A inflação, a correção monetária e o Código Civil

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Resumo: O presente artigo visa traçar um paralelo entre a legislação monetária e o direito civil codificado, com especial atenção aos períodos de alta inflação na economia brasileira e de estabilidade da moeda.


Sumário: 1. O início: o contexto monetário na edição do nosso primeiro Código Civil 2. O aumento das taxas de inflação e o surgimento da correção monetária 3. O novo Código Civil 4. Conclusões.


“Apesar de serem inúmeros os desastres que causam a decadência dos reinos, principados e repúblicas, penso que os mais importantes são estes quatro: a discórdia, a mortalidade, a esterilidade da terra e a desvalorização da moeda” Nicolau Copérnico [1] (1526)


O início: o contexto monetário na edição do nosso primeiro Código Civil


Há poucos dados confiáveis sobre os índices de inflação no Brasil até a primeira Guerra Mundial. Sabe-se que o problema já existia, eis que ao longo do século XIX o governo “se manteve sempre propenso ao déficit orçamentário que, em vários anos, chegou a ultrapassar vinte por cento das despesas”. [2] Em 1821 D. João VI volta para Portugal e leva consigo todo o ouro depositado no então denominado Banco do Brasil, causando sua quase bancarrota (não obstante a sua liquidação formal somente tenha ocorrido em 11/12/1829). Há entre estas datas um surto de emissão de papel-moeda, como podemos observar na seguinte tabela[3]:


8001a 


Por outro lado, nos períodos de 1866 a 1870 e 1893 a 1898 houve uma acentuada expansão monetária, sendo “bem pouco provável que esses episódios tenham deixado de produzir taxas expressivas de inflação”. [4] Ainda que o fenômeno inflacionário tenha trespassado todo este período histórico, nada se compara à dimensão que viria a assumir a partir da segunda metade do século passado.


Foi neste período de relativa estabilidade política e econômica, na virada dos séculos XIX para o XX, que veio a lume o primeiro Código Civil Brasileiro. Desde 1824 a constituição determinara a elaboração dos códigos civil e criminal, “fundado nas sólidas bases da Justiça, e Equidade”. O código penal veio em 1830 e em 1850 tivemos nosso Código Comercial; contudo, ao final do século XIX, ainda não tínhamos nosso Código Civil. Continuávamos a usar as vetustas Ordenações Filipinas, que sequer em Portugal tinham mais vigência (com a edição do Código Civil Português de 1867).


O projeto entregue por Clóvis Bevilaqua ao apagar das luzes do século XIX teve dificultosa tramitação legislativa e somente veio a ser aprovado em 1916, com uma vacatio legis até 1917. Fruto da visão liberal da época, o § 1º do art. 947, que regulava o pagamento (e que somente veio a ser revogado expressamente [5] pela Lei 10.192/2001 [6]) dispunha que “é, porém, licito às partes estipular que se efetue em certa e determinada espécie de moeda, nacional, ou estrangeira” – ou seja, negava-se o curso forçado da moeda. Afirma-se, neste particular, que tal opção não “foi senão o reflexo de um período em que importantes inversões estrangeiras, sobretudo capitais britânicos, que então se aplicavam em investimento de infra-estrutura e nos serviços públicos concedidos”. [7] Chancelava-se o que Arthur Nussbaum, em sua clássica obra, chamou de obrigações valutárias. [8]


O diploma fixou a taxa legal de juros em 6% ao ano (art. 1062), ressaltando que os juros remuneratórios “podem fixar-se abaixo ou acima da taxa legal (art. 1.062), com ou sem capitalização” (art. 1262). No tocante ao direito contratual, o nosso código rompia com a nossa tradição jurídica ao não disciplinar a lesão contratual. Da mesma forma, negava a possibilidade da aplicação da teoria da imprevisão. Era o império do pacta sunt servanda.


Seria um evento de natureza econômica que viria a transformar nossa realidade jurídica: o encilhamento da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929 [9].


Não que o estouro da bolha especulativa da bolsa americana tivesse comprometido o mercado de capitais no Brasil. Ele, evidentemente, inexistia. O nosso problema foi que a partir da crise de 1929 se instalou uma grave crise no setor cafeeiro, nossa principal commodity, responsável à época por cerca de 60% das nossas exportações. O preço do café Santos 4 no mercado de Nova Iorque desabou a partir do segundo semestre de 1929; “desceu de 22,4 cents/libra-peso, em setembro, para 15,2 em dezembro, para atingir 14,1 cents/libra-peso, em média, no primeiro semestre de 1930 e 12 no segundo semestre do mesmo ano.”[10]


Em 1929 a exportação de café rendera ao país 67,3 milhões de libras esterlinas; no ano seguinte tal receita caiu para 41,2 milhões. Pressionado pelos produtores de café, Washington Luís recusou a conceder linhas de financiamento subsidiadas, na expectativa – que não se confirmaria – que a depreciação do preço do café seria compensada com um aumento no volume de exportações. A crise do setor seria o estopim para a revolução de 30, eis que “na medida em que a crise mundial se acentuava, tornava-se mais claro para a oposição que este setor ficara profundamente afetado e que o instante chegara para tentar quebrar sua predominância”. [11]


Por outro lado, a depreciação do câmbio não impediu que as empresas concessionárias de serviços públicos pedissem reajustes nas suas tarifas, com base na novel concepção das dívidas de valor.


Foi somente a partir desta época que surgiu a legislação determinando o curso forçado da moeda; inicialmente, através do Decreto n. 23.501 [12], de 27 de novembro de 1933, cerca de dois meses após os Estados Unidos terem expedido uma joint resolution semelhante. Outras normas foram publicadas, até a edição do Decreto-Lei 857/69, ainda em vigor, que em seu artigo 1º determina que “são nulos de pleno direito os contratos, títulos e quaisquer documentos, bem como as obrigações que exeqüíveis no Brasil, estipulem pagamento em ouro, em moeda estrangeira, ou, por alguma forma, restrinjam ou recusem, nos seus efeitos, o curso legal do cruzeiro”.


Com a edição da primeira norma acerca do curso forçado da moeda começava a se evidenciar um descompasso entre a realidade econômica e o nosso código civil. A solução surgira como resultado do binômio crise econômica versus governo autoritário. Mas seria um segundo fenômeno econômico que transformaria novamente nosso arcabouço jurídico: o recrudescimento da inflação.


O aumento das taxas de inflação e o surgimento da correção monetária


A partir de 1959 a inflação começa a se tornar um problema grave. Neste ano o custo de vida em São Paulo aumentou 42,7% a.a., e na Guanabara 52% [13]. Houve uma pequena queda em 1960 (para cerca de 25 a 30%), mas em 1961 os índices ficaram entre 40 e 50% e em 1962 entre 50 e 60%. Em 1963, durante o conturbado governo de João Goulart, a inflação atingia 80%. Nos três primeiros meses de 1964 o índice acumulado atingiu 25% o que, anualizado, daria um total de 144%.


Por outro lado, a emissão de moeda atinge níveis alarmantes. A tabela a seguir [14] demonstra quanto tempo demorou para que o Brasil dobrasse sucessivamente o volume de moeda emitida (valores em bilhões de cruzeiros):


8000b


Tal qual ocorrera na década de 30, os problemas econômicos foram acompanhados de uma mudança na ordem institucional: o golpe de 1964. A história se repetia e a crise econômica vinha acompanhada de um governo autoritário.


O regime militar que nascia adotou o PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo) que conseguiu relativo sucesso no combate à inflação. De fato, em 1965 os índices na Guanabara recuaram para cerca de 45% a.a.; em 1966, algo em torno de 40%; no biênio 1967/1968, cerca de 25% a.a.


No bojo das medidas do governo que chegava viria a sua maior novidade: a criação da correção monetária, como sustentáculo da estabilidade monetária e condição para a retomada do crescimento econômico.


O fundamento teórico da correção monetária já vinha sendo desenvolvido pela doutrina há anos. Partindo da dicotomia entre dívidas de dinheiro e dívidas de valor trazida ao Brasil por Ascarelli, a doutrina passa de um momento inicial restritivo (onde não se consegue “apontar como dívida de valor sem contestação séria senão aquelas de natureza estritamente alimentar”[15]) para uma adoção mais ampla do conceito,


“pois o que torna uma dívida dessa espécie é a sua alterabilidade, com respeito à equivalência das prestações, a par de se assegurar ao credor o direito à percepção de uma soma em dinheiro representativa do valor real de seu crédito, em termos de manutenção do poder aquisitivo da moeda”.[16]


Mas foi Arnoldo Wald, ainda em 1956, quem primeiro se dedicou à defesa da chamada cláusula de escala móvel como remédio para os problemas decorrentes da inflação. Ao analisar as cláusulas que permitiam o pagamento em moeda estrangeira, afirmava ele que


“Na realidade, nenhuma dessas cláusulas garante, de modo absoluto, o credor contra a desvalorização da dívida. Não é só a moeda nacional que oscila, também pode oscilar o valor do ouro e das moedas estrangeiras. A cláusula de escala móvel, que fixa o quantum da dívida, em relação ao índice de variação do custo de vida ou dos salários ou de algumas mercadorias, atenderia melhor ao anseio de dar certa estabilidade à dívida monetária, de manter o seu poder aquisitivo, ou seja, o seu valor. Como o valor da moeda varia em proporção inversa aos preços, a cláusula de escala móvel, que fizesse variar certa obrigação de acordo com o índice de custo de vida, alcançaria o seu objetivo, que é a estabilidade e a segurança”.[17]


Talvez tenha sido no mercado imobiliário que a correção monetária exerceu o papel mais importante.


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Desde a década de 40 acentuava-se o crescimento da população urbana no Brasil, tendo como contrapartida o decréscimo da população rural. É justamente no meio da década de 60 – no momento do golpe militar – que o Brasil deixa de ser um país rural para tornar-se um país urbano. Evidentemente que tal situação veio  acompanhada de uma maior demanda para imóveis residenciais urbanos. Atender ao pleito popular de uma maior oferta de imóveis residenciais se tornou uma das prioridades do regime militar.


O mercado imobiliário encontrava-se estagnado na década de 60. A aceleração da inflação no início da década de 60 depreciara os valores dos aluguéis. A legislação então em vigor também não facilitava a revisão dos valores contratados ou mesmo o desalijo dos locatários. Em situações como esta o mercado reage e os imóveis para locação escasseiam.


A solução viria com a lei 4380/64, que criou o Sistema Financeiro da Habitação, com uma tríplice motivação: a) impulsionar a construção civil, de forma a tentar atenuar os efeitos recessivos da política de combate à inflação (motivo econômico); b) ofertar imóveis para a camada mais popular, como forma legitimadora do novo regime (motivação social); e c) tentar implantar uma economia de mercado no Brasil, como antítese do regime proposto por João Goulart (motivação política).


É interessante notar que a correção monetária não foi implantada, ao menos inicialmente, de forma genérica. A lei 4.357/64 [18] determinou a correção monetária do ativo imobilizado, das depreciações e do capital de giro, do lucro imobiliário, dos títulos da dívida pública e dos débitos fiscais. Mas a grande inovação da citada lei foi a criação da ORTN (obrigação do Tesouro Nacional), observando-se que “o valor nominal das Obrigações será atualizado periodicamente em função das variações do poder aquisitivo da moeda nacional” (§ 1º do art. 1º da Lei). A ORTN tinha poder liberatório para pagamento de qualquer tributo federal (§4º do art. 1º). Determinava o art. 2º da Lei que os recursos do Fundo de Indenizações Trabalhistas (o predecessor do FGTS) seriam necessariamente direcionados para a aquisição de tais títulos – o que garantia um fluxo constante de recursos para a aquisição dos papéis. A criação da ORTN busca “recuperar o prestígio dos títulos da dívida pública para serem utilizados como fonte alternativa de financiamento não-inflacionário dos déficits de caixa da União.” [19]


Estava criada a correção monetária, como uma proposta de governo para combater os efeitos da inflação. É importante ressaltar este aspecto eis que, ao contrário de experiências semelhantes na França e na Alemanha “posteriores à 2ª Grande Guerra – em que as valorizações de créditos eram de inspiração negocial e judiciária – o valorismo brasileiro foi, desde o início, produto de um plano de governo, diante do qual a Jurisprudência foi, apenas, complacente.” [20] Por outro lado, “a época era revolucionária `et por cause` a inventiva não se deteve a assuntar-se se continha nos parâmetros do direito constituído”. [21]


O remédio – eficaz no primeiro momento – passou a ser usado de forma generalizada. Letácio Jansen lembra que “nos anos de 1965 e 1966 a doutrina da correção monetária, sempre fomentada pelo governo, continua a se alastrar pelo debilitado ordenamento jurídico brasileiro” [22].  Um sem número de Leis e Decretos-Leis passam a adotar a correção monetária nos mais distintos setores[23]. A doutrina chega  a invocar “o princípio constitucional de isonomia, sem a aplicação do qual a correção monetária se constituiria em autêntico privilégio, que o questionado princípio formalmente condena.” [24]  A crescente aceitação da correção monetária coincide com a explosão inflacionária das décadas de 70 e 80.


A jurisprudência, cada vez mais, passa a aceitar a correção monetária. O próprio Supremo Tribunal Federal, em acórdão que teve como relator o Min. Aliomar Baleeiro[25],  chegou a invocar o princípio da isonomia para estender a incidência da correção monetária a situações não previstas. [26] Posteriormente, a matéria chega a merecer súmula do Supremo Tribunal Federal. [27]


Evidentemente, “com a decretação da correção monetária generalizada, ficou institucionalizada a revolução contra o nominalismo jurídico” [28]. A moeda perde uma das suas principais funções, a de servir como referencial de valor. A partir de então passam a existir duas moedas: a moeda de pagamento e a moeda de conta (o indexador).


O equívoco histórico foi crer que a correção monetária pudesse servir como uma solução definitiva para o problema inflacionário. Como dito pela doutrina


Em que pese os fatores altamente positivos a seu crédito, a correção monetária não deve ser considerada como um instrumento que funcione em caráter permanente em uma economia. Admitir o contrário será o mesmo que considerar que a inflação não é um mal e que com ela podemos conviver eternamente, sem maiores danos ao equilíbrio fiscal, econômico e político do pai.


Em uma inflação estável ou decrescente, dependendo da periodicidade estabelecida para a sua apuração, a correção monetária ou não realimenta a taxa de inflação, ou então seu efeito é neutro. No caso de uma inflação crescente, o seu poder realimentador é dramático, principalmente em nosso País, em que a sua utilização está generalizada na economia, mais do que seria aconselhável…” [29]


Este poder realimentador foi desconsiderado pelos economistas da época, não obstante tenha Galbraith deixado a lição de que “o medo à inflação que esta deixa atrás de si pode ser tão prejudicial quanto a própria inflação.” [30]


O novo Código Civil


Foi no auge deste processo de gradual mas constante indexação da economia que foi elaborado o projeto que veio a se tornar o nosso novo Código Civil Brasileiro. Tal qual seu antecessor, o novo Código Civil dormitou no Congresso por décadas, somente sendo aprovado em 10.01.2002, com uma vacatio legis de 1 ano.


Embebido da cultura da correção monetária, o nosso atual código foi pródigo ao adotá-la. Afirma-se no art. 389 que “não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado; em seguida, o art. 395 dispõe que “Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”; o art. 404, por sua vez, reafirmava a idéia de que “as perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional”; ao tratar das arras confirmatórias, estabeleceu-se que “se a parte que deu as arras não executar o contrato, poderá a outra tê-lo por desfeito, retendo-as; se a inexecução for de quem recebeu as arras, poderá quem as deu haver o contrato por desfeito, e exigir sua devolução mais o equivalente, com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honorários de advogado”; o art. 487, ao disciplinar a compra e venda, deixou expresso que “é lícito às partes fixar o preço em função de índices ou parâmetros, desde que suscetíveis de objetiva determinação”; já o art. 772, tratando do seguro, afirmou que “a mora do segurador em pagar o sinistro obriga à atualização monetária da indenização devida segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, sem prejuízo dos juros moratórios”; o § único do art. 1395, ao regular o usufruto de títulos de crédito, afirma que “cobradas as dívidas, o usufrutuário aplicará, de imediato, a importância em títulos da mesma natureza, ou em títulos da dívida pública federal, com cláusula de atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos”.


Há, como se observa, uma franca adoção da correção monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos. Este é o sistema monetário adotado pelo nosso atual Código Civil.


Como se sabe, o projeto elaborado por Miguel Reale dormitou no Congresso por algumas décadas e somente entrou em vigor em 2002. Acontece que entre a sua elaboração do projeto e a vigência do novo Código Civil nós tivemos um evento econômico que transformou a realidade monetária do nosso país: o Plano Real.


As décadas de 80 e 90 foram pródigas em edições de planos econômicos, todos fracassados – ainda que, em um primeiro momento, tenham aparentado sucesso. Sem nunca conseguir abrir mão por completo da indexação, os planos tentam conter o aumento dos índices de inflação, sempre partindo da premissa que “como a inflação leva à indexação, e a indexação perpetua a inflação, a melhor forma de desestimular a indexação a médio prazo é conter a inflação a curto prazo.” [31]


A realidade viria a se modificar com a adoção do Plano Real, em 1994. O artigo 28 da medida provisória 542, de 30.6.1994, vedou a correção monetária em períodos inferiores a 1 ano. Da mesma forma, o art. 11 da Lei 8.880, de 27.5.1994, permitiu a estipulação de “cláusula de reajuste de valor por índices de preços ou por índice que reflita a variação ponderada dos custos dos insumos utilizados, desde que a aplicação da mesma fique suspensa pelo prazo de um ano.” Por fim, o artigo 2º da Lei 10.192, de 14.2.2001, determinou que


“Art. 2o É admitida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano.


§ 1o É nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano”.


Um dos diferenciais do Plano Real foi a prévia adoção da Unidade Real de Valor (URV), “dotada de curso legal para servir exclusivamente como valor monetário” (art. 1º da Lei 8.880/94). Como dito na exposição de motivos do Plano [32]


“Neutralizada a principal causa da inflação, que era a desordem das contas públicas, a criação da URV proporcionou aos agentes econômicos uma fase de transição para a estabilidade de preços. Padrão de valor que se integrou ao Sistema Monetário Nacional, com sua cotação fixada diariamente pelo Banco Central do Brasil com base na perda do poder aquisitivo do Cruzeiro Real, a URV veio restaurar uma das funções básicas da moeda, destruída pela inflação: a função de unidade de conta estável para denominar contratos e demais obrigações, bem como para referenciar preços e salários.”


A exposição de motivos também é bastante clara ao tratar da correção monetária, a saber:


Trinta anos de experiência com a correção monetária baseada em índices de preços demonstram cabalmente a necessidade de eliminar-se ou, ao menos, restringir este instituto para se alcançar a estabilidade monetária plena, sem prejuízo da expansão das atividades econômicas. Esta eliminação, entretanto, como também o demonstram sucessivas tentativas frustradas de estabilização, não pode dar-se de um só golpe, sob o risco de ampla desorganização das relações econômicas do país.


Por estes motivos, esta Medida Provisória trata de restringir o âmbito de aplicação da correção monetária baseada em índices de preços, preservando-a somente ali onde sua manutenção parece ser necessária na atual etapa de reorganização econômica do país, ou seja, no mercado de trabalho, no mercado financeiro e nos contratos de longo prazo.


 As normas de correção de salários foram estabelecidas no parágrafo 2º do art. 29 da Lei nº 8.880. Ali se assegura aos trabalhadores em geral, no mês da primeira data-base de cada categoria após a primeira emissão do Real, reajuste de salários em percentual correspondente à eventual variação do IPC-r entre o mês da primeira emissão do Real e o mês imediatamente anterior à data base.


Nas demais relações contratuais, fora do sistema financeiro, a correção monetária será admitida somente com periodicidade de aplicação mínima de um ano. E dentro do sistema financeiro, operações de curto e médio prazo deverão fazer-se preferencialmente referidas à Taxa Referencial – TR. Esta taxa não é um indexador do mesmo tipo que os índices de preços, pois reflete a taxa de juros mensal da economia, que se forma em função das expectativas de inflação futura e não da realidade da inflação passada, como ocorre os índices de preços.


Ao longo do processo de deterioração da moeda nacional nos últimos trinta anos, proliferaram os índices de preços usados como mecanismo de correção monetária. No caminho de restabelecimento do nominalismo e do abandono do instituto da correção monetária, impõe-se restringir esta proliferação de indexadores. Enquanto subsistir a correção monetária como componente, ainda que mitigado, das normas monetárias do país, ela deve ter restabelecida sua unicidade e seu caráter público. Por isso, esta Medida Provisória estipula, como regra geral, que a correção da expressão monetária de qualquer obrigação pecuniária contraída a partir de 1º de julho de 1994 somente poderá se dar pela variação acumulada do IPC-r, calculado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.”


Passados mais de 15 anos da implantação do Plano Real, não há como refutar o seu acerto. A inflação – ainda existente, mas comedida – deixou de ser o foco principal da nossa economia.


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Conclusões


A análise pari passu da evolução da nossa codificação civil e da legislação que versa sobre a correção monetária evidencia um descompasso histórico que podemos apontar nas seguintes conclusões:


1 – Durante todo o período em que as elevadas taxas de inflação atormentaram a economia brasileira, em especial no período entre 1960 e 1990, tínhamos um código civil absolutamente despreparado para a realidade monetária da época. Toda a profícua legislação que foi criada a partir de 1964 para disciplinar a correção monetária veio a lume sem qualquer ajuste no código civil, que fora editado no início do século passado e adotara o princípio nominalista. Podemos dizer que entre 1960 e 1994 tivemos uma economia indexada e um código civil desindexado.


2 – O nosso atual Código Civil foi elaborado consoante a realidade econômica da década de 1970, de ampla e generalizada aplicação da correção monetária. Contudo, sua entrada em vigor foi precedida do Plano Real, que tem dentre suas premissas a proposta de desindexar a economia. Hoje, portanto, temos um código civil indexado e uma economia (ainda) em busca da sua total desindexação.


 


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Notas:

[1] COPÉRNICO, Nicolau. Sobre a moeda. Curitiba: Segesta, 2004, p. 103.

[2] SIMONSEN, Mario Henrique. A tolerância inflacionária. In: Brasil 2001. Rio de Janeiro: APEC, 1969, p. 119.

[3] FERREIRA, Pinto. A inflação. São Paulo: RT, 4ª edição, 1993,  pág. 73.

[4] SENNA, José Júlio. Política Monetária. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010, p. 423.

[5] Não obstante tenha o Decreto 23.501/33 disposto que:  “Art. 1º. É nula qualquer estipulação de pagamento em ouro ou em determinada espécie de moeda, ou por qualquer meio tendente a recusar ou restringir, nos seus efeitos, o curso forçado do mil réis papel. “Art. 2º. A partir da publicação deste decreto, é vedada, sob pena de nulidade, nos contratos exeqüíveis no Brasil, a estipulação de pagamento em moeda que não seja a corrente, pelo seu valor legal.”

[6] Art. 1o As estipulações de pagamento de obrigações pecuniárias exeqüíveis no território nacional deverão ser feitas em Real, pelo seu valor nominal.

[7] CHACEL, Julien; SIMONSEN, Mario Henrique; WALD, Arnoldo. A correção monetária. Rio de Janeiro: APEC, 1970, p. 16.

[8] “Las deudas cuyo importe aparece determinado en moneda extranjera se denominan deudas de moneda extranjera, o, con una expresión ciertamente más imprecisa pero más corriente y mejor consolidada, deudas valutarias (valutaschulden). La adopción, como base de la deuda, de una moneda extranjera puede darse en varios sentidos. Solamente existe deuda valutaria propia o auténtica cuando el acreedor tiene derecho a la entrega de signos monetarios de un sistema extranjero. Pero con cierta frecuencia se da también El caso de que el acreedor tenga un derecho realizable en moneda nacional, que, por sua cuantía, equivale a una determinada suma de moneda extranjera. Estas son las deudas valutarias improprias o fictícias. (NUSSBAUM, Arthur. Teoría jurídica del dinero. Madrid: Libreria General de Victoriano Suáres, 1929, p. 295).

[9] Interessante notar que a crise de 1929 não gerou inflação nos Estados Unidos, mas deflação. De fato, “a grande depressão de 1929-32 foi o período de deflação mais intenso de que se tem notícia, com uma queda média dos preços na maioria dos países de 10% ao ano. As conseqüências sobre o emprego e a produção foram devastadoras: nos Estados Unidos, por exemplo, a produção global (medida pelo Produto Nacional Bruto) caiu quase 30% e, em 1933, cerca de 25% dos trabalhadores estavam desempregados. Este episódio aumentou tremendamente a convicção entre os economistas de que uma inflação é muito menos nefasta que um deflação.” (LOPES, Francisco. O desafio da hiperinflação. Rio de Janeiro: Campus, 2ª edição, 1989, p. 29).

[10] DELFIM NETTO, Antônio. O problema do café no Brasil. Campinas: Unesp, 2009, 3ª edição, p. 117.

[11] FAUSTO, Boris. História geral da civilização brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, tomo III, volume 9, p.453.

[12] É interessante notar que o Congresso foi fechado por Vargas de 1930 a 1934. O executivo passou a legislar através de Decretos, todos com força de lei. A denominada lei da usura, o Decreto 22.626/33, é desta época.

[13] Os índices foram obtidos em CHACEL, Julien; SIMONSEN, Mario Henrique; WALD, Arnoldo. A correção monetária. Rio de Janeiro: APEC, 1970, p. 3 e seguintes.

[14] RAMOS, José Nabantino. Inflação e deflação. São Paulo, 1963, p. 51.

[15] LIMA, Paulo B. de Araújo. A correção monetária sob a perspectiva jurídica. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p.33.

[16] SANTOS, J. A. Penalva. A aplicação da correção monetária como pena no processo civil. Rio de Janeiro: Folha Carioca Editora, s/d., p. 13.

[17] WALD, Arnold. A cláusula de escala móvel. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, 2ª edição, 1959, p. 81.

[18] Posteriormente, a lei 4728/65 institucionalizou a correção monetária para vários títulos de créditos.

[19] ENDO, Seiti Kaneko. Contribuição ao estudo da correção monetária. São Paulo: EDUSP, 1989, p. 45.

[20] JANSEN, Letácio. A correção monetária em juízo. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 3.

[21] LIMA, Paulo B. de Araújo. A correção monetária sob a perspectiva jurídica. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 5

[22] JANSEN, Letácio. Crítica da doutrina da correção monetária. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 34.

[23] Segundo Letácio Jansen, entre 1964 e 1978 foram publicadas 37 Leis, 64 Decretos leis, 43 Decretos, 2 Atos Institucionais, 1 Ato  Complementar e 1 Emenda Constitucional disciplinando, total ou parcialmente, a correção monetária – sem contar a referência ao tema nas Constituições de 1967 e de 1969.

[24] CAMPOS FILHO, Paulo Barbosa. Obrigações de pagamento em dinheiro. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária, 1971, p. 66.

[25] RE 80.287-RJ, julgado em 11.11.1975.

[26] O problema não se restringiu ao Brasil.  De fato, “em 1979, pelo menos sete países tinham um índice de inflação anual acima de 50%, e mais de sessenta países, inclusive a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, tinham inflação de dois dígitos. Entre os países mais afetados, nenhum sofreu um dano mais longo e mais severo do que a Argentina.” (FERGUSON, Niall. A ascensão do dinheiro. São Paulo: Planeta, 2009, p. 105)

[27] Súmula 562, de 15.12.76: “Na indenização de danos materiais decorrentes de ato ilícito cabe a atualização de seu valor, utilizando-se, para esse fim, dentre outros critérios, os índices de correção monetária.” Já na década de 90, após todos os dissabores vividos com a adoção desenfreada da correção monetária nas décadas de 70 e 80, afirmava o Min. Moreira Alves: “Esse foi o grande mal que se fez ao Brasil com a adoção da correção monetária institucionalizada. Criou-se a mentalidade de que onde há inflação não se pode sobreviver sem correção monetária, embora não haja nenhum Pais do mundo que tenha adotado essa política. A Alemanha, na segunda década do século, quando a inflação era muito mais grave do que a nossa, não adotou correção monetária institucionalizada, até porque os alemães sabiam que isto é a pior das pragas, pela circunstância de que a correção monetária é fator realimentador da inflação, além de criar  estado psicológico favorável a ela, com a falsa sensação de enriquecimento que ela propicia. Para combater a inflação, para se sentir na carne os males da inflação, de imediato, é preciso acabar com a correção monetária. Então combate-se a inflação, porque todos sofrem; só não sofre o devedor relapso. A correção monetária é um jeitinho de convivência com a inflação. A desindexação total torna indispensável o efetivo combate à inflação, sem que os menos favorecidos sejam engodados com a ilusão do enriquecimento pelas cadernetas de poupança, nem que o capital seja desviado para a ‘ciranda financeira’. Ademais, a verdadeira atualização monetária só se faz com um índice que dela mais se aproxime e não evidentemente, com diversos como tivemos, pois a simples multiplicidade mostra que ou todos são falsos pelos métodos e expurgos que se adotam para chegar a eles, ou só um é que se aproxima da realidade e os demais são elementos de manobra” (ADIn 493-0/91, RT 690/187)

[28] MATIAS, J. Rodrigues. Correção monetária. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1972, p. 120.

[29] NESS Jr., Walter L. A influência da correção monetária no sistema financeiro. Rio de Janeiro: IBMEC, 1977, p. 13

[30] GALBRAITH, John Kenneth. Moeda: de onde veio, para onde foi. São Paulo: Novos Umbrais, 2ª edição, 1983, p.3.

[31] MODIANO, Eduardo. Da inflação ao cruzado. Rio de Janeiro: Campus, 1986, p. 113.

[32] E.M. Interministerial Nº 205/MF/SEPLAN/MJ/MTb/MPS/MS/SAF, de 30.6.1994.


Informações Sobre o Autor

Jose Eduardo Ribeiro de Assis

Advogado, especialista em Direito Privado e em Direito Empresarial, Mestre e Doutor em Direito. Procurador do Banco Central


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