A inconstitucionalidade do artigo 1.276, § 2º do Código Civil de 2002


Resumo: O artigo 1.276, §2º do Código Civil é contrário à Constituição Federal por violar o o direito de Propriedade (artigo 5º, XXII da Constituição Federal de 1988), o direito à Liberdade (artigo 5º “caput” da Constituição Federal de 1988), o Devido Processo Legal (artigo 5º, LIV da Constituição Federal de 1988) e o Princípio da Proporcionalidade; entre preceito normativo constitucional de organização: o Estado Democrático de Direito (artigo 1º da Constituição Federal de 1988).

“Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.


§ 1o O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.


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§ 2o Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.


O Código Civil de 2002 instituiu dispositivo normativo que autoriza o Estado (Município, Distrito Federal e a União) a se apropriar de um determinado imóvel cuja propriedade não venha mais a interessar ao seu legítimo titular. Para tanto, asseverou que presumir-se-á a intenção do abandono, sem admissão de prova em contrário, a superveniente inadimplência da obrigação tributária principal cujo fato gerador se relacione ao imóvel a ser, futuramente, integrado ao patrimônio do Ente Federativo respectivo.


A meu sentir, sob o foco da fundamentação a ser desenvolvida, não há como preservar originalmente hígida a eficácia jurídica do dispositivo, haja vista a tábua axiológica da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Em Estados cuja Constituição é Formal, como em nossa realidade jurídica constitucional, impõe-se a máxima eficácia e efetividade do seu texto, ou seja, como fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, representando a base de sustentação do sistema normativo pátrio, qualquer preceito normativo que se mostre antagônico ao seu texto, seja do ponto de vista formal ou material, deve, inexoravelmente, ser declarado inconstitucional e, assim, taxado de inválido por meio de uma série de mecanismos e órgãos constitucionalmente previstos, resgatando-se, assim, a higidez e unidade do ordenamento normativo jurídico, homenageando a concretização da justiça constitucional.


A experiência constitucional histórica tem-nos fornecido um conceito de Constituição, se não aceito universalmente, dado o pluralismo econômico, social, político e cultural das diversas nações, ao menos constitucionalmente adequado. Dentre os vários juristas que se aventuraram no árduo e obscuro caminho de fornecer-nos concepções distintas de “Constituição” podemos citar Ernst Forsthoff com sua Constituição como garantia do “status quo” econômico e social; Hennis com a Constituição como instrumento de governo; Peter Harbele e sua Constituição como processo público; Baulin com a Constituição como ordem fundamental e programa de ação; Kruger com a Constituição como programa de integração e representação nacionais; Konrad Hesse e sua Constituição como ordem jurídica fundamental, material e aberta de determinada comunidade; o eminente constitucionalista lusitano J.J. Gomes Canotilho e suas Constituições Jurídica e Política; Hans Kelsen e a concepção jurídica de Constituição; Carl Schmitt e a Constituição Política; Lassale e a Constituição como fruto dos fatores reais de poder; dentre outros juristas, sociólogos e filósofos não menos importantes.


De todas estas ilustres e louváveis compreensões de uma Constituição constitucionalmente adequada, o ponto de convergência entre elas reside, principalmente, no fato de que a Carta Política é uma norma dotada de eficácia vinculante cujas matérias essenciais, ou materialmente constitucionais, segundo o professor Luís Roberto Barroso, são os preceitos normativos de organização e estruturação do Estado com limitação do Poder Político, preceitos normativos definidores de direitos fundamentais e preceitos normativos programáticos.


Para defender a tese aqui exposta da inconstitucionalidade do artigo. 1.276, §2º do Estatuto Civil estabelecer-se-á uma relação de parametricidade entre preceitos normativos constitucionais definidores de direitos: o direito de Propriedade (artigo 5º, XXII da Constituição Federal de 1988), o direito à Liberdade (artigo 5º “caput” da Constituição Federal de 1988), o Devido Processo Legal (artigo 5º, LIV da Constituição Federal de 1988) e o Princípio da Proporcionalidade; entre preceito normativo constitucional de organização: o Estado Democrático de Direito (artigo 1º da Constituição Federal de 1988).


I – Inconstitucionalidade do artigo 1.276, §2º do Código Civil de 2002 face aos direitos de Propriedade (artigo 5º, XXII da Constituição Federal de 1988) e Liberdade (artigo 5º, “caput” da Constituição Federal de 1988):


Em seu artigo 5º, XXII, a Carta Política de 1988 consagrou o sagrado direito fundamental de propriedade estando, inclusive, imune à abolição através da atividade constituinte derivada reformadora (artigo 60, §4º da Constituição Federal de 1988).


Por se tratar de um direito fundamental à propriedade sobre um bem imóvel (artigo. 1.267 do Código Civil de 2002), a princípio, o seu titular, sob sua autonomia privada (liberdade), conserva-o em seu patrimônio enquanto achar oportuno e conveniente, sendo que o legislador infraconstitucional jamais poderia impor uma presunção absoluta de que o proprietário deste bem, dada a inadimplência tributária, estaria abrindo mão do seu direito de Propriedade.


Assim como os demais membros da coletividade, visto o direito de Propriedade como uma relação jurídica, o Estado também integra o seu pólo passivo, exigindo-se do mesmo um dever geral de abstenção, ou seja, impõe-se ao Ente Político uma prestação negativa, caracterizada pelo respeito ao exercício do direito de Propriedade que só pode ser obstado excepcionalmente.


Portanto ao ser editado o artigo. 1.276, § 2º do Código Civil, o Estado inobservou seu dever geral de abstenção e tolheu, arbitrariamente, um direito fundamental de propriedade do imóvel urbano que não constitui um fim em si mesmo, mas um mero instrumento de garantia e preservação da Dignidade da Pessoa Humana, valor mor do Estado Democrático de Direito.


Minha modesta compreensão dirige-me à triste e temida conclusão de que, com este enunciado legal, o Estado, por via transversa e oblíqua, revivendo suas épocas de Entidade Política ditatorial e invasora, absolutamente incompatível com os valores consagrados por nossa Constituição atual, esteja a imiscuir-se e apoderar-se da propriedade privada sem justificativa plausível para tanto, ou seja, estabelece presunção que não admite prova em contrário de abandono do bem imóvel para, posteriormente, assenhorar-se do mesmo.


Vozes hão de levantar-se alegando que a função social da propriedade justifica o artigo aqui criticado, porém, sem plausibilidade jurídica para tanto.


A inadimplência da obrigação tributária aludida pelo enunciado normativo não faz presumir absolutamente e, “sponte sua” a intenção do proprietário de não mais conservar o bem imóvel urbano em seu patrimônio jurídico, acarretando, assim, a perda da função social da propriedade. Cumpre ao Poder Público comprovar, no caso concreto, e não apenas presumir de forma absoluta que o titular do imóvel o abandonara, fadando-o à imprestabilidade social, como efetivamente o deseja o enunciado legal. A persistir esta presunção legal absoluta de abandono do direito de propriedade sobre o bem imóvel, apto a subtraí-lo da esfera patrimonial do seu titular, o legislador estaria a restringir um direito fundamental que, dada sua natureza e importância, deve ser objeto de interpretação restritiva no que tange às hipóteses que cerceiam seu exercício.


II – Inconstitucionalidade do artigo 1.276, §2º do Código Civil de 2002 face aos Princípios do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, “caput” da Constituição Federal de 1988), da Proporcionalidade e do Devido Processo legal (artigo 5º, LIV da Constituição Federal de 1988):


A Carta Constitucional de 1988 veiculou preceito normativo que instituiu um Estado Democrático de Direito. Como tal, a comunidade politicamente organizada apresenta como “pedras de toque” o primado da lei como expressão de uma vontade geral racional, a previsão e concretização dos direitos fundamentais, o desenvolvimento econômico e social da coletividade (plano normativo global) e a legalidade administrativa como forma de submeter a vontade do administrador público á soberania popular.


O Estado Democrático de Direito, sob o aspecto subjetivo, é uma pessoa jurídica de direito público que reúne funções constitucionais imprescindíveis, cujo exercício se impõe para regular o convívio social. Dentre elas, exsurge a função legislativa, através da qual os fatos sociais imprescindíveis à paz social e á ordem pública são juridicizados e, então, impostos coercitivamente pelo Ente Político para que seja assegurada a segurança jurídica nas relações sociais.


Entretanto, o Estado Democrático de Direito, discricionária e politicamente (Princípio da Livre Conformação do legislador), juridiciza tai fatos sempre buscando conformidade com as regras e princípios da ordenação política sistemática e racional da comunidade política, leia-se, da Constituição Formal.


A atividade do legislador que contraria, não só o texto constitucional, mas a norma que dele se extrai, incorre, inexoravelmente, em abuso de legislar, e outro não foi o erro do poder legislativo infraconstitucional ao editar o artigo 1.276, §2º do Código Civil de 2002.


É certo que o direito fundamental à propriedade não é absoluto, podendo o legislador restringir legitimamente seu exercício, desde que, em homenagem ao Princípio da Limitação dos Limites, conforme preleciona Gilmar Ferreira Mendes, o faça conservando seu núcleo essencial, restrinja-o sem casuísmo e arbitrariedades, sempre de forma clara, precisa e inteligível, sob a luz do Princípio da Proporcionalidade, intrínseco ao Estado Democrático de Direito.


Pecou incontestemente o legislador civil ao usurpar o direito fundamental à propriedade quando, desproporcionalmente, fez presumir, sem prova em contrário, que a inadimplência tributária remete á intenção do proprietário em abandonar seu imóvel, sendo molestada sua propriedade em benefício do Estado.


Fragmentando o Princípio da Proporcionalidade, pode-se concluir que o meio utilizado pelo legislador para destituir a propriedade privada do patrimônio de seu titular foi inadequado, tendo em vista que elegeu uma presunção absoluta de abandono do bem para que o mesmo, transcorrido certo lapso temporal sem estar submetido á posse de outrem, se destine a um fim, qual seja, integrar o patrimônio do Ente Federativo.


Também se mostra evidente a desnecessidade de uma presunção absoluta de abandono do bem imóvel pela simples inadimplência tributária, demonstrando o desinteresse do titular em conservá-lo em seu patrimônio. Caberia ao legislador positivar uma presunção meramente relativa de que a propriedade fora objeto de descarte. Esta presunção incontestável juridicamente não constitui “ultima ratio” para alijar o direito fundamental de propriedade.


Não bastando a violação ao Princípio da Proporcionalidade, o legislador infraconstitucional, relegando a segundo plano a eficácia normativa da Carta da República de 1988, como se o parlamento soberano fosse, editou o artigo 1.276, § 2º do Código Civil de 2002 ao arrepio de um dos Princípios basilares vigentes nos Estados que primam por valores inerentes à dignidade humana, qual seja, o Devido Processo Legal.


É de clareza solar e inteligibilidade manifesta o artigo 5º, LIV da Constituição Federal de 1988 ao condicionar a privação da liberdade ou dos bens ao Devido Processo Legal. Este dispositivo constitucional tem por destinatário o próprio Estado, enquanto Democrático de Direito, que jamais poderá despir as pessoas da propriedade dos seus bens, senão após um procedimento hígido, oxigenado pelo contraditório e ampla defesa, que legitime a intromissão na esfera privada e, assim, restrinja ou até mesmo, no caso concreto, negue a uma pessoa a propriedade de certo bem.


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Ignorando o fato da forma ser inimiga jurada do arbítrio e irmã gêmea da própria liberdade, o legislador infraconstitucional, ao cristalizar a presunção absoluta de abandono (1.276, § 2º do Código Civil de 2002) ratificou uma conduta estatal repugnante e extremamente incisiva, consistente na subtração do direito de propriedade sobre um bem imóvel sem sequer lançar mão do devido processo legal, oportunizando ao proprietário a alegação de que a posse não cessou e de que, apesar de se encontrar inadimplente face ás obrigações tributárias, em momento algum intencionou renunciar a propriedade do seu bem imóvel.


Neste sentido já se manifestou o Conselho de Justiça Federal (CJF) no enunciado de n.º 242 cujo teor passo a transcrever: “a aplicação do artigo 1.276 depende do devido processo legal, em que seja assegurado ao interessado demonstrar a não cessação da posse”.


Deflui-se, portanto, do presente trabalho, que o legislador infraconstitucional mostrou-se extremamente infeliz ao confeccionar o artigo 1.276, § 2º do Estatuto Civil, consagrando uma presunção absoluta de abandono da propriedade de um bem imóvel por seu titular, como forma de, posteriormente, poder integrá-lo ao patrimônio do Ente Político. Restaram, como visto, violados preceitos e princípios básicos consagrados pela Constituição Federal de 1988, tais como, os direitos fundamentais á Propriedade e á Liberdade, os Princípios do Estado Democrático de Direito, da Proporcionalidade e do Devido Processo Legal.


Porém, em homenagem ao Princípio da continuidade e da preservação do ordenamento jurídico, não defendo a extirpação total do artigo 1.276, § 2º do Estatuto Civil, mas tão somente da expressão “absoluto”, procedendo-se, assim, a uma declaração de inconstitucionalidade parcial com redução de texto, técnica esta por diversas vezes acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, já que o mesmo, neste mister, não se submete ao Princípio da Parcelaridade que veda, por exemplo, a possibilidade do Chefe do Poder Executivo vetar, apenas, termos ou expressões de enunciados legais.


Caso assim proceda a Augusta Corte Constitucional, restaurar-se-á a higidez do ordenamento jurídico e preservar-se-á a força normativa da Constituição, conquistada, por sua vez, após um longo processo histórico constitucional e que, dado o esforço para tanto, é censurável toda e qualquer atividade dos Poderes Constituídos que venham a corroer e desgastar a máxima efetividade dos Princípios e preceitos alçados á condição de normas formalmente constitucionais.



Informações Sobre o Autor

Rafael Arrieiro Continentino

Advogado


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