A (in)eficácia jurídica das leis municipais que vedam a instalação de presídios ou similares no território do município

Atualmente, é grande o número de Municípios que opta por impedir, por meio de Lei Municipal, a instalação de presídios, casas de detenção, reformatórios de menores, centros de ressocialização, de detenção provisória ou similares no respectivo território. Tal medida, justificam os Legisladores Municipais, é tomada na defesa do interesse da segurança dos munícipes, que restaria abalada com a presença de tais estabelecimentos no Município, e com a conseqüente chegada de familiares de pessoas recolhidas, seja para visitação, seja para estabelecimento de residência, na tentativa de se aproximar do familiar detido.

Num primeiro momento, ainda sem exame jurídico da matéria, percebe-se na conduta dos Legisladores Municipais uma flagrante discriminação, pois, uma vez válida a norma, serão afastados de suas famílias os munícipes que, por qualquer fato, tenham seu recolhimento efetuado, já que, proibida a instalação de estabelecimento destinado ao recolhimento de pessoas no território municipal, os munícipes que tiverem de ser recolhidos serão afastados de seus familiares que habitam aquela urbe, obrigando-os a deslocar-se para a localidade em que se encontrar o recolhido para visitação.

Por outro lado, há que se verificar a validade de tal legislação, examinando-se se o Município efetivamente tem o poder de legislar sobre tal assunto ou, tecnicamente, se detém competência legislativa para dispor de tal matéria, o que se traduz no ponto central do presente trabalho.

As Nações Soberanas organizam-se de acordo com as regras estabelecidas pelos sistemas políticos.  Analisando-se tais sistemas, pode-se perceber qual a forma de estado, a forma de governo, o regime de governo e o regime político de um País. No que diz respeito ao presente estudo, interessa de perto a forma de estado adotada pelo Brasil.

O critério determinante da forma de estado considera os modos pelos quais se estrutura a sociedade estatal, permitindo identificar as comunidades políticas em cujo âmbito de validade o exercício do poder ocorre, de modo centralizado ou descentralizado.

Quando existir um único centro dotado de capacidades legislativa, administrativa e política, do qual emanam todos os comandos normativos e no qual concentram-se todas as competências constitucionais, ocorre a forma Unitária de Estado.  É o chamado Estado Unitário.

Por outro lado, quando as capacidades políticas, legislativas e administrativas são atribuídas constitucionalmente a entes regionais, que passam a gozar de autonomias próprias, surge a forma federativa de Estado.  É o chamado Estado Federal. Nesse caso, as autonomias regionais não são fruto de delegação voluntária de um centro único de poder, mas se originam na própria Constituição Federal, o que impede a retirada de competências por ato voluntário do poder central.

O Estado Federal se assenta em dois elementos básicos: a existência de governo próprio e a posse de competências exclusivas.

As entidades federativas são dotadas de autonomia, isto é, de capacidade para agir dentro de um círculo pré-estabelecido que são suas competências constitucionais.  Todavia, apesar de autônomas, essas entidades devem obedecer a certos princípios, com o fim de manter o equilíbrio federativo.

Estabelece a Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, caput:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

Referida disposição consagra, em primeiro plano, o princípio da indissolubilidade em nosso Estado Federal.

Esse princípio estabelece, de forma cogente, a unidade nacional.

A regra é completada pela previsão constitucional do artigo 18:

A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Fica claro, pois, que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios são detentores da tríplice capacidade de auto-organização (normatização própria), auto-governo e auto-administração.

O princípio geral norteador da repartição de competência entre os entes da Federação é o da predominância do interesse. Por esse princípio, à União caberia o interesse geral, aos Estados-membros o interesse regional, aos Municípios o interesse local e ao Distrito Federal os interesses regional e local somados.

A Constituição Federal consagrou a tese de que o Município brasileiro é entidade federativa de terceiro grau, integrante e necessária à existência da federação, dotado de capacidade de auto-organização, mediante elaboração de lei orgânica própria.

Da leitura dos arts. 29 e 30 da Constituição Federal, nota-se que o Município, além de governado por prefeito eleito livremente pelos munícipes, é dotado de Poder Legislativo próprio, competente para expedir textos legais, sempre observando as diretrizes constitucionalmente fixadas.

Nenhuma lei que não seja advinda do seu Poder Legislativo Municipal tem força para regular assuntos de interesse local. Por outro lado, o Município não pode editar regras que afrontem o comando da norma geral, editada pela União ou pelo Estado, podendo apenas adapta-las somente às suas necessidades locais.

Assim, os Municípios são dotados de competências próprias, previstas no art. 30 da Constituição Federal:

Compete aos Municípios:

I – legislar sobre assuntos de interesse local;

II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;

III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;

IV – criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;

V – organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

VI – manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental;

VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;

VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

As Leis Municipais que procuram vedar a instalação de presídios, casas de detenção, reformatórios de menores, centros de ressocialização, de detenção provisória ou similares no respectivo território estariam fundamentadas, principalmente, no disposto nos incisos I e       VII.

Vejamos se tal legislação encontra amparo na repartição constitucional de competência conferida ao Município.

Com relação ao estabelecido no inciso I (legislar sobre assuntos de interesse local), o grande problema é a definição do que vem a ser “interesse local”.

O professor Alexandre de Moraes ensina:

Apesar de difícil conceituação, interesse local refere-se aos interesses que disserem respeito mais diretamente às necessidades imediatas do município, mesmo que acabem gerando reflexos no interesse regional (Estados) ou geral (União).

A Constituição enumera algumas hipóteses, de competência municipal (CF; art. 30, III a IX e 169, § 52), presumindo a existência de interesse local.

Dessa forma, salvo as tradicionais e conhecidas hipóteses de interesse local, as demais deverão ser analisadas caso a caso, vislumbrando-se qual o interesse predominante (princípio da predominância do interesse).[1]

Como exemplos de interesse local, como tal reconhecido pelo Poder Judiciário e pela Doutrina, têm-se, exemplificativamente, o estabelecimento de limites geográficos para estabelecimento comercial[2], o estacionamento de veículos[3], assuntos da Administração Municipal, seja na vertente institucional seja na vertente funcional, plano diretor, zoneamento urbano, matéria urbanística[4], a regulação do transporte de passageiros por motocicletas (moto-táxi) etc.

Não obstante a dificuldade em se delimitar a amplitude do que venha a ser interesse local, parece óbvio que disposição sobre instalação de estabelecimentos carcerários ou similares ultrapassa os limites locais, tocando o interesse regional ou, quiçá, o interesse geral. Tal conclusão é obtida a partir da constatação de que a repressão a condutas ilícitas interessa a toda a sociedade brasileira, não se restringindo ao território de tal ou qual Município.

A par da conclusão jurídica acima referida, extraída da interpretação do disposto no inciso I, do art. 30 da Constituição Federal, há que se sopesar o fato de que, se todos os Municípios brasileiros resolverem criar referida legislação, não haverá onde manter as pessoas cujo recolhimento tenha sido determinado. Também por isso fica claro que a questão não se circunscreve ao interesse local, não se subsumindo ao tipo constitucional em exame.

Numa segunda óptica, há que se analisar se referida matéria se insere no disposto no inciso VIII do mesmo art. 30 da Constituição Federal (promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano), mais precisamente no que se refere à ocupação do solo urbano.

Primeiramente, cumpre observar que a competência ora examinada é constrita pela disposição estabelecida no art. 21, que estabelece competir à União, elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social [5] e instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos [6].

Ao autorizar o Município a legislar sobre ocupação do solo urbano, a Constituição Federal confere a tal ente da Federação a regulação da ocupação do território municipal, tendo em vista a preservação do interesse social local, com vistas ao desenvolvimento urbano no quadro do território municipal.

José Afonso da Silva ensina:

A ocupação do solo, em sentido urbanístico, diz respeito à relação entre a área do lote e a quantidade de edificação que se coloca dentro dele. Consiste na implantação da casa, do edifício, no lote, que se subordina a normas adequadas, visando a favorecer a estética urbana e assegurar a insolação, a iluminação e a ventilação, no que se relaciona com a estrutura da edificação.[7]

Sendo assim, resta a conclusão de que a possibilidade constitucional de legislar sobre questões atinentes ao uso do solo urbano não confere ao Poder Legislativo municipal a amplitude dada pelos Vereadores quando legislam proibindo a instalação de presídios, casas de detenção, reformatórios de menores, centros de ressocialização, de detenção provisória ou similares no respectivo território.

Partindo-se de tais premissas, fica difícil vislumbrar eficácia jurídica nas leis municipais que tratam do assunto objeto de exame no presente trabalho.

Tratando-se de normas jurídicas, a eficácia consiste na capacidade de atingir os objetivos nela traduzidos, que vêm a ser, em última análise, realizar os ditames jurídicos objetivados pelo legislador. Por isso é que se diz que a eficácia jurídica da norma designa a qualidade de produzir em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos de que cogita; nesse sentido, a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica.[8]

A eficácia, no sentido jurídico, diz respeito à capacidade da norma de produzir efeitos. Essa capacidade possui uma larga faixa de incidência, podendo ser total ou parcial e, ainda, cabendo falar-se em normas que são apropriadas a produzir efeitos mais ou menos intensos e relevantes.

Maria Helena Diniz aponta:

…eficácia é condição da validade. A eficácia de uma norma consiste em que esta é, em geral, efetivamente cumprida e, se não cumprida, é aplicada. A validade consiste em que a norma deve ser cumprida, ou, se não o for, deve ser aplicada. [9]

Vigência, validade e eficácia, portanto, podem até interagir, mas constituem qualidades distintas da norma e não precisam necessariamente coexistir em todas as hipóteses; uma norma pode ser válida, vigente e eficaz; pode ser válida e vigente e não ter eficácia; pode ser válida e não possuir vigência nem eficácia, como também pode apresentar-se destituída de todas essas qualidades, não possuindo validade, nem vigência, nem eficácia.

Considerando-se que o Município, ao dispor legislativamente sobre a proibição da instalação de presídios, casas de detenção, reformatórios de menores, centros de ressocialização, de detenção provisória ou similares no respectivo território, “legisla” sem que a Constituição Federal tenha a ele outorgado competência legislativa, produz regra ineficaz, incapaz de produzir efeitos no mundo jurídico.

A título de exemplo, no Município de Ourinhos, foi promulgada a Lei nº 4986, de 1º de novembro de 2005, que dispõe sobre a proibição de instalação de presídios, casas de detenção, reformatório de menores, centros de ressocialização, de detenção provisória e similar em todo o território do Município de Ourinhos (DOM de 04/11/2005). A completa ineficácia de referida Lei Municipal veio comprovada com a edição, pelo Estado de São Paulo, do Decreto nº 50.225, de 09 de novembro de 2005, que cria e organiza, na Secretaria da Administração Penitenciária, o Centro de Ressocialização de Ourinhos e dá providências correlatas (DOE de 10/11/2005).

Em conclusão, as Leis Municipais que proíbem a instalação de presídios ou similares no território do respectivo Município podem até gozar de eficiência política e de simpatia de parte da população, mas do ponto de vista jurídico, são totalmente desprovidas de eficácia, por faltar ao Município competência legislativa para dispor a respeito da matéria.

Notas:
[1] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 742.
[2] RJTJSP 123/90
[3] TJSP – EI 163.721-1
[4] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 309.
[5] inciso IX.
[6] inciso XX.
[7] Op. cit., p. 311.
[8] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais.  3ª  ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 66.
[9] DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 47.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Renato Bernardi

 

Procurador do Estado de São Paulo
Mestre em Direito Constitucional – ITE-Bauru
Doutorando em Direito Tributário – PUC-SP
Autor do livro A inviolabilidade do Sigilo de Dados
Professor da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos

 


 

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