A influência do Direito Público no Direito Privado

Resumo: A partir das mudanças provocadas nos modelos econômicos em face do industrialismo e do capitalismo, ou até mesmo em virtude da compleição dos poderes públicos na vida econômica, podemos verificar alguns reflexos cominados nas transformações ocorridas no Direito Privado. Assim, se torna urgente a análise acerca do vigor dos conceitos tradicionais, especialmente os aspectos limitadores do Direito Privado, pois o mesmo encontra-se invadido de elementos publicistas, expressas pelos civilistas como “publicização” ou “socialização” do Direito Privado. Logo, o presente trabalho pretende realizar uma análise na distinção entre o Direito Público e Direito Privado, bem como a influência exercida pelo primeiro em face do segundo.


Palavras-chave: relação; direito público; direito privado.


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Abstract: From the changes wrought in the economic models in the face of industrialism and capitalism, or even because of the complexion of government in economic life, we can see some reflections on changes comminated Private Law. Thus, if an urgent review on the traditional concepts of force, especially the limiting aspects of private law, because it is invaded elements of publicists, expressed by civility as “publicity”or “socialization ” of Private Law. Therefore, this study aims to perform an analysis on the distinction between public law and private law, as well as the influence of the first face in the second.


Keywords: relation; public law; private law.


Sumário: 1. Divisão do direito positivo; 2. Fronteiras do direito privado; 3. Constitucionalização do direito civil; 4. Conclusão; 5. Referência bibliográfica.


1. Divisão do Direito Positivo


Antes de adentrarmos na divisão do direito positivo, faz-se necessário sua conceituação, e para isso recorremos à lição de Annibal Freire (1959, p. 230), que o define como o conjunto das normas pelas quais um povo efetivamente se rege, numa dada época.


Várias são as formas de divisão do direito positivo aceitas pela doutrina, havendo ainda os Monistas que desprezam qualquer bifurcação. Além destes últimos, aderindo à separação, temos os Dualistas que concordam com a clássica divisão do Direito em Público e Privado. Já os Trialistas, em face de uma grande intervenção do Estado em diversos setores do Direito, consideram-no divididos em três ramos principais: Público, Privado e Misto. (CARDOSO, 1995, p. 121)


A corrente predominante é a Dualista com a divisão Público e Privado, a qual se filia o mestre mineiro Paulo Nader. Ele entende que a admissão de um Direito Misto implicaria, praticamente, na supressão do Direito Público e do Direito Privado, de vez que em todos os ramos do Direito Positivo há normas de um e outro gênero. (NADER, 1991, p. 109)


Cumpre ressaltar que a divisão do Direito em Público e Privado tem sua origem em Roma, sobre a inspiração do jurisconsulto Domicio Ulpiano (170-228), que sentenciou, conforme fragmento transcrito no Digesto mandado elaborar por Justiniano I e publicado em 533: “Hujus studii duae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum jus est, quod ad statum rei Romanae epectat, privtum quod ad singulo rum utilitatem.”[1] Tal divisão veio então pelos tempos afora, embora semi-esquecida na Idade Média e reaquecida após tal época, com inúmeras opiniões acordes ou discordantes.


2. Fronteiras do Direito Privado


A partir das mudanças provocadas nos modelos econômicos em face do industrialismo e do capitalismo, ou até mesmo em virtude da compleição dos poderes públicos na vida econômica, podemos verificar alguns reflexos cominados nas transformações ocorridas no Direito Privado. Assim, se torna urgente a análise acerca do vigor dos conceitos tradicionais, especialmente os aspectos limitadores do Direito Privado, pois o mesmo encontra-se invadido de elementos publicistas, expressas pelos civilistas como “publicização” ou “socialização” do Direito Privado.


A distinção entre o Direito Público e Direito Privado, atualmente, encontra-se em clima de tensão, principalmente na doutrina juspublicista. Tal fato se dá em face da inércia dos privatistas, confiantes na codificação que cristaliza um esquema do ordenamento jurídico, tornando dogmática sua validade. Via de conseqüência, os privatistas não conseguem captar as influências da referida “publicização”, abordada pelos juspublicistas.


É cediço que o jusnaturalismo e o racionalismo entenderam o Direito Privado em função do indivíduo, apreciando-o como o conjunto de direitos que a estes cabem, ressaltando o antropocentrismo ventilado no Renascimento. É por isso que o direito subjetivo é entendido como poder da vontade do sujeito, e no centro do sistema sobressai o “contrato” como a voluntária submissão do indivíduo a uma limitação da sua liberdade. Nesse sistema, a relação do Direito Privado com o Direito Público é muita clara, pois o primeiro afina-se com o setor dos Direito Naturais e inatos do indivíduo, restando ao segundo direitos emanados pelo Estado voltado para objetivos de interesse geral. (GIORGIANNI, 1998, p. 38)


Entretanto, o elemento complicador que iria ofuscar as divisas acima abordadas, é a norma que a convenção dos particulares não pode derrogar e as leis que interessam à ordem pública. A prova disso nós temos na propriedade privada e no contrato, sustentáculos do sistema do Direito Privado, que se constitucionalizaram em face da nova concepção da vida econômica, associada à idéia liberal.


Cumpre ainda ressaltar que o Direito Privado constituía a expressão de um sistema que exacerbava a atividade do indivíduo na seara da vida econômica. Esse exagerado “individualismo” do Direito Privado levou à supressão de qualquer relevância jurídica das chamadas “comunidades intermédias”, muito importante para compreender o significado e as fronteiras do Direito Privado de então. (GIORGIANNI, 1998, p. 42)


No século XIX, que o Direito Privado recebe decisivas transformações em seu próprio interior. As exigências dos setores sócio-econômicos forçaram os indivíduos a associarem-se, modificando o conteúdo deste ramo da ciência do Direito, permitindo o ingresso de novos operadores econômicos organizados por entes públicos. Por isso, o Direito Privado revelou-se como o conjunto de normas e princípios que disciplinam determinadas atividades econômicas idôneas para a satisfação dos interesses dos indivíduos e dos grupos organizados (GIORGIANNI, 1998, p. 44). Destarte, os instrumentos viabilizadores de tais interesses dizem respeito ao Direito Público, mostrando assim a interferência do setor público no Direito Privado.


As primeiras manifestações da ingerência do setor público se deram pelas limitações introduzidas no período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), tendo o Estado ostentado a função de sumo regulador das forças econômicas. Daí por diante surgiu à tona a “socialização” do Direito Privado e da “função social” da propriedade.


Outro parâmetro para a identificação da baliza entre o Direito Privado e o Direito Público reside na natureza da “atividade”, isto é, na ótica de Michele Giorgianni, seria dos instrumentos utilizados pelos sujeitos, sem referência aos “fins” que estes se propõem a alcançar. (GIORGIANNI, 1998, p. 46)


A avaliação de tal dilema não poderá estar dissociada da concepção de que o bem-estar social podia ser alcançado por meio do livre exercício das vicissitudes econômicas, bem como a libertação da propriedade. Posto isso, quando se pretende a ponderação da restrição imposta à atividade econômica privada, há de se considerar que a pretensão reside em fazer valer os instrumentos da iniciativa econômico-privada e pública para fins do já citado bem-estar geral.


Por isso, aqueles que focalizam tal fato sob a ótica de uma intromissão em uma esfera reservada à iniciativa dos indivíduos, ventilam a hipótese de uma crise do Direito Privado.


Diante de tal contexto, o Direito Privado perdeu o caráter de tutela exclusiva do indivíduo para “socializar-se”, tornando-se diverso daquele regulamentado pelo Código Napoleônico, que se esgotava no direito subjetivo, em especial no que tange à propriedade e no contrato.


O Direito Privado no mundo moderno assumiu nova diretriz, onde o indivíduo encontra a tutela da sua personalidade e dos seus interesses econômicos em outros instrumentos, nunca desprezando a importância do interesse coletivo, o que fez com que o mesmo fosse progressivamente absorvido na Administração Pública. Prova disso, é a utilização do instrumento do contrato em muitas situações que antes eram enquadradas na concessão.


Não obstante essa “privatização” de uma grande parte da atividade atual da administração pública, isto não quer significar uma total avulsão dos princípios fundamentais, pelos quais ela deve estar voltada à satisfação do interesse público. O princípio da “finalidade”, se não é suficiente para subtrair a atividade da sua qualificação privatística, comporta certamente grandes desvios dos princípios do Direito Privado e derrogações à disciplina privatística. Este progressivo obscurecimento da “finalidade”, como elemento de distinção entre o que é público e o que é privado, tornou-se assim, bem visível. (GIORGIANNI, 1998, p. 53)


3. Constitucionalização do Direito Civil


Analisando a codificação do início do século passado, podemos observar que o Código Civil constituía de um texto único, estando aglomeradas de forma sistemáticas as regras gerais do direito comum na órbita privada.


Em meados da metade do século passado a diante, foram editadas normas especiais visando à disciplina de certos conjuntos de relações. As propagações destas leis as foram tão abundantes que o legislador se viu dividido em duas vertentes, sendo a primeira na fixação do movimento de especialização em textos orgânicos, que deixem sobreviver o Código Civil, introduzindo o particularismo jurídico; e a segunda, num novo Código Civil, mediante recodificação. A preferência dos países de maior tradição codificante, foi continua sendo pela primeira solução. (GOMES, 1936, p. 2)


É cediço que a codificação foi um experimento visando cingir as relações referentes ao Direito Civil, onde estivesse inserido o homem privado. Todavia, várias mutações na organização sócio-econômica da atualidade ocasionaram alterações significativas na codificação, tornando desaconselhável permanecer neste sistema.


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O que se predomina é o sistema de edição das leis especiais com sua lógica própria e autônoma. Desloca-se a regulamentação de inteiras matérias do Direito Civil do Código para as leis especiais, por tão amplas e abrangentes, são chamadas de Estatutos.


Com a existência destas leis especiais, há um afastamento dos princípios aceitos no Código, bem como uma cassação, afastamento, ruptura e tradução, explicada numa originalidade, que constituem um dado importante para a sua interpretação. Poderá então ocorrer equívocos na aplicação do Direito, quando interpretarem as leis especiais utilizando critérios e diretrizes da exegese do Direito Civil. (GOMES, 1936, p. 3)


Sendo as leis especiais posteriores ao Código Civil, devemos observar alguns critérios em casos de incompatibilidades, sendo o primeiro a prevalência da lei posterior; e o segundo, a primazia de uma lei especial sobre a geral.


Trilhando na vertente do ofuscamento da linha divisória entre o Direito Privado e o Direito Público, não podemos desprezar a assimilação dos valores próprios do direito privado na seara pública, havendo a emigração de vários princípios para o Direito Constitucional. É nas Constituições que se encontram, hoje definidas, as proposições diretoras dos mais importantes institutos do direito privado, dando ensejo à constitucionalização do Direito Civil. (GOMES, 1936, p. 5)


Logo, a Constituição da República, ao absorver uma série de valores não-patrimoniais, intervém diretamente no negócio jurídico, na família, nas relações de trabalho, na empresa, nas relações de consumo; coloca em xeque o dogmatismo próprio da escola da exegese, tão ciosa de sua neutralidade e pureza científica, que limitava deliberadamente os horizontes do Direito Civil às relações patrimoniais. (FIUZA, 2003, p. 119)


Diante de tal contexto, o direito torna-se promocional, não mais se compatibilizando com o seu engessamento em Códigos, e muito menos se acomodando em uma lógica de monossistema, já em declínio. Por isso, Orlando Gomes aduz que o Código Civil se agoniza em face de seu destino secular, pois caminha perdendo seu significado de repositório de todo o Direito Privado e de centro da experiência jurídica de um povo. (GOMES, 1936, p. 9)


4. Conclusão


Pelas considerações acima alinhavadas, percebe-se que a perspectiva dicotômica da distinção entre Direito Público e Direito Privado encontra-se superada, ou senão nebulosa.


Contudo, devemos considerar a distinção entre os dois campos como relativa, sempre condicionada, procurando delinear um modo sustentável de compreensão do Direito Privado. Meditamos, ademais, que os modelos móveis, fechados, auto-suficientes e pretensamente universais do século XIX não têm mais valia na atualidade.


Assim, o Código Civil, baluarte do Direito Privado, deve ser aberto, móvel, intercalado por cláusulas gerais, para que seus institutos jurídicos possam ser constantemente arejados pelos princípios constitucionais fundamentais. Nota-se que tais vertentes são estudadas pela disciplina apelidada de “Direito Civil Constitucional”. Assim, concede-se permissão para que os institutos civis permaneçam vivos, garantindo a continuidade no futuro, restando asseguradas a sua validade e eficácia como meio de regular e tutelar as relações entre os particulares.


 


Referências bibliográficas:

CARDOSO, Otávio Ferreira. Introdução ao Estudo do Direito. 3ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 121.

FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito Civil – Atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 118.

FREIRE, Annibal. Novíssimo Dicionário Jurídico Brasileiro. São Paulo: LEP S.A., v. 1, 1959, p. 230.

GIORGIANNI, Michele. O Direito Privado e as suas atuais fronteiras. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 747, 1998, p. 38.

GOMES, Orlando. A Agonia do Código Civil. In: Revista de Direito Comparado Luso-Brasileira, v. 10, 1936, p. 2.

NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 109.


Nota:


[1] Tradução: “No estudo do Direito, dois são os aspectos: o Público e o Privado. O Público diz respeito às coisas do Estado, o Privado à utilidade dos particulares.”


Informações Sobre o Autor

Hálisson Rodrigo Lopes

Possui Graduação em de Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos (2000), Licenciatura em Filosofia pela Claretiano (2014), Pós-Graduação em Direito Público pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (2001), Pós-Graduação em Direito Administrativo pela Universidade Gama Filho (2010), Pós-Graduação em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (2011), Pós-Graduação em Filosofia pela Universidade Gama Filho (2011), Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá (2014), Pós-Graduado em Gestão Pública pela Universidade Cândido Mendes (2014), Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (2014), Pós-Graduado em Direito Educacional pela Claretiano (2016), Mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (2005), Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atualmente é Professor Universitário da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE) nos cursos de Graduação e Pós-Graduação e na Fundação Educacional Nordeste Mineiro (FENORD) no curso de Graduação em Direito; Coordenador do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce (FADIVALE). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI); e Assessor de Juiz – Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Comarca de Governador Valadares


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