Resumo: Trata da incidência da função social no ordenamento jurídico brasileiro, sua origem histórica, e sua instrumentalização.
Sumário: 1. Introdução; 2. Contornos conceituais; 3. A origem da função social; 4. A incidência jurídica da função social no ordenamento brasileiro; 5. Da função social nos direitos das coisas; 6. Da função social da empresa; 7. Conclusão
1 INTRODUÇÃO
A Constituição brasileira de 1988, com adoção do denominado Estado Democrático de Direito, prima em todo o seu corpo pela busca da plenitude do homem, seja ele nacional ou estrangeiro, não fazendo distinção de origem, raça, sexo, cor, idade ou de qualquer outra ordem. Consagra, então, como fundamento da Republica Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana, sendo tal valor seguido por todos os demais dispositivos contidos em seu interior, o que deve, necessariamente, também ser buscado pelos demais diplomas legais integrantes da sistemática jurídica pátria.
Nesse sentido, observa-se a declamação do princípio da função social da propriedade no corpo constitucional, tanto no inciso XXIII do artigo 5º, no âmbito dos direitos e garantias fundamentais, quanto no inciso III do artigo 170, como essência da ordem econômica, a qual visa “assegurar a todos existência digna”. Por intermédio de tal princípio, juntamente com outros meios, almeja-se atingir uma sociedade de bem-estar, assegurados o “desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, fundada na harmonia social.
Dessarte, infere-se que todo o sistema legal deve seguir as diretrizes ventiladas na Lex Suprema, sob pena de ser declarado inconstitucional o estatuto que por ela não se guiar, sendo, por conseqüência, expungido do ordenamento jurídico nacional. Nesta vereda, tem-se que os institutos, tanto antigos, quanto modernos, vigentes na sociedade pátria, têm buscado atingir os ditames constitucionais.
2 CONTORNOS CONCEITUAIS
A idéia de função social vincula-se a todo um movimento de funcionalização dos direitos subjetivos, reconstruindo institutos centrais do Direito moderno, tais como a propriedade, o contrato e a empresa. Parte-se do pressuposto de que toda prerrogativa outorgada a alguém deve cumprir um papel perante a sociedade. O titular de um direito que dele se vale animado por egoísmo pode incidir em abuso, situação que afronta os ditames de nossa Constituição, notória por seu caráter cidadão.
Trata-se de decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual foi erigido como fundamento da República Federativa do Brasil, consoante se observa no inciso III do artigo 1o de nossa Lex maior, todo instituto jurídico está impregnado por aquela a fim de que se alcance a edificação de uma sociedade livre, justa e solidária, um dos objetivos fundamentais de nosso Estado. Nesse sentido, deve-se entender por função social a obtenção de um resultado das atividades humanas em prol de toda a coletividade.
Não basta respeitar as prescrições impostas pela lei, há, ainda, que se empregar àquela situação um papel econômico-social (PERLINGIERI, 1991), perseguindo-se, por conseguinte, os valores e princípios preconizados pela Lei superior, em consentâneo com suas finalidades econômicas e sociais, respeitando o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, ou seja, seu aspecto funcional.
3 A ORIGEM DA FUNÇÃO SOCIAL
A idéia de função social ganha proporções por intermédio da construção jurisprudencial francesa, colocando-se como afronta ao sobejo liberalismo presente no Código Napoleônico (Code Napoléon) que, em que pese ter sido lastreado nos aparentes ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, omitia em seu âmago um caráter eminentemente patrimonialista, resguardado pelos interesses burgueses que então regiam a economia e a sociedade. A idealização deste princípio, entretanto, é mais antiga, sendo abordada por São Tomás de Aquino (CHAGAS, 2000), que a concebia em três planos axiológicos, reconhecendo, primeiramente, a prerrogativa concedida ao indivíduo de se apossar de bens materiais, partindo para a contemplação da problemática resultante de tal ato e, posteriormente, condicionando o patrimônio de acordo com o momento histórico vivido.
Há, demais disso, a vinculação da função social com um sentimento até mais remoto, inerente a todos os indivíduos, de cunho eudaimonista teleológico, que buscaria a felicidade através da harmonização do meio social, conferindo ao Estado o papel de mediador e imbuindo-lhe do dever de “equacionar conflitos e interesses, latentes ou efetivos, de modo a propiciar o convívio harmônico entre os homens, que, reunidos em sociedade, buscam a própria realização de valores, ou seja, a felicidade” (MARQUESI, 2006, p.30).
Impende, por derradeiro, frisar o determinante papel dos movimentos humanistas também neste aspecto, considerando-se que arrimaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos, juntamente com outras imperiosas prerrogativas, a propriedade, em seu artigo 17[1] (CHAGAS, 2000), conferindo-lhe a projeção e eficácia horizontal dos direitos internacionais.
4 A INCIDÊNCIA JURÍDICA DA FUNÇÃO SOCIAL NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
A primeira menção jurídica do termo “função social” foi feita no ano de 1946, não tendo logrado êxito, entretanto, face à severa conjuntura ditatorial que engessava e retardava o desenvolvimento de uma ordem constitucional humanística. Ironicamente, o ventilado contexto acabou por constituir conjuntura apropriada para a propagação da consciência constitucional material, através da indignação popular, inspirada em movimentos internacionais de valorização da dignidade da pessoa humana, já mencionados algures. O acenado princípio obteve a primeira referência textual na Constituição de 1967, através da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, que lhe conferiu a posição de princípio basilar de ordem econômica e social.
Por algum período, o país permaneceu em uma situação democrática formal, ainda distante do regime democrático efetivo, que só foi alcançado mediante a alteração nuclear do sistema jurídico, capaz de desencadear implicações em todas as esferas legais, a qual teve início na década de 30 e culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988, que pôs termo aos resquícios tecnicistas mais evidentes que até então vigoravam, extravasando a leitura arcaica direcionada aos ramos jurídicos em comento e redimensionando o ser humano na posição central do sistema.
A consagração da função social como princípio fundamental promoveu novos contornos axiológicos, influenciando a hermenêutica constitucional e relativizando direitos outrora tidos como absolutos, a fim de ensejar a funcionalização.
Como princípio norteador, a função social notoriamente atinge dois dos principais ramos do Direito Civil, os quais serão a seguir discorridos, sobrelevando-se suas particularidades.
5 DA FUNÇÃO SOCIAL NOS DIREITOS DAS COISAS
No tocante à abordagem relativa ao Direito das Coisas, releva-se o posicionamento do renomado jurista francês Léon Duguit que, objetivando a crítica de teorias arraigadas e obsoletas e inspirado na concepção propugnada pela igreja católica no tocante à destinação da propriedade para fins coletivos, pautado, ainda, na questionável doutrina por ele pregada de negação dos direitos subjetivos, fomentou a transformação da instituição jurídica da propriedade, no sentido de que seu titular deveria empregá-la na geração de riquezas, beneficiando, assim, a toda a sociedade. Duguit cerceou o aludido direito de maneira ferrenha, considerando-o como uma realidade econômica e não jurídica, sendo passível, portanto, de flexibilização. Impôs, assim, ao proprietário que é agraciado com a guarida normativa para sua fruição, o dever de zelar pela produtividade, satisfazendo aos seus interesses e, ainda que indiretamente, ao de toda a coletividade, convalidando a máxima ius et obligatio correlata sunt.
Como bem aclara o egrégio doutrinador Sílvio de Salvo Venosa (2003), a esfera dos direitos reais sempre se apresentou como a mais sólida das categorias centrais do Direito Civil, dotada de estabilidade acentuada e resistindo quase que infesa às revoluções sociais, políticas e econômicas pelas quais passou. No Brasil, foi-lhe conferida forte guarida legal na égide do Estado Liberal, vigente na tessitura do século XIX, impondo ao Código Civil de 1916 uma enlevação dos ideais oitocentistas de supervalorização dos direitos individuais, configurando uma postura clássica, com o flagrante escopo de eternizar o ideário patrimonialista coligido da defesa dos interesses liberais burgueses. Tal conjuntura jurídica construiu dogmática alheia à sociedade e suas precisões, portanto, sem legitimidade. A justificativa da ventilada vertente interpretativa respaldava-se insatisfatoriamente na mera utilidade econômica e nas teorias exegética e pandectista, que proporcionaram a estagnação do tratamento do Direito das Coisas, vinculando-o a um viés clássico e obsoleto, fomentando uma ideologia racional técnica precária, muito distante dos atuais princípios constitucionais privados.
Não obstante o acima aludido, é cediço que o Direito sofre alterações e influências sociológicas com o passar dos tempos[2], uma vez que a sociedade não é estática e que, para se adequar a esta, mudanças são imperiosas. Nesta ordem de idéias sabe-se que o Direito Civil, especificamente o ramo do Direito das Coisas, também sofreu mutações, ainda que de forma branda, com a evolução temporal.
Hodiernamente, o regime de titularidades, no que concerne aos direitos de aplicabilidade erga omnes, satisfaz o intento positivado no artigo 5º, inciso XXIII da Lex Magna, que em todo o seu discurso conduz o aplicador do direito à utilização teleológica de seus termos, exempli gratia, ao elencar os requisitos que caracterizam o devido exercício do domínio em seu artigo 186[3], ou, até mesmo ao prever a possibilidade de desapropriação consoante disposto nos artigos 182[4] e 184[5] do mesmo texto legal.
Também o Código Civil adotou a perspectiva social forjada na Constituição ao citar o aludido princípio no artigo 1.228[6] que, por desdobramento, atinge todos os outros direitos reais elencados nos incisos do artigo 1.225[7], incutindo-lhes o mesmo ideal direcionador.
Institutos como o usufruto, a superfície, o uso e a habitação, por sua essência já perfazem real projeção da predisposição jurídica de efetivação da função social, atinando também para a relevância da posse, além da propriedade, para o alcance deste intento.
Pontifica Hernandez Gil ser a função social pressuposto e escopo de todas as instituições reguladas pelo Direito, incluindo-se aí todas as instituições dos Direitos Reais, a fim de alcançar melhor distribuição de recursos coletivos, alvejando-se, conseqüentemente, igualdade material entre as pessoas.
6 DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
Como consigna Gladston Mamede (2006), poder-se-ia pensar que eventuais crises econômico-financeiras de que possa padecer a empresa seriam problemas afetos apenas à mesma, não dizendo respeito à coletividade, ao Poder Público ou a qualquer pessoa, uma vez que o empresário deve responder pelos riscos de seu empreendimento. Ocorre, todavia, que tal visão consagra a empresa como fenômeno essencialmente privado da realidade econômica e jurídica, esquecendo-se do papel social que aquela cumpre ou, ao menos, deve cumprir perante a sociedade.
Com efeito, o Direito Empresarial submete-se ao regime jurídico privado. É matéria regulada pelo principal diploma privatístico do ordenamento pátrio, sendo notório o fato de a atividade empresarial ser exercida visando ao lucro. Entretanto, é inconteste que a empresa desempenha papel de suma importância na sociedade, já que proporciona infindas conveniências à população e ao Estado, tais como a circulação de riquezas e a produção de mercadorias.
Na lição de Maria Helena Diniz (1994), o direito consiste em atingir os fins sociais, de forma que sua compreensão encontrar-se-á nesses objetivos. A ordem jurídica, como um todo, é um conjunto de normas que busca viabilizar a sociabilidade humana (FERRAZ JÚNIOR, 1994). A empresa, como instituto regulado pelo Direito, não deve ficar à margem das finalidades sociais que justificam a existência daquele, e das situações por ele regulamentadas.
Em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual foi erigido como fundamento da República Federativa do Brasil, consoante já sublinhado, todo instituto jurídico está impregnado pela função social, a fim de que se alcance a edificação de uma sociedade livre, justa e solidária, objetivo fundamental do Estado brasileiro. Nesse sentido, deve-se entender por função social a obtenção de um resultado das atividades humanas em prol de toda a coletividade.
A empresa, como importante agente social dotado de acentuado poder sócio-econômico, não pode deixar de receber referida inspiração constitucional, adequando as normas concernentes à mesma à ordem jurídica vigente como forma de cumprir a sua finalidade de instituto jurídico.
Assim, a fim de cumprir sua função social, deve a empresa observar princípios constitucionais como: solidariedade[8], promoção da justiça social[9] e da livre iniciativa[10], respeito e proteção ao meio-ambiente[11], redução das desigualdades sociais[12], busca do pleno emprego[13], valores sociais do trabalho[14], dentre outros, todos corolários do princípio da dignidade da pessoa humana.
A atividade empresarial deve ainda se pautar por outros valores, a saber: princípio da dignidade, da moralidade e da boa-fé empresarial (FERREIRA, 2005). O primeiro se verifica através do exercício da atividade econômica de forma equilibrada e sem abusos. Já considerando a moralidade empresarial, a empresa deve zelar pela qualidade de seus produtos e serviços e buscar sempre a formalidade de suas atividades, adimplindo seus deveres fiscais. Finalmente, quanto à boa-fé, essa se patenteia por intermédio de uma atuação refletida, com lealdade e sem abusos, buscando atingir o regular cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes (MARQUES, 2005).
A função social da empresa, assim, surge combinada com ações sociais, inspiradas em direitos nobres, como a tutela do meio ambiente natural ou artificial, melhoria do meio ambiente de trabalho e das relações entre empresário e empregados. A atividade empresarial deve atender não só a interesses individuais, mas também os interesses gerais da sociedade de consumo, de forma que haja um equilíbrio (FERREIRA, 2005).
Parcela doutrinária reputa que a função social da empresa é decorrência lógica do princípio da função social da propriedade privada, encarando a empresa sob o prisma da exploração dos bens de produção.
Sob outra perspectiva, pontifica José da Silva Pacheco que, uma vez que a sociedade empresária resulta de um contrato[15], o instrumento que a constituir sujeita-se ao princípio fundamental do artigo 421[16] do Código Civil, isto é, de que o contrato deve cumprir sua função social[17]. Desta maneira, a liberdade de contratar, entre pessoas, para o exercício da atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços[18], deve ser também “exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (PACHECO, 2007, p.112).
Em identificação abreviada, a função social é utilidade à sociedade, atendimento do interesse coletivo e são irrelevantes maiores discussões acerca de ser a função social da empresa decorrente da propriedade (por ser meio de produção) ou do contrato (por se originar deste). De toda sorte, o exercício profissional da atividade econômica organizada deverá subordinar-se à função social que implica, atentando para os interesses que convergem na empresa.
7 CONCLUSÃO
A efetivação do princípio da função social ensejou a consideração, por algumas correntes, da existência de uma contitucionalização do Direito Civil, ou até mesmo de sua publicização. Entende-se, data venia, tratar-se de um equívoco terminológico, ressalvado o mérito de insignes doutrinadores como Pietro Perlingieri (1991), que no ordenamento jurídico italiano concebeu o “diritto civile nella legalità costituzionale”, cuja correlata tradução é impraticável no sistema brasileiro, haja vista a impossibilidade de um direito que não seja constitucional, garantido no sistema de controle e na inexorável convicção de que é a essência material da Carta Magna que dita os eixos paradigmáticos de todo o ordenamento jurídico. Desta forma, tem-se que esse redimensionamento e interlocução dos referidos ramos de direito resulta na intrumentalização da Constituição, através da aplicação efetiva de seus preceitos pelas leis ordinárias que, sob o jugo das premissas superiores, dão-lhe operabilidade no plano fático.
A publicização, conceito ainda mais errôneo, suscita a já superada dicotomia jurídica[19] e pende para supervalorização legislativa, com o fito de estabelecer igualdade material, reduzindo a autonomia privada.
Mais do que uma perspectiva civil constitucional, essa conjuntura promove a funcionalização daquilo considerado e consagrado como imprescindível no ordenamento pátrio, através de comandos verticais que ensejam a produção de leis capazes de conferir aplicabilidade ao texto constitucional e adequação à realidade social.
RODRIGUES, Silvio. Curso de Direito Civil – Direito das Coisas. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v.5.
Informações Sobre os Autores
Janaina Lumy Hamdan
Discente de Direito e pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina; estagiária da Magistratura Federal – Juizado Especial em Londrina – PR
João Carlos Leal Júnior
Acadêmico de Direito e pesquisador da Universidade Estadual de Londrina – PR; estagiário do Ministério Público do Trabalho – PR
Natália Taves Pires
Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade de Direito da Alta Paulista – Tupã – SP; mestra em Direito pelo Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha – Marília – SP; orientadora do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário Salesiano – Araçatuba – SP; pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina – PR; advogada
Julio César de Freitas Filho
Discente de Direito e pesquisador da Universidade Estadual de Londrina; estagiário da Magistratura Estadual do Paraná.