A (in)suficiência do afeto como vetor axiológico-interpretativo do conceito família sob a ótica da Constituição de 1988

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Resumo: O presente artigo busca desenvolver um estudo acerca do reconhecimento do afeto como base axiológico-interpretativa do conceito de família após o advento da Constituição Federal de 1988, e a abertura valorativa pela qual esse conceito passou. Com isso, por meio de um método hipotético-dedutivo, pretende-se fazer uma abordagem histórica da família no ordenamento jurídico brasileiro desde o Código Civil de 1916, bem como acerca do desenvolvimento da tipologia afeta a esse instituto, com a descrição das mais conhecidas modalidades, seja em um viés tradicional ou um viés contemporâneo. Em avanço, quer-se analisar o afeto enquanto base valorativa da família, indagando sua (in)suficiência para uma correta interpretação do conceito de entidade familiar. Por fim, pretende-se demonstrar que esse valor, por si só, não serve para a ideal compreensão do conceito de família.

Palavras-chave: Família. Afeto. Abertura conceitual. Valores. Entidade familiar.

Abstratct: This article find do a study about the affection as the interpretative vector of family concept after advent of Constitution of the Republic of 1988, and the opened of values ​​related with this term. Thereby, by means of a hypothetical-deductive method, it is intended of the historical analyze of family in the Brazilian Law since the Civil Code of 1916, besides on the development of the tipology this category, with description of more knowed tipologys, both in a classic view, as in a contemporary view. After that, the article wants to construe the affection while interpretative vector of family concept, asking about his sufficiency or insufficiency for a correct interpretation of the family concept. In the end, wans to demonstrate this value, by itself, is not good for an ideal understanding about the family concept.

Keywords: Family. Affection. Conceptual opening. Values. Family entity.

Sumário: Introdução. 1. A família como instituto jurídico. 1.1 A Família e o Código Civil de 1916. 1.2 A família e a Constituição Federal de 1988. 1.3 A família e o Código Civil de 2002. 2 Tipologia do Instituto Família. 2.1 Modelos Tradicionais. 2.1.1 Família Matrimonial. 2.1.2 Família Convencional. A família derivada da União Estável. 2.1.3 A família monoparental. 2.1.4 A família no Estatuto da Criança e do Adolescente. 2.2 Modelos Modernos. 2.2.1 A família homoafetiva. 2.2.2 Poliamor. 3 O afeto como vetor interpretativo do conceito de família. 3.1 Do conceito. 3.2 Do julgamento paradgmático pelo supremo tribunal federal no bojo da ação direta de inconstitucionalidade 4277 e ação de descumprimento de preceito fundamental 132. 3.3 A falta de critérios objetivo-éticos para delimitar o que seria família com base no vetor axiológico do afeto. Conclusão. Referências

INTRODUÇÃO

As relações humanas sempre foram objeto de intensa observação ao longo do desenvolvimento das civilizações. Em todas as eras da história, observam-se apontamentos acerca de como as pessoas se relacionaram entre si para que o mundo pudesse evoluir. Nesse ponto, interessante aspecto que chama a atenção é que, nesse modo de as pessoas se relacionarem, sempre houve um elemento de combustão: os sentimentos. Certamente, independentemente da qualidade do sentimento, indivíduos se aproximaram ou se distanciaram por algum motivo de índole pessoal: ódio, amor, rancor, ambição, ganância, luxúria. Enfim, o sentimentalismo sempre esteve imbricando os laços da humanidade.

Nesse sentido, com certeza, nenhum vínculo humano foi mais difundido e observado que o familiar. Há, inclusive, quem se arvore a afirmar que a família é a base de uma sociedade. Assim, ao longo de décadas, séculos, milênios, diversas famílias se constituíram das mais diversas formas, com as mais diversas pessoas e diversas culturas. Isso, é necessário frisar, não foi diferente na realidade brasileira. Certamente, a família foi um canal decisivo em fazer com que a terra desconhecida das Américas se tornasse a República Federativa do Brasil dos diais atuais.

A família, enquanto fenômeno social, também evoluiu com os seus integrantes. Verificou-se a plasticidade do conceito de família ao passo em que a sociedade foi se desenvolvendo. Por um tempo, inclusive, chegou-se a ter certeza de um conceito tido por ideal, qual seja: um homem casado com uma mulher e um ou dois filhos. Isso gerava até boas imagens fotográficas. No entanto, até mesmo a acepção do que é ideal não está imune a variâncias. Isso porque, antes de tudo, as famílias são compostas por pessoas e, sendo assim, há um plexo imensurável de valores, ideias, culturas miscigenadas e sentimentos. Justamente por isso, então, que a família não estagnou em um ou outro estigma, mas avançou, ou piorou, a depender de quem observe.

Sob essa ótica, o presente trabalho se destina a analisar como se deu a abertura axiológico-valorativa do conceito de família do ponto de vista jurídico no ordenamento brasileiro. Ademais disso, pretende investigar se a noção interpretativa de afeto é suficiente para estabelecer um traço distintivo entre um vínculo humano qualquer e uma família. Assim, busca-se averiguar se a ausência de limitadores de índole objetivo-ética prejudicaria a eficácia jurígena que a família possui. A evolução, então, seria um ponto de superação ou um sinal de colapso? É o que se pretende, em rápidas, mas intensas linhas, responder.

Para tal mister, utilizou-se o método hipotético-dedutivo, partindo-se de uma premissa maior para se alcançar uma específica e final. A importância da família, não apenas do ponto de vista social, mas sobretudo para o Direito, justifica a presente abordagem. Com efeito, os inúmeros fatos jurídicos observados no seio familiar, seja na alegria ou na raiva de seus integrantes, faz com que as incontáveis varas de família no País se debrucem, todos os dias, com questões constantes e, também, com situações novas.

1 A FAMÍLIA COMO INSTITUTO JURÍDICO

Inegavelmente, a família é um dos mais importantes institutos jurídicos. As relações que dela derivam nem sempre são simples. Por vezes, a complexidade delas não pode ser clara e satisfatoriamente regulada pela lei, o que faz surgir vácuos normativos e até mesmo interpretativos. Nesse diapasão, em razão do caráter mutável da sociedade, os institutos jurídicos inerentes devem sempre estar em constante rearranjo e evolução para fins de uma melhor adequação às novas relações pessoais. Assim, ao longo dos anos tem evoluído bastante o conceito de entidade familiar para o Direito.

Nesse ponto, considerada a finalidade do presente trabalho, necessário eleger alguns marcos históricos distintivos para se analisar o conceito de família na realidade brasileira. Dessa forma, analisar-se-á a família, ainda que de forma breve, no período anterior à égide da Constituição Federal de 1988, quando sob os auspícios do Código Civil de 1916, bem como no momento posterior ao advento da Carta Constitucional Cidadã, e também com a repercussão junto com o Código Civil de 2002.

1.1 A FAMÍLIA E O CÓDIGO CIVIL DE 1916

Com a inauguração do Código Civil de 1916, tinha-se, no Brasil, uma sociedade ainda de base colonial, aristocrata, elitista. O período republicano ainda era fecundo, não tinha contornos delineados. Em razão disso, era de se esperar que uma codificação, a reger relações entre particulares refletisse, justamente, o tipo de pessoas que regia. Nesse sentido, conforme Gomes (2011 apud SILVA, 2005, p. 101): “A despeito de sua ilustração a aristocracia do anel representava e racionalizava os interesses básicos de uma sociedade ainda patriarcal, que não perdera seu teor privatista, nem se libertara da estreiteza do arcabouço econômico, apesar de seu sistema de produção ter sido golpeado fundamente em 1888. Natural que o Código refletisse as aspirações dessa elite e se contivesse, do mesmo passo, no circulo da realidade subjacente que cristalizara costumes convertendo-os em instituições jurídicas tradicionais.”

Sem embargos, a clarividente influência patriarcal, em uma sociedade dominada pela figura masculina, é amplamente enxergada na codificação. Como exemplo, é possível citar a previsão do art. 233 do Código, o qual afirmava que “O marido é o chefe da sociedade conjugal.” (BRASIL, 1916). Vê-se, então, certa disparidade entre os integrantes da família. A centralidade era o marido. Nesse sentido, discorre Barreto (2012, p. 209): “Àquela época, a família patriarcal posicionava-se como coluna central da legislação e prova disso foi a indissolubilidade do casamento, como também a capacidade relativa da mulher. O artigo 233 do Código Civil de 1916 designava o marido como único chefe da sociedade conjugal. Além disso, à mulher era atribuída somente a função de colaboradora dos encargos familiares, consoante artigo 240 do mesmo diploma legal.

Essa previsão, contudo, ficou mais amena após a alteração do aludido artigo pela Lei n. 4.121/62, passando a prever que: “O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos […]” (BRASIL, 1962). Nessa linha, dispõe Barreto (2012, p. 210): “Noutro giro, em 27 de agosto de 1962, foi publicada a Lei nº 4.121, que versava sobre a situação jurídica da mulher casada, denominada Estatuto da Mulher Casada. Revogou vários dispositivos do Código Civil de 1916 e dentre outros direitos, a mulher obteve aquele de exercer o poder familiar, ainda que constituísse novo casamento. Contudo, essa atividade ainda era bastante restrita, considerando que a redação do parágrafo único do artigo 380, explanava que, caso houvesse divergência entre os genitores, quanto ao exercício do pátrio poder, prevaleceria a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para a solução daquele conflito.

Interessante destacar que, na codificação civilista de 1916, não havia uma conceituação terminológica de família. Vê-se, da análise de seus artigos, que a previsão tímida era, estritamente, perfilhada ao casamento. Assim, família findava sendo sinônimo de casamento. E este era um instituto de natureza indissolúvel. Não se falava em institutos como a união estável. A figura estável da família era vista pela composição estanque do homem – chefe -, mulher, e filhos. Nesse sentido, ponderam Farias e Rosenvald (2016, p. 174): “Durante a vigência da Codificação Beviláqua, o casamento assumiu preponderante papel de forma instituidora única da família legítima, que gozava de privilégios distintos. Fora do casamento a família era ilegítima, espúria ou adulterina, e não merecia a proteção do ordenamento jurídico familiarista, projetando efeitos, tão somente, no âmbito das relações obrigacionais.”.

1.2 A FAMÍLIA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Com o advento da Constituição Federal de 1988, o panorama das famílias tende a mudar. E efetivamente mudou. Conforme Barreto (2012, p. 211): “A partir da promulgação da Carta Magna de 1988, a célula familiar foi mais uma vez remodelada; desta vez dando ênfase aos princípios e direitos conquistados pela sociedade. Diante deste novo aspecto, o modelo de família tradicional passou a ser mais uma forma de constituir um núcleo familiar que, em consonância com o artigo 266, torna-se uma comunidade fundada na igualdade e no afeto.”.

Com a nova Carta Constitucional, a família toma contornos mais leves e menos rigorosos. Ao que se observa, não são caracteres formais que vão lhe dar contornos bem definidos, mas sim uma índole de feição mais sentimental. Nesse sentido, assevera Fachin (2003, p. 1 apud MALUF, 2010, p. 120) que: “afastando-se dos laços formais, são valorizadas as relações de mútua ajuda e afeto, com índices cada vez maiores de uniões não matrimonializadas”. Erigiu-se uma noção de igualdade, com base no afeto. A família se infla de bons valores para ser um potencial âmbito de realização pessoal e felicidade. Conforme bem assevera Silva (2005, p. 106): “A igualdade conjugal prevista constitucionalmente garantiu de uma vez por todas a felicidade no lugar conjugal. Não existem mais espaços para truculências de um cônjuge contra o outro. O relacionamento só se mantém enquanto os consortes quiserem e pelo tempo que quiserem. O regime de co-gestão garante a liberdade e a felicidade no casamento.”

Toda a inovação comentada ressai da previsão encartada no art. 226 da Constituição de 1988, o qual assim dispõe, conforme redação originária: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (BRASIL, 1988)

Como se vê, a família se redesenha, se remodela e recebe novos contornos. Há uma índole constitucional agora. Um valor. Uma base interpretativa. Certo é que não há mais similitude hermética com o casamento, isto é, o casamento não é mais a única forma de se enxergar a família. Exemplo disso, é o reconhecimento da União Estável como modalidade plena de entidade familiar. Aquilo que outrora era concubinato, hoje é visto como família. No entanto, não significa que o casamento faliu ou entrou em bancarrota. Nessa linha, Diniz (1993, p. 19 apud SILVA, 2005, p. 107): “Nenhuma dessas mudanças legislativas abalará a estrutura essencial da família e do matrimônio, que é sua pedra angular. O casamento sobrevive sem a conotação e “instituição em decadência’, como tem ocorrido em todas as ordens jurídicos em que temporariamente sofre algum eclipse.”.

Em mesma linha, ensinam Farias e Rosenvald (2016, p. 174): “[…] o casamento perdeu a exclusividade, mas não a proteção. Continua merecedor da especial proteção do estado (CF, art. 226), como uma das formas possíveis para a constituição de uma entidade familiar, através de uma união formal, solene, entre pessoas humanas. Apenas não mais possui a característica da exclusividade, convivendo com outros mecanismos de constituição de família […]”

Diante disso, então, verifica-se que a nova ordem constitucional aponta para que o afeto seja a base motora da família. As pessoas, então, passariam a se realizar por um laço afetivo, por sentimentos. Não seria necessário muito. Basta o afeto.

1.3 A FAMÍLIA E O CÓDIGO CIVIL DE 2002

O Código Civil de 2002 inaugura um novo momento. Ele traz para o ordenamento uma estruturação daquilo que se convencionou chamar de movimento de constitucionalização. O que se vê, em verdade, é uma impregnação de valores constitucionais em normas que, outrora, eram estaques e ligadas unicamente a um viés positivista. Daí, é que se passar a falar não apenas de contratos, mas também de uma função social destes. O mesmo em relação à propriedade.

Diante desse movimento, o Código Civil vem, então, confirmar e ampliar as considerações sobre uma família constitucionalizada, com base em relações de ordem afetiva, e não meramente formais. Uma das principais vertentes, na linha do que a Constituição outorga, é a isonomia plena entre cônjuges. Conforme Leite (2008, p. 112 apud BARRETO, 2012, p. 207), a principal inovação é justamente “[…] aquela que diz respeito à isonomia conjugal, abarcando que pelo casamento homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes ou companheiros, sendo responsáveis pelos encargos da família […]”.

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2 TIPOLOGIA DO INSTITUTO FAMÍLIA

No presente ponto, buscar-se-á, brevemente, desenvolver linhas gerais sobre os tipos de família mais difundidos no ordenamento. Para tanto, se dividirá a abordagem em duas vertentes: os modelos tidos como clássicos ou tradicionais e aqueles visto na sociedade contemporânea. Com isso, pretende-se melhor compreender o complexo fenômeno da formação das famílias.

2.1 MODELOS TRADICIONAIS

2.1.1 FAMÍLIA MATRIMONIAL

Essa tipologia reflete o modelo mais difundido de família. É a família derivada exclusivamente do matrimônio. Como já ressaltado anteriormente, o casamento foi o reflexo mais presente no Código Civil de 1916 como uma equivalente necessária de família. O próprio casamento, com o influxo de ideias e vertentes constitucionais, foi ampliado e ganhou nova roupagem. Hodiernamente, já se fala em casamento entre pessoas homossexuais. Contudo, em uma análise clássica, teremos que o casamento é a visualização de uma união por intermédio de um contrato entre homem e mulher. Nesse sentido, conforme Monteiro e Silva (2009, p. 23 apud MALUF, 2010, p. 122), casamento é: “[…] a união permanente entre o homem e a mulher, de acordo com a lei, a fim de se reproduzirem, de se ajudarem mutuamente e de criarem os seus filhos…a reprodução não é mais a finalidade precípua do casamento, devido ao fato de que muitos casais optam por não ter filhos, mas o mútuo adjutório sim, sempre foi e será não só a finalidade, mas o efeito jurídico do casamento.”.

Sobre o tema, por sua vez, preleciona Gonçalves (2008, p. 30 apud MALUF, 2010, p. 122): “[…] a principal finalidade do casamento é estabelecer uma comunhão plena de vida como prevê o art. 1511 do Código Civil,, oriundo do amor do casal, baseado na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges e na mútua assistência.”.

Sob esse ponto de vista, insta salientar a roupagem tradicional de que o casamento é instrumento jurídico utilizável pelo homem e pela mulher para união recíproca. Com efeito, a própria Constituição Federal, em seu art. 226, §5º, dispõe que: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.” (BRASIL, 1988).

Nesse sentido, de forma magistral, Farias e Rosenvald (2016, p. 176) trazem um diálogo entre casamento e valores constitucionais, centralizando a proteção merecida na figura da pessoa humana, não no casamento em si: “O casamento, em síntese apertada, não é a finalidade e o objetivo central da vida das pessoas humanas. Casar, ou não, é circunstância relacionada à opção pessoal. Nada mais. Assim, casando, ou não, a pessoa humana merecerá, sempre, a mesma proteção. Optando pela via formal e solene do casamento, por igual, estará protegida e as normas do casamento adaptadas para realçar a sua dignidade, igualdade substancial e liberdade, além de estabelecer um elo solidário entre cada um dos cônjuges – que, nesse novo panorama, de fato, pode ser chamado de com sorte.”.

2.1.2 FAMÍLIA CONVENCIONAL. A FAMÍLIA DERIVADA DA UNIÃO ESTÁVEL

A Constituição Federal, como característica ínsita, trouxe, como já ressaltado, uma ampliação do termo família. Esse não é mais visualizado exclusivamente como casamento. De forma expressa, agora, a união estável é, também, uma forma jurídica válida de se constituir uma família. Sua previsão veio no art. 226, §3º, o qual afirma: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (BRASIL, 1988). Nesse sentido, sobre o conceito de união estável, discorre Lobo (2008, p. 148 apud MALUF, 2010, p. 127): “[…] a entidade familiar constituída por um homem e uma mulher que convivem em posse do estado de casado, que se converteu em relação jurídica em virtude da Constituição, que lhe atribuiu dignidade de entidade familiar própria, com seus direitos e deveres.”.

Sobre o papel da união estável na atualidade, discorrem Farias e Rosenvald (2016, p. 447): “Por isso, a união estável assume especial papel na sociedade contemporânea, pois possibilita compreender o caráter instrumental da família, permitindo que se efetive o ideal constitucional de que a família (sela qual ela for, casamentaria ou não) tenha especial proteção do estado.”.

Nesse ponto, insta salientar que há, entre a doutrina, quem utilize o termo concubinato para se referir a esse instituto. Conforme Oliveira e Muniz (2001, p. 76 apud SILVA, 2005, p. 111): “As expressões concubinato ou união livre designam a situação de vida em comum de casais não casados. A maioria dos autores que escrevem sob esta matéria formula a ideia de que o concubinato apresenta as aparências de casamento. Como o casamento, o concubinato é mais uma comunhão de vida em que dominam essencialmente relações de sentimento e de interesse de vida em conjunto que se estendem ao campo econômico […]”.

Por outro lado, segundo o escólio de Diniz (1993, p. 274 apud SILVA, 2005, p. 112), há diferença entre concubinato puro e impuro: “Será puro se apresentar como união duradoura, sem casamento civil, entre homens e mulheres livres e desimpedidos, isto é, não comprometidos por deveres matrimoniais ou por outra ligação concubinária. Assim, vivem em concubinato puro: solteiros, viúvos, separados judicialmente e divorciado. Ter-se-á concubinato impuro se um dos amantes ou ambos estão comprometidos ou impedidos legalmente de se casar.”.

A Constituição previu o termo união estável. E, com certa acuidade, parece ser a melhor terminologia. Com efeito, clarifica um conceito com certa pureza. O termo concubinato ficou impregnado na mente dos indivíduos como algo ruim, sujo, errado. Com isso, optar por um termo neutro é bem melhor. Tanto assim, que a centralidade de sua axiologia está no termo união e, certamente, isso reflete sua base principal: o afeto entre pessoas. Nesse sentido, Farias e Rosenvald (2016, p. 459-460): Com o advento do libertário e solidário Texto Constitucional, o termo concubinato passou a designar, tão somente, a figura impura, pois o antigo concubinato puro passou a ser chamado de união estável. Justificou-se a providência, inclusive, em razão do caráter discriminatório presente na expressão concubinato que, quase sempre, é utilizada como sinônimo de amante, amásia.

Previsão similar foi replicada no Código Civil de 2002, conforme previsão do art. 1723 (BRASIL, 2002), o qual leciona que: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”.

Diante disso, é possível verificar que não há abertura, pelo texto, para que haja eficácia jurídica para a junção com ares de perenidade entre pessoas do mesmo sexo. Trata-se, com isso, de apontamento similar àquele verificado quanto ao casamento. A despeito disso, tem-se que houve grande evolução, pois a família é vista de modo ampliado também no tocante ao plano infraconstitucional, verificando-se uma difusão estanque dos valores constitucionais.

Por fim, é importante pontuar que a Constituição previu a necessidade de se criar mecanismos para facilitação da união estável em casamento, se assim os conviventes desejassem. Isso finda por ressaltar que o fundamento axiológico-valorativo previsto na nova ordem constitucional para a interpretação do conceito família não é mais de ordem formal, mas passa por um exame largamente material, espiritual.

2.1.3 A FAMÍLIA MONOPARENTAL

Nesse ponto, mais uma vez, é possível enxergar a louvável tendência do Texto Constitucional de imbricar os institutos jurídicos de forte cunho valorativo, sob o viés de uma vertente fundada na pessoa humana e sua autossatisfação pessoal. Sob esse aspecto, cita-se a previsão trazida no art. 226, § 4º da Lei Maior, que assim dispõe: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.” (BRASIL, 1988).

Sob esse aspecto, conforme os ensinamentos de Leite (1997, P. 22 apud SILVA, 2005, p. 117), tem-se a família monoparental: “quando a pessoa considerada (homem ou mulher) encontra-se sem cônjuge, ou companheiro, e vive com uma ou várias crianças”.

Trata-se, por isso, de um cenário muito verificado na sociedade brasileira. Com efeito, muitos são os núcleos familiares que se amoldam a essa tipologia. Nos dizeres de Silva (2005, p. 117), um fator característico desse tipo de família é a facilidade e liberdade de pessoas se juntarem e separarem, sem os rigores formalísticos do casamento.

2.1.4 A FAMÍLIA NO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Apenas a título ilustrativo e com o escopo de enriquecer a pesquisa, soa importante acrescentar à tipologia proposta, duas figuras interessantes trazidas pela Lei n. 8.069/90: a família natural e a substituta. O primeiro fenômeno é dividido em duas espécies: a família natural propriamente dita e a família ampliada. A família natural vem prevista no art. 25, caput, o qual assim assevera: “Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes” (BRASIL, 1990). Já a família ampliada, por sua vez, é aquela disposta no parágrafo único do mesmo artigo: “Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. (BRASIL, 1990)”.

A segunda modalidade a ser tratada, por sua vez, é a família substituta, a qual vem prevista no art. 28 do mesmo Estatuto: “A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei”. (BRASIL, 1990)

Tais figuras não são muito tratadas em âmbito puramente civilista, pois são institutos mais ligados ao microssistema da Lei n. 8.069/90. Contudo, para fins de pesquisa e ilustração, cabe a breve menção.

2.2 MODELOS MODERNOS

De início, averbe-se que essa divisão aqui proposta é utilizada para fins meramente didáticos e não possuem um viés definitivo. Serve, estritamente, dessa forma, para enumeração e melhor visualização.

Em avanço, cabe analisar, aqui, fenômenos que estão em voga na atualidade.

2.2.1 A FAMILIA HOMOAFETIVA

Aqui, cabe retomar os apontamentos anteriores no sentido de que o ordenamento jurídico, de forma expressa, não previu proteção a pessoas homossexuais que desejassem constituir uma família. Para a majoritária doutrina, isso consiste em um sinal retrógrado e antiquado. Há, contudo, segmentos sociais, sobretudo aqueles mais ligados a um viés religioso, que encaram essa modalidade de família como algo negativo. Ao que se verifica, atualmente, há certa crítica social para esse fenômeno, assim como outrora existiu dura reprimenda para o divórcio, que demorou anos para ingressar definitivamente no ordenamento brasileiro. Assim, não se olvida que, com o avançar das décadas, a família formada por pessoas do mesmo sexo será tão aceitável quanto o divórcio hoje.

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Segundo os ensinamentos de Farias e Rosenvald (2016, p. 77), o fundamento para a validade jurídica desse instituto seria o Princípio da Pluralidade das entidades familiares. Com isso, haveria a mesma proteção conferida a uniões heteroafetivas. Na mesma linha, segundo os autores: “Contudo, nem sempre foi assim. Rios de tinta foram derramados para discutir se as uniões homoafetivas estariam, ou não, enquadradas nas latitudes e longitudes do conceito de família. Historicamente, parcela da doutrina brasileira teimava em inserir as uniões homossexuais no âmbito puramente obrigacional, caracterizando-as como meras sociedades de fato, produzindo efeitos, tão somente, patrimoniais.”.

Segundo Maluf (2010, p. 166): “No Brasil, a família formada por pessoas do mesmo sexo, apresenta muitas controvérsias, pois a doutrina pátria admite o casamento ou a constituição de união estável somente entre pessoas de sexos diferentes, e, ainda, não outorgaram os Diplomas Legais, de forma expressa, à possibilidade do reconhecimento do status familiae a esse grupo populacional.”.

No entanto, diante do atual estágio de desenvolvimento valorativo com influxos constitucionais, não se pode mais questionar que a união entre pessoas de mesmo sexo se constitua em família, ante a cláusula inclusiva prevista no art. 226 da Constituição Federal (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 78).

2.2.2 POLIAMOR

Atualmente, uma manifestação de afeto peculiar tem despertado a atenção da sociedade. É aquilo que se cunhou chamar de poliamor. Em verdade, traduz-se na opção por mais de duas pessoas em juntas manterem relações de afeto com pretensões perenes. Para Pilar (2012 apud VIEGAS; POLI, 2015, p. 59): “A opção pelo Poliamor é fundamentada na convicção de ser ele a manifestação da liberdade e honestidade dos indivíduos que participam da relação. Contudo, para se converter em poliamorista necessário se faz enfrentar o desafio de assumir publicamente a opção, encontrar parceiros adeptos, combater os ciúmes e desenvolver a compersão.”.

Conforme Nuzzo (2017), essa é uma realidade que tende a ser cada vez mais visível. Tanto o é, que no ano de 2012, na cidade de Tupã, no estado de São Paulo, houve reconhecimento de uma união poliafetiva em cartório extrajudicial, por meio de escritura pública. Na mesma linha, ainda retrata que não se trata de bigamia, pois os integrantes do núcleo poliafetivo não são amantes, concubinos, mas devem guardar exclusividade na relação, como se casado fossem.

Para Neto (2015), poliamor seria apenas manifestação poligâmica sob nova roupagem e deveria ser rechaçado, ante a proibição de relacionamentos poligâmicos no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, cabe mencionar que a proibição inscrita em norma penal incriminadora fala apenas na proibição de quem, casada, contrai novo casamento. Essa previsão, inclusive, já é merecedora de reanálise de sua constitucionalidade, frente, justamente, à previsão ampliada de família que a Constituição Federal de 1988 trouxe. Tal previsão, contudo, não abarca a situação de quem, não optando pelas formas do casamento, queira manter uniões simultâneas com pessoas diversas ou se una a duas ou mais pessoas em uma união poliafetiva.

Por outro lado, conforme Silva (2016): “Inicialmente deve ser esclarecida a sedução que reside na utilização de expressões como poliamor ou poliafeto. Trata-se de expressões enganosas, porque amor ou afeto é um sentimento, sendo essa expressão sensibilizadora. Não se nega o agradável sentimento que decorre da expressão afeto. Contudo, a expressão poliafeto é um engodo, um “estelionato jurídico”, na medida em que, por meio de sua utilização, procura-se institucionalizar ou validar relacionamentos com pluralismo ou formação poligâmica. Logo, a única expressão aplicável ao caso é poligamia, termo de origem grega que significa “muitos casamentos”. Já que à união estável é atribuído o status de entidade familiar pela Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 226, §3º, poligamia tem o significado também de muitas uniões estáveis. No Brasil, o casamento e a união estável são institutos calcados na monogamia, em que o homem ou a mulher se une a apenas uma pessoa, sendo esta a expressão dos costumes pátrios, conforme manifestamente reconhecido pela sociedade brasileira.”.

Esse entendimento encontraria guarida no art. 1.727 do Código Civil, o qual afirma que: “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato.” (BRASIL, 2002). Porém, essa previsão se refere apenas às relações não eventuais. A poliafetividade, pelos seus contornos, pressupõe perenidade no relacionamento, com vistas à estabilização e constituição de família.

3 O AFETO COMO VETOR INTERPRETATIVO DO CONCEITO DE FAMÍLIA

Conforme já anotado, a nova ordem constitucional trouxe, para as relações familiares, inovações sensíveis e importantes, as quais colocaram o instituto referido sob nova roupagem. Em relação a isso, necessário pontuar que essa nova roupagem possui viés constitucional e amplamente valorativo.

Com efeito, agora se visualiza uma abertura conceitual no instituto familiar. A tendência, então, é que se considere a inexistência de barreiras de ordem formal – a exemplo de família ser quase sinônimo de casamento na égide do Código Civil de 1916 – ou de ordem material, seja sob índole de sexo, gênero, idade, etc. Conforme Farias e Rosenvald (2016, p. 52): “A transição da família como unidade econômica para uma compreensão solidária e afetiva, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, traz consigo a afirmação de uma nova feição, agora fundada na ética e na solidariedade. E esse novo balizamento evidencia um espaço privilegiado para que os seres humanos se complementem e se completem.”.

Com isso, surge a noção de que, atualmente, o afeto é a base axiológica das famílias. Esse seria seu conteúdo principal. O conteúdo, que outrora foi predominantemente econômico, hoje é de viés sentimental e espiritual. Nesse sentido, bem prelecionam Farias e Rosenvald (2016, p. 52): “Nessa linha de intelecção, a entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois a outra conclusão não se pode chegar à luz do texto constitucional.”.

Na mesma linha, bem assevera Pessanha (2011, p. 1-2): “A família é a base da sociedade brasileira, haja vista ser ancorada primeiramente em laços de afeto, sabendo-se que o amor é o elo da comunhão de vida plena entre pessoas, de forma pública, contínua e duradoura. Assim, a família é uma construção da sociedade formada através de regras culturais, jurídicas e sociais.”.

Interessante, também, observar a noção trazida por Dias (2010 apud FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 53): “O novo olhar sobre a sexualidade valorizou os vínculos conjugais que passaram a se sustentar no amor e no afeto. Na esteira dessa evolução, o direito de família instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto.”.

3.1 DO CONCEITO

O afeto, como ressaltado em linhas atrás, é um conceito denso, amplo, de cunho puramente valorativo. Trata-se de uma percepção que não pertence ao mundo do dever ser, mas sim ao do ser, constituindo uma ordem puramente ontológica. Ademais disso, não é uma noção comum à ciência do Direito. Tem mais a ver com outros ramos, como o caso da Psicologia.

Insta salientar que é tarefa árdua fixar a noção de afeto. Não há como se definir de forma objetiva aquilo que é apresentável e perceptível apenas pelos sentidos. É algo que não pode ser mensurado cientificamente.

Quanto à noção de afeto, ensinam Farias e Rosenvald (2016, p. 53): “O afeto caracteriza-se, destarte, como o grande continente que recebe todos os mananciais do Direito das Famílias, podendo (rectius, devendo) ser o fundamento jurídico de soluções concretas para os mais variados conflitos de interesses estabelecidos nessa sede.”.

No mesmo sentido, discorre Pessanha (2011, p. 2): “Afeto significa sentimento de afeição ou inclinação para alguém, amizade, paixão ou simpatia, portanto é o elemento essencial para a constituição de uma família nos tempos modernos, pois somente com laços de afeto consegue-se manter a estabilidade de uma família que é independente e igualitária com as pessoas, uma vez que não há mais a necessidade de dependência econômica de uma só pessoa.”.

Diante disso, o que se verifica é que essa noção de cunho sentimental e espiritual imbricou o Direito das Famílias passando a compor o cerne dos suportes fáticos inerentes aos fatos jurídicos rotineiramente enxergados nessa área. Vê-se, portanto, força normativa ressaindo de um valor, ainda que tal valor não esteja expressamente escrito em alguma norma. Com efeito, não há lei afirmando que o afeto é a base da família, mas essa leitura é feita a partir da intelecção dos valores constitucionais, partindo da premissa de que a família é um bem fundamental.

Diante disso, a despeito de se verificar efeitos jurídicos a serem extraídos do afeto, para Farias e Rosenvald (2016, p. 55), não se pode ter a ideia de que se trata de um princípio do Direito das Famílias. Ensinam: “[…] ora, se princípio jurídico fosse, o afeto seria exigível, na medida em que todo princípio jurídico tem força normativa e, por conseguinte, obriga e vincula os sujeitos. Assim sendo, a afetividade permeia as relações jurídicas familiares, permite decisões e providências nela baseadas (como a concessão de guarda para quem demonstrar maior afetividade ou mesmo o reconhecimento de uma filiação em decorrência de sua presença). Contudo, não se pode, na esfera técnica do Direito, impor a uma pessoa dedicar afeto (amor em última análise) a outra.”.

Já conforme enumera Silva (2005, p. 132-134): “O princípio da afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas, religiosas e políticas. A Constituição abriga princípios implícitos que decorrem naturalmente de seu sistema, incluindo-se no controle da constitucionalidade das leis. Encontram-se na Constituição Federal brasileira algumas referências, cuja interpretação sistemática conduz ao princípio da afetividade, constitutivo dessa aguda evolução social da família […]”.

Necessário, com isso, pontuar que, independentemente da natureza jurídica considerada, se princípio ou mero vetor axiológico, há de se compreender que do afeto, agora, decorrem efeitos jurídicos. Como se vai descrever à frente, a jurisprudência doméstica passou a compreender, a partir de dois paradigmáticos julgamentos, aquilo que pode ser considerado como divisor de águas na compreensão do fenômeno família.

3.2 DO JULGAMENTO PARADGMÁTICO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO BOJO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4277 E AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 132

Sem sombra de dúvidas, o momento judicial ora descrito foi a consagração, em sede jurisprudencial, de que o vetor axiológico interpretativo das famílias deve se basear em noções puramente de afeto. Com isso, outras questões de ordem mais formal ou até pessoal – a considerar as pessoas que formam a família, como o caso dos homossexuais – ficam relegadas a segundo plano. A família, então, deve ser voltada para realização pessoal das pessoas.

Nesse particular, tem-se aquilo que Farias e Ronsevald (2016, p. 72) consideram como família eudemonista, ao tratarem que: “Desse modo, a entidade familiar está vocacionada, efetivamente, a promover, em concreto, a dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade.”.

Em avanço, cabe acrescentar que, os julgados mencionados (ADI 4277 e ADPF 132) trataram, sobremaneira, acerca da constitucionalidade das uniões entre pessoas do mesmo sexo – uniões homoafetivas, conferindo interpretação conforme a constituição ao disposto no art. 1.723 do Código Civil. No entanto, no presente estudo, a centralidade que se pretende chamar atenção não é bem o resultado do julgamento, mas sim seu principal fundamento.

Com efeito, foi com base na intelecção de que o afeto constitui a base valorativa da família que se pôde compreender que não importa a qualidade da pessoa, não importa seu sexo, identidade de gênero ou percepção subjetiva, mas sim aquilo que a anima, a afetividade que tenha por outra pessoa, para que se tenha uma família constituída.

Nesse sentido, importante destacar trecho da ementa do julgado referido, o qual reforça essa ideia, qualificando a família como princípio espiritual: “[…] O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.”.

Para melhor ilustração e estruturação das ideias, ressoa importante destacar ponto específico do voto do Relator, senhor Ministro Ayres Britto, o qual destaca a nova feição da família como centro espiritual e afetivo da sociedade: “Daqui se desata a nítida compreensão de que a família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada. O que a credencia como base da sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a família como “a Pátria amplificada”). Que termina sendo o alcance de uma forma superior de vida coletiva, porque especialmente inclinada para o crescimento espiritual dos respectivos integrantes. Integrantes humanos em concreto estado de comunhão de interesses, valores e consciência da partilha de um mesmo destino histórico. Vida em comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de “comum unidade”. E como toda comunidade, tanto a família como a sociedade civil são usinas de comportamentos assecuratórios da sobrevivência, equilíbrio e evolução do Todo e de cada uma de suas partes. Espécie de locomotiva social ou cadinho em que se tempera o próprio caráter dos seus individualizados membros e se chega à serena compreensão de que ali é verdadeiramente o espaço do mais entranhado afeto e desatada cooperação. Afinal, é no regaço da família que desabrocham com muito mais viço as virtudes subjetivas da tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de compreensão que certamente esteve presente na proposição spnozista de que, “Nas coisas ditas humanas, não há o que crucificar, ou ridicularizar. Há só o que compreender”.”

A compreensão, então, que exsurge disso tudo é que, com o paradigmático julgamento aqui referido, houve certa difusão das concepções contemporâneas sobre família e sua necessária reinterpretação. Tanto o é, que a partir desse julgamento, houve ampliação do debate público e social sobre as novas feições de família. Como exemplo disso, ressalte-se a edição de Resolução por parte do Conselho Nacional de Justiça permitindo a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa atividade normativa de um órgão administrativo com efeitos tão amplos não é imune a críticas, vez que demonstra certa substituição à figura do Poder Legislativo. Com efeito, conforme a Constituição Federal, a competência legislativa para dispor sobre direito civil é privativa da União, que a exerceria por meio do Congresso Nacional. Porém, esse não é o objetivo central desse trabalho, o qual busca, em verdade, verificar o afeto como base axiológico-interpretativa do conceito de família.

3.3 A FALTA DE CRITÉRIOS OBJETIVO-ÉTICOS PARA DELIMITAR O QUE SERIA FAMÍLIA COM BASE NO VETOR AXIOLÓGICO DO AFETO

A intersecção da Ética e do Direito é ponto sensível de discussão. Segundo Teixeira (1990, p. 29 apud HERKENHOFF, 2010, p. 116): “a Ética é a parte da Filosofia cujo objeto é a interrogação e a reflexão sobre o valor da conduta humana, sobre a virtude ou o reto agir, tendo como valor fundamental da idéia de Bem”. Ademais, tem-se que a Ética “procura formular juízos tendentes a iluminar a conduta das pessoas, dos grupos humanos, dos países, sob a luz de um critério de Bem e Justiça” (HERKENHOFF, 2010, p. 116).

Certamente, não há como basear visualizações normativas com base em critérios puramente éticos. Em verdade, há de se reconhecer a existência de ausência de um consenso ético na sociedade, há confusão sobre os valores, conforme preceituam Abboud, Carino e Oliveira (2013, p. 131): “Certo é que, no atual grau de complexidade relacional de nossa sociedade, o consenso sobre os valores se apresenta como algo completamente problemático. Esta disputa revela a proximidade ou, sem exageros, poder-se-ia dizer, o sentido praticamente sinônimo entre o conceito de ética e moral, pois cada vez mais os valores tornam-se maiores, fato que dificulta consideravelmente consensos morais.”.

Em decorrência disso, basear um instituto jurídico com supedâneo em um valor abstrato não é de todo seguro, juridicamente falando. O afeto possui ampla abstração. É um conceito que não pertence ao Direito. É um conceito que pertence às pessoas, antes de qualquer coisa. A ciência não conseguiria conceituar, pois é algo que demanda sensibilidade, percepção. Não se mede afeto. Dessa forma, como seria possível mensurar um sentimento afetivo e qualifica-lo como laço familiar? O que, objetivamente considerado, separa o afeto de uma amizade de um afeto entre casal de namorados? Ainda mais: o que divide o afeto de um casal de namorados e aqueles de pessoas que querem constituir família?

A discussão pode até ser impingida com a pecha da obviedade. A resposta condutora poderia ser a de que o afeto que cria uma família é justamente aquele que é qualificado pela intenção de constituir família. No entanto, quando há essa intenção? Em reforço, destaque-se que o debate não é de todo vazio. Uma discussão assim possui intensa repercussão no Direito, sobretudo no campo das sucessões. Como seria verificável, em certa situação, que aquelas pessoas que se amavam, planejavam ter filhos, dividiam os sonhos, os planos, eram uma família ou apenas amantes. Isso porque, no primeiro caso, haveria que se falar em herdeiro, inclusive de grau necessário. Já no outro, não haveria nada. O que separaria o afeto de noivos do afeto de cônjuges. Se um dos noivos falecesse antes da emissão da vontade em contrair núpcias, na solenidade do negócio jurídico casamento, não poderia haver sucessão do falecido pelo sobrevivente?

Com efeito, o presente trabalho não pretende dar uma fórmula pronta para uma análise dessa envergadura, até porque isso seria impossível. Como ressaltado, o afeto não é algo mensurável e depende da experiência humana em certo tempo, certa cultura. O que se pretende, então, é justamente demonstrar que eleger o afeto, por si só, como vetor interpretativo do que seria entidade familiar, mas sem trazer critérios objetivo-éticos que possam discernir com mais precisão, é um tanto temerário.

Sob a égide do campo ético, caberia formular indagações acerca de situações que comumente são rechaçadas por nossa cultura, mas que podem, muito bem, envolver afeto e, com isso, atrair a incidência do Direito das Famílias. Cite-se, por acaso, o exemplo de uma mãe e um filho que sintam um afeto tamanho que resolvam efetuar um negócio jurídico de união estável. Alguns responderiam: há impedimento legal. Mas qual a razão desse impedimento, se o que basta é o afeto? Poder-se-ia fazer a mesma indagação considerando uma situação mais pitoresca, mas não menos real. E se alguém dizer ter afeto por um animal e quiser com ele constituir família? Crime não é, mas haveria afeto. Ao negar reconhecer a situação jurídica da família, o Direito estaria medindo afeto e reduzindo ele ao campo humano. Se não se pode reduzir o afeto sob a perspectiva de gênero, por qual motivo reduzir por parentesco ou relações de afeto não exclusivamente humanas? Por fim, como ficaria a situação de um núcleo familiar constituído por três, quatro ou cinco pessoas que aleguem ter afeto entre si. Não é um casal. É um grupo que se ama e convive junto. É afeto. Como ficaria o regime de bens? Como ficaria a sucessão?

Nesse ponto, em crítica à noção unívoca de afeto no âmbito das Famílias, se posiciona Neto (2015), afirmando que: “Ninguém nega a existência do chamado “afeto”, estudado em profundidade desde Freud e depois por Carl Jung. Mas hoje o afeto é assunto de outra área do conhecimento, a Psicologia. Não é possível misturar grandezas imiscíveis. “Assim sendo, o afeto é apenas o elemento básico da afetividade, entendida esta como o “conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e paixões, acompanhados sempre da impressão de dor ou prazer, de satisfação ou insatisfação, de agrado ou desagrado, de alegria ou tristeza” (NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO ELETRÔNICO – 4ª edição, conforme a nova ortografia – verbete “afetividade”).”.

Por fim, pontue-se que, efetivamente, seria de suma importância que se acrescessem outros vetores de ordem objetivo-ética na interpretação do que é família. Com isso não se quer dizer que há erro em basear a família no afeto, mas sim que é inseguro considerar apenas esse elemento para tanto. Do contrário, será impossível que, mais a frente, se negue a proteção da família àquilo que, à evidência, não o é.

CONCLUSAO

A família é o fenômeno com repercussão jurídica mais próximo da pessoa humana. Sem dúvidas, é aquilo que melhor retrata os vínculos sociais. Como qualquer outro fato social, a família evoluiu muito ao longo dos séculos. A depender da cultura, da história, do tempo, as manifestações familiares se distinguiram e evoluíram. Nesse sentir, a depender do ponto vista, poder-se-ia falar em retrocesso. Tudo dependeria da concepção do observador. A verdade é que as manifestações culturais se modificam e as pessoas também. Assim, institutos formados por pessoas também se modificam, por via de consequência.

O ordenamento jurídico brasileiro, em relação à família, experimentou um lento evoluir de seus contornos. Avançou desde o período mais remoto até chegar ao século XX, sob a égide do Código Civil de 1916. Tinha-se uma noção privatista, patrimonializada. Não havia um instituto a serviço das pessoas, mas as pessoas é quem estavam a serviço da família.

Após o advento da Constituição de 1988, a noção foi modificada. Certamente, essa modificação não se deu de forma automática. Foi necessário um progressivo passar dos anos para que se falasse em uma real abertura axiológico-valorativa do conceito de família. A doutrina, então, passou a compreender que, partindo de uma intelecção com viés constitucional, a família estaria, agora, baseada em outros valores. Não era mais apenas patrimônio. Era, também, e principalmente, felicidade, respeito, sociabilidade e afeto.

O afeto, então, constituiu-se, em primazia, na base axiológica do que seria família. Não há mais rigor formal. Não há mais figuras pré-estabelecidas para compor uma família. Não há mais chefe de família. Há, em verdade, pessoas que, de mútuo acordo, colaboram para o bem comum, tendo vista a realização pessoal e o alcance da felicidade.

Mesmo com essa concepção inovadora, e a despeito da previsão contida na nova codificação civil, refletindo a base constitucional de afetividade, somente nos idos de 2011 houve uma definição jurisprudencial vinculante acerca dessa noção importante. O afeto, então, passava, efetivamente, a compor a base da família. Ainda hoje, contudo, não há total aceitação dessa modificação. Assim, como ocorre com o exemplo da família homoafetiva, que muitos não admitem como correta, há manifestações de afeto que também são rechaçadas. Os fundamentos para essa compreensão não estão ligados a uma ignorância ou preconceito. Em verdade, trata-se, apenas, de uma concepção individual. Tudo está mais ligado à liberdade de crer no que se acha bom.

Em reforço a isso, as diversas compreensões acerca de um determinado tipo de família moderna existem, sobretudo, em razão de a noção de afeto ser diversa para cada indivíduo. O afeto, como fenômeno intrínseco a cada ser humano, não pode ser objetivamente mensurado, medido, tabelado. Não há como dizer que uma manifestação tem mais ou menos afeto ou que determinado tipo de laço afetivo é bom ou ruim. Essas opiniões dependerão da concepção de cada um em relação ao afeto. A problemática, diante disso, é justamente que o Direito não pode objetivizar o afeto. Esse conceito não é deontológico, não é do mundo do dever-ser. Não pode ser normatizado com um silogismo. É conceito do mundo do ser. Cada um tem uma noção de afeto em conformidade com sua maneira de enxergar a realidade.

É justamente por isso, em razão de o afeto não ser mensurável pelo Direito, que ele não pode ser, sozinho, tido como principal vetor axiológico-interpretativo do complexo instituto da família. Seria necessário, pois, que outros elementos de base objetivo-ética compusessem, também, essa importante noção. É certo que, há manifestações afetivas visualizáveis na atualidade que a maioria da sociedade ainda não vê com bons olhos. Um exemplo seria a poligamia. Outro, seria as relações afetivas qualificadas pelo intuito de formar família entre pessoas com grau de parentesco. Isso, decerto, não descamba apenas no campo da ética ou da moral, mas também possui repercussão jurídica, como no campo do Direito das Sucessões. Caso haja reconhecimento jurídico de uma entidade familiar nos moldes dos exemplos acima, certamente, algumas problemáticas seriam enxergadas sob a ótica da sucessão.

Pelo exposto, resta a conclusão de que, a despeito de o afeto ser de extrema importância para a interpretação do fenômeno família sobre uma ótica constitucional, este não é puramente suficiente para tal mister. Nesse sentido, seria imprescindível que a ele se anexassem outros elementos, também valorativos, com uma carga objetivo-ética para melhor orientar o operador do Direito, tanto na elaboração, quanto na aplicação das leis.

 

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Informações Sobre o Autor

Andre Lucas de Souza Oliveira

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Acre. Técnico Judiciário da Justiça Federal de Primeira Instância da Seção Judiciária do Acre


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