela (LOUREIRO, 2002, p. 228; GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 374). Um médico, por exemplo, pode ter grande conhecimento específico em sua área, mas se, pela primeira vez, vai adquirir um imóvel, pode lhe faltar informações sobre documentos necessários para a contratação, o registro que transmite a propriedade, ou pode ser pessoa desligada de assuntos econômicos e desconhecer o real valor do bem ou as regras de financiamento, e ser lesado (SANTOS, 2002, p. 186).

A leviandade caracteriza uma atuação impensada, inconseqüente, em que a realização do negócio acontece sem a necessária reflexão em torno das conseqüências provindas do acordo. O que não pode ocorrer é atitude culposa, seja por negligência ou imprudência (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 374-375). Embora o Código Civil brasileiro não mencione a leviandade como elemento subjetivo que pode causar a lesão, como ocorre no Código Civil alemão e no Código Civil argentino, a doutrina reconhece que, se ocorrer esse estado de ânimo, o ato pode estar recoberto pela lesão. No Brasil, a leviandade já era considerada elemento da lesão na Lei 1.521/51, que trata dos crimes contra a economia popular (SANTOS, 2002, p. 190-191).

O contrato pode ser anulado ou revisto nesse caso porque é contrário ao princípio da boa-fé, imposto pelo art. 422/CC, a realização de um negócio com extrema vantagem de uma parte em detrimento da outra, que contrata em situação de inferioridade (THEODORO JUNIOR, 2001, p. 250).

Assim, na sua aferição, são considerados o requisito objetivo – clara desproporção entre as prestações, que leva à obtenção de lucro exagerado e incompatível com a normal comutatividade do contrato – e o subjetivo – o aproveitamento por uma das partes do estado psicológico do outro, consistente em premente necessidade, inexperiência ou leviandade (THEODORO JUNIOR, 2001, p. 248; GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2002, p. 374).

A desproporção entre as prestações por si só não caracteriza a lesão, porque nem sempre as prestações serão necessariamente equivalentes. De modo que não há lesão quando um contratante compra a valor muito elevado um imóvel que lhe agrada por ter ele um valor histórico ou sentimental (por ser uma antiga residência da família, por exemplo). Por outro lado, a manifesta desigualdade pode ser um sinal da existência do vício da vontade. Ou seja, para ser configurada a lesão é preciso que exista algo além da manifesta desigualdade das obrigações, que é justamente a exploração de uma das partes pela outra, que se aproveita da situação de necessidade, inexperiência ou leviandade do primeiro (LOUREIRO, 2002, p. 224).

Assim, é através da teoria da imprevisão e dos institutos da lesão e do estado de perigo que a legislação vigente pretende manter o equilíbrio contratual nas contratações. São medidas de proteção aos contratantes de grande importância, pois sem a equivalência material das prestações, não há como se falar em justiça contratual.

De modo que ao jurista de hoje é imprescindível o abandono do formalismo e do absolutismo de outras épocas, e a aceitação da relativização de certos conceitos, na busca de soluções para as questões que se apresentam na realidade contemporânea (WALD, 2002, p. 30). Somente com a efetivação dos valores éticos e sociais impostos com a recente legislação civil é que a realidade jurídica estará de acordo com os ditames constitucionais e, principalmente, com os anseios da sociedade.

Considerações finais

Diante das diversas desigualdades e injustiças percebidas em inúmeros contratos realizados, no direito civil contemporâneo abandona-se a idéia que a igualdade formal é suficiente para a consecução da justiça contratual, e parte-se em busca da igualdade material das partes, para que seja possível um maior equilíbrio nas relações.

Assim, o atual ordenamento jurídico brasileiro estabelece diversos dispositivos para que se busque a efetiva igualdade nas relações. Através da teoria da imprevisão e dos institutos da lesão e do estado de perigo, entre outras possibilidades existentes, é possível relativizar certos ditames que visavam a segurança jurídica, em prol de uma menor disparidade de condições entre os contratantes.

O Direito e a sociedade como um todo ainda haverão de evoluir muito na questão da justiça contratual, mas devemos reconhecer que já avançamos bastante, ao trilharmos esse caminho de maior proteção para as partes contratantes mais desprotegidas. É importante ressaltar ainda que cabe aos operadores do Direito a missão de colocar em prática essas possibilidades abertas pelo legislador pátrio, em busca de uma sociedade mais justa e solidária. Pois não basta a existência de uma legislação protetiva, é preciso sua efetividade social.

 

Referências
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002.
FIÚZA, Ricardo (Coord). Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípios sociais dos contratos no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, n. 42, p. 187-195, abr.-jun. 2002.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria geral dos contratos no novo código civil. São Paulo: Método, 2002.
SANTOS, Antônio Jeová. Função social: lesão e onerosidade excessiva nos contratos. São Paulo: Método, 2002.
THEODORO JUNIOR, Humberto. O contrato e seus princípios. Rio de Janeiro: Aide, 2001.
________. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
WALD, Arnoldo. A função social e ética do contrato como instrumento jurídico de parcerias e o novo Código Civil de 2002. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 98, n. 364, p. 21-30, nov.-dez. 2002.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Daniela Vasconcellos Gomes

 

Advogada. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); Especialista em Direito Civil Contemporâneo pela Universidade de Caxias do Sul (UCS); Professora de Direito Civil no Centro de Ensino Superior Cenecista de Farroupilha (CESF)

 


 

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