A inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel face aos tratados internacionais de Direitos Humanos

Resumo: Este trabalho aborda a discussão, na doutrina e na jurisprudência brasileiras dos últimos anos, principalmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre a impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, de forma contrária ao que prevê a Carta Magna nacional de 1988, por existirem tratados internacionais que tratam de direitos humanos que vedam tais medidas coercitivas, como é o caso do Pacto de São José da Costa Rica, assinado em 1969 e ratificado em 1992 e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 internalizado no mesmo ano. Desta forma, embora o texto magno de 1988 em seu artigo 5° inciso LXVII traga expressamente duas possibilidades de prisão civil, sendo que a primeira parte trata do devedor de alimento e segunda do depositário infiel, a lei infraconstitucional não estaria autorizada a regulamentar o segundo caso em virtude da vedação estabelecida pelos referidos tratados internacionais. Face ao impasse estabelecido entre a hierarquia dos tratados internacionais e a lei brasileira, vale ressaltar as teorias que tratam do referido assunto, sendo elas, a supraconstitucionalidade, supralegalidade, constitucionalidade e hierarquia ordinária aos tratados internacionais. Será, então, discutida a aplicabilidade do texto magno, da lei infraconstitucional que trata do referido assunto e o novo papel dos tratados internacionais no ordenamento pátrio, buscando uma solução para o conflito normativo colocado.


Palavras Chave: Inconstitucionalidade, depositário infiel, tratados internacionais de direitos humanos.


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Abstract: This paper deals with the discussion, held in brazilian legal doctrine and judicial decisions of the last years, especially those of STF (Supremo Tribunal Federal), about the impossibility of civil imprisonment of the disloyal depositary – on the contrary of a constitutional disposition -, based on human rights treaties, as the American Convention on Human Rights, and the 1966 International Covenant on Civil and Political Rights, both ratified in 1992, which ban such restraining measures. Therefore, yet the constitution displays in article 5, LXVII, two possibilities of civil imprisonment, being the first that of the alimony debtor and the second referring to the disloyal depositary, no ordinary law would be authorized to regulate the second case, due to that prohibition set forth by the foregoing treaties. Regarding the hierarchy stalemate between international treaties and brazilian law, it is to mention the theories on the matter, as the superconstitutional, superlegal, constitutional and ordinary hierarchy of the international treaties. Then, it will be taken into account the constitution applicability, as well as that of the federal statute regarding this subject, and the new role of international treaties in national legal system, searching for a solution to the appointed normative conflict.


Sumário: 1. Introdução. 2. Prisão civil: conceito e evolução histórica. 3. Aspectos da prisão civil na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002. 4. O decreto- lei 911/69. 5. A prisão civil do depositário infiel frente aos tratados internacionais de direitos humanos: conflito de hierarquia de normas 6. Considerações. Finais referências.


1 – INTRODUÇÃO


Diante da insegurança jurídica e da constante discussão acerca da possibilidade ou da impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, faz-se necessário expor aspectos históricos e atuais expostos tanto pela doutrina nacional e internacional e da jurisprudência pátria acerca do polemico assunto em baila.


O grande conflito reside em saber se, os tratados internacionais que tratam de direitos humanos poderiam ou não revogar uma lei ordinária e paralisar um preceito constitucional (inciso LXVII do art. 5 ° da Constituição Federal de 1988) com ele conflitante.


Constantemente as Cortes nacionais e a doutrina pátria vêm enfrentando celeumas de tal nível e decidindo em muitos casos de forma contraditória, como é caso do entendimento do STJ e do STF acerca da equiparação do devedor fiduciário ao depositário do Código Civil (Possibilidade introduzida pelo Decreto – Lei 911/1969), sendo que o primeiro entendia a impossibilidade e já o segundo pela possibilidade de equiparação.


Outro fator relevante e passível de sérios questionamentos é o fator prisão civil em contra-senso ao princípio da Dignidade da pessoa humana, hegemônico no Estado Democrático de Direito moderno (atualmente Estado Constitucional de Direito).


Diante de tais questionamentos e a fim de esclarecer expressões jurídicas como: depositário necessário, facultativo, por equiparação, supralegalidade, supraconstitucionalidade, depositário infiel e outros termos que se tornam recorrentes no universo jurídico, desde o mais simples processo até o grau mais elevado de discussão, que é na Suprema Corte Nacional, pretendemos com o presente texto, esclarecer e apontar tendências já consubstanciadas e outras discutidas na esfera doutrinária.


Nesse sentido apresentaremos: o histórico da prisão civil, os aspectos da prisão civil do depositário infiel na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002, os aspectos do Decreto Lei 911/69, as teorias sobre a hierarquia dos tratados internacionais e por fim as considerações finais sobre o referido assunto.


2 – PRISÃO CIVIL: CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA


O dispositivo fundamental contido no inciso LXVII do artigo 5° da Constituição Federal de 1988 proíbe de forma expressa a prisão civil, excetuando dois casos em que o legislador infraconstitucional poderá criar as referidas prisões. A primeira parte do inciso trata da prisão por divida de alimentos e a segunda parte trata da prisão do depositário infiel, in vebis: artigo 5°, inciso LXVII da Constituição federal de 1988 “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.


Embora na prática a prisão civil tenha as mesmas características da prisão criminal, a prisão civil não é uma pena, mas sim uma simples medida de coerção jurídico-processual, que tem por objetivo levar o devedor coercitivamente a pagar o débito contraído e inadimplido; posicionamento pacificado pela jurisprudência nacional (HC 71.038/MG, Rel. Min. Celso De Melo – RHC 66.627? SP, Rel. Min. Octávio Gallotti) e na doutrina pelo eminente civilista Clóvis Bevilaqua (Código Civil, vol. V, p. 22/23, itens ns. 3 e 5, 1957). Conforme preceitua Celso Ribeiro Bastos:


“Ela [a prisão civil] não visa a aplicação de uma pena, mas tão somente a sujeição do devedor a um meio extremamente violento de coerção, diante do qual, é de se presumir cedam resistências do inadimplente. É por isto que, paga a pensão ou restituído o bem depositado, automaticamente cessa a prisão”. (BASTOS, 1996, p 78, 79 e 80).


Nos dizeres de Rabello (1988, p.126): “A prisão civil pode ser conceituada como um instrumento de coercibilidade, utilizado na jurisdição civil, de cunho eminentemente econômico, previsto em lei, com o objetivo de compelir o devedor, seja depositário ou de alimentos, a cumprir o seu dever de obrigação”.


A prisão prevista na jurisdição civil, cuja finalidade é alertar o demandado para a prática de algum ato previsto em lei, é conseqüência de uma decisão judicial prolatada no curso de uma ação de natureza cível, que foi ajuizada perante a justiça civil, visando compelir alguém que se colocou na posição de depositário infiel ou devedor de alimentos a cumprir o compromisso assumido. Tal prisão, que não possui qualquer vinculação com a pena privativa de liberdade imposta ao infrator no juízo criminal, configura simples fator coercitivo, de pressão psicológica, com a finalidade de obrigar o cumprimento de um encargo. Seu intuito é exclusivamente econômico, pois não busca punir, e sim convencer o devedor de sua obrigação de pagar o que lhe é exigido ou devolver a coisa que lhe foi confiada, como ensina Marmitt:


“A prisão existente na jurisdição civil é simples fator coercitivo, de pressão psicológica, ou de técnica executiva, com fins de compelir o depositário infiel ou o devedor de alimentos, a cumprirem sua obrigação. Insere-se na Constituição Federal como exceção ao princípio da inexistência da constrição corporal por dívida. Sua finalidade é exclusivamente econômica, pois não busca punir, mas convencer o devedor relapso de sua obrigação de pagar. É sempre conseqüência da aplicação de um processo coercitivo, com o fito de despertar o inadimplente, de conscientizá-lo dos compromissos que assumiu, para que ele satisfaça o quantum que lhe é exigido, ou devolva a coisa que lhe foi confiada”. (MARMITT, 1989, p. 7).


Assim sendo, como ensina Azevedo (2000, p. 20), a possibilidade de prisão nesses casos trata-se de exceções à cláusula vedatória da prisão civil por dívida. Essa modalidade de coerção extraordinária trazida no texto constitucional dá ao legislador ordinário a faculdade de em se tratando de inadimplemento voluntário e injustificável de obrigação alimentar e de infidelidade depositária poder aplicar a medida.


Isso posto, faz-se mister remontar à origem histórica deste instituto.


2.1 – A PRISÃO CIVIL NA ANTIGUIDADE E NA IDADE MÉDIA:


Em uma análise aprofundada sobre o tema, nota-se que na antiguidade clássica a prisão civil foi extinta na Roma republicana por volta do século V a.C. com advento da Lex Poetelia Papiria, que aboliu a possibilidade de execução recair sobre a pessoa do devedor, mas sim sobre seus bens. Isso significou uma revolução no direito existente. Vale ressaltar a este respeito a valorosa lição de Alfredo Buzaid ( Do concurso de credores no processo de execução, p. 43/44 e 53, 1952, Saraiva):


“No período das “legis actiones”, a execução se processava normalmente contra a pessoa do devedor, através da “legis action per manus injectionem”, confessada a dívida, ou julgada a ação, cabia a execução trinta dias depois, sendo concedido esse prazo afim de o devedor poder pagar o debito. Se este não fosse solvido, o exeqüente lançava as mãos sobre o devedor e o conduzia a juízo. Se o executado não satisfizesse o julgado e se ninguém comparecesse afiançá-lo, o exeqüente o levava consigo, amarrando-o com uma corda, ou algemando-lhe os pés. A pessoa do devedor era adjudicada ao credor e reduzida a cárcere privado durante sessenta dias. Se o devedor não se mantivesse a sua custa, o credor lhe daria diariamente algumas libras de pão. Durante a prisão era levado a três feiras sucessivas e ai apregoado o crédito. Se ninguém o solvesse, era aplicada ao devedor a pena capital, podendo o exeqüente matá-lo ou vende-lo “trans tiberim”. Havendo pluralidade de credores, podia o executado na terceira feira ser retalhado; se fosse cortado a mais ou a menos, isso não seria considerado fraude. (…)


O extremo rigor do primitivo processo civil romano não perdurou largo tempo. Fez-se logo sentir a necessidade de uma reforma. Em 428, ou 441, foi publicada a “Lex poeteli”: seu objetivo foi por um lado, fortalecer a intervenção do juiz. Assim foi abolida a faculdade de matar o devedor insolvente, de vendê-lo como escravo, ou de detê-lo na cadeia bem proibido o uso da “manus injectio” contra o devedor não “confessus”, nem “judicatus”. Tornava-se indispensável a intervenção do magistrado mesmo quando o devedor se tivesse obrigado pelas formas solenes do “nexum” (BUZAID, 1952, p. 43/44 e 53).


Desta forma ficou abolida na antiguidade a punição física do devedor, podendo o credor atingir apenas seu patrimônio econômico, como afirma o jurista A.V. Azevedo, 2005, p.109: “… estabeleceu que o inadimplemento passaria a ensejar não mais a execução pessoal, mas tão somente a execução patrimonial do devedor, com exceção do inadimplemento das dívidas provenientes de delitos, que permitia a execução da própria pessoa.”


Na Idade Média por força da grande influência do pensamento teológico, acreditava-se que a dívida acima de tudo era um acordo inviolável entre credor e devedor e a ruptura deste acordo implicaria em uma “mentira”, que para a época era um pecado infame. Desta forma, neste período admitia-se que o credor tomasse para si o devedor a fim de escravizá-lo para saldar a dívida ou até mesmo matá-lo, (GRAVAZZONI, 2002, p. 121/12).


Tais medidas alem de possuírem um caráter satisfatório ao credor que tinha uma obrigação não satisfeita, também possui um caráter educativo, servindo de lição a todos que cogitassem contrair uma divida e não saldá-la.


2.2 – A PRISÃO CIVIL NA IDADE MODERNA:


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Na Idade Moderna verifica-se que nos países de maior expressão na Europa, a prisão civil foi completamente abolida, como é caso da França que, em 1274 com o Rei São Luís, havendo tal possibilidade somente nos casos de dívida fiscal. No entanto por influencia do pensamento católico, a instituição do cárcere em função de dívida civil volta a imperar no reinado de Felipe as pessoas que quisessem poderiam dar seu próprio corpo para garantir uma dívida; caso não houvesse o adimplemento o devedor viraria escravo do credor até saudá-la. Contudo após esse período voltou a vigorar na França a expressa proibição à prisão por dívidas sendo excetuada a hipótese de inadimplemento da obrigação alimentícia. Contudo foi em 1804 que o instituto foi totalmente proscrito na França, com Código civil de Napoleão, onde passou a ser terminantemente proibida a prisão por divida, (GRAVAZZONI, 2002, p. 136/138).


Neste período somente países como Itália, Inglaterra e Áustria mantiveram a possibilidade da prisão civil por divida, porém apenas nos casos de descumprimento da prestação de alimentos.


2.3 – O CÓDIGO CIVIL DE 1916 E AS CONSTITUIÇÕES NACIONAIS ANTERIORES


Durante um longo período a prisão civil foi admitida em nosso ordenamento jurídico, constando previsão legal no Código Comercial (artigo 20, 91, 114 e 284) e no Código Civil de 1916 (artigo 1287). Tanto a Constituição do império quanto a Constituição Republicana de 1891 não previam a possibilidade da prisão do devedor inadimplente.


Podemos observar nos Artigos do já quase em completo desuso, Código Comercial Brasileiro de 1850:


Art. 20 – Se algum comerciante recusar apresentar os seus livros quando judicialmente lhe for ordenado, nos casos do artigo nº. 18 será compelido à sua apresentação debaixo de prisão, e nos casos do artigo nº. 19 será deferido juramento supletório à outra parte. Se a questão for entre comerciantes, dar-se-á plena fé aos livros do comerciante a favor de quem se ordenar a exibição, se forem apresentados em forma regular (artigo nºs 13 e 14).


Art. 114 – O condutor ou comissário de transportes não tem ação para investigar o direito por que os gêneros pertencem ao carregador ou consignatário; e logo que se lhe apresente título bastante para recebê-los deverá entregá-los, sem lhe ser admitida oposição alguma; pena de responder por todos os prejuízos e riscos que resultarem da mora, e de proceder-se contra ele como depositário (artigo nº. 284).


Art. 284 – Não entregando o depositário a coisa depositada no prazo de 48 (quarenta e oito) horas da intimação judicial, será preso até que se efetue a entrega do depósito, ou do seu valor equivalente (artigo nºs 272 e 440).”


O Código Civil de 1916 trazia de forma clara em seu artigo 1287 c/c 1273 que todo depositário, voluntário ou necessário, estava obrigado a restituir o bem quando este fosse exigido, sob pena de ser coagido a fazê-lo mediante prisão que não poderia ser excedente a 1 (um) ano, in verbis: “Art. 1.287 – Seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo, mediante prisão não excedente a 1 (um) ano, e a ressarcir os prejuízos.”


Em 1969 o Decreto- lei n° 911/69 equiparava o depositário de um bem oriundo de alienação fiduciária à figura do depositário infiel tradicional descrito no Código Civil, aplicando assim as mesmas disposições da relação de deposito necessário e voluntário à alienação fiduciária, conforme trata o referido diploma em seu artigo 4°, in verbis: “Art. 4º. Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.” Nesse sentido ensina Álvaro Villaça Azevedo:


“Para executar sua garantia, portanto, o fiduciário-credor é proprietário; para sofrer a perda do bem fiduciado, sem culpa do devedor-fiduciante, é este quem sofre referida perda. Aliás, o que é verdadeiro absurdo, pois, sendo o fiduciante devedor considerado depositário, jamais poderia sofrer essa perda patrimonial, aplicando-se o princípio de que a coisa perece para o dono. Sim, porque ou nos encontramos em face do proprietário ou do depositário, já que, como é lógico, e como demonstra Almachio Diniz, em sua conhecida monografia sobre o depósito, não pode ser depositário o proprietário da coisa”. (AZEVEDO, 2002, p. 106).


Como já fora mencionado tanto a constituição do império do Brasil de 1924 quanto as constituições de 1891 e 1937 foram omissas em relação ao depositário inadimplente, sendo que, em tais circunstancias o legislador ordinário tinha plena liberdade para arbitrar de forma infra constitucional os preceitos e disposições de tratamento de tais casos, não sendo assim necessário tratar do referido tema no texto magno.


É certo, pois, que a garantia contra a prisão civil por dívida foi proclamada pela Constituição de 1934. Esta, no Artigo 113, XXX, preceituava: “Não haverá prisão por dívida, multas ou custas”. Tal garantia, porém, foi derrogada pela Constituição de 10.11.1937, que, silenciando sobre o assunto, permitiu que a matéria fosse novamente tratada pela legislação infra constitucional. As Constituições de 1946, 1967, 1969 e 1988 passaram a proibir a prisão civil por dívida, abrindo, porém, duas contestáveis exceções: depositário infiel e devedor de alimentos. Com efeito, dispõe o art.5º, LXVII, da atual Constituição: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.”


Ensina-nos com maestria acerca do assunto o eminente jurista Álvaro Villaça Azevedo:


“Embora tenha mantido as duas inconcebíveis exceções, que autorizam a prisão civil por dívida, minimizou a violência dessa exceção pessoal, exigindo que o inadimplemento do devedor de alimentos e do depositário infiel seja voluntário e inescusável. Tanto no caso fortuito, como na força maior, existe ausência de culpabilidade do devedor, que, ante essas situações, fica liberado do cumprimento obrigacional, sem qualquer pagamento indenizatório e sem responsabilidade pessoal”. (AZEVEDO, 2002, p. 107).


Nesse sentido preceituava a Carta Maior de 1946:


Art. 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:


§ 32 – Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel e o de inadimplemento de obrigação alimentar, na forma da lei.”


O mesmo tratamento foi dado pela Constituição de 1967 e pela Emenda Constitucional n. 1 de 1969, repetindo a redação da Constituição anterior, com pequenas modificações. Vejamos o texto constitucional de 1967:


Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:


§ 17. Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel ou do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar, na forma da lei.”


Com efeito, dispõe o art.5º, LXVII, da atual Constituição (1988): “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.” O referido inciso é objeto de estudo e de criticas referentes à sua aplicação contraposta aos tratados internacionais de Direitos Humanos internalizados em nosso país.


3 – ASPECTOS DA PRISÃO CIVIL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E NO CÓDIGO CIVIL DE 2002


Como já foi anotado a prisão civil está disciplinada na Constituição Federal de 1988 no Artigo 5° inciso LXVII, no Código Civil, Código de Processo Civil e outros diplomas infraconstitucionais. Dentre outras leis a que mais chama atenção é o Decreto- Lei 911/69 que equipara o devedor fiduciário ao depositário judicial.


Embora a prisão do depositário infiel tenha fulcro constitucional tem se discutido a aplicação desta medida, uma vez que, inúmeros tratados internacionais de direitos humanos vedam a referida prisão, excetuando apenas a dívida de alimentos. Os tratados mais notáveis é a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e o tratado de Direitos Civis e Políticos.


3.1 – A PRISÃO CIVIL NA CONSTITUIÇÃO DE 1988:


Com efeito, dispõe o Artigo 5º, LXVII, da atual Constituição: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.” Assim sendo nota-se no texto magno a expressa vedação à prisão civil, exceto nos casos do devedor de alimento e do depositário infiel. Não há objeções plausíveis quanto a prisão do devedor de alimentos, uma vez que, é pacifico na jurisprudência e na doutrina pátria a proteção do hipossuficiente. Conforme Cândido Dinamarco, “esse é um dos casos em que, excepcionalmente, a Constituição Federal autoriza a prisão por débito, fazendo-o em nome de um valor maior que a liberdade do devedor, qual seja, as necessidades do alimentando. Já em relação ao depositário infiel entendem a maioria dos tribunais (Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho e outros Tribunais Estaduais) e a doutrina nacional ser incompatível com o Estado Democrático de Direito, por contrariar tratados internacionais de Direitos Humanos, mesmo expresso no texto maior.


Embora o texto constitucional seja expresso em mencionar a possibilidade de prisão do depositário, não obriga a fazê-lo, mas dá ao legislador ordinário a faculdade de legislar nesse sentido. Com a internalização de certos tratados internacionais fica o legislador infraconstitucional limitado a legislar apenas no primeiro caso de que trata o inciso, não podendo regulamentar nem arbitrar a prisão civil do fiel depositário, como relata os eminentes constitucionalistas Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Branco:


“Isso significa que, sem lei veiculadora da disciplina da prisão civil nas situações excepcionais referidas, não se torna juridicamente viável a decretação judicial desse meio de coerção processual, pois a regra inscrita no inciso LXVII do Artigo 5° da Constituição não tem aplicabilidade direta, dependendo, ao contrário, da intervenção concretizadora do legislador (interpositio legislatoris), eis que cabe, a este, cominar a prisão civil, delineando-lhe os requisitos, determinando-lhe o prazo de duração e deferindo-lhe o rito de sua aplicação, a evidenciar, portanto, que a figura da prisão civil, se e quando instituída pelo legislador, representará a expressão de sua vontade, o que permite examinar esse instrumento coativo sob uma perspectiva eminentemente infraconstitucional e consequentemente viabilizadora da análise – que me parece inteiramente pertinente ao caso em questão – das delicadas relações que se estabelecem entre o Direito Internacional Público e o Direito interno dos Estados Nacionais.” (MENDES, COELHO, BRANCO, 2008, p. 684).


3.2 – A PRISÃO CIVIL NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 E NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL:


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Embora o referido dispositivo constitucional contemple duas possibilidades de prisão civil, sendo uma delas a do infiel depositário e a outra do devedor de alimentos, o texto magno não deixa claro como se fará tais medidas coercitivas, deixando isso a cargo da lei infraconstitucional.


Desta forma o Código Civil de 2002[1] e o Código de Processo Civil brasileiro disciplinam em quais casos ocorrerá a prisão do depositário infiel e como tal prisão se processara.


Nessa linha reza o Código Civil pátrio de 2002 em seu artigo 652, que reproduz redação idêntica ao antigo Código Civil em seu artigo 1257: “Art. 652 do C.C. Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos.”


Nessa linha disciplina o presente diploma que uma das características fundamentais do contrato de depósito é devolução ou a restituição da coisa quando reclamada. Caso o depositário se negue a devolvê-la será compelido a fazer mediante a famigerada prisão civil, que não passará de um ano, sujeitando-se ainda a ressarcir os eventuais danos sofridos pelo objeto.


O contrato de depósito, por sua própria natureza, é intuito personae, porque é fundado em qualidades pessoais do depositário, que recebe de outra pessoa, o depositante, uma coisa móvel, responsabilizando-se em guardá-la, temporariamente, para restituí-la no momento estipulado no contrato ou quando solicitado pelo depositante.


O depósito em regra é gratuito, porém pode ser tornar oneroso, caso seja tido pelo depositário como um fim profissional.


Caso ocorra qualquer dano ao bem ou este deixe de existir, terá o depositário que ressarcir ao depositante o valor equivalente à escoriação, assim como o depositante terá que indenizar o depositário por quaisquer prejuízos tidos em função do depósito do referido. Todas estas disposições estão referidas no Código Civil, nos artigos 627 e seguintes e devem ser acordadas de forma minuciosa no contrato escrito de depósito firmado entre as partes. Nesse sentido acentua acerca das características do contrato de depósito o eminente jurista Kiyoshi Harada:


“São características do depósito segundo o Código Civil Brasileiro: a) a entrega da coisa pelo depositante ao depositário; b) a natureza móvel do bem depositado; c) a entrega da coisa para o fim de ser guardada; d) a restituição da coisa quando reclamada pelo depositante; e) a temporariedade e gratuidade do depósito. A exigência da entrega da coisa ao depositário pelo depositante confere ao depósito a natureza de contrato real. A tradição da coisa depositada é indispensável ao aperfeiçoamento do contrato salvo, evidentemente, quando a coisa já estiver em poder do depositário, isto é, se a tradição, por uma razão ou outra houver ocorrido anteriormente à celebração do contrato. A natureza móvel da coisa depositada é da essência do contrato, embora doutrinadores estrangeiros admitam o depósito de imóveis. No contrato de depósito a guarda da coisa é essencial. A custodia rei intervém no contrato como fim primacial e nunca em caráter subsidiário como ocorre, por exemplo, no mandato, no comodato, na locação etc. Em todas essas hipóteses a guarda da coisa simplesmente decorre de outro contrato perfeito e acabado que não o de depósito. No comodato, por exemplo, o comodatário recebe a coisa para uso seu e não para guardá-la, como acontece no depósito. Restituição da coisa se constitui no elemento moral do contrato, cuja inobservância pode acarretar sanções civis e penais ao depositário. Finalmente, a gratuidade integra esse contrato como decorre do parágrafo único ao art. 265 do CC. Da exposição feita pode-se acrescentar, ainda, a infungibilidade da coisa móvel depositada como elemento essencial desse contrato. Realmente, se a guarda e conservação da coisa depositada, para oportuna restituição ao depositante, é elemento estrutural do contrato segue-se que os bens móveis fungíveis como dinheiro, cereais, vinhos etc. não se prestam a figurar como objetos do contrato de depósito. Aliás, o art. 1280 do CC remete às disposições acerca do mútuo em se tratando de depósito de coisas fungíveis” (HARADA, 2003, p. 621/702)


O depósito necessário é aquele que se origina por força de lei, também chamado de depósito legal ou se dá por alguma calamidade pública, como inundação, incêndio etc. Já o depósito voluntário é aquele que se origina pela livre manifestação das partes, fazendo surgir o contrato de depósito. Ainda existe o depósito judicial, realizado por uma ordem do juiz dentro de um processo, como é o caso da penhora, como descreve de forma didática a professora da Universidade Católica de Goiás Maria Aparecida de Bastos:


“1) Depósito Voluntário ou Convencional – resulta da vontade livre das partes. (CC, art. 627 a 646) Ocorre a escolha livre do depositário, confiando à sua guarda coisa móvel corpórea para ser restituída quando reclamada. Somente se prova por escrito (art. 646), podendo ser feito através de instrumento particular ou público;


2) Depósito Necessário – (CC, Art. 647 a 652) – legal, quando decorrente de lei; miserável, se efetuado por ocasião de alguma calamidade pública e depósito do hoteleiro ou do hospedeiro. Nessa modalidade independe da vontade das partes a escolha do depositário. Resulta de fatos imprevisíveis e irremovíveis, que levam o depositante a efetuá-lo, entregando a guarda do objeto a pessoa que desconhece, a fim de subtraí-lo de uma ruína imediata, não lhe sendo permitido escolher livremente o depositário, ante a urgência da situação. Não se presume gratuito, pois a escolha não é livre. O depósito necessário se divide em: 2.1. Legal – desempenho resultante de obrigação de lei (art. 647, I) – Ex. o depósito que é obrigado a fazer o descobridor de coisa perdida (CC art. 1.233, parágrafo único); o de dívida vencida, na pendência da lide, se vários credores disputarem o montante (CC 345); o feito pelo administrador dos bens do depositário que se tenha tornado incapaz (CC, art. 641); o do lote compromissado, no caso de recusa de recebimento da escritura definitiva. 2.2. Miserável – efetuado por ocasião de calamidade pública, como incêndio, inundação, naufrágio ou saque (CC, art. 647, II), quando o depositante, ante tal circunstância especial é obrigado a se socorrer da primeira pessoa que aceitar depositar os bens que conseguiu salvar. 2.3. Depósito do hospedeiro – refere-se à bagagem dos viajantes ou hóspedes nas hotelarias onde eles estiverem (CC, art.649), abrangendo internatos, colégios, hospitais, etc. O hoteleiro ou hospedeiro responderá pela bagagem não só como depositário, mas também pelos furtos e roubos que ocorrerem praticados por seus empregados, dispensando a prova por escrito e seu valor. A responsabilidade é risco do negócio. Essa responsabilidade diz respeito às coisas que normalmente se levam para viagem (roupas e objetos de uso pessoal). Quantias vultosas e jóias exigem depósito voluntário com a administração da hospedaria ou hotel. O hóspede lesado, para receber a indenização a que faz jus, só terá que comprovar o contrato de hospedagem e o dano dele resultante. No entanto, o hospedeiro poderá excluir sua responsabilidade se: a) celebrar convenção com o hóspede de não indenizar alguns pertences, desde que não seja abusiva; b) provar que o prejuízo que o hóspede sofreu poderia ter sido evitado; por ter ocorrido força maior ou caso fortuito, como escalada, invasão da casa, bala perdida, roubo a mão armada; c) houver culpa do hóspede que deixou, por exemplo, a porta aberta, esqueceu a carteira na piscina, etc. Esse depósito é remunerado e está incluído no preço da hospedagem” (BASTOS, 2006, p. 3/4).


Já o Código de Processo Civil disciplina em seus artigos 901, parágrafo 1° e 904 a forma de processamento dá referida prisão, que se dá dentro de um processo principal, Segundo Bittencourt, pelo Código de Processo Civil a prisão do depositário infiel obedece às normas que regulam a ação judicial, portando a pena só pode ser imposta àquele que se submete à ação, dispensando assim uma ação própria de depósito, como descreve o catedrático processualista Nelson Nery Junior:


“A prisão civil de depositário só pode ser ordenada em ação de depósito. Com ampla oportunidade de defesa e depois do julgamento da causa. A prisão do depositário infiel é uma exceção à regra geral que veda prisão civil e, evidentemente, deverá estar condicionada ao direito de ampla e plena defesa por parte do depositário apontado como infiel; a constrição à liberdade individual só pode ser imposta, em forma definitiva, através de procedimento judicial próprio. Assim, equivocada a decisão que afasta a ação de depósito como instrumento processual ao indiciamento do depositário infiel, sujeito à cominação de prisão e pretendendo que se insira tal providência ao espaço limitado dos autos de execução (ADCOAS 77256)”. (NERY JÚNIOR; NERY, 2005, p.466).


 A súmula 619 do STF, já revogada pelo próprio Tribunal Supremo, disciplinava que a prisão do infiel depositário poderia ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, não havendo assim necessidade da propositura de ação de depósito independente a fim de prover a prisão de tal depositário (Súmula 619 do STF de 17 de outubro de 1984 e revogada em 08 de dezembro de 2008 em virtude da decisão do Pleno do STF na não prisão do depositário infiel).


4 – O DECRETO- LEI 911/69


O Decreto – Lei 911 de 1° de outubro de 1969 cria a figura jurídica da alienação fiduciária, que foi criada a fim de amparar as relações de compra e venda de bens móveis, sendo mais tarde amplamente utilizada para compra e venda de veículos automotores. Nos dizeres de Buzaid:


“A alienação fiduciária consiste na transferência feita, pelo devedor ao credor, da propriedade resolúvel e da posse indireta de um bem como garantia do seu débito, resolvendo-se o direito do adquirente com o pagamento da dívida garantida. Trata-se, portanto, de um negócio uno, embora composto de duas relações jurídicas, uma obrigacional, que se expressa no débito contratado, e outra real, representada pela garantia, que é um ato de alienação temporária ou transitória, uma vez que o fiduciário recebe o bem não para tê-lo como próprio, mas com o fim de restituí-lo com o pagamento da dívida” (BUZAID, 1993, p. 58).


Nesse tipo de transação cria-se uma relação de confiança entre o fiduciante e o fiduciário, sendo que o primeiro, dono da coisa, aliena a mesma ao segundo que tem o dever de pagá-la no prazo fixado por ambos ou restituir o objeto pretendido.


Assim, caso o bem alienado não seja encontrado ou não se ache em poder do fiduciante por ocasião da busca, o fiduciário poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, obedecido, então, o estabelecido no art. 4o do Dec.-Lei 911/69.


Artigo 4° do Dec. – Lei 991/69:


“Art. 4o. Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil.”


Convertida a ação de busca em ação de depósito o fiduciário, agora réu, fica obrigado em vinte e quatro horas entregar a o bem ou pagar o equivalente em dinheiro. Caso o réu não faça no prazo fixado, o juiz irá expedir, após a sentença, mandado para entrega do bem.


Como em muitos casos as instituições financeiras se frustraram em relação a seus contratos de alienação fiduciária, uma vez que, o derradeiro instrumento jurídico é o ajuizamento da ação de depósito para reaver ou bem ou ter a quantia paga por ele, permitindo assim o fiduciante não adimplir a dívida nem retornar o bem, muito se falou em equiparação do devedor fiduciário ao fiel depositário do Código Civil. Caso houvesse a referida equiparação poderia o reclamante, fiduciante, ajuizar pedido de prisão, caso não recebesse sua divida ou não tivesse seu bem readquirido.


Essa equiparação, embora tenha sido discutida e aplicada nos tribunais do país, mostra-se totalmente estranha ao ordenamento jurídico nacional, sendo que a relação entre devedor fiduciário e depositário do Código Civil é plenamente diferente. Para que alguém seja considerado depositário é necessário que haja um contrato de depósito nos termos do Código Civil, fato que não ocorre na alienação fiduciária.


Orlando Gomes segue a mesma linha de raciocínio, dizendo que “o devedor-fiduciante não é, a rigor, depositário, pois não recebe a coisa para guardar, nem o credor-fiduciário a entrega para esse fim, reclamando-a quando não mais lhe interesse a custódia alheia” (MAZZUOLI, 2003), como anota o jurista Mazzuoli:


“Não resta dúvida que o devedor-fiduciante não é depositário. A ele não se atribui o dever de custódia do bem, muito menos o dever de restituí-lo quando exigido. Ao depositário a coisa é dada com a obrigação formal de devolvê-la, obrigação esta, que inexiste no caso da alienação fiduciária que se constitui mera garantia de mútuo. Além disso, é ainda de considerar-se que na alienação fiduciária não existe, efetivamente, a confiança que o depositante deposita no depositário de um contrato genuíno de depósito, de modo que o devedor-fiduciante jamais pode ser, por esse motivo, considerado infiel em caso de descumprimento do contrato. Onde não há confiança não há infidelidade” (MAZZUOLI, 2003, p. 42).


Como já demonstrado, não há que se confundir a figura do depositário infiel com a do devedor-fiduciante, mesmo porque detêm características totalmente diferentes e bem definidas na lei. Para evitar discussões e o acúmulo de processos versando sobre a mesma questão, a possibilidade de equiparação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), firmou suas decisões e posicionamentos, sendo maioria contrária a tal equiparação, em face de nova ordem constitucional de 1988, como ensina o Ministro do referido tribunal, Min. Vicente Leal:


“Segundo a ordem jurídica estabelecida pela Carta Magna de 1988, somente é admissível prisão civil por dívida nas hipóteses de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e de depositário infiel (CF, art. 5°, LXVII). O devedor-fiduciante que descumpre a obrigação pactuada e não entrega a coisa ao credor-fiduciário não se equipara ao depositário infiel, passível de prisão civil, pois o contrato de depósito, disciplinado nos arts. 1.265 a 1.287 (17), do Código Civil, não se equipara, em absoluto, ao contrato de alienação fiduciária. A regra do art. 1o do Decreto Lei n. 911/69, que equipara a alienação fiduciária em garantia ao contrato de depósito, perdeu a sua validade jurídica em face da nova ordem constitucional” (HC 3.206-SP, 6a Turma do STJ, por maioria, DJ 05.06.95. p. 16.686.).


Nesse sentido o STJ firmou o pleno entendimento que não há que se falar em equiparação de devedor oriundo de contrato fiduciário e depositário oriundo de contrato de depósito, trazido pelo Código civil, tanto no de 1916 quanto o de 2002. A jurisprudência da 6a Turma do STJ orienta-se no sentido de que, na alienação fiduciária, torna-se incabível a prisão civil do devedor-fiduciante, por não estar o mesmo equiparado a depositário. Recurso Provido (HC 4.319-GO, 6a. Turma do STJ, DJ 21.08.95. p. 25.408).


Não há qualquer previsão no texto constitucional, nem mesmo em qualquer outro diploma legal, autorizadora da prisão do devedor-fiduciante e, com a interpretação restritiva do texto constitucional, o que se demonstra ser o correto, não resta margem para amparar a restrição da liberdade nos casos de alienação fiduciária. Desta forma, por mais que se fale em interpretação constitucional, não se pode chegar à conclusão de que a Carta Maior autoriza a referida equiparação, sendo assim, não uma interpretação, mas sim uma leitura errônea do texto magno. De acordo com Hesse, só tem sentido a interpretação se consolidar a Constituição, preservando sua força normativa, pois:


“[…] a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação […]. A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente” (HESSE, 1991, p. 22/23).


Entretanto, ao contrário do que entendia o STJ, o Supremo Tribunal Federal (STF), entendia ser possível a equiparação do devedor fiduciário ao devedor de um contrato de depósito, afirmando que a Constituição Federal de 1988 teria recepcionado o Decreto – Lei n° 911/69, inadmitindo as posições do STJ e permitindo-se assim a prisão civil em caso de inadimplemento deste mesmo devedor. Ao longo do tempo varias discussões acerca do assunto chegaram ao excelso tribunal que depois de reiterados posicionamentos favoráveis à equiparação, reviu seu posicionamento a respeito do assunto, como é o caso do RE nº 466.343-SP, como veremos adiante neste trabalho. Evidenciando o entendimento de equiparação entre o Dec. Lei 911/69 e o depositário oriundo de contrato de deposito dado pelo STF, anota o professor José Guilherme B. C. Pinto da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – Rio):


“Em pesquisa de jurisprudência no sítio do STF, comprova-se que desde a promulgação do Decreto-Lei nº 911/69 aquele tribunal adotou entendimento admitindo a equiparação realizada entre alienação fiduciária em garantia e depósito. V., a respeito, RE 73.220-DF, HC 51.186-SP, RHC 51.934-AL, HC 51.969-SP, entre outros julgados, todos da década de 1970. Destaca-se o resultado do julgamento proferido no RE 69.404-SP, relatado pelo Min. Aliomar Baleeiro, que inadmitiu o recurso por reconhecer que a impossibilidade de equiparação do adquirente fiduciário ao depositário infiel, com base na natureza de cada um dos contratos, consiste em interpretação razoável da lei, realizada pelo tribunal recorrido” (PINTO, 2009).


5 – A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL FRENTE AOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS: CONFLITO DE HIERARQUIA DE NORMAS


Nos últimos anos é constante na doutrina e na jurisprudência dos diversos tribunais nacionais a discussão acerca da inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em face da internalização de certos tratados internacionais que versam sobre direito humanos. É o caso da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, sendo que o primeiro foi assinado em 1969 em San José na Costa Rica e incorporado ao nosso ordenamento jurídico positivo pelo Decreto legislativo n° 678 de 06 de novembro de 1992 e o segundo foi assinado em 16 de Dezembro de 1966 na Assembléia Geral das Nações Unidas e incorporado ao nosso sistema de direito positivo interno em 24 de janeiro de 1992, movidos pelos ideais de supervalorização dos Direitos e Garantias Fundamentais trazidos na Constituição Federal promulgada em 05 de outubro de 1988.


Os dois tratados internacionais mencionados versam sobre Direitos humanos fundamentais e foram ambos internalizados de forma prescrita na Constituição federal de 1988, passando assim a fazer parte do ordenamento pátrio.


5.1 – ASPECTOS RELEVANTES DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL


Desde a edição da Declaração do Homem de 1789 na França, os Direitos Humanos pactuados no âmbito internacional vêm repercutindo de forma decisiva na evolução dos direitos e garantias fundamentais nos Estados democráticos de Direito. Declarações como a do século XVIII ganharam maior notabilidade e força normativa no século XX, após a segunda guerra mundial (1939 – 1945), onde os direitos fundamentais forma vítimas de regimes totalitários sangrentos e discriminadores.


Nesta linha, podemos ressaltar dois tratados internacionais que têm importância significativa em nosso trabalho, o Pacto de São José da Costa Rica e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ambos internalizados no ordenamento jurídico na década de 90.


Desta forma os tratados internacionais que tratam de direitos humanos revelam-se de grande importância nos ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados democráticos de direito em todo mundo. Dão um caráter global à importância da valorização da pessoa humana, como um bem superior a todos os outros, que deve ser protegido em qualquer lugar do mundo e ser hegemônico em quaisquer ordenamentos, como acentua Celso Lafer:


“O valor da pessoa humana, enquanto conquista histórico- axiológica, encontra a sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem. È por essa razão que a análise da ruptura – o hiato entre o passado e o futuro, produzido pelo esfalecimento dos padrões da tradição ocidental – passa por uma análise da crise dos direitos humanos, que permitiu o estado totalitário de natureza” (LAFER, 1988, p. 118).


Assinado em 1969 em San José da Costa Rica, o Pacto de São José da Costa Rica, mostra-se o mais importante tratado internacional sobre direitos humanos, uma vez que, traz em seu texto de forma explicita e contumaz dispositivos que valorizam a dignidade humana e a prevalência de direitos humanos de primeira ordem. Incorporado ao ordenamento jurídico pelo decreto legislativo n° 678, o referido tratado preocupa-se com valorização da pessoa humana e com as liberdades individuais, como se depreende de seu preâmbulo:


“Os Estados Americanos signatários da presente Convenção, reafirmando seu propósito de consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais. Reconhecendo que os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados Americanos (…)” (preâmbulo do Tratado Internacional de San José da Costa Rica).


Uma das grandes garantias trazidas pelo tratado internacional de San José da Costa Rica é a proibição expressa à prisão civil por divida, ressalvando os casos de prisão por divida de alimentos, a qual o tratado se refere como plenamente possível. Desta forma menciona o Pacto humanitário: “Artigo 7º – Direito à liberdade pessoal: 7 – Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente, expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.


Como podemos observar o tratado internacional é expresso e categórico ao dizer que: “ninguém será detido por dividas”; esta é a regra, porém, o mesmo item sete do artigo 7° mostra a exceção a esta regra, afirmando: “Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente, expedidos em virtude de inadimplemente de obrigação alimentar”. Contudo, nem o artigo, nem o item e nem em nenhum lugar do tratado se menciona a possibilidade de outro tipo de prisão civil, como é o caso da prisão do depositário infiel, positivada no Direito brasileiro na lei maior em seu artigo 5° inciso LXVII, mostrando – se assim uma incongruência entre os ditames do Pacto e as prescrições constitucionais pátrias.


Na mesma linha encontra-se o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, internalizado no ordenamento jurídico nacional também na década de 90, que se mostra veementemente contra a prisão oriunda do não cumprimento de uma obrigação contraída por um contrato.


O referido acordo tem por fim maior, assim como o Pacto de São José da Costa Rica, a reafirmação da Dignidade da Pessoa Humana e a Garantia das Liberdades Individuais e os Direitos Políticos, procurando levar os estados signatários ao cumprimento efetivo das regras postas por ele, como observamos no preâmbulo do referido acordo:


“Considerando que, em conformidade com os princípios proclamados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, reconhecendo que esses direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana, Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis e políticas e liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado, a menos que se criem as condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis e políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais, considerando que a Carta das Nações Unidas impõe aos estados a obrigação de promover o respeito universal e efetivo dos direitos e das liberdades da pessoa humana (…)” (Preâmbulo do Tratado Internacional sobre Direitos Civis e Políticos).


Como já foi anotado o depósito se dá por um contrato entre o depositante e o depositário, em que o segundo se compromete a guardar um bem por um determinado tempo e restituí-lo quando exigido pelo depositante ou no prazo fixado pelo contrato. Como o tratado veda a prisão oriunda de um descumprimento contratual, em seu artigo 11: “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”, não se pode falar em prisão do depositário que ao fim do contrato ou requerido pelo depositante não entrega o bem nem o restitui, se adotarmos o presente acordo como norma jurídica fundamental.


5. 2 – FORMA DE INTERNALIZAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL


Assim como as normas infraconstitucionais pátrias (lei complementar, ordinária, decretos, medidas provisórias etc.), os tratados internacionais devem obedecer a um devido processo de elaboração, ratificação e legislativo de internalização. Nesse sentindo temos o objetivo de mostrar como se forma um tratado internacional e como ele passa a ter validade no ordenamento jurídico brasileiro, sabendo que, o tramite legislativo constitucional pode ser diferente em se tratando de tratados internacionais que tratam de direitos humanos, como veremos a seguir.


5.2.1. A formação e internalização de um tratado internacional no ordenamento jurídico brasileiro


Sumariamente, são duas as formas de origem de um tratado internacional, sendo a primeira delas a aprovação do tratado por uma instância de organização internacional e a segunda pela assinatura do tratado por sujeitos de direito internacional público. Diante dessas hipóteses tem-se a negociação, conclusão e assinatura dos acordos internacionais. Nos dizeres de Flávia Piovesan (1997, p. 77), “a assinatura do tratado, via de regra, indica tão somente que o tratado é autêntico e definitivo”. Nesta linha de raciocínio segue a autora ao analisar os referidos acordos internacionais em relação à Convenção de Viena: “o consentimento do Estado em obrigar-ser por um tratado pode ser expresso mediante a assinatura, trocas de instrumentos constituintes do tratado, ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, ou através de qualquer outro meio acordado (Arts. 11 a 17 da Convenção de Viena)” (PIOVESAN, 1997, p. 78/79).


Assim, a Constituição Federal da República do Brasil preceitua em seu artigo 84, VIII, ser competência exclusiva do Presidente da República a celebração de tratados internacionais; este então é o primeiro passo, a celebração do contrato, convenção ou ato internacional; posteriormente o acordo assinado pelo chefe do executivo nacional passa pela ratificação do congresso nacional, como prevê o artigo 49, I da Carta Maior de 1988, tendo assim competência exclusiva o parlamento nacional para decidir sobre a conveniência e viabilidade do acordo assinado pelo Presidente. Posterior a isso o Congresso Nacional edita um Decreto legislativo, demonstrando a ratificação do tratado. Caso não tenha tido prévia celebração, ocorrerá a troca ou depósito do instrumento de ratificação, feito pelo poder executivo e por fim a promulgação do tratado ou acordo por decreto presidencial, que deverá se publicado no diário oficial, devendo o texto ser publicado no idioma oficial do país, isto é, em português; depois disso o acordo internacional terá paridade com as leis infraconstitucionais, em especial com as leis ordinárias (LENZA, 2008, p.436/438).


Este trâmite legal é previsto para os tratados comuns, isto é, para aqueles tratados que não tratam de Direitos Humanos, mas sim de acordos comerciais, ambientais e outros, uma vez estar previsto o trâmite legislativo dos tratados internacionais que tratam de Direitos humanos no parágrafo 3° do artigo 5 ° da Constituição Federal, como veremos a seguir.


5.2.2. A internalização de Tratados internacionais que tratam de Direito Humanos:


O artigo 4°, II da Constituição Federal de 1988 deixa clara a forma pela qual a República Federativa do Brasil rege suas relações internacionais no que tange aos Direitos Humanos. Assim reza o referido inciso “… prevalência dos direitos humanos” (Artigo 4°, II da CF).


Por este motivo de prevalência dos direitos humanos e pela redação um tanto vaga do parágrafo 2° do artigo 5° da Constituição Pátria que preceitua acerca dos tratados internacionais, in fine “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” (artigo 5° parágrafo 2° CF.), a Emenda Constitucional 45 de Dezembro de 2004, acresceu o parágrafo 3° ao artigo 5° da Carta Magna, a fim de fixar o devido processo legislativo de internalização dos tratados internacionais no ordenamento jurídico nacional e de sanar quaisquer dúvidas relativas à hierarquia dos referidos acordos internacionais, dando aos mesmos, caráter constitucional após sua votação em quorum qualificado, equiparando-se à emenda constitucional. Assim afirma o referido dispositivo constitucional:


“Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. (Artigo 5° parágrafo 3 ° da Constituição federal de 05 de outubro de 1988).


Dessa forma ao contrário dos tratados internacionais que versam sobre assuntos diversos e tem um trâmite constitucional tradicional, como já fora citado neste artigo, os tratados internacionais que tratam de direitos humanos podem ser aprovados por um quorum qualificado de 3/5 em votação bicameral pelas duas casas legislativas e entrar no ordenamento jurídico com status de emenda constitucional, isto é, após o processo de votação e promulgação, tais tratados passam a ter hierarquia constitucional.


Nesta linha, o parágrafo 2° do artigo 5° da Carta Magna de 1988 se reporta a uma cláusula de abertura, que permite aos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos ter uma hierarquia materialmente constitucional, isto é, embora não estejam literalmente escritos no texto magno, são constitucionais por seu texto (conteúdo material) estar de acordo com os preceitos consagrados no texto maior, ou seja, a defesa da dignidade humana e a prevalência dos Direitos humanos, sendo uma forma diferente da trazida pelo § 3° e bastante defendida pela doutrina nacional.


Já o parágrafo 3° do mesmo artigo 5° da Constituição Federal Brasileira se reporta ao ingresso formal dos referidos tratados internacionais humanistas, tendo em vista a constante discussão doutrinária acerca da abrangência do parágrafo 2° do mesmo artigo, anteriormente citado e denotado de forma mais clara. Assim sendo, para sanar as dúvidas em relação à hierarquia e a (in)compatibilidade dos tratados internacionais que tratam de direitos humanos em relação à Lei Maior, o referido parágrafo 3° resolveu da caráter constitucional a estes tratados desde que tramitem como emenda constitucional. Assim preceitua o Professor Celso Lafer:


O novo parágrafo 3° do Artigo pode ser considerado como uma lei interpretativa destinada a encerrar as controvérsias jurisprudenciais e doutrinarias suscitadas pelo parágrafo 2° do artigo 5°. De acordo co a opinião doutrinaria tradicional, uma lei interpretativa nada mais faz do que declarar o que preexiste, ao clarificar a lei existente. (…)


(…) Explico-me observando que entendo, por força do parágrafo 2° do artigo 5°, que as normas destes tratados são materialmente constitucionais. Integram como diria Bidart Campos, o bloco de constitucionalidade, ou seja, um conjunto normativo que contém disposições, princípios e valores que, no caso, em consonância com a Constituição de 1988, são materialmente constitucionais, ainda que estejam fora do texto da Constituição documental. O bloco de constitucionalidade é, assim, a somatória daquilo que se adiciona à Constituição escrita, em função dos valores e princípios nela consagrados (…), com a entrada em vigor da emenda constitucional 45 não são mais meras leis ordinárias, mas podem ingressar com hierarquia constitucional, (…), (LAFER, 2005, p. 15/18).


Neste sentido entende a doutrina que a coexistência dos parágrafos supracitados (parágrafos 2° e 3° do artigo 5°) é perfeitamente pacifica, uma vez que, a promulgação do último não revogou o primeiro, como preceitua a professora Flávia Piovesan:


“A interpretação sistemática da Constituição, de forma a dialogar os parágrafos 2° e 3° do artigo 5°, já que o último não revogou o primeiro, mas deve, ao revés, ser interpretado à luz do sistema constitucional. A lógica e racionalidade material que devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos. A necessidade de evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica e por fim a teoria geral da recepção do direito brasileiro” (PIOVESAN, 2006, p. 71/74).


Em suma, existem duas formas de internalização dos tratados internacionais que tratam de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio, sendo que a primeira delas é a inserção material, oriunda da abertura dada pelo parágrafo 2° do artigo e a segunda é a formal trazida pelo parágrafo 3° do mesmo artigo 5°, acrescentado ao Texto Magno pela Emenda Constitucional 45 de 2004, como disciplina Flávia Piovesan, afirmando a existência de duas categorias de tratados internacionais:


“Vale dizer, com advento do parágrafo 3° do artigo 5° surgem duas categorias de tratados internacionais de proteção de direitos humanos: a) os materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente constitucionais. Frisa-se: todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do parágrafo 2° do artigo 5°. Para além de serem materialmente constitucionais, poderão, a partir do parágrafo 3° do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal” (PIOVESAN, 2006, p. 71/74).


5.3 – TEORIAS SOBRE A HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS SOBRE DIREITOS HUMANOS:


Depois de reiterados debates na doutrina e na jurisprudência (RE 466. 343; 349. 703 e HC 85. 585) acerca da posição dos tratados internacionais no ordenamento jurídico, podemos destacar que existem quatro correntes acerca da hierarquia dos tratados que versam sobre Direitos Humanos, sendo elas: a hierarquia supraconstitucional; hierarquia constitucional; hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, e a paridade hierárquica entre os tratados internacionais e lei ordinária federal. Nesse sentido vale esclarecer as referidas correntes.


5.3.1 – Hierarquia supraconstitucional:


Esta corrente defende que os tratados internacionais que tratam dos Direitos Humanos estão acima de qualquer Constituição de qualquer Estado signatário. Desta forma, para os que aderem à referida corrente, os acordos internacionais humanistas teriam a força revogadora quando seus preceitos conflitarem com outros inseridos na Carta Magna, assim sendo, nem mesmo uma Emenda Constitucional poderia revogá-los ou suprimi-los.


Embora os Direitos Humanos sejam hegemônicos em todos os Estados democráticos modernos, a presente corrente torna-se inviável ao ordenamento jurídico nacional, que está fundado na supremacia formal e material da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico. Caso tal tese fosse referendada anularia a possibilidade de controle de constitucionalidade sobre tais diplomas internacionais (MENDES, COELHO e BRANCO, 2008, p. 682).


O Supremo Tribunal Federal já enfrentou o assunto e assim preceituou:


“Assim como não o afirma em relação às leis, a Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos inequívocos seus como os que submetem a aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição (…) e aquele que, em conseqüência, explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (CF, art. 102, II, b)” (RHC 79.785/RJ Rel. Sepúlveda Pertence. DJ de 22 de novembro de 2002).


Em síntese, os poderes públicos instituídos no Brasil estão submetidos ao regime constitucional quando atuam em relações internacionais, devendo celebrar acordos que estejam de acordo com a Carta Magna pátria, respeitando seus aspectos formais e materiais, principalmente no que tange aos direitos fundamentais (MENDES, COELHO e BRANCO, 2008, p. 693).


5.3.2 – Hierarquia Constitucional:


Esta tese defende o status constitucional aos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos, afirmando ser o § 2° do art. 5° da Constituição da República uma cláusula aberta de recepção, que permitiria aos referidos diplomas terem uma constitucionalidade material e uma subseqüente aplicabilidade imediata, como reza o § 1° do art. 5° da Lei Maior, dispensando quaisquer intermediações legislativas. Esse entendimento é defendido principalmente pela professora Flávia Piovesan e os professores Antonio Augusto Trindade e Valério Mazzuoli, que pregam serem constitucionais os dispositivos que mesmo não tendo um rito preordenado (formalmente constitucionais), assim são por conterem matérias constitucionais disciplinadas em seu teor.


Assim sendo, de acordo com essa teoria, eventuais conflitos entre os tratados internacionais humanistas e a Constituição Federal deveriam ser solucionado de acordo com a norma mais favorável à vítima, que seria titular do Direito, tarefa esta realizada pelos tribunais nacionais, que devem aplicar hermenêutica constitucional ao caso prático (PIOVESAN, 2003, p. 44/56).


No Direito comparado as Constituições de Argentina e Venezuela estabelecem como constitucionais e de eficácia imediata os diplomas que versam sobre Direitos humanos, em seus artigos 75 e 23 respectivamente, que assim rezam:


Art. 75, n° 22 da Constituição Argentina: “La Declaración Americana de los Derechos y Deberes Del Hombre; La Declaración Universal de Derechos Humanos; La Convención Americana sobre Derechos Humanos; Ele pacto Internacional de Derecho Econômicos, Sociales y Culturales; El Pacto Internacional de Derecho Civiles y Políticos y su protocolo Facultativos; La Convención sobre Prevención y La Sancióndel Delito de Genocídio; La Convención Internacional sobre La Eliminación de todas lãs formas de Discriminación Racial; La Convención sobre La Eliminación de todas las formas de Discriminación contra la Mujer; la Convención contra La Tortura y outros tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; La Convención sobre los Derechos Del Niño: em las condiciones de su vigência, tienen jerarquia constitucional, no derogam artículo alguno de La primera parte de esta Constituición y deben entenderse complementários de los derechos y garantias por ella reconocidos”


Art. 23 da Constituição Venezuelana: “Los tratados, pactos y convenciones relativos a derechos humanos, suscritos y ratificados por Venezuela, tienen jerarquía constitucional y prevalecem en el orden interno, em la medida em que contengan normas sobre su goce y ejerrcicio más favorables a las establecidas por esta Constituición y en las leyes de la República y son de aplicacion inmediata y directa por los tribunales y demás órganos del Poder Público.” (MENDES, COELHO e BRANCO, 2008, p. 695).


Outras constituições também estabelecem tal hierarquia aos referidos diplomas, como é o caso da Constituição holandesa de 1983 em seu art. 94; a Constituição da Federação Russa de 1993 em art. 15 n° 4: a francesa de 1958 no art. 55 e a paraguaia de 1992 em seus artigos 137 e 141; demonstrando a preocupação desses Estados na supremacia dos Direitos Humanos em relação às leis infraconstitucionais.


O fato é que a tendência do pensamento constitucional em relação aos diplomas internacionais que tratam dos Direitos Humanos influenciou o Parlamento brasileiro a promulgar a emenda constitucional n° 45 que acrescentou o § 3 ° ao Art. 5° da Lei Maior, que da equivalência constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos, desde que aprovados com observância ao procedimento de aprovação das emendas constitucionais.


Em sentido oposto ao status constitucional às referidas convenções vale ressaltar o posicionamento dos eminentes doutrinadores Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco e o Ministro presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes, que assim preceituam:


“Apesar da interessante argumentação proposta por essa tese, parece que a discussão em torno do status constitucional dos tratados de direitos humanos foi, de certa forma, esvaziada pela promulgação da Emenda constitucional n° 45/2004, a reforma do judiciário (oriunda do projeto de emenda constitucional n° 29/2000), a qual trouxe como um de seus estandartes a incorporação do § 3° ao Art. 5°, com a seguinte disciplina: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (MENDES, COELHO e BRANCO, 2008, p. 696).


Em linha contrária aos eminentes juristas, entendemos serem constitucionais todos tratados internacionais que tratam de direitos humanos e que não sejam contra os Direitos e Garantias Fundamentais contidos na Constituição Federal. Então os tratados internalizados antes da Emenda 45/2004, que não obedeceram ao trâmite do § 3° do art. 5°, devem ser considerados constitucionais pelo seu conteúdo (constitucionalidade material); existindo assim duas classes de tratados internacionais materialmente constitucionais e os formalmente e materialmente constitucionais, ambos com hierarquia constitucional. Dessa forma não haveria uma revogação tácita do § 2° do art. 5° pelo § 3° do mesmo artigo, mas sim o estabelecimento de um rito formalmente constitucional que de forma alguma exclui os tratados já internalizados por serem materialmente constitucionais.


Seguindo este entendimento, a segunda parte do inciso LXVII do art. 5° da Constituição Nacional de 1988, que preceitua a possibilidade de prisão civil do depositário infiel, estaria revogada de forma tácita, uma vez que, o art. 7° item 7 do Pacto de São José da Costa Rica, internalizado pelo ordenamento nacional em 1992, traz apenas a possibilidade de prisão do devedor de alimentos, nada mencionando sobre o infiel depositário. Esclarecendo o aparente conflito entre norma interna e externa, anota Cançado Trindade:


“Em um sistema integrado como o da proteção dos direitos humanos, os atos internos dos Estados estão sujeitos à supervisão dos órgãos internacionais de proteção quando, no exame dos casos concretos, se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de direitos humanos. As normas internacionais que consagram e definem claramente um direito individual, passível de vindicação ante um tribunal ou juiz nacional, são diretamente aplicáveis. Além disso, os próprios tratados de direitos humanos significativamente consagram o critério da primazia da norma mais favorável às vítimas, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno” (TRINDADE, 1996, p. 54)


O conflito entre o que diz o acordo internacional e o texto originário da Constituição é facilmente resolvido levando-se em conta a aplicação do mais favorável ao titular do direito, ou seja, pela extinção da prisão em caso deste tipo de dívida civil. Em suma, o texto constitucional que afirma a possibilidade da prisão civil do devedor infiel poderia ser perfeitamente revogado por emenda constitucional, que não estaria ferindo o § 4° do art. 60 da Constituição Federal, não abolindo uma garantia ou um direito fundamental e sim alargando esse rol de direitos, e deixaria assim de estar no texto constitucional, minimizando as controvérsias acerca da discussão sobre a inconstitucionalidade da prisão civil do infiel depositário.


Face à supremacia dos Direitos humanos e do constante compartilhamento feito entre Constituição Federal e convenções internacionais, entendemos não ser mais compatível a prisão civil do depositário infiel com modelo de Estado Democrático de Direito, como ensina o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Melo:


“A prisão civil do depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos assegurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos humanos”. (Celso de melo, HC 87.585/TO de 2008).


Com fulcro em tal entendimento, nota-se inconstitucional qualquer lei ordinária que prevê a possibilidade de prisão civil do depositário infiel, face a constitucionalidade dos tratados internacionais que são contrários a tal medida coercitiva.


5.3.2 – Hierarquia de lei ordinária:


Os que defendem esta tese, afirmam que os tratados internacionais de forma geral equivalem às leis ordinárias, não podendo de forma alguma confrontar-se com a Constituição Federal, por serem infraconstitucionais e inferiores à Carta Maior segundo a pirâmide de Kelsen[2].


Durante certo tempo o Supremo Tribunal Federal entendia estarem no mesmo patamar hierárquico as leis ordinárias e os tratados internacionais em geral (incluindo os que tratam dos Direitos Humanos), como nota-se no RE 80.004/SE, cujo relator era o Ministro Cunha Peixoto, que teve sua tese ratificada pelo voto do douto Ministro Leitão de Abreu:


“(…) Como autorização dessa natureza, segundo entendo, não figura em nosso direito positivo, pois que a Constituição não atribuiu ao judiciário competência, seja para negar aplicação a leis que contradigam tratado internacional, seja para anular, no mesmo caso, tais leis, a conseqüência, que me parece inevitável, é que os tribunais estão obrigados, na falta de título jurídico para proceder de outro modo, a aplicar as leis incriminadas de incompatibilidade com tratado. Não se diga que isso equivale a admitir que a lei posterior ao tratado e com ele incompatível reveste eficácia revogatória deste, aplicando-se, assim, para dirimir o conflito, o principio “Lex posterior revogat priori”. A orientação, que defendo, não chega a esse resultado, pois, fiel à regra de que o tratado possui forma de revogação própria, nega que este, em sentido próprio, revogado pela lei. Conquanto não revogado pela lei que o contradiga, a incidência das normas jurídicas constantes do tratado é obstada pela aplicação, que os tribunais são obrigados a fazer, das normas legais com aqueles conflitantes. Logo, a lei posterior, em tal caso, não revoga, em sentido técnico, o tratado, senão que afasta a aplicação. A diferença está em que, se a lei revogasse o tratado, este não voltaria a aplicar-se, na parte revogada, pela revogação pura e simples da lei dita revogatória. Mas como, a meu juízo, a lei não o revoga, mas simplesmente afasta, enquanto em vigor, as normas do tratado com ela incompatíveis, voltará ele a aplicar-se, se revogada a lei que impediu a aplicação das prescrições nele consubstanciadas.” (ABREU, 1977, HC 80.004/SE).


Com a vigência da Constituição de 1988 este entendimento foi explicitado em 1995 no HC 72.131/RJ, cujo relator era o Ministro Moreira Alves. Enfrentando esta situação entenderam os ínclitos julgadores do Pretório Excelso que os tratados internacionais entravam no ordenamento pátrio com hierarquia ordinária e um eventual conflito seria resolvido pelo critério temporal, isto é, a lei posterior revogaria a anterior (MENDES, COELHO e BRANCO, 2008, 697/698).


Embora tal entendimento seja relevante do ponto de vista jurídico, nos parece um tanto equivocado, uma vez que, seguindo os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e da preponderância dos direitos humanos em qualquer ordenamento jurídico, não é razoável colocar no mesmo nível um tratado comercial que trata da entrada de sapatos no comércio nacional e outro que trata de princípios fundamentais inerentes à natureza humana.


Dessa forma, os tratados que tratam de direitos humanos claramente estão, a nosso ver, acima de outros tratados e superiores às leis ordinárias nacionais. Este entendimento de superioridade foi consubstanciado pelo advento da emenda constitucional n° 45/2004, que adicionou o § 3° ao art. 5°, visto que, uma vez seguido o processo legislativo equivalente às emendas constitucionais os referidos diplomas passam a fazer parte do texto, podendo até ser incluídos, a nosso ver, no rol de cláusulas pétreas, visto que, eventual emenda nesse sentido não estará revogando direitos fundamentais e sim aumentando esse rol.


5.3.3 – Hierarquia Supralegal (supralegalidade):


Este entendimento ficou consubstanciado após o julgamento do RE 466.343 e RE 349.703 pelo Supremo Tribunal Federal, enfrentando a discussão sobre a inconstitucionalidade da prisão civil para o inadimplente em contratos de alienação fiduciária em garantia. A referida tese, desenvolvida pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, posiciona os tratados internacionais que tratam de direitos humanos num plano infraconstitucional, porém acima das leis ordinárias; dessa forma, os referidos diplomas estariam abaixo da Lei Maior (Constituição da República) e acima das demais leis ordinárias.


De acordo com este entendimento, os tratados internacionais não poderiam afrontar a constituição, sob pena de estarem eivados de inconstitucionalidade, contudo, submetem a lei ordinária a seus mandamentos, estabelecendo aí, segundo o ministro Gilmar Mendes um controle de convencionalidade, caso a lei ordinária o desobedeça. Para o Ministro Gilmar F. Mendes, equiparar tratados internacionais sobre direitos humanos e lei ordinária seria subestimar a proteção da pessoa humana (LENZA, 2009, p. 443/444).


No âmbito do direito comparado, podemos citar esta atribuição na Constituição da Alemanha que, de forma expressa, reza em seu artigo 25 que “as normas do Direito Internacional Público constituem parte integrante do direito federal. Elas prevalecem sobre as leis e produzem diretamente direitos e deveres para os habitantes do território nacional.” Tal entendimento também é visto nas constituições da França de 1958 (art.55) e na Constituição da Grécia de 1975 (art.28), (MENDES, COELHO e BRANCO, 2008 p. 703/704).


Nesse sentido, o inciso LXVII do Art. 5° da Constituição Federal de 1988, com a ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos humanos (pacto da San José da Costa Rica – art. 7, 7), não foi revogado, mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante em relação às leis infraconstitucionais que disciplinam a matéria, como é o caso do art. 652 do Código Civil e do Decreto – Lei n° 911/1969 (LENZA, 2009, p. 445).


Dessa forma, os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil antes da Emenda Constitucional 45/2004 têm o caráter supralegal, enquanto os ratificados posteriormente podem seguir o iter previsto no referido parágrafo. Segundo Mendes, o referido entendimento não exclui a possibilidade de o Congresso Nacional internalizar os diplomas anteriores à Emenda 45/2004, que passariam a ser formalmente constitucionais.


Embora seja extremante considerável a posição adotada pela Suprema Corte Nacional, nos parece frágil no que tange à segurança jurídica, uma vez que, a supralegalidade não terá sustentáculo constitucional em muitos casos; a título de exemplo, a prisão civil do depositário infiel, embora tenha um tratado internacional supralegal que coloque a impossibilidade de prisão acima da lei ordinária, o mesmo mandamento não possui fulcro constitucional, uma vez que o inciso LXVII do art. 5° não foi revogado e continua inalterável. Valendo ressaltar, a nosso ver, a constitucionalidade de tais acordos internacionais sobre direitos humanos.


5.4 – POSIÇÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ACERCA DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL:


Como já fora anotado anteriormente o Supremo Tribunal Federal entendia pela constitucionalidade da prisão civil do infiel depositário, tanto nos caso previstos no Código Civil como ao caso da equiparação trazido pelo Decreto – Lei 911/1969. Comprova-se que desde a promulgação do Decreto-Lei nº 911/69 a Suprema Corte brasileira adotou entendimento admitindo a equiparação realizada entre alienação fiduciária em garantia e depósito ( V., a respeito, RE 73.220-DF, HC 51.186-SP, RHC 51.934-AL, HC 51.969-SP, entre outros julgados, todos da década de 1970). Destaca-se o resultado do julgamento proferido no RE 69.404-SP, relatado pelo Min. Aliomar Baleeiro, que inadmitiu o recurso por reconhecer que a impossibilidade de equiparação do adquirente fiduciário ao depositário infiel, com base na natureza de cada um dos contratos, consiste em interpretação razoável da lei, realizada pelo tribunal recorrido.


Atualmente a Corte Maior mudou seu entendimento, posicionando-se contra a equiparação do devedor fiduciário ao depositário infiel e contra qualquer tipo de prisão do mesmo (seja por contrato fiduciário ou nos casos regidos pelo Código Civil). Após o julgamento RE 466.343 e RE 349.703, o STF pacificou seu entendimento pela supralegalidade dos tratados internacionais que tratam dos direitos humanos e a inconstitucionalidade de qualquer tipo de prisão civil, exceto a do devedor de alimentos. Desta forma tanto o Decreto-Lei 911/1969, que há muito tempo já era visto com inconstitucional pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[3], quanto o art. 652 e ss do Código Civil e a Súmula 619 do STF[4] a partir da decisão publicada no dia 03 de Dezembro de 2008 passam a ser inaplicáveis aos casos práticos, não havendo assim, segundo as convenções internacionais, possibilidade da prisão civil do depositário infiel.


6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS


Em suma, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o inciso LXVII do art. 5° vem sendo objeto de constantes discussões, que ganham ainda mais notoriedade com a ratificação do Pacto de San José da Costa Rica, quem seu art. 7°, 7 afirma ser possível apenas a prisão por dívida se tratando de devedor de alimentos e nada mencionando sobre a possibilidade da medida coercitiva incidir sobre o infiel depositário, levantando-se assim uma grande questão, qual seria a de saber a hierarquia desses tratados e de outros que, de forma mais benéfica, ampliam o rol de direitos e garantias fundamentais contidos no art. 5° da Carta Magna. Outra questão era se a lei ordinária em conflito com esses tratados poderia ser aplicada aos casos práticos, celeuma resolvida apenas em 2008.


No dia 03 de Dezembro de 2008 o STF decidiu o RE 466.343, definindo a supralegalidade dos tratados internacionais que tratam dos direitos humanos, colocando-os acima da lei ordinária e abaixo da Constituição, levando as leis infraconstitucionais com eles conflitantes a não mais surtirem efeitos aos casos concretos. Note-se que a decisão do STF foi tomada em sede de recurso extraordinário, com efeitos inter partes. Desse modo, o referido inciso do art. 5° não foi revogado e continua em vigor no texto magno, no que pese a tendência jurisprudencial inaugurada com o caso.


Assim anota Pedro Lenza sobre a decisão do STF que muda os rumos acerca da prisão civil:


O STF, por 5×4, em 03 de Dezembro de 2008, no julgamento do RE 466.343, decidiu que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, se não incorporados na forma do art. 5°, §3° (quando teriam natureza de norma constitucional), têm natureza de normas supralegais, paralisando, assim a eficácia de todo o ordenamento infraconstitucional em sentido contrário.


Dessa forma, como diversos documentos internacionais de que o Brasil é signatário não mais admitem a prisão do depositário infiel (como, por exemplo, o art. 7°, 7 do Pacto de San José da Costa Rica, o art. 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana), a única modalidade de prisão civil a prevalecer na realidade brasileira é a do devedor de alimentos.”


Ademais, nos parece incoerente e insustentável a respeitosa posição do Supremo Tribunal Federal, declarando um documento acima da lei e inferior à constituição. Prevalecendo, a nosso ver, o entendimento de serem constitucionais os tratados internacionais que alargam os direitos humanos, concordando com Flávia Piovesan e o professor Cançado Trindade que, da mesma forma que o Ministro do STF Celso de Melo, defendem a constitucionalidade dos referidos tratados internacionais, o que acabaria de vez com as indagações sobre a hierarquia dos mesmos e declararia inconstitucionais as leis que fossem contrárias a tais diplomas. O tratado versando sobre direitos humanos seria, portanto, parte material da Constituição da República; daí a desnecessidade do § 3º do artigo 5°.


Mas, de toda forma, prevalece o impedimento à prisão do infiel depositário, mesmo com a ressalva acima feita sobre os efeitos da inovadora decisão. A partir de agora, tem o Congresso Nacional o dever de disciplinar novas formas de execução e processamento de casos antes resolvidos com a medida extrema e agressora da prisão por dívida.


 


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Notas:

[1] Lei n° 10 406/2002, cria o novo Código Civil Brasileiro.

[2] Teoria desenvolvida pelo austríaco Hans Kelsen, que estabelece de forma escalonada a hierarquia das leis e atos normativos dentro de um ordenamento jurídico, colocando a Constituição no topo da referida pirâmide e todas as outras leis e atos normativo abaixo dela.

[3] REsp 7.943/RS; REsp 0002320/RS; REsp 0014938/PR; HC 0002155/SP e outros.

[4] A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito.


Informações Sobre o Autor

Arnaldo Alves da Conceição

Advogado


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