A (in)constitucionalidade da Lei 13.286/2016 que estabelece a responsabilidade civil subjetiva por ato dos notários e registradores

Resumo: No presente artigo, com base em pesquisa bibliográfica, legislativa e jurisprudencial, analisa-seaconstitucionalidade da Lei 13.286/2016 que alterou o regime jurídico de responsabilidade civil por atos dos notários e registradores no exercício de suas funções, inovando ao estabelecer a responsabilidade civil subjetiva, ou seja, mediante análise de dolo ou culpa, sem considerar, por outro lado, o disposto no artigo 37, § 6º da Constituição Federal de 1988, que estabelece como regra, e sem abrir espaço para exceções, a responsabilidade civil de forma objetiva por atos danosos realizados no exercício do serviço público.

Palavras-chave: Constitucionalidade. Responsabilidade civil do Estado. Serviço notarial e de registro.

Abstract: In this article, based on bibliographical, legislative and jurisprudential research, the constitutionality of Law 13,286 / 2016, which changes the legal regime of civil liability by acts of notaries and registrars in the exercise of their functions, is analyzed, innovating in establishing subjective civil liability, That is, by means of analysis of intent or fault, without considering, on the other hand, the provisions of Article 37, § 6 of the Federal Constitution of 1988, which establishes, as a rule, and without opening space for exceptions, civil liability objectively for Harmful acts carried out in the exercise of the public service.

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Keywords: Constitutionality. Civil liability of the State. Notary and registration service.

Sumário: Introdução. 1. Serviço público. 2 Responsabilidade Civil do Estado. 2.1 Evolução da Responsabilidade Civil do Estado. 2.2 Responsabilidade Subjetiva do Estado. 3. Serviço notarial e de registro. 3.1 A (in) constitucionalidade da previsão de responsabilidade civil subjetiva no âmbito do serviço público. 4. Conclusão.

Introdução

A responsabilidade civil do Estado, também chamada de extracontratual, surge a partir de qualquer atividade exercida ou serviço prestado pelo Estado, de forma direta ou indireta, de onde decorrem danos ou ônus desproporcionais à uma pessoa ou grupo específico.

Regulamentando a responsabilidade civil do Estado, a Constituição Federal de 1988 – CF/88, em seu art. 37, § 6º, dispõe que “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros…”. Estabelecendo, assim, a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados aos particulares no exercício de suas atividades e serviços.

Ocorre que, em maio de 2016, foi aprovada a Lei nº 13.286/2016 que altera o artigo 22 da Lei 8.935/1994 (Lei dos Cartórios), dispondo sobre a responsabilidade civil por ato dos notários e registradores. Referida alteração inovou o tipo de responsabilidade a qual se submetiam os serviços notariais, dispondo, agora, que será subjetiva, ou seja, a vítima deverá provar a culpa ou dolo.

Diante desta situação, será realizada uma análise da Lei 13.286/16 que inovou o regime jurídico do serviço notarial e de registro, estabelecendo a responsabilidade civil subjetiva, em face do que dispõe o art. 37, §6º da Constituição Federal de 1988, ponderando, a partir daí sua constitucionalidade.

A princípio, deve-se considerar que a atividade notarial e de registro é um serviço público exercido em caráter privado, por delegação do Poder Público (art. 236 da CF/88), e por isso deveria ser observado o previsto no art. 37, §6º da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade objetiva aos prestadores de serviço público.

Para o estudo em voga será feita uma abordagem legal, doutrinária e jurisprudencial acerca do tema e suas nuances, buscando, ainda, os fundamentos utilizados para a inovação legislativa (Lei 13.286/16), que estabelece a responsabilidade civil subjetiva pelos atos dos notários e registradores, para, por fim, examinar a constitucionalidade da referida alteração em face do que estabelece o art. 37, §6º da CF/88.

Segundo Mello (2003), desde a Constituição de 1946, o Brasil adota a responsabilidade objetiva do Estado, como regra para a responsabilização civil, no entanto, por vezes, a doutrina, a jurisprudência e o próprio legislativo vêm mitigando esta regra. A partir de tais constatações, denota-se a importância em traçar um debate mais aprofundado acerca do tema responsabilidade civil do estado e a (in)constitucionalidade dos entendimentos e leis que dispõe em sentido contrário, em atenção, especialmente, aos princípios da segurança jurídica, igualdade e supremacia do interesse público sobre o privado.

O desenvolvimento do presente trabalho tem por base a utilização da pesquisa exploratória do tipo bibliográfica, que será desenvolvida com base em material já elaborado e publicado, como define Gil (2008), partindo do estudo da responsabilização civil objetiva estabelecida na Constituição Federal, art. 37, §6º para atos da administração pública, fundamentado no princípio da supremacia do interesse público e da igualdade.

Em seguida, verificar-se-á o regime jurídico a qual se submete os serviços notariais e de registro, tendo em vista o que estabelece o art. 236 da CF/88. Para que assim possa ser feita uma comparação entre a novidade legislativa, que estabelece a responsabilidade subjetiva, com necessária comprovação de dolo ou culpa, por ato dos notários e registradores e, por outro lado, a responsabilidade objetiva prevista de forma geral pela Constituição Federal para os serviços prestados em caráter público, analisando seus impactos na relação entre o indivíduo e o Estado.

1. Serviço Público

Numa visão ampla, a doutrina conceitua serviço público como toda atividade que tem por fim o oferecimento de utilidades ou comodidades materiais destinada à satisfação da sociedade em geral.

O art. 175 da Constituição Federal de 1988 atribui ao poder público a titularidade dos serviços públicos de um modo geral, estabelecendo, inclusive, que o poder público pode prestar esses serviços de forma direta ou indireta, mediante delegação.Nesse ponto, é importante destacar que não se deve confundir a titularidade do serviço com a titularidade daquele que o presta, pois trata-se de realidade jurídica distinta,a qual irá fundamentar o regime jurídico em que se insere o serviço público.

No entanto, é importante destacar que a delegação da prestação de um serviço público ao particular não transfere a sua titularidade. Nas palavras de Alexandrino (2014, p. 708),“o particular não presta serviço público por direito próprio, como titular do serviço, mas sim na qualidade de mero delegatário”.

Ressalta, entretanto, que em qualquer caso, seja por prestação direta, como indireta, a prestação de serviço público está submetida a um rígido regime jurídico de direito público, a qual prima pela igualdade, segurança jurídica e supremacia do interesse público, principalmente.

Esse é o entendimento exposto por Carvalho (2016, p. 597): “O serviço público está submetido ao regime de direito público, o que significa que deve obediência aos princípios de Direito Administrativo definidos, no texto constitucional, de forma expressa ou implícita. ”

Sobre o regime jurídico a qual se submetem os serviços público, Mello (2003, p. 613):

“Por meio de tal regime o que se intenta é instrumentar quem tenha a seu cargo garantir-lhes a prestação com os meios jurídicos necessários para assegurar a boa satisfação dos interesses públicos encarnados no serviço público. Pretende-se proteger do modo mais eficiente possível as conveniências da coletividade e, igualmente, defender a boa prestação do serviço não apenas (a) em relação a terceiros que pudessem obstá-la; mas também – e com mesmo empenho – (b) em relação ao próprio Estado e (c) ao sujeito que as esteja desempenhando (concessionário ou permissionário). Com efeito, ao erigir-se algo em serviço público, bem relevantíssimo da coletividade, quer-se também impedir, de um lado, que terceiros os obstaculem e; de outro; que o titular deles; ou qualquer que haja sido credenciado a prestá-los; procedam, por ação ou omissão, de modo abusivo, quer por desrespeitar direitos dos administrados em geral, quer por sacrificar direitos ou conveniências dos usuários dos serviços”.

Diante do que foi exposto acerca dos serviços públicos em geral, cumpre destacar a posição dos serviços notariais e de registro, que, conforme destaca Alexandrino (2014, p. 718), encontram-se numa“situação muito peculiar”, pois, embora não se enquadre como serviço público propriamente dito (atividade material), é uma “atividade jurídica estatal” exercida por particulares, delegatários de serviço público pelo Estado, mediante aprovação em concurso público.
Cumpre observar que tais atividades são realizadas com fundamento no poder de império do Estado, sendo, inclusive, de exercício obrigatório, além de gozarem de presunção de legitimidade. Registre-se que a atividade notarial e de registro compreende todas essas características, pois tem como titular o Estado.

2. Responsabilidade Civil do Estado

A responsabilidade civil ou extracontratual tem seu fundamento no Direito Civil e se configura na obrigação de reparar economicamente um dano patrimonial ou moral causado a alguém em decorrência de comportamentos unilaterais, sejam eles lícitos ou ilícitos.

Segundo Alexandrino (2014), na esfera do Direito Público, a responsabilidade civil é verificada na obrigação que tem o Estado de indenizar os danos, patrimoniais ou morais, que seus agentes, atuando em seu nome, ou seja, na qualidade de agentes públicos, causem à esfera juridicamente tutelada dos particulares.

A atribuição de responsabilidade civil à Administração Pública passou, ao longo do tempo, por importante evolução, estando, atualmente, configurada a sua obrigação de reparar os danos causados.

O art. 37, §6º CF/88 consagrou, no Brasil, a responsabilidade objetiva da administração pública na modalidade risco administrativo, pelos danos causados por atuação dos seus agentes. Tal modalidade de responsabilização atinge todas as pessoas jurídicas de direito público (administração direta e indireta), além das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, inclusive as delegatárias.

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Numa análise do direito comparado sobre a responsabilidade extracontratual do Estado, expõe-se:

“Esta noção é, hoje, curial no Direito Público. Todos os povos, todas as legislações, doutrina e jurisprudência universais, reconhecem, em consenso pacífico, o dever estatal de ressarcir as vítimas de seus comportamentos danosos. Estados Unidos e Inglaterra, últimos refratários da tese, acabariam por assumi-la em 1946 e 1947, respectivamente, embora sem a exceção que seria de desejar, posto que ainda apresenta caracteres restritivos (MELLO, 2003, p. 852)”.

Importa destacar que o regime jurídico da Administração Pública está pautado por princípios próprios, compatíveis com a peculiaridade de sua posição jurídica e soberana frente aos particulares, e, por isso, sua responsabilização por atos danosos é mais extensa que a responsabilidade que pode incidir às pessoas privadas.

Conforme destaca Mello (2003), as atividades estatais, sejam em suas funções típicas ou atípicas,são capazes de produzir danos mais intensos que os suscetíveis de serem gerados pelos particulares.

Observa-se que muitas das atividades prestadas pelo Estado, à semelhança da atividade notarial e de registro, são caracterizadas por serem exercidas privativamente pelo Estado, mesmo que em caráter delegado, além de serem configuradas como obrigatórias aos particulares. Nesse sentido, ao particular não é permitido se furtar à submissão de determinados serviços estatais sob pena de incorrer no ilícito.

Refletindo a peculiaridade inerente às atividades estatais, é imperiosa a responsabilidade extrapatrimonial da administração pública por danos advindos dos seus serviços, resguardando os particulares, nos seus interesses e bens jurídicos, contra os riscos decorrentes de falhas ou omissões.

Discorrendo sobre a imperatividade do serviço público em face das relações com os particulares, Mello (2003, p. 856):

“Ademais impende observar que os administrados não têm como se evadir ou sequer minimizar os perigos de dano provenientes da ação do Estado, ao contrário do que sucede nas relações privadas. Deveras: é o próprio Poder Público quem dita os termos de sua presença no seio da coletividade e é ele quem estabelece o teor e a intensidade de seu relacionamento com os membros do corpo social”.

Conforme aponta Alexandrino (2014), o fundamento para responsabilidade estatalreside na busca de uma repartição igualitária do ônus decorrente das atividades da Administração, evitando, assim, que apenas alguns suportem os prejuízos ocorridos por causa de uma atividade desenvolvida pelo Estado no interesse de todos. Nesse sentido, se todos seriam beneficiados, todos deveria suportar o risco decorrentes desta atividade.

2.1. Evolução da responsabilidade civil do Estado

A ideia de responsabilização estatal por atos danosos no exercício de sua atividade típica passou desde a sua origem por constantes evoluções, sendo que nos tempos mais remotos, na origem do direito público estatal, vigia o princípio da irresponsabilidade do Estado.

Descrevendo o período, Alexandrino (2014, p. 814):

“A teoria da não responsabilização do Estado ante os atos de seus agentes que fossem lesivos aos particulares assumiu sua maior notoriedade sob os regimes absolutistas. Baseava-se esta teoria na ideia de que não era possível ao Estado, literalmente personificado na figura do rei, lesar seus súditos, uma vez que o rei não cometia erros, tese consubstanciada na parêmia ‘the king can do no wrong’, conforme os ingleses, ou ‘leroi ne peut mal faire’, segundo os franceses”.

Carvalho (2016, p. 322) afirma que as monarquias absolutistas tinham como fundamento a ideia de autoridade soberana, a qual não abria possibilidade de contestação pelos súditos, era considerada a “personificação divina do chefe de Estado”.

Nesse sentido, o entendimento era de que os agentes públicos, atuando como representantes do rei, não poderiamser responsabilizados por seus atos, já que agiam em nome do rei e, por isso, tais ações não poderiam ser consideradas lesivas aos súditos.

Em 1873, o famoso caso Blanco, julgado no Tribunal de Conflitos na França deu o ponta pé inicial para a responsabilização do Estado. Ressalta que nesse período não havia nenhum dispositivo legal que admitisse tal tipo de responsabilização, tendo a decisão se baseado em princípios do Direito Público.

Segundo Carvalho (2016, p. 322):

“O primeiro caso de responsabilidade do Estado (leading case) se deu na França e ficou conhecido como caso “Blanco”. Ocorreu que uma garota foi atropelada por um vagão ferroviário e, comovendo a sociedade francesa, embasou a responsabilização do ente público pelo dano causado. O Estado, que, até então, agia irresponsavelmente, passou a ser responsabilizado em casos pontuais, sempre que houvesse previsão legal específica para a responsabilidade”.

Mello (2003) afirma que, em meados do século XIX, após ter sido admitida a responsabilidade do Estado, passou-se a sua expansão cada vez maior, evoluindo para uma responsabilidade subjetiva, baseada na culpa, e, em seguida, para uma responsabilidade objetiva, baseada na relação causa e efeito.

Sobre a responsabilidade com culpa civil comum do Estado, chamada de Responsabilidade Subjetiva ou fase civilista, afirma a doutrina que fora influenciada pelo individualismo liberal, colocando o indivíduo no mesmo plano do Estado, a qual passou a ter responsabilidade de indenizar à semelhança das relações civis entre particulares.

Para Carvalho (2016, p. 322), este foi outro marco de evolução para a responsabilização civil do Estado, já que sua obrigação de reparar os danos causados não necessariamente advinha de “expressa dicção legal”, mas pela simples incidência comprovada dos elementos indispensáveis como: conduta do Estado; dano; nexo causal e o elemento subjetivo.

Para esta teoria, o Estado somente seria obrigado a indenizar quando os agentes tivessem agido com culpa ou dolo, cabendo, neste caso, ao particular lesado o ônus de comprovar a existência desses elementos subjetivos.

Mais à frente, surgiu a teoria da culpa administrativa, baseada na responsabilidade pela falta do serviço, a qual estabelece o dever do Estado de indenizar o dano sofrido pelo particular quando comprovada a falta de determinado serviço público.

Alexandrino (2014, p. 815)afirma que “Não se trata de perquirir da culpa subjetiva do agente, mas da ocorrência de falta na prestação do serviço, falta essa objetivamente considerada”. Assim, o que se apura é a irregularidade na omissão ou falta na prestação do serviço público, chamada pela doutrina de culpa administrativa ou culpa anônima.

Evoluindo ainda mais, chegou-se a teoria do risco administrativo, a qual não importa em apurar a existência de dolo ou culpa do agente estatal, bastando tão apenas a atuação danosa ao particular, o nexo causal e o dano efetivo, sem que haja concorrência do particular lesado.

Em resumo, Alexandrino (2014, p. 816) destaca:

“(…) presentes o fato do serviço e o nexo de causalidade entre o fato e o dano ocorrido, nasce para o poder público a obrigação de indenizar. Ao particular que sofreu o dano não incumbe comprovação de qualquer espécie de culpa do Estado ou do agente público”.

A partir de tudo quanto foi exposto, vê-se que história da responsabilidade do Poder Público por danos causados à esfera juridicamente tutelada do particular reflete uma contínua evolução e adaptação às peculiaridades decorrentes do regime jurídico a qual se submete o Estado.

Segundo Mello (2003, 857):

“No que atina às condições para engajar responsabilidade do Estado, seu posto mais evoluído é a responsabilidade objetiva, a dizer, independente de culpa ou procedimento contrário ao Direito. Essa fronteira também já é território incorporado, em largo trecho, ao Direito contemporâneo. Aliás, no Brasil, doutrina e jurisprudência, preponderantemente, afirmam a responsabilidade objetiva do Estado como regra de nosso sistema, desde a Constituição de 1946 (art. 194), passando pela carta de 1967 (art. 105), pela Carta de 1969, dita Emenda 1 à “Constituição” de 1967 (art. 105), cujos dispositivos, no que a isso concerne, equivalem ao atual art. 37, §6º”.

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Cabe observar que tal progresso visou a extensão e alargamento dos casos de responsabilidade estatal, buscando resguardar cada vez mais os interesses privados.

2.2. Responsabilidade subjetiva do Estado

Tradicionalmente, admitia-se a responsabilidade subjetiva do Estado, verificando culpa ou dolo, nos específicos casos de omissão estatal, casos em que havia falta do serviço, configurada no seu não funcionamento ou mau funcionamento.

Baseado na ideia da necessidade de comprovação de dolo ou culpa, a Câmara dos Deputados, através da deputada Erika Kokay, elaborou projeto de Lei, posteriormente aprovado no congresso, que modificou o regime de responsabilidade civil dos notários e registradores, prevendo a necessidade de comprovação do elemento subjetivo.

Cumpre destacar que o regime jurídico de responsabilidade civil do Estado continua em evolução, atualmente, inclusive, os tribunais superiores vem modificando o seu entendimento acerca da responsabilidade subjetiva do Estado.

O Supremo Tribunal Federal (STF), nos últimos anos, vem adotando o entendimento de que a responsabilidade extrapatrimonial do Estado mesmo nos casos de omissão por falta ou má prestação do serviço é também objetiva, fundamentando seu entendimento na interpretação literal do art. 37, § 6º da CF/88, que de forma geral determina a responsabilidade objetiva do Estado sem fazer distinção se a conduta é comissiva (ação) ou omissiva.

“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSOEXTRAORDINÁRIO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS.RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO: § 6º DO ART.37 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. AGENTE PÚBLICO.ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. O Supremo TribunalFederal, por ocasião do julgamento da RE n. 327.904, Relator oMinistro Carlos Britto, DJ de 8.9.06, fixou entendimento nosentido de que ‘somente as pessoas jurídicas de direito público,ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviçospúblicos, é que poderão responder, objetivamente, pelareparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dosrespectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentespúblicos, e não como pessoas comuns’. Precedentes. Agravoregimental a que se nega provimento” (RE nº 470.996/RO-AgR,Segunda Turma, Relator o Ministro Eros Grau, DJe de 11/9/09)”.

“DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. AGENTE PÚBLICO. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 327.904, sob a relatoria do Ministro Ayres Britto, assentou o entendimento no sentido de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 593525 AgR-segundo / DF; Primeira Turma; Relator: Min. Roberto Barroso; Julgamento: 09/08/2016)”.

Nesse sentido, o STF sedimentou seu entendimento afirmando que não cabe ao intérprete estabelecer exceções onde o texto constitucional não autorizou, e, por isso, a responsabilidade objetiva do Estado engloba tanto os atos comissivos como os omissivos, desde que demonstrado o nexo causal entre o dano e a omissão específica do Poder Público.

Cumpre destacar que a alteração legislativa modificando o regime de responsabilidade extrapatrimonial dos serviços notariais e de registro, está em desarmonia com a evolução proposta pela jurisprudência para a responsabilização do Estado, a qual visa maior segurança jurídica e proteção aos administrados que se submetem ao serviço público.

3. Serviço Notarial e de Registro

Conforme explanado anteriormente, o serviço notarial e de registro, embora não seja caracterizado como serviço público no sentido material, é uma serventia jurídica exercida por particulares delegatários de serviço público, que atuam no exercício do poder de império e em nome do Estado, submetendo-se assim ao regime jurídico de direito público.

Nesse sentido, cumpre registrar o entendimento do STF, sedimentado no âmbito do julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI):

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PROVIMENTOS N. 747/2000 E 750/2001, DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE SÃO PAULO, QUE REORGANIZARAM OS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO, MEDIANTE ACUMULAÇÃO, DESACUMULAÇÃO, EXTINÇÃO E CRIAÇÃO DE UNIDADES. 1. REGIME JURÍDICO DOS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO. I – Trata-se de atividades jurídicas que são próprias do Estado, porém exercidas por particulares mediante delegação. Exercidas ou traspassadas, mas não por conduto da concessão ou da permissão, normadas pelo caput do art. 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dessa atividade material (não jurídica) em que se constituem os serviços públicos. II – A delegação que lhes timbra a funcionalidade não se traduz, por nenhuma forma, em cláusulas contratuais. III – A sua delegação somente pode recair sobre pessoa natural, e não sobre uma empresa ou pessoa mercantil, visto que de empresa ou pessoa mercantil é que versa a Magna Carta Federal em tema de concessão ou permissão de serviço público. IV – Para se tornar delegatária do Poder Público, tal pessoa natural há de ganhar habilitação em concurso público de provas e títulos, e não por adjudicação em processo licitatório, regrado, este, pela Constituição como antecedente necessário do contrato de concessão ou de permissão para o desempenho de serviço público. V – Cuida-se ainda de atividades estatais cujo exercício privado jaz sob a exclusiva fiscalização do Poder Judiciário, e não sob órgão ou entidade do Poder Executivo, sabido que por órgão ou entidade do Poder Executivo é que se dá a imediata fiscalização das empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Por órgãos do Poder Judiciário é que se marca a presença do Estado para conferir certeza e liquidez jurídica às relações inter-partes, com esta conhecida diferença: o modo usual de atuação do Poder Judiciário se dá sob o signo da contenciosidade, enquanto o invariável modo de atuação das serventias extra-forenses não adentra essa delicada esfera da litigiosidade entre sujeitos de direito. VI – Enfim, as atividades notariais e de registro não se inscrevem no âmbito das remuneráveis por tarifa ou preço público, mas no círculo das que se pautam por uma tabela de emolumentos, jungidos estes a normas gerais que se editam por lei necessariamente federal. 2. CRIAÇÃO E EXTINÇÃO DE SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS. As serventias extrajudiciais se compõem de um feixe de competências públicas, embora exercidas em regime de delegação a pessoa privada. Competências que fazem de tais serventias uma instância de formalização de atos de criação, preservação, modificação, transformação e extinção de direitos e obrigações. Se esse feixe de competências públicas investe as serventias extrajudiciais em parcela do poder estatal idônea à colocação de terceiros numa condição de servil acatamento, a modificação dessas competências estatais (criação, extinção, acumulação e desacumulação de unidades) somente é de ser realizada por meio de lei em sentido formal, segundo a regra de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Precedentes (…). (ADI 2.415/SP, rel. Min. Ayres Britto, 22.09.2011)”.

Acerca do serviço notarial e de registro, a Constituição Federal de 1988, dispõe:

“Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário”.

Partindo do entendimento de que os serviços notariais e de registro são delegados pelo Poder Público ao particular, entende-se que se trata, de fato, um serviço público, e por isso deve se submeter ao regime jurídico a qual se submetem todos os serviços públicos, inclusive quanto a responsabilização civil.
     No entanto, a questão da responsabilidade civil por atos praticados no exercício dos serviços notariais sempre foi controversa, gerando fortes discussões, sobretudo quanto à necessidade do elemento subjetivo para caracterização da responsabilidade extracontratual. Nesse contexto, nasceram correntes distintas que procuravamesclarecer a natureza desta responsabilidade.
     Segundo explica Kümpel(2016), o posicionamento majoritário, exarado nos acórdãos do Supremo Tribunal Federale acompanhado por parte da doutrina,com fundamento naliteralidade do art. 22 da lei 8.935/94, afirma que“os tabeliães e oficiais de registro são funcionários públicos, ainda que o exercício de seus serviços se dê em caráter privado”, nesse sentido, assegura que o Estado deve responder objetivamente pelos danos causados no exercício dos serviços cartorários.
     A Lei 8.935/94 (Lei dos Cartórios), em seu art. 22, com a redação original, estabelecia a responsabilidade objetiva dos notários e oficiais de registros pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, assegurando-se o direito de regresso nos casos de dolo ou culpa dos prepostos, em total consonância com o que estabelece a Constituição Federal, nos termos abaixo transcrito:

“Art. 22. Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos”.

No entanto, deve ser registrada a existência de corrente minoritária que sustentava a incidência de responsabilidade pessoal subjetiva de notários e registradores, baseada na interpretação analógica do art. 38 da lei 9.492/1997, que regulamenta os serviços de protesto de títulos, estabelecendo a responsabilidade extracontratual subjetiva. Tais interpretes entenderam que por ser a Lei 9.492/97 editada posteriormente, seria aplicável para todos os titulares de delegação.

Nesse sentido, em maio de 2016 foi aprovada a Lei 13.286, que, dispondo sobre a responsabilidade civil dos notários e registradores, alterou a redação original do art. 22 da Lei dos Cartórios, prevendo agora a responsabilidade subjetiva para os danos causados em decorrência do serviço notarial. Nos seguintes termos:

Art. 22.Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso”.

Conforme publicado na página oficial da Câmara dos Deputados, a referida lei, de iniciativa da Deputada Federal Erika Kokay, teve como base o parágrafo primeiro do art. 236 da CF/88, a qual estabelece que a lei disciplinará a responsabilidade civil para os serviços notariais.

Ademais, foi justificada na controvérsia existente, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, acerca do regime de responsabilização extracontratual, pois mesmo que a Lei 8.935/94, em sua redação original e nos moldes do art. 37, § 6º da CF/88, estabelecesse a responsabilidade objetiva; a Lei 9.492/97, que regulamenta os serviços de protestos de títulos, editada em momento posterior, estabelece que a responsabilização por seus atos só se dará se for verificada a ocorrência de culpa ou dolo, caracterizando a necessidade do elemento subjetivo.

Nesses termos, buscando equiparar o regime de responsabilização civil para os serviços cartorários extrajudiciais, foi promovida a alteração na Lei 8.935/94, que rege os serviços notariais e de registro, passando a prever a necessidade do elemento subjetivo para que fique caracterizada a responsabilidade extracontratual.

Embora o objetivo da alteração legislativa tenha sido dirimir as controvérsias existentes, cumpre registrar que os serviços públicos de um modo geral devem estar submetidos ao regime jurídico de direito público, pois os danos causados pelo Estado (titular dos serviços públicos) resultam de comportamentos produzidos com o fim de desempenhar missões no interesse de toda a sociedade.

Nesse sentido, a doutrina e jurisprudência, ao defender a responsabilidade objetiva do Estado, alegam que os danos causados no exercício das funções públicas devem ser suportados por toda a sociedade de forma equânime, não sendo justo que apenas alguns arquem com os prejuízos gerados por ocasião de atividades exercidas em proveito de todos.

Importa destacar que ainda está em tramitação perante o STF o Recurso Extraordinário nº 842.846-SC, ao qual já foi reconhecida repercussão geral, cujo objetivo é decidir acerca da responsabilidade civil do Estado em caso de serviços delegados.

3.1 A (in) constitucionalidade da previsão de responsabilidade civil subjetiva no âmbito do serviço público

O ponto fundamental da responsabilidade extracontratual do Estado é teoria do risco administrativo, cujos preceitos determinam que nenhum particular deve suportar o dano advindo de uma atividade voltada ao interesse da coletividade.

Ademais como o ordenamento jurídico acolhe o princípio da igualdade de todos perante a lei, é claro o entendimento de que não se deve aceitar o comportamento estatal que ofenda desigualmente a alguém, ao exercer atividades no interesse de todos, sem ressarcir ao lesado. É nesse sentido que a Constituição Federal de 1988 prevê a responsabilidade objetiva para os atos da Administração Pública.

Nota que os atos notariais e de registro emanam do poder de império estatal, que obriga aos administrados a se submeterem a determinados serviços cartorários extrajudiciais, realizados por particulares em nome do poder público – tais serviços cartorários são desempenhados no interesse de toda a sociedade e visam resguardar interesse público.

Ademais, não é dado ao particular a opção de não se submeter à tais serviços, nem tão pouco escolher o seu prestador, de forma que está vinculado à prestação estatal; ainda, cumpre destacar que tais atos, por serem respaldados de fé pública e segurança jurídica, ao causarem lesão específica e anormal à esfera do particular promovem danos muito mais amplos que àqueles que seriam promovidos nas relações entre particulares.

Por isso, é possível entender que os serviços cartorários, assim como determinado de forma geral na CF/88, devem se submeter à responsabilidade civil objetiva.

Diante da alteração legislativa, verifica-se afronta ao que, há muito tempo, já estabelecia o ordenamento jurídico brasileiro, que em compasso com outros países não preveem a necessidade do elemento subjetivo para caracterizar a responsabilidade estatal, de forma que, entender o contrário, seria um retrocesso.

De fato, ainda não foi questionada a constitucionalidade da Lei 13.286/2016 perante o STF. No entanto, considerando que o entendimento corretamente aplicável aos notários e registradores seria a regra do art. 37, § 6º da CF/88, impõe-se a responsabilidade civil objetiva, entendo pela inconstitucionalidade da Lei 13.286/2016 que dispôs em sentido contrário.

A inconstitucionalidade da referida lei é verificada de acordo com o princípio da supremacia da constituição, que segundo Lenza:

“significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais do Estado, e só nisso se notará a sua superioridade em relação às demais normas jurídicas (2014, p. 275)”.

A partir de tal interpretação, entende-se que a alteração legislativa afronta diretamente o regime jurídico do serviço público estabelecido na Constituição Federal, criando exceções não autorizadas pelo constituinte originário.

A Lei 13.286/16, ao modificar o tipo de responsabilização a qual se submete os serviços notariais e de registro, violou a proteção atribuída pela Constituição Federal aos particulares, os quais encontram-se em situação em desigualdade jurídica frente ao Estado, portador de prerrogativas.

Conclusão

O tema responsabilidade extracontratual do Estado passou, durante séculos, por importantes evoluções, visando, principalmente, ampliar o âmbito de proteção atribuído aos administrados, que em suas relações com a administração pública, encontram-se em situação de vulnerabilidade.

Atualmente, é possível vislumbrar como ponto mais alto da responsabilização estatal a responsabilidade objetiva, baseada na dispensa de comprovação de dolo ou culpa pelo particular que foi lesado.

Nesse sentido, a previsão da necessidade do elemento subjetivo para configurar o dever de indenizar no âmbito do direito público, seja em relação à atos omissivos; seja na regulamentação de alguma atividade específica, como é o caso dos atos dos notários e registradores, caracteriza retrocesso à proteção atribuída pela Constituição (lei maior) aos administrados.

Questiona-se a constitucionalidade de tais entendimentos e dispositivos frente ao que estabelece a Constituição Federal de 1988, que em seu art. 37, §6º, dispõe expressamente sobre a responsabilidade civil objetiva por atos praticados no exercício de serviços públicos, sem, no entanto, fazer nenhuma ressalva.

Posicionamentos e leis em sentido contrário ao que foi previsto constitucionalmente, além de não ser dotado de legitimidade constitucional, afronta princípios como a segurança jurídica e igualdade, diminuindo o âmbito de proteção atribuído aos particulares em suas relações com o Estado, que dotado de prerrogativas jurídicas e imperatividade, está numa posição de superioridade frente aos administrados, podendo, inclusive, causar-lhes imensuráveis danos.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

Roberta Barros Correia Brandão

Advogada pós-graduada em Direito Público


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