Inicialmente[1], quero dizer da minha satisfação em poder participar deste IV Seminário de Direito Militar da Guarnição de Santa Maria. Anteriormente, tratei do mesmo assunto no V Encontro Nacional dos Magistrados da Justiça Militar da União Portanto, desta forma, pretendo incentivar o debate sobre temas tão importantes do Direito Militar – a deserção e a insubmissão.
De início quero dizer que tenho convicções próprias a respeito das questões jurídicas que medeiam estes dois crimes: a prescrição especial, a própria consumação do crime, a incidência das excludentes de culpabilidade, a condição de procedibilidade e de prosseguibilidade do processo, a reincidência da deserção, etc.
Minha intenção, no entanto, é suscitar o debate para determinadas circunstâncias advindas da Administração Militar, questões estas que entendo exercerem, atualmente, considerável influência no cometimento dos crimes de deserção e insubmissão, em especial o primeiro.
São elas: a ausência de divulgação do direito constitucional da objeção de consciência; a falta de justificativa plausível para o descumprimento da Constituição no pagamento de um soldo irrisório aos recrutas do serviço militar inicial; os padrões utilizados para a incorporação daqueles que efetivamente irão servir e; o não cumprimento da legislação que regulamenta o pagamento do auxílio-transporte aos recrutas que servem em local distante de suas origens.
Daí porque se pode chegar ao questionamento que serve de título: a proteção ao direito de pessoa cara ao agente, se aceita por ocasião do julgamento, tratar-se-ia de excludente de culpabilidade ou seria caso mesmo de atipicidade conglobante, esta última, inclusive, podendo ser aventada na fase pré-processual, impedindo a oferta da denúncia? É o que se pretende discutir.
1. A AÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Parte-se de uma iniciativa inédita, consubstanciada na instauração conjunta de um INQUÉRITO CIVIL PÚBLICO, pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público Militar[2], já que este detém a titularidade exclusiva para propor as ações penais perante a Justiça Militar da União e aquele, a competência para identificar que causas administrativas podem estar contribuindo para o quadro do expressivo número de deserções ocorridas no biênio 2005-2006, atuando, judicialmente ou não, no sentido de afastá-las.
Diz-se inédita no sentido de que tal iniciativa não é comum entre os dois ramos do MPU, melhor, nunca ocorreu anteriormente. Todavia, o litisconsórcio entre ramos diversos do Ministério Público é possível de longa data na defesa dos direitos, bens e interesses coletivos.
A análise inicial dos processos de deserção no âmbito da 3ª Auditoria da 3ª CJM permitiu identificar como sendo uma constante o fato do réu ser de família pobre; quase sempre originário de local diverso de onde serve, às vezes até 300 km ou mais – isto contrasta com a realidade inegável de um número considerável de dispensados por excesso de contingente do município sede da OM; a ausência de pagamento do auxílio-transporte, apesar de previsto legalmente e; o pagamento de um soldo bem inferior ao salário mínimo previsto no art. 7º, inciso IV, da Carta Magna. Outro ponto interessante é o fato de que praticamente todos os réus declararem em seus interrogatórios que desejavam servir (queriam seguir carreira) – e somente terem desertado para socorrer a família, geralmente os pais, e, em alguns casos, companheiras e filhos menores. No jargão da Força, seriam “voluntários”, soando isso de forma irônica, quando se sabe que o serviço militar é obrigatório e quando se sabe ainda existir a figura legal do voluntário, que é aquele que pretende servir antes da chamada de sua classe, mas desse não se tem notícia.
2. CONSTATAÇÃO DAS MEDIDAS ADOTADAS PELA ADMINISTRAÇÃO MILITAR – OS PRIMEIROS RESULTADOS DO INQUÉRITO CIVIL PÚBLICO
O inquérito civil está em andamento, caminha para a interposição de Ação Civil Pública, mas as primeiras informações permitem identificar os seguintes pontos críticos em razão das respostas aos dados que foram requisitados:
2.1. A Administração Militar informa que devem ser aproveitados para incorporação em organizações militares da ativa os conscritos residentes nos municípios mais próximos da OM interessada[3]. A orientação regulamentar é contestada na prática quando as OM mandaram ao Ministério Público os quadros de seus incorporados, verificando-se uma freqüência de incorporações de conscritos de outros municípios. Este contraste é ainda maior quando se verifica p.ex. em Santa Maria, sede da 3ª Auditoria da 3ª CJM, um número considerável de dispensados por excesso de contingente. Dentro desse contexto afigura-se no mínimo como “curiosa” a justificativa da Força Terrestre, para o elevado número de dispensados, substituindo a circunstância do excesso de contingente pela expressão genérica <por não atenderem aos padrões estabelecidos>. Pergunta-se: que padrões seriam estes? Qual o ato normativo que os fixou?
Ora, em princípio não serão incorporados os conscritos considerados inaptos em exame de saúde; nem aqueles que apresentarem problemas de ordem social que os contra-indiquem; nem o arrimo de família e, por fim os que forem incluídos no excesso de contingente. Quanto à condição de arrimo, p.ex., se informada por ocasião da seleção, desobriga o conscrito de servir e, se verificada após o ingresso nas Forças Armadas, autoriza a desincorporação.
A incorporação de arrimo de família constitui-se “irregularidade no recrutamento, inclusive relacionada com a seleção”, impondo, se descoberta em qualquer época, a anulação da incorporação.
Toda vez que ocorrer a anulação de incorporação, deve ser apurado, por sindicância ou IPM, se a irregularidade preexistia ou não, à data da incorporação, e a quem cabe a responsabilidade correspondente, se do incorporado, ser-lhe-á aplicada multa; se de qualquer elemento executante do recrutamento, multa sem prejuízo das sanções disciplinares (RLSM art. 139, § 2º, nºs. 1 e 2)
É óbvio que existe uma presunção de legitimidade dos atos da Administração Militar, mas o fato da mesma Administração orientar os comandos subordinados a informarem o rol dos seus dispensados por excesso de contingente, rotulando-os como aqueles que não atenderam aos padrões estabelecidos[4], autoriza ao surgimento da dúvida quanto ao critério utilizado, principalmente quando se tem um número considerável de dispensados nessa situação, do município-sede da OM, a justificar a incorporação daqueles ditos ‘voluntários’ (mas sem direito a benefícios legalmente previstos), oriundos de municípios distantes da sede da OM.
2.2. Existe uma orientação para que seja privilegiada a incorporação dos ditos “voluntários”[5]. Como já dito anteriormente, soa até irônico essa figura já que o serviço militar é – ou deveria ser obrigatório (CF, art. 143).
2.3. Quanto ao pagamento do auxílio-transporte[6] aos conscritos, verifica-se que o Exército faz o transporte daqueles que irão servir em local diverso de sua origem (ida e volta), ou daqueles que tendo sido convocados nas mesmas condições, por algum motivo não forem servir. Existe, no entanto uma injustificável vedação ao pagamento do auxílio-transporte para militares residentes a mais de 75 km. Quanto a isso, o Diretor do Serviço Militar, da Diretoria-Geral de Pessoal do EB informou que não existe na legislação do Serviço Militar, norma que estabeleça prioridade para incorporação de conscritos residentes a uma extensão igual ou inferior a 75 km.[7] A mesma autoridade informou que o Exército não indeniza despesas de deslocamento de conscritos, já que tal modalidade de transporte é feito por meios fretados, normalmente ônibus, seja do município de origem ao município-sede da OM para a qual foi designado, seja no seu retorno, quer por não ter sido incorporado, quer por término do tempo de serviço. Todavia, este não é o auxílio-transporte ao qual me refiro.
Em relação a este benefício, segundo o Chefe do Departamento-Geral do Pessoal do Exército Brasileiro[8], existe uma vedação do pagamento do auxílio-transporte aos militares que residam em unidades da Federação distante a mais de 75 km.[9] Segundo o Chefe do DGP, esta limitação visa amenizar os gastos públicos[10] com o pagamento de auxílio-transporte, quantia diretamente proporcional à distância percorrida, refere que o domicílio do militar é o local onde serve.
A informação do Comando do Parque Regional de Manutenção – PqRM/3ª RM, sediado em Santa Maria, acerca dessa injustificada vedação, dá uma idéia do problema enfrentado atualmente pelas OM em relação à incorporação de conscritos oriundos de municípios distantes da sede da OM, principalmente porque aproximadamente 50% do efetivo incorporado naquela Unidade é oriundo dos municípios de Venâncio Aires e Passo Fundo: …o soldado(Sd) incorporado oriundo de Venâncio Aires-RS fica impossibilitado de deslocar-se para sua residência regularmente devido ao fato do salário do recruta ser de R$ 207,00 (duzentos e sete reais), menos que o salário mínimo, o que não é suficiente para o Sd custear as despesas com passagens intermunicipais. Situação esta agravada pela impossibilidade de concessão do auxílio transporte (AT), pois de acordo com o art. 3º, letra J da Port.098-DGP, de 31OUT91, o militar residente a mais de 75 km não pode ser beneficiado pela AT.[11]
Todavia, como o inquérito civil abrange inclusive os convocados a servir na Aeronáutica – Base Aérea de Santa Maria foi verificada com satisfação que esta OM faz o pagamento da forma legal, tendo inclusive juntado a relação dos militares que a recebem.[12]
2.4. Ao ser questionado sobre a falta de divulgação ao direito constitucional de objeção de consciência, a Diretoria do Serviço Militar aduziu, surpreendentemente, pressupor que os alistados, no que se refere à escusa de consciência, são alertados por suas próprias religiões, assertiva reforçada pela inaceitabilidade do desconhecimento da lei; do contrário, abrir-se-ia a perspectiva de submeter a Administração Militar a interpretações de práticas sectaristas ou de proselitismo religioso, bem como ensejaria que pessoas de má-fé pudessem valer-se da possibilidade para se furtar a essa obrigação constitucional, aspectos indesejáveis ao cumprimento dos fins colimados à Força Terrestre.[13]
Ouso discordar. A uma, porque esta presunção da parte da Diretoria do Serviço Militar não se sustenta em razão de que a objeção de consciência é um direito constitucional, cláusula pétrea inclusive (CF, art. 5º, inciso VIII, combinado com o art. 60, §4º, inciso IV). A duas, porque a Lei 8.239, de 04.10.1991 impõe ao Ministério da Defesa a atribuição de Serviço Alternativo, devendo este cumprir o mandamento constitucional e legal ante o o caráter cogente dos princípios impostos à Administração Pública, inclusive a Militar, pelo art. 37 da Carta Magna. A três, porque a questão não se resume à práticas sectaristas ou de proselitismo religioso, já que a objeção de consciência decorre de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, alegadas por aqueles que, em tempo de paz, após alistados, pretenderem eximir-se de atividades de caráter essencialmente militar. A quatro, porque neste imenso Brasil, de tantas desigualdades, e de voraz atividade legisferante, a ponto de termos um imenso cipoal legislativo a confundir o país, mesmo os operadores do Direito têm dificuldades em conhecer todas as leis, que dirá o cidadão comum. A cinco porque a prática de má-fé na declaração de objeção de consciência deve ser provada pela Administração, não se podendo presumi-la como forma a não divulgar este importante (e desconhecido) direito constitucional. A seis porque, infelizmente, se constata que além do Ministério da Defesa não fazer a divulgação da objeção de consciência, de forma correlata com a propaganda do serviço militar, ainda parece dificultar o exercício desse direito, já que a Portaria nº 2.681, de 28.07.1992, do então Chefe do Estado Maior das Forças Armadas-EMFA, contrariando a Constituição Federal e a Lei do Serviço Militar e a própria Lei do Serviço Alternativo, previu, em seu art. 7º, que a duração da prestação do serviço alternativo ao serviço militar obrigatório será de 18 (dezoito) meses, ou seja, um prazo 50% maior ao previsto para aquele serviço militar que ele pretende servir de alternativa. Assinale-se que tal majoração do tempo da prestação do serviço alternativo, não tem nenhum fundamento constitucional ou legal, sendo claramente um fator destinado a dissuadir aqueles que por ele pretendam optar, o que não pode ser admitido.
Como se não bastasse, ao serem requisitadas informações do Ministério da Defesa, o Diretor do Departamento de Mobilização informou[14] que o Serviço Alternativo ao Serviço Militar Inicial não está efetivamente implementado, porque não foram estabelecidas as instruções e normas para a sua execução pelos Ministérios Civis. Causa espécie tal afirmação, quase 20(vinte) anos após a edição da Constituição Federal, por duas razões: a primeira, em forma de pergunta, gostaria de saber quando as Forças Armadas pretendem implementar tal Serviço Alternativo e; a segunda, em complemento à primeira, porque os Ministérios Civis não tem obrigação de implementar aquilo que foi determinado pela Carta Magna às Forças Armadas (que parece, estão ou devem estar subordinados ao Ministério da Defesa).
O descaso é com o exercício da objeção de consciência é tão grande que informou ainda o Diretor de Mobilização (dados de 2002 para cá), conquanto fossem eximidos do serviço militar inicial alguns objetores, desde que assegurado como direito constitucional, em 1988, até agora, nenhum cidadão prestou o Serviço alternativo no Brasil! Ora, se foram eximidos do serviço militar objetores de consciência, sem a devida contraprestação de prestação do serviço alternativo, as Forças Armadas e o Ministério da Defesa estão agindo contra a Constituição e a Lei específica, e, consequentemente descumprindo o primeiro princípio da Administração Pública: o da legalidade.
Causa estranheza que o Diretor do Departamento de Mobilização vincule a efetividade do Serviço Alternativo ao Serviço Militar Inicial à inexistência de convênios com Ministérios Civis porque estes constituem uma hipótese secundária da prestação disciplinada pela Lei 8.239/91, que prevê, em português bem claro que o serviço alternativo será prestado inicialmente em organizações militares da ativa e em órgãos de formação da reserva das forças armadas (art. 3º, § 3º)
3. A INFLUÊNCIA DAS MEDIDAS ADMINISTRATIVAS EM VIGOR NO EXÉRCITO, NA CONSUMAÇÃO DO CRIME DE DESERÇÃO
Creio que é chegada a hora de se repensar certos dogmas envolvendo o serviço militar.
Em primeiro lugar, não há como deixar de constatar que sua obrigatoriedade encontra-se relativizada, já que, mesmo sem a divulgação devida, a objeção de consciência deve (ordem) ser oportunizada àqueles em idade de se alistarem. Já se evidencia que dentre as medidas a serem tomadas por conta do inquérito civil será o ajuizamento de ação civil pública, visando condenar a União (o Ministério da Defesa) a uma obrigação de fazer, consistente em divulgar juntamente nas propagandas do serviço militar, a existência deste direito que gera uma prestação alternativa, igualmente importante já que pode gerar a perda ou suspensão de direitos políticos nos casos de recusa de seu cumprimento (CF, art. 15, IV). Igual pedido de condenação em obrigação de fazer poderá ser requerido quanto ao pagamento efetivo do auxílio-transporte, previsto na Medida Provisória 1.783-2, de 11.02.1999, regulamentada pelo Decreto 2.963, de 24.02.1999 e; a do pagamento de, no mínimo, um salário mínimo aos recrutas, em atendimento ao dispositivo constitucional do art. 7º, IV. Ouso discordar, com a devida venia do entendimento do Sr. Chefe do DGP, quando para justificar a diferença de soldos, assevera que o recruta está para o soldado engajado, assim como o aluno dos cursos de formação está para o formado e em pleno exercício dos seus cargos[15]. Nem de longe eles se assemelham, os alunos dos cursos de formação têm a consciência de que, concluído o curso, assumirão os novos cargos para os quais estão sendo formados, o que não acontece com os recrutas, que findo o período do serviço militar obrigatório, em princípio serão dispensado, sem mais delongas. Mas, ainda que se justifique a diferença de soldo entre o soldado recruta (efetivo variável) e o soldado engajado (núcleo base), isto não implica em que, necessariamente, o soldo daquele tenha que ser aviltado em ser menor, quase 50%, que o salário mínimo previsto constitucionalmente.
Parece-me que esta situação atual no EB, ao menos na área de abrangência da 3ª Auditoria da 3ª CJM está, sem dúvida alguma, influenciando o cometimento de deserções, onde o acusado posteriormente alega – e quase sempre tem sido comprovado, o estado de necessidade para auxiliar pessoas que lhe são caras.
Dentro de um novo panorama social, é cada vez mais comum os adolescentes – que já podem votar, ingressarem no mercado de trabalho para auxiliar a família. Ainda que na informalidade, estará ganhando pelo menos um salário mínimo, atualmente 380 reais, descanso semanal, horas extras remuneradas, etc e morando com a família. A incidência quase maciça de desertores originários de famílias extremamente pobres leva a pensar – e esta é uma presunção iuris tantum, que os jovens mais abastados estão sendo dispensados, para não prejudicar seus estudos, ou porque é filho de alguém influente ou conhecido etc, compensando-se estas dispensas com a incorporação dos ditos ‘voluntários’[16] de outros municípios. Desta forma, não há como negar a falta de isonomia entre os jovens mais abastados e os descamisados: ou o serviço militar é para todos – e ai segue-se à risca a legislação existente, ou ele passa a ser facultativo, ocasião em que o Ministério da Defesa terá que envidar esforços no sentido de tornar a profissão militar mais atrativa em todos os seus níveis a partir do soldado, gerando um exército essencialmente profissional.
4. ESTADO DE NECESSIDADE OU ATIPICIDADE CONGLOBANTE?
Chegamos assim, ao ponto crucial do debate, ou seja, a natureza exata das alegações de proteção à pessoa cara ao agente da deserção, aquelas as quais ele está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual, que não provocou, nem podia de outro modo evitar, sacrificando direito alheio – no caso o dever militar, mas desde que não lhe era razoavelmente exigido conduta diversa.
Parece-me que acerca da excludente de culpabilidade prevista no art. 39 do CPM não existem maiores dúvidas, a questão inclusive está sumulada no E. Superior Tribunal Militar, pelo verbete nº 3: não constituem excludentes da culpabilidade, nos crimes de deserção e insubmissão, alegações de ordem particular ou familiar, desacompanhadas de provas.
Isto tem sido observado nos julgamentos de 1º instância cabendo ser anotado que, ante a deficiência estrutural da Defensoria Pública da União (em que pese o brilhantismo e dedicação pessoal dos Defensores Públicos), a defesa do desertor de unidade sediada fora da sede da DPU (que está localizada no município sede da Auditoria) acaba sendo prejudicada, pela dificuldade de contato direto entre réu e defensor, bem por isso, em muitas ocasiões o Conselho Julgador entendeu demonstrada a alegação do réu, baseando-se em indícios de prova do alegado estado de necessidade.
Partindo do pressuposto de que não há divergência doutrinária ou jurisprudencial acerca do estado de necessidade exculpante da culpabilidade, cabe analisar, agora, a ocorrência da atipicidade conglobante nas alegações de proteção do direito de pessoa cara ao agente.
A questão da tipicidade conglobante (oposto da atipicidade) foi bem enfrentada ao início da década de 80 do século passado, por Eugenio Raúl Zaffaroni e Ricardo Juan Cavallero, juristas argentinos.[17] Para eles, a norma proibitiva que dá lugar ao tipo penal não está isolada, mas permanece junto com outras normas também proibitivas, formando uma ordem normativa (quando considerada conglobadamente), em que não se concebe que uma norma proíba o que outra ordena ou o que a outra fomenta. Assim, a tipicidade penal não se reduz à simples tipicidade legal – o texto proibitivo do CPM, mas pode-se afirmar que a tipicidade penal implica na tipicidade legal corrigida pela tipicidade conglobante, que pode reduzir o âmbito de aparente proibição que surge da consideração isolada da tipicidade legal.
Ou, como nos dizem os dois autores: Los principales supuestos en que consideramos que pese a la tipicidad legal, media una atipicidad conglobante, se dan cuando una norma ordena lo que otra parece prohibir (cumplimiento de deber jurídico), cuando una norma parece prohibir lo que otra fomenta, cuando una norma parece prohibir lo que otra norma excluye del ámbito de prohibición por estar fuera de la ingerencia del Estado, y cuando una norma parece prohibir conductas cuya realización garantizan otras normas, prohibiendo las conductas que la perturban. [18]
Feitas estas considerações, procuro agora, adequar a idéia ao que foi exposto anteriormente e teremos:
TIPICIDADE LEGAL: o dispositivo previsto nos artigos 187 e 183, do Código Penal Militar, que traduz a norma proibitiva: ausentar-se o militar, sem licença da Unidade em que serve, ou do lugar onde deve permanecer, por mais de 8(oito) dias e; deixar de apresentar-se o convocado à incorporação, dentro do prazo que lhe foi marcado, ou, apresentando-se, ausentar-se antes do ato oficial de incorporação.
DEVER JURÍDICO DE AGIR: os dispositivos de ordem constitucional e legal, que determinam condutas de atendimento às pessoas que são caras ao agente, previstos no art. 229 da Carta Magna e art. 1.566 do Código Civil: os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade e; são deveres de ambos os cônjuges (…)sustento, guarda e educação dos filhos. Reforçam ainda este dever, informados com a doutrina de proteção integral, diplomas específicos como o Estatuto da Criança e do Adolescente[19] e o Estatuto do Idoso[20], da mesma forma o Código Penal quando prevê a omissão relevante daquele que tem o dever jurídico de agir[21], além dos crimes omissivos puros contra a assistência familiar, o abandono material.[22]
CONCLUSÃO
O desertor que alega ter rompido o laço com sua Unidade, para defender direito de pessoa que lhe seja cara – e desde que suas alegações sejam comprovadas, constando-se ainda que a ausência foi igualmente motivada pelo fato do desertor ter sido recrutado em município distante da OM onde serve; que não lhe é pago o auxílio-transporte legalmente previsto, impedindo-o, de forma indireta de manter contato com a família e que o soldo percebido do Exército é insuficiente para ajudar a carência ou enfermidade da pessoa que lhe é cara, estaremos diante de caso de atipicidade conglobante, não sendo igualmente exigido dele conduta diversa. No caso é inconcebível que a norma proibitiva da ausência injustificada possa suplantar o caráter cogente da norma imperativa de atendimento a que está submetido pela Constituição e pelas leis. Não se trata, portanto, de uma excludente de culpabilidade, o estado de necessidade do art. 39, mas sim, de caso de atipicidade conglobante, o delito não se perfaz, por não ser concebível que uma norma proíba um comportamento que outra norma impõe como dever. Se verificado, extreme de dúvida, na fase pré-processual, impedirá a interposição da ação penal, requerendo o membro do Ministério Público o arquivamento da IPD ou IPI, por atipicidade conglobante.
São as considerações que me propus a fazer, agradecendo a atenção de todos. Muito obrigado.
Informações Sobre o Autor
Jorge César de Assis
Membro do Ministério Público da União. Promotor da Justiça Militar lotado em Santa Maria – RS. Sócio Fundador da Associação Internacional das Justiças Militares – AIJM. Membro Correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Coordenador da Biblioteca de Estudos de Direito Militar da Editora Juruá.