A infelicidade da súmula nº 381 do STJ

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Diz a Súmula nº 381 do STJ:


“Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas.”


A edição desta súmula não poderia ter sido mais infeliz!


A Constituição Federal de 1988, em seu Título II, Capítulo I, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais e dos direitos e deveres individuais e coletivos, respectivamente, prescreveu que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), consignando, posteriormente, no art. 48 do ADCT que “o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.


Cumprindo a determinação constitucional, cento e oitenta dias após sua publicação o codex consumerista (Lei nº 8.078/90) entrou em vigor, dispondo já em seu art. 1º:


“Art. 1º O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.”


Numa análise preliminar, vislumbra-se, então, que a própria Carta Magna conferiu status constitucional aos direitos do consumidor, ao determinar a promoção de sua defesa, na forma da lei (grifei). Daí dizer-se que o CDC possui vocação constitucional.


Em seu corpo, a legislação consumerista, no Capítulo VI, Seção I, que trata da proteção contratual do consumidor, adotou no art. 51 um rol meramente exemplificativo de cláusulas contratuais abusivas, estatuindo, expressamente, que aquelas são nulas de pleno direito (grifei).


Passando ao exame do regime civilista, o Código Civil, ao tratar dos negócios jurídicos, enumerou, no art. 104, três requisitos necessários à sua validade, a saber: agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei. Mais adiante, no Capítulo V, que trata da invalidade do negócio jurídico, estatuiu no art. 166, inciso VII, ser nulo o negócio jurídico quando a lei taxativamente assim o declarar, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. Diz também, mais à frente, no art. 168, in verbis:


“Art. 168 As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir.


Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes” (grifos meus).


Da leitura do caput do dispositivo supra transcrito extrai-se, inicialmente, que a alegação das nulidades pelos interessados ou pelo Ministério Público é uma faculdade, evidenciada na expressão PODEM. De sua sorte, o parágrafo único diz que a pronúncia de nulidades pelo juiz, ao contrário, é um dever que lhe é objetivamente atribuído. Isto é, o juiz DEVE pronunciar as nulidades.


No sistema consumerista, o controle das cláusulas contratuais abusivas seria até mesmo um dever objetivamente imposto ao Ministério Público, não fosse o veto presidencial do § 3º do art. 51 e do § 5º do art. 54, ambos do Código do Consumidor. De fato, se for feita uma análise detalhada do § 5º do artigo 54 do codex citado, vislumbrar-se-á a inviabilidade no sentido de que todos os contratos de adesão fossem submetidos ao crivo do Ministério Público, tornando-o demasiadamente sobrecarregado, em detrimento de outras prerrogativas ministeriais.


Isto, então, implicou no aumento dos poderes do juiz ao analisar os contratos de consumo submetidos à sua apreciação, poder esse que o STJ veio, quase irremediavelmente, a enfraquecer com a Súmula nº 381.


Passamos, agora, a analisar os contratos bancários à luz da conjugação do regime civil de validade dos negócios jurídicos com as normas insculpidas no CDC.


A Súmula nº 297 do STJ diz ser o Código de Defesa do Consumidor aplicável às instituições financeiras, não havendo, então, dificuldades em verificar que os contratos bancários estão sujeitos às disposições daquele diploma legal.


Em relação ao que diz o art. 166, inciso VII, do Código Civil, observamos que o CDC, que é uma lei, foi taxativo ao estabelecer a nulidade das cláusulas contratuais exemplificadas no rol do art. 51, como visto linhas acima, cumprindo assinalar que o Código do Consumidor, consoante a sempre magistral lição de Sergio Cavalieri Filho, é verdadeira “sobre-estrutura jurídica multidisciplinar, aplicável em toda área do direito onde ocorrer uma relação de consumo”[1].


Ao ser taxativo em relação à nulidade das cláusulas abusivas, o CDC verdadeiramente está a dizer que CLÁUSULAS ABUSIVAS SÃO PROIBIDAS! Ora, o que é proibido pela lei, torna-se ilícito; e o negócio jurídico, pra ser válido, requer objeto lícito, nos termos da lei civil. Dessa forma, um contrato bancário contendo cláusulas abusivas é um contrato viciado, e contrário à cláusula geral de boa-fé que deve nortear as relações jurídicas de consumo.


Imperioso frisar que a “bizarrice” da súmula em comento é sonora, se levarmos em conta que o rol de abusividades do art. 51 do CDC não é taxativo, mas meramente exemplificativo, como dito linhas acima, uma vez que o dispositivo legal diz que “são nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços…”


 Explicando: a expressão “entre outras” significa que o juiz, ao examinar um contrato bancário, pode visualizar no mesmo alguma abusividade que não esteja expressamente prevista no texto legal.


Voltando aos aspectos constitucionais afetos ao tema proposto, José Afonso da Silva consigna que “a Constituição foi tímida no dispor sobre a proteção dos consumidores. Estabeleceu que o Estado proverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII)”, realçando a importância de sua inserção dentre os direitos fundamentais, ou seja, conferindo àqueles a titularidade de tais direitos, bem como adverte-nos para a regra do art. 170, V, da CF/88, que toma a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, o que, nos dizeres de Gomes Canotilho e Vital Moreira, vem a “legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista[2] (grifei).


Com vistas nas ponderações dos insignes constitucionalistas, cremos que entre as medidas legítimas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção do consumidor está, justamente, o dever do magistrado de declarar, ex oficio, a abusividade de cláusulas contratuais em contratos bancários. Acrescente-se ainda que, segundo os autores do anteprojeto do CDC, a verificação da presença da boa-fé na conclusão do negócio jurídico cabe ao magistrado, no intuito de constatar se determinada cláusula contratual é ou não válida perante o rol do art. 51 daquele diploma legal.


Embora restrito aos limites de eventual lide posta à sua apreciação, ao juiz é conferido o dever de intervenção básica nas relações jurídicas, de forma a garantir o equilíbrio entre as partes litigantes. Este é o chamado Dirigismo Estatal, consoante o qual se conduz o juiz justo e afinado com a realidade social.


Em se tratando de defesa do consumidor, isso não é nenhum exagero ou advocacia por parte do juiz que intervém para evitar prejuízos ao consumidor, tendo em vista que em 1985, a 106ª Sessão Plenária da ONU estabeleceu, através da Resolução nº 39/248, o Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor, reconhecendo-o como a parte mais fraca na relação de consumo, e tornando-o merecedor de tutela jurídica específica, exemplo este seguido pela legislação consumerista brasileira.


No atual contexto social, a magistratura brasileira tem tentado se sub-rogar no desempenho de funções estranhas às de sua competência estrita, com o fim de realizar efetivamente a justiça social, cumprindo, assim, as diretrizes traçadas pelo Estado Democrático de Direito, em resposta ao individualismo que dominou o pensamento de séculos passados.


Rogério Medeiros Garcia de Lima já proclamou o atual momento como “a era do Judiciário”. Em ensaio ao Instituto dos Advogados de Minas Gerais, registrou:


“Da Ética individualista, vigente no século XIX (Liberalismo Econômico), passamos contemporaneamente a prestigiar a Ética de conteúdo social (Estado Social e Democrático de Direito). Além dos valores atinentes ao indivíduo (vida, liberdade, propriedade etc.), relevamos valores referentes a toda comunidade (por exemplo, saúde, educação, previdência e assistência social, assistência à criança, ao adolescente e ao idoso, proteção ao meio ambiente e aos consumidores, cultura, desporto, lazer etc.).”[3]  


Assim sendo, mais do que nunca a função do juiz, como “administrador” das tensões sociais, emerge de forma destacada. Sabe-se que o fim do Estado é a consecução do bem comum, e é com vistas nele que a atividade jurisdicional deve se orientar, em conformidade com o que está estampado no art. 5º da LINDB:


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“Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”


Na seara consumerista, esse poderoso artigo da LICC há de ser observado veementemente, uma vez que o paradigma socioeconômico contemporâneo reclama uma tutela enérgica por parte dos juízes em relação ao poderio das grandes corporações. Não devem, os juízes, esquecerem-se de que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor é um diploma cujas normas são de ordem pública e interesse social, havendo, portanto, um liame entre este artigo e o da LICC.


Kazuo Watanabe, em seus comentários ao CDC, de forma categórica, e com a precisão que lhe é peculiar, ao discorrer acerca das principais medidas protetivas do consumidor nele previstas, sinalizou no sentido de que “de nada adiantará tudo isso sem que se forme nos operadores do direito uma nova mentalidade capaz de fazê-los compreender, aceitar e efetivamente por em prática os princípios estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor”.


Sendo assim, tão importante quanto nosso avanço legislativo, é o correspondente avanço dos juízes brasileiros, que têm o dever de garantir a eficácia da lei perante a realidade social a que ela se destina tutelar. Dessa forma, a lei se engrandece; caso contrário torna-se pequena e ineficaz.


Então, com vistas nos fundamentos alinhados, percebe-se que o STJ andou mal ao editar a Súmula nº 381, pois, no nosso entender, produziu norma que enfraquece os poderes do magistrado que se deparar com um contrato bancário abusivo.


No fim, resta um alento: felizmente a súmula em questão é doutrinariamente enquadrada como inconstitucional ou contra legem, como alguns preferem chamar, pois firma entendimento flagrantemente incompatível com o texto constitucional e com o texto legal, e não possui efeito vinculante, porquanto não foi editada pelo STF, dentro das formalidades requeridas. Assim, mesmo com este “golpe” normativo, permanecem os juízes com liberdade para decidir de forma justa, isto é, com poderes para conhecer, ex ofício, de eventuais abusividades nos contratos bancários.





Notas:


[1] In Programa de Responsabilidade Civil. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

[2] In Curso de direito constitucional positivo, 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, págs. 254 e 255

[3] Disponível em www.iamg.org.br


Informações Sobre o Autor

Vitor Vilela Guglinski


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