A invalidade do artigo 385 do Código de Processo Penal frente à Constituição da República de 1988

Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir a validade do artigo 385 do Código de Processo Penal, que permite ao juiz proferir sentença condenatória diante do pronunciamento ministerial pela absolvição. Primeiramente, será analisado o contexto sociopolítico do advento do Código, o que será seguido por breve exposição acerca do Poder Punitivo Estatal. Posteriormente, serão apresentados os direitos e garantias trazidas pela Constituição de 1988, que conduzem à adoção do Sistema Acusatório. Em seguida, os ditames constitucionais serão confrontados com a redação do referido artigo 385. Nessa ocasião, a delimitação dos papeis exercidos pela acusação e pelo órgão julgador receberão especial atenção. Por fim, será apresentada conclusão pela incompatibilidade da norma em análise com o ordenamento jurídico brasileiro. A título de ilustração, além do enfoque bibliográfico, serão apresentadas decisões judiciais tratando do tema.

Palavras-chave: Processo Penal; Sistema Acusatório; Artigo 385; Código de Processo Penal; Invalidade.

Sumário: 1. Introdução. 2. Principais sistemas processuais penais vigentes: acusatório e inquisitório características diferenças e avaliação ã luz da Constituição da República de 1988. 2.1 Sistema inquisitório. 2.2 Sistema acusatório e sua adequação à Constituição da República de 1988. 3. Incompatibilidade do artigo 385 do CPP com o ordenamento jurídico brasileiro. 3.1. Limitações ao Poder legislativo. 3.2. Sujeitos processuais à luz do Sistema Acusatório. 3.2.1. Papel do acusador. 3.2.2. Papel do julgador e os limites do livre convencimento. 3.3. Atual disposição do artigo 385 do CPP e sua consequência prática. 4. Conclusão. Referências

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INTRODUÇÃO

Embora a Constituição Brasileira assegure um processo pautado em direitos e garantias do acusado, no ordenamento infraconstitucional, ainda subsistem disposições que versam em sentido oposto.

O tema que se pretende investigar é a possibilidade jurídica de uma condenação em processo no qual o Ministério Público pugne pela absolvição do réu.

O Código de Processo Penal em vigor admite que a condenação se dê nos referidos moldes, ao prever o seguinte:

“Art. 385 – Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”. (BRASIL. 1941, p. 19.688)[1]

Datados de 1941, os dizerem indicam um contexto sociopolítico autoritário e de supressão de garantias processuais hoje contempladas na Carta Magna.

O trabalho visa apontar as intepretações que devem ser buscadas à luz do novo modelo processual penal traçado pela Constituição, deixando de lado os contornos de normas processuais antiquadas que não mais expressam a finalidade de proteção dos bens jurídicos assumida pelo Direito.

O objetivo da presente pesquisa é desconstruir a presunção de validade desta norma, demonstrando que não foi recepcionada pela Constituição da República de 1988, por manifestamente violar seus princípios e, principalmente, o Sistema Acusatório.

Uma vez eleitos os ditames constitucionais como pano de fundo do presente estudo, serão confrontadas as estruturas processuais do Sistema Acusatório e do Sistema Inquisitório. 

 Dessa forma, a argumentação será construída visando defender a tese de que uma vez ausente a formulação da pretensão acusatória ministerial, incabível será a condenação do réu, pois situação diversa não encontra amparo constitucional.

A escolha do tema foi pautada na relevância com que as garantias do Processo Penal vêm sendo tratadas na doutrina e na jurisprudência atuais.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 foi o marco da modificação do sistema processual penal adotado no Brasil. O texto constitucional trouxe consigo um sistema de direitos e garantias que rompeu com grande parte dos paradigmas existentes. Surgiu, no horizonte normativo pátrio, uma fonte de mudanças e evolução do sistema vigente.

Com o desabrochar de uma nova era, o processo penal passou a ter o desígnio não mais de alcançar uma condenação a qualquer custo, mas de conduzir uma persecução previamente traçada e respeitadora dos limites impostos ao Estado. Nas palavras de Luigi Ferrajoli:

“O escopo justificador do processo penal se identifica com as garantias das liberdades do cidadão, mediante a garantia da verdade – uma verdade não caída do céu, mas atingida mediante provas e debatida – contra o abuso e o erro”. (FERRAJOLI, 2002. p. 439.)[2]

O Direito não deve mais ser vislumbrado apenas como um instrumento para a solução de conflitos sociais, ao contrário, deve servir de mecanismo de freio das arbitrariedades cometidas pelo Estado – inclusive pelo próprio legislador. Em meio à moderna concepção da ciência jurídica de alocar o indivíduo em patamar superior ao do direito posto, é inaceitável que uma norma suprima direitos e garantias fundamentais.

Diante da nova ótica constitucional, a legislação vigente deve ser analisada e criticada, a fim de que seja resguardado o Estado Democrático de Direito com todas as suas características, entre elas, a de garantir ao cidadão um julgamento por indivíduo imparcial e equidistante das partes.

Nesse contexto, a relevância de discutir as normas que regem o processo penal ultrapassa a esfera do campo jurídico, recaindo sobre o interesse de toda a sociedade, que espera por parte do Poder Judiciário a máxima efetividade na defesa dos valores constitucionais.

 Por isso, é deveras pertinente demonstrar a inaplicabilidade do artigo 385 do Código de Processo Penal nos dias atuais.

Uma vez que o Ministério Público pugne pela absolvição do réu, caso sobrevenha sentença penal condenatória, o juiz estará atuando em substituição à figura do acusador.  A relação entre os sujeitos processuais não deve pautar-se em subordinação ao magistrado, da forma como é apresentada a pela doutrina clássica; ao contrário, deve reger-se pelos Princípios da Cooperação e da Participação, de modo que a decisão judicial deve ser fruto das alegações apresentadas pelas partes. A moderna doutrina não mais apresenta a relação processual com hierarquia entre o magistrado e as partes; e sim, aponta para um horizonte igualitário, onde há direitos e deveres recíprocos, sendo a busca da solução justa o principal ponto de convergência.  Portanto, diante da manifestação Ministerial pela não condenação, não restará ao julgador outra conduta que não a de absolver o agente.

O posicionamento ao qual o trabalho deseja direcionar o leitor será construído em diversas etapas, pensadas para que a conclusão não derive de afirmações sem as devidas fundamentações; e sim da releitura do texto normativo à luz da Constituição da República.

Primeiramente, será questionada a compatibilidade do artigo 385 do Código de Processo Penal com os valores ditados pela Constituição da República de 1988. É exatamente este ponto que se pretende negar. Será desenvolvida argumentação para demonstrar que a resposta deriva da interpretação axiológica da Carta Magna, que preceitua a divisão das funções julgadora, defensiva e acusatória no processo penal.

Ultrapassada tal questão, e como desdobramento desta, surgirá a discussão acerca da atuação do juiz ao proferir sentença condenatória quando o órgão acusador entende pela absolvição: estaria, nesse caso, exercendo a dupla função de julgador-acusador, caracterizando uma atuação nos moldes inquisitoriais?

Uma vez postas à baila as controvérsias que cercam a possibilidade do juiz condenar o réu diante da formulação do pedido de absolvição pelo Ministério Público, com o objetivo de enriquecer o debate, cumpre mencionar a existência de opiniões antagônicas. 

De um lado, estão aqueles que entendem que o magistrado não está obrigado a atender ao pedido e, por consequência, absolver o réu. O argumento se firma com base no Princípio da Íntima Convicção do Juiz sobre o mérito da causa, o que não se subordinaria a qualquer pedido anterior. No mais, afirmam que deve ser observado o Princípio da Indisponibilidade da ação, por meio do qual deve prevalecer a persecução penal, o que atenderia o interesse público. Para esta corrente, em caso de descontentamento com a sentença, restaria ao parquet apenas recorrer em favor do réu. Afirmam ainda que, pelo próprio Princípio Acusatório, o fato de acusador, defensor e julgador exercerem funções independentes faria com que o juiz pudesse decidir sem se vincular a qualquer manifestação das partes, pois, entender pela obrigatoriedade da absolvição afastaria qualquer possibilidade do julgador divergir do Ministério Público, o que elevaria tal órgão a uma escala superior, de modo a contrariar a isonomia processual.

Em sentido oposto, está a corrente que se pretende defender: a que afirma que caso o Ministério Público peça a absolvição, estará o magistrado vinculado a tal pedido, pois diante da ausência da acusação, em preservação dos postulados constitucionais, seria exigido do juiz que proferisse sentença absolutória. Diante disso, não havendo pretensão acusatória por parte do Ministério Público, seria incabível prolação de sentença em sentido contrário. Desse modo, para essa parte da doutrina, não haveria mais a aplicabilidade do artigo 385 do Código de Processo Penal, face às garantias que pretendeu trazer a Constituição da República de 1988.

Embora a tese que se almeja corroborar seja de adesão ainda minoritária na doutrina, todos os questionamentos que surgirão no decorrer da produção serão sanados com base não só nos julgamentos dos tribunais, mas também na argumentação teórica de pensadores e juristas que vão de encontro ao atualmente disposto no Código de Processo Penal, que autoriza o juiz a condenar o réu não obstante o Ministério Público, órgão responsável pela acusação, tenha se manifestado pela absolvição.

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Terão enfoque a bibliografia e a jurisprudência, bem como o procedimento de investigação histórica, que terá objetivo de relacionar o regime ditatorial à elaboração do Código de Processo Penal.

Entendimento em contrário à ideia que se pretende consagrar será analisado à luz de diversas perspectivas que conduzem ao mesmo resultado: a incompatibilidade do artigo 385 do Código de Processo Penal com o Estado Democrático de Direito.

2. PRINCIPAIS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS VIGENTES: ACUSATÓRIO E INQUISITÓRIO – CARACTERÍSTICAS, DIFERENÇAS E AVALIAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988

2.1. Sistema inquisitório

O Processo Penal pode ser apresentado sob óticas claramente distintas, sendo elas o Sistema Inquisitório e o Sistema Acusatório. Primeiramente, é importante mencionar que essa divisão trata de concepções puras ideais, que não são mais encontradas atualmente, pois os sistemas jurídicos adotam normas em que as características de ambos coexistem. Para que seja possível classificá-los em determinado modelo, é necessário aferir os aspectos predominantes de cada um. Os limites normais desse trabalho impedem que temas correlatos ao objeto principal sejam abordados forma a esgotá-los; ao contrário, trata-se de breve apresentação com enfoque nos pontos diretamente relacionados à pesquisa.

O estudo a seguir será dedicado a avaliar os meios pelos quais os instrumentos coercitivos e supressores de liberdade oferecidos pelo Direito podem ser manuseados. A partir dessa visão, é possível formular pensamento crítico para que não recaiamos em erros cometidos no passado, de modo que a solução dos conflitos jurídico-penais não se torne instrumento de tortura. É preciso conferir às penas não só o caráter retributivo do mal cometido à sociedade, mas também ressocializador, conservando, para isso, a dignidade e os direitos do indivíduo. À medida que evolui a sociedade, deve com ela evoluir o Direito, não só para que atenda seus anseios, mas para que resguarde seus valores.

Cumpre iniciar o tema com a abordagem sobre o Sistema Inquisitório. Sobre a inquisição, cabe ressaltar o seguinte trecho, da obra de João Bernardino Gonzaga:

“As censuras apresentadas contra a inquisição giram, invariável e incansavelmente, em torno das ideias de intolerância, prepotência, crueldade; mas, ao assim descrevê-la, os críticos abstraem, ou referem muito de leve, o ambiente em que ela viveu. Forçam por trata-la quase sempre como um acontecimento isolado, e medida pelos padrões da atualidade, se torna incompreensível e repulsiva para o espectador de hoje. Sucede porém que esse fenômeno foi produto de sua época, inserido num clima religioso e em certas condições de vida, submetido à força dos costumes e de toda uma formação cultural e mental, fatores que forçosamente tiveram de moldar o seu comportamento”. (GONZAGA, 1994.)[3]

Uma vez salientado que o Sistema Inquisitório foi o principal instrumento de manifestação do poder punitivo durante a idade média, não causa espanto que suas características se debrucem sobre a premissa de que todo acusado era, de fato, culpado e de que a prisão deveria ser a regra durante a (curta e tendenciosa) investigação.

Inquisitivo é: “relativo ou que envolve inquisição; antigo tribunal eclesiástico instituído com o fim de investigar e punir crimes contra a fé católica; Santo Ofício.” (grifo nosso) (FERREIRA, 1986, p.950) [4]

O processo não tinha qualquer função senão a de meramente encenar um julgamento. O acusado era não mais que simples objeto, não sendo tratado como sujeito de direitos.

Havia prévia valoração da prova, de modo que cada instrumento probatório tinha sua importância fixada independente das circunstâncias narradas nos autos. Pode-se dizer que, por isso, o processo penal se distanciava da realidade do caso concreto.

O processo não era público, e, por ser mantido às escondidas, não era objeto de controle de legalidade. Questiona Beccaria: “Quem pode defender-se da calúnia quando ela é armada pelo mais forte escuro da tirania, o segredo?”(BECCARIA, 2005) [5]

Após o julgamento, os réus não eram protegidos pela segurança da coisa julgada, podendo ser processados novamente pelo mesmo fato.

Ademais, é óbvia a conclusão de que não havia a presunção de inocência, tampouco direito ao contraditório e à paridade de armas. À acusação era dado o benefício da dúvida, cabendo ao réu fazer prova de sua inocência.

Comumente, estavam reunidas no juiz as funções de acusar, julgar e defender, sendo lícito a esse mesmo juiz iniciar o processo criminal ex officio. Em outras palavras: órgão que investigava era o mesmo que punia, pois o magistrado assumia as vestes da acusação. A confusão entre o acusador e o julgador, por obvio, impedia a equidistância entre as partes e comprometia a imparcialidade da decisão. O julgador podia, ainda, se substituir à atividade das partes para a apresentação das provas. Cabe ressaltar que, muitas vezes, o convencimento judicial era formado antes de iniciado o processo, bastando sua íntima convicção para que o réu fosse condenado.

Em resumo: o Sistema Inquisitório concentrava nas mãos do magistrado um poder quase sem limites

Em evidente confronto com modelo Inquisitório está o modelo Acusatório, que, conforme será demonstrado, é o único em conformidade com a Constituição brasileira.

2.2. Sistema acusatório e sua adequação à Constituição da República de 1988

O constituinte originário não positivou todos os princípios que regem as relações jurídicas, de modo a não conferir-lhes um rol taxativo – e não o fez por absoluta impossibilidade, sob pena de ser leviano, e, por mero formalismo, suprimir garantias individuais.

A Carta Magna, embora não adote expressamente o Sistema Acusatório, consagrou-o em seu texto. Diante dos ditames do artigo 5º, não é possível outra conclusão. Pode-se dizer que a eleição do Sistema Acusatório é consequência natural do regime democrático. Vejamos.

Seguindo o fluxo oposto do Sistema Inquisitório, o Sistema Acusatório é marcado por uma série de garantias que objetivam proteger o réu dos abusos do poder punitivo.

Primeiramente, e, como regra geral que desencadeia todas as demais, passou a ser conferido tratamento igualitário às partes, não existindo, para qualquer delas, vantagens processuais sobre a outra – da forma como outrora ocorria em relação aos privilégios da acusação. Ao contrário: só será permitido tratamento desigual para beneficiar o réu, a fim de minimizar sua óbvia hipossuficiência técnica e probatória em relação ao Estado. Isso quer dizer que, diante do juízo de incerteza, não ficando provadas a existência e autoria do delito, será o acusado declarado inocente. Com advento da nova sistemática constitucional, em que acusação e defesa se contrapõem em igualdade de posições, foi assegurado o Devido Processo Legal e a Ampla Defesa.

Nesse contexto, o réu disporá dos mesmos meios de prova facultados ao órgão acusador (materializado na figura do Ministério Público). É também garantido o Contraditório, podendo ambas as partes influenciar no teor da decisão, uma vez que o convencimento judicial não será prévio à instauração do processo, sendo formado no decorrer dele, baseando-se nos elementos trazidos aos autos pelas partes.

Para possibilitar o pleno exercício do direito à defesa, sua manifestação, em regra, será precedida da manifestação da acusação, para que o réu tenha inteiro conhecimento dos fatos e fundamentos apresentados em seu desfavor.

O processo será eminentemente público, estando aos olhos de qualquer pessoa do povo e podendo ser objeto de controle de legalidade exercido pelas próprias partes. Eventuais casos de segredo de justiça só serão admitidos quando expressamente previstos em lei, mediante decisão fundamentada. Do mesmo modo, a liberdade do réu deve ser resguardada, ressalvados os casos em que deve ser mantido em cárcere, determinado por juiz competente, devendo ser expostas suas razões. Com escopo de segurança jurídica, uma vez transitada em julgada a decisão, não haverá novo processo narrando os mesmos fatos.

O maior e mais importante desdobramento da igualdade entre as partes é a separação entre o órgão acusador e o julgador. Com isso, torna-se possível um julgamento imparcial, onde haverá garantia não apenas de que o magistrado estará equidistante das pretensões das partes, mas também de que os sujeitos processuais serão tratados de forma equânime, estando em igualdade de condições na busca por um provimento judicial que lhe seja favorável. Note-se que a imparcialidade só é garantida pelas concepções do Sistema Acusatório; no Sistema Inquisitório, ao contrário, é sacrificada por sua própria essência.

Dessa forma, as figuras processuais são bem delimitadas e suas atividades não se confundem, sobre pena de nulidade absoluta por violação aos preceitos constitucionais.

O Sistema Acusatório destaca a separação das funções de julgar e de acusar. Clara demonstração dessa tomada de posição pela Carta Magna de 1988 são as regras de titularidade da ação penal pública, que é conferida exclusivamente ao Ministério Publico (art. 129, I). Ao juiz, portanto, não cabe outra tarefa diferente de julgar.

Além da ação penal ser iniciada por estimulo estranho ao órgão responsável por seu julgamento, o  individuo ocupa o primeiro plano, devendo o Estado, não obstante sua função de coibir os delitos, atuar na promoção da dignidade da pessoa humana, estando a seu serviço.

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Os elementos que caracterizam o Sistema Acusatório e o distinguem do Sistema Inquisitório não são poucos.

Embora as características inquisitoriais tenham perdido espaço, não desapareceram completamente. Cumpre recordar que, conforme mencionado nos capítulos anteriores, o Código de Processo Penal Brasileiro é fruto de um período da história em que vivíamos as repressões de um regime político totalitário. Desse modo, não obstante findos os tempos em que a sociedade se subjugava à tortura como manifestação estatal, sua herança permaneceu em nosso ordenamento.

Diversos são os exemplos capazes de ilustrar o caráter inquisitório do CPP, entre eles estão a possibilidade do juiz produzir prova ex officio antes mesmo de iniciada a ação penal (art. 156), a possibilidade do juiz ouvir testemunhas, e também o ofendido quando não arrolados pelas partes (art. 209 c/c 201), bem como determinar a busca e apreensão independente de provocação (art.242).  Em meio a tantas outras circunstâncias, a que mais chama atenção é a ditada pelo artigo 385, que assim dispõe:

“Art. 385.  Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”. (BRASIL, 1941, p. 19.688.) [6]

Trata-se de evidente confronto com o modelo constitucionalmente eleito, ao possibilitar ao magistrado proferir sentença penal condenatória sem que a acusação tenha se manifestado nesse sentido – remetendo a uma volta às premissas inquisitoriais por violar a separação de funções, uma vez que o magistrado, nessa situação, estaria se investindo da atribuição de acusar.

Uma vez que o Sistema Acusatório foi reverenciado pelo legislador constituinte, a conclusão lógica é que todo o processo penal deve ser analisado à luz de suas premissas. Desse modo, faz-se necessária uma releitura de seus institutos, a fim de que, a partir da adaptação do intérprete, sejam compatibilizados com a nova ótica constitucional.

Desse modo, qualquer norma que sugira o modelo Inquisitório deve ser tida como materialmente inconstitucional. Isto porque, para assegurar a supremacia da Lei Maior, o ordenamento jurídico deve passar pelo filtro que distinguirá as normas válidas das inválidas. 

Como ensina Ferrajoli (1999), o erro está em confundir os planos da existência e da validade. O mero fato de uma norma existir não necessariamente implica sua validade. Dessa forma, embora vigentes, só serão aptas a produzir efeitos aquelas que estejam em consonância com o sistema jurídico e o Estado Democrático de Direito. Caso contrário, serão reputadas inválidas (quer seja em sede de controle difuso; quer seja em sede de controle concentrado), de modo que não devem ser aplicadas ao caso concreto por não terem sobrevivido ao filtro constitucional de aferição de validade.

O que se pretende demonstrar é que não há mais espaço para manifestações inquisitoriais tais como as preceituadas pelo artigo 385 do Código de Processo Penal, de modo que este teria sofrido os efeitos do fenômeno da não-recepção[7].

Conforme afirma Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, A adaptação do Código de Processo Penal à Constituição da República é algo que já se espera há mais de duas décadas.

“Cada um deverá ocupar seu lugar originalmente demarcado e o juiz não mais fará o papel da acusação buscando provas contra os acusados, para poder manter a sua imparcialidade (equidistância dos pedidos das partes) até a decisão final de acertamento do caso penal. Tal papel, como se sabe, é da acusação, e caberá ao Ministério Público, hoje preparado para tanto”. (COUTINHO, 2010. p. 2)[8]

Embora inexista expressa previsão constitucional, é dela que se extrai a ideia de que o direito brasileiro abraçou o modelo Acusatório. Considerar a possibilidade de coexistência do modelo inquisitório através de normas infraconstitucionais com o modelo acusatório implica negar a vigência da Constituição como lei maior. No Estado Democrático, não há outro sistema capaz de originar decisões juridicamente válidas senão o Acusatório, já que não restam dúvidas de que trata-se da ótica processual que mais avançou em direção à tutela dos direitos e garantias do réu. Na mesma linha, Lopes Jr.: "o sistema acusatório é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado." (LOPES JUNIOR, 2012. p. 214) [9]

3. INCOMPATIBILIDADE DO ARTIGO 385 DO CPP COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

3.1. Limitações ao Poder legislativo

O Os princípios constitucionais não limitam apenas o Judiciário, mas também as outras duas esferas de poder: o Executivo e o Legislativo. Quanto à atuação do Poder Executivo, não cabe tecer maiores comentários nesse estudo, que não pretende esgotar o tema da atuação estatal. Quanto ao poder legislativo, vejamos:

O legislador infraconstitucional não tem carta branca para livremente delimitar as condutas que devem ser penalizadas, tampouco as consequências jurídicas que dela serão derivadas na ocasião do processo penal. Ao contrário, sua atuação se subordina aos Princípios trazidos pelo poder constituinte. (Nessa seara, cumpre fazer breve menção à discussão em torno da interpretação do termo “ilimitado” quando utilizado para caracterizar o Poder Constituinte Originário. De um lado, estão os que, conferindo valor literal ao vocábulo, afirmam que eventual nova constituição, emanada de nova assembleia constituinte, não se vincularia a resguardar os atuais direitos e garantias constitucionalmente dispostos. Infelizmente, este é o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Do outro lado, está a parcela da doutrina que, de modo mais restritivo, confere interpretação diversa ao termo “ilimitado”, adotando a ideia de que, embora não esteja preso à redação do texto da constituição em vigor, o legislador responsável por elaborar nova Carta deve assegurar os direitos fundamentais anteriormente existentes, em obediência ao que denominaram “Superprincípios”.)

Além de ser subordinado aos ditames constitucionais, o legislador deve observar as diretrizes emanadas de princípios penais, tais como a Intervenção Mínima, que resulta em dois subprincípios: Fragmentariedade e a Subsidiaredade. Através deles, impõe-se a necessidade de que não estejam sob a proteção do Direito Penal toda a universalidade de bens jurídicos; ao contrário, serão objeto de tutela penal aqueles bens consagrados pelo ordenamento como sendo de maior importância. Serão assim considerados os que não podem ter sua proteção garantida através de simples sanção civil. Já que a pena é um meio extremo, o Direto Penal só atuará em caso de grave ataque a bens jurídicos importantes, considerando-se, portanto, a necessidade e a eficiência da sanção a ser cominada.

Ao lado das normas de direito material, figuram as normas de caráter processual. Essas, por obvio, também têm suas disposições subordinadas à Constituição da República, devendo estar em conformidade com os princípios dela emanados. Tal afirmação pode gerar grande paradoxo em razão da já exposta inclinação essencialmente inquisitória e autoritária do Código de Processo Penal. Diante disso, deve haver adaptação da legislação anterior a 1988 à nova realidade jurídica, pois haverá incoerência normativa – uma vez entendendo princípios como normas – sempre que o Estado atuar fora dos limites trazidos pela Constituição.

Além de traduzirem parâmetros para aferição da compatibilidade de normas anteriores à promulgação da Carta Magna, os princípios constitucionais servem como limitadores da vontade do legislador infraconstitucional, que deve atuar de modo a resguardar o Contraditório, a Ampla Defesa, a Isonomia Processual, e todos os preceitos necessários ao desenvolvimento de um processo equilibrado.

Das precedentes reflexões surge a conclusão de que não há lei capaz de se tornar juridicamente válida se confrontar com o Sistema Acusatório, que é o único compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, conforme anteriormente anotado.

3.2. Sujeitos processuais à luz do Sistema Acusatório:

3.2.1. Papel do acusador

Um dos elementos necessários ao desenrolar de um processo legítimo é a acusação. Esta não atua apenas em prol da garantia de que ninguém será levado a juízo sem que haja uma imputação formal e prévia, mas também tem escopo de informar ao acusado o fato e todas as suas circunstâncias, de modo assegurar seu pleno exercício do direito de defesa.  Não se trata, então, de mera formalidade, mas de possibilitar o exercício do Contraditório. 

Nos crimes de ação penal pública, o Ministério Público é o único encarregado de exercer o direito de perseguir a condenação, o que não pode ser conferido a nenhum outro sujeito.[10]

Para que possa ver satisfeita sua pretensão condenatória, o Parquet moverá ação penal por meio de oferecimento de denúncia. As afirmações nela contidas deverão ser inequívocas, descrevendo, com exatidão, o fato típico e todas as suas circunstâncias. Não há espaço para imputações genéricas e abstratas, que impossibilitem o direito da defesa de impugnar objetivamente o teor das acusações. Caso contrário, não havendo exposição clara de suas razões, a peça será reputada defeituosa, e, por consequência, inapta a originar uma condenação juridicamente válida. Isto porque, uma acusação formulada de maneira vaga não permite uma contra argumentação eficiente, representando cerceamento ao exercício do Contraditório. Em resumo, uma acusação imperfeita contamina a legitimidade de todo o processo.

Assim, o julgador somente poderá debruçar-se sobre as menções fáticas do órgão acusador expostas na denúncia. Eventual sentença condenatória deve estar adstrita aos limites do que foi descrito, de modo que a acusação exercerá função de limitar o âmbito em que será exercida a jurisdição. Não serão considerados, portanto, fatos não expostos pelo Parquet. Para que isso ocorra, é necessário que haja o aditamento da denúncia.[11]

Contudo, nas situações em que a instrução não demonstra dinâmica fática diversa da descrita, mas conduz à capitulação jurídica do fato típico diversa da mencionada pelo Ministério Público, pode o julgador alterá-la sem que a denúncia seja aditada, uma vez que não gera prejuízo à defesa, pois o réu refuta os fatos a ele imputados, independentemente da descrição típica a que a conduta será subsumida.[12]

O Ministério Público se intitula “fiscal da lei desinteressado em um resultado processual favorável”, mas, claramente, não o é. Isto porque, quanto ao órgão ministerial ser uma das partes do processo penal, não há divergências doutrinárias.

O conceito de “parte” traduz o desejo por um provimento jurisdicional que lhe agrade, afastando, por obvio, a ideia de desinteresse.

Diante disso, o que se apresenta duvidoso é a ideia de que o Ministério Público seria “parte desinteressada e imparcial”, pois tal afirmação é contrária à própria essência do conceito de partes.

É inadmissível, por ser evidente antagonismo, que a mesma figura possa, simultaneamente, ser tida como parte e atuar imparcialmente.  O Ministério Público não é desinteressado; ao contrário: é parte interessada em obter um provimento judicial favorável à sua pretensão: a de ver condenado o réu nos moldes da denúncia por ele oferecida.

Utilizando-se de sua prerrogativa de fiscalizar a lei, o Ministério Público acaba por intervir no processo utilizando-se do suposto manto da imparcialidade, o que, de fato, lhe gera oportunidades superiores às da defesa de formar o convencimento judicial, de modo a macular a paridade de armas que deveria reger o caminhar processual. Isto porque, ainda que veladamente, o magistrado é levado a crer que o órgão ministerial é mais digno de credibilidade do que a posição ocupada pela defesa – quando, em realidade, ambos deveriam ser compreendidos igualmente, como partes que são. Caso contrário, uma vez que o processo esteja maculado pelas convicções pessoais do julgador, estará comprometida sua imparcialidade, e, com isso, a validade de todos os atos por ele praticados.

Assim sintetiza de Maria Lúcia Karam:

“O Ministério Público não é o único que pode se apresentar como ‘fiscal da lei’. O réu e seu advogado também têm de fiscalizar, controlar, requerer, exigir que a ei seja cumprida. (…) Cumprir a lei não é apenas acusar e condenar, mas é também – e antes de tudo – garantir o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo”. (KARAM, In: PRADO; MALAN, 2009, p. 405) [13]

Embora exista o rigor da lei, é preciso que haja profissionais capazes de interpretá-las, não se deixando levar pelo desejo de castigar simplesmente. Na esfera do processo penal, o Estado não tem como único interesse a punição do culpado, mas também a tutela da liberdade do inocente. No momento de expor suas alegações finais, o Ministério Público tem o dever de atuar com objetividade, valorando a prova produzida na instrução, de modo a requerer a aplicação de uma pena consoante ao que foi demonstrado nos autos, ou, a absolvição.

Uma vez que o Ministério Público é o titular da pretensão acusatória quando a vítima não é legitimada a exercê-la, não há outro modo capaz de instituir uma condenação juridicamente válida senão por meio da atuação desse órgão. Por isso, pode-se dizer que o exercício do poder punitivo está diretamente ligado à invocação condenatória formulada pelo parquet. Eventual pedido de absolvição equivale, em seu resultado prático, ao não exercício desse ofício, de modo a não ser admissível qualquer pronunciamento judicial diverso do absolutório. Caso assim não entendêssemos, estaríamos sujeitando o réu a uma sentença que o condenará sem que tenha havido acusação – prática incompatível com o Estado Democrático de Direito.

3.2.2. Papel do julgador e os limites do livre convencimento:

A nova concepção de igualdade entre as partes exige que superemos a antiga dogmática de conferi-las tratamento igualitário. Para que a igualdade seja efetiva, transpondo a mera formalidade, é necessário dispensar tratamentos desiguais, de maneira a, verdadeiramente, equilibrar as forças dos sujeitos processuais. A igualdade material é aquela que se apresenta real, substancial.

Para isso, torna-se imprescindível a figura de um julgador que atue como garantidor da ordem constitucional no caso concreto. A essa necessidade de maior participação do juiz no processo foi atribuída a denominação “ativismo judicial”. 

A realidade jurídica atual exige que magistrado desempenhe suas atividades não mais como mero operador do direito, mas como agente capaz de suprir as lacunas geradas pela omissão do poder legislativo e promover o controle de constitucionalidade das normas a serem aplicadas. O juiz deixa de ser apenas expectador das atividades das partes, passando a ter consigo a função de aplicar a norma que melhor se harmonize com os ditames da Lei Maior.

As decisões judiciais devem ter sua direção determinada pelos Direitos Fundamentais, que apontam um núcleo a ser resguardado, do qual o magistrado não pode desviar. Figurando como principal objeto de tutela pelo Poder Judiciário está a Dignidade da Pessoa Humana, que serve de parâmetro para a compreensão dos demais institutos do ordenamento jurídico.

Uma vez que o magistrado deve atuar em prol das garantias trazidas pela Constituição Federal, por obvio, seus poderes não lhe permitem surpreender as partes com o teor de suas decisões. Isto quer dizer que os pronunciamentos judiciais não podem ser fundamentados em questões (ainda que de direito ou de ordem pública) sobre as quais as partes não foram chamadas a se manifestar. Trata-se do verdadeiro sentido do Princípio do Contraditório, que, somente quando for assim considerado, será, de fato, respeitado.

Sob essa ótica, deve o magistrado, não apenas proporcionar o exercício do Contraditório, mas torna-lo substancial, garantindo que seja efetivamente exercido, de modo que as partes possam atuar em seu convencimento, que não estará formado antes do fim da instrução processual.  Dessa forma, para que o Contraditório não fique reduzido ao plano da formalidade, as alegações das partes devem ser consideradas na formação do conteúdo decisório. Assim, ao juiz não é facultado julgar além do que foi pedido pelas partes, sob pena da sentença extra ou ultra petita ser tida como nula.

O princípio do ne procedat iudex ex officio, é originalmente atrelado ao processo civil. Com a superação do sistema inquisitório, passou a ser também aplicável ao processo penal. Dele pode ser extraída a norma que veda ao julgador o exercício do direito de ação, cabendo-lhe apenas a função de julgar. Em outras palavras: o magistrado não pode prover sem que haja pedido formulado pelas partes, e sua atuação está a ele limitado. O papel do juiz é julgar a acusação de acordo com a fase de instrução desenvolvida no processo. Ficam à margem de sua apreciação questões não trazidas aos autos e imputações não formuladas pela acusação.

Quando o Ministério Público, em alegações finais, pugna pela absolvição do réu, está, em verdade, formulando nova pretensão – aquele resultado que deseja ver concretizado ao final do processo. Sustentar o posicionamento segundo o qual a opinião ministerial se exaure com o oferecimento da denúncia equivale a esvaziar as funções processuais de promover o convencimento, tornando o processo nada além de um procedimento inútil e meramente formal, inapto a realizar qualquer modificação na situação jurídica do réu.

Além disso, anuir com a possibilidade de condenação em razão da vontade exclusiva do magistrado é permitir o julgamento além do que foi requerido pelas partes, violando a regra da inércia da jurisdição. 

Em caso de pedido de absolvição pelo órgão acusador, o julgamento deve estar a ele vinculado. Entender que o magistrado pode, discordando da formulação ministerial, por sua própria consciência, condenar o réu, implica reconhecer que o jus accusationis não é de titularidade do Ministério Público, mas sim do Estado, passível, portanto, de se materializar na figura de qualquer de seus agentes. Essa possibilidade violaria a distinção que deve haver entre a figura da acusação e do organismo que deverá sentenciar, o que, como consequência, macularia diretamente o Princípio da Imparcialidade.

O juiz será o responsável por, na ocasião da sentença, valorar a tese apresentada pela acusação e a antítese oferecida pela defesa, sendo necessária a apreciação do que foi trazido aos autos – e somente isto, de modo que não lhe cabe o julgamento conforme seus valores pessoais e suas convicções prévias à ação penal.

Conforme nos ensina o mestre Geraldo Prado, cuja transcrição é de inteiro rigor:

“Uma atividade decisionista do juiz, baseada na sua credibilidade social, mas intangível pelas partes, na medida em que se apresenta como exercício de sua potestade, máxima representação da sua vontade pessoal, não é legítima, mesmo quando parece mais eficiente porque atende às pautas de repressão penal.” (PRADO, 2001, p.42.)[14]

Em síntese, as razões dos provimentos judiciais devem ser fundadas nos elementos trazidos aos autos e restritas às pretensões formuladas pelas partes. É necessário, também, que haja motivação. Em outras palavras: a decisão deve conter a exteriorização do raciocínio que conduziu o julgador a determinada conclusão.

As decisões judiciais devem ser motivadas como forma de garantir não apenas às partes, mas a toda a sociedade que o órgão julgador exerceu cognição suficiente para a prolação de uma decisão específica para o caso concreto. Trata-se do mecanismo pelo qual é assegurada a efetiva apreciação pelo juiz das questões de fato e de direito apresentadas pelas partes.

Não devem ser considerados motivados aqueles provimentos judiciais que poderiam ser aplicados genericamente para qualquer situação, como o recorrente “indefiro por ser contrário às provas nos autos.” Também não são consideradas motivações idôneas aquelas que se limitam a reproduzir texto de lei. Note-se que a falta de motivação não ocorre apenas diante da completa omissão, mas também da apresentação de argumentos vagos, de exposições que nada dizem e que são contraditórias entre si. Portanto, não só o silêncio do discurso é capaz de comprometer a ratio decidendi.

Apenas com motivações consistentes o ato judicial será dotado de validade e legalidade. Caso contrário, será reputado nulo, por ser contrário a princípio constitucional e à norma de ordem pública. A motivação não deve ser avaliada apenas sob o critério formal; ao contrário, a formação do convencimento deve ser demonstrada à luz do caso concreto, pois se trata de efetivação das garantias constitucionais.

Dessa forma pode-se dizer que a motivação das decisões judiciais exerce dupla função. Nas palavras de Geraldo Prado e Diogo Malan:

“(…) de um lado, ela serve para verificar – pelo acompanhamento do raciocínio desenvolvido pelo juiz para chegar a um eventual provimento restritivo daqueles direitos – se foram efetivamente obedecidas as regras do devido processo; por outro, será igualmente por intermédio da fundamentação que será visível constatar se a decisão aplicou validamente as normas que permitiam a restrição e se foi apreciado, de maneira correta, o contexto fático que a autorizava”. (PRADO; MALAN, 2009.)[15]

O conhecimento pelas partes do mecanismo utilizado pelo julgador para a formação de seu convencimento é essencial ao Estado Democrático de Direito, devendo, também, ser objeto de controle pelos órgãos superiores em eventual recurso. Caso os interessados não soubessem claramente as razões que conduziram o magistrado a determinado provimento, restaria impossível a identificação de vícios, de modo que não poderiam, concretamente, impugnar sua decisão, tampouco o juízo ad quem poderia exercer o controle formal e material da decisão anteriormente prolatada. A consequência processual da não observância da necessidade de motivação dentro dos moldes acima apresentados é a nulidade absoluta. Isto porque, frustra o interesse público de condução de um processo segundo os ditames constitucionais, dispensando a demonstração de prejuízo às partes.

Diante do acima exposto, pode-se dizer que, muitas vezes, é adotada equivocada concepção do que seja “livre convencimento do juiz”. A liberdade para apreciação das provas consiste na não obrigatoriedade de conferi-las valor previamente estabelecido. Isso não se confunde com a possibilidade violar a legislação – quer seja material, quer seja processual. A decisão judicial está subjugada aos limites impostos pelo ordenamento jurídico, ou seja: pode o juiz decidir livremente, de acordo com seu convencimento, desde que motivando sua decisão e prolatando-as em conformidade com as provas trazidas nos autos e com as regras e princípios jurídicos.

O juiz deve analisar todo o conjunto probatório disponível nos autos, de modo a esgotar a cognição dos fatos e fundamentos discutidos no processo.  Dispor sobre o valor atribuído a cada prova, bem como sobre a admissibilidade destas é indispensável a uma decisão legítima. Embora, por obvio, nem todas as provas apresentadas pelas partes sejam essenciais ao convencimento do julgador, essas devem ser analisadas em sua totalidade, não cabendo, por parte dele, seleção arbitrária e aleatória dos elementos a serem considerados. Caso contrário, estaria sendo violado o direito ao Contraditório e à possibilidade de influência na decisão. Contudo, isso não significa uma necessidade que o julgador refute ou acolha, expressamente, todos os argumentos apresentados; e sim, que não deixe de apreciar aqueles possíveis de influenciar em seu convencimento – ou seja: aqueles que não sejam inúteis, como, por exemplo, a prova relativa a fato notório e ao que já está comprovado nos autos.

Em resumo, a motivação é instrumento de controle da efetividade das garantias constitucionais, pois a adequada justificação das operações intelectuais busca evitar o risco de arbitrariedades que imponham às partes decisão baseada unicamente em impressões pessoais. Seria inútil facultar às partes participação ativa durante o iter processual, e, em contrapartida, permitir ao magistrado que desprezasse as provas e argumentos por elas trazidos, julgando apenas conforme suas convicções e íntimo convencimento, que, diga-se, já poderia estar formado desde o início da instrução probatória.  Nesse caso, a marcha processual não passaria de mera formalidade. O Princípio do Contraditório deve ser compreendido de forma a não esgotar-se na participação das partes nos atos do processo, mas de modo que sua atividade não seja em vão, e sim, realmente capaz de influenciar na decisão de mérito a ser prolatada.

3.3. Atual disposição do artigo 385 do CPP e sua consequência prática

O artigo 385 do Código de Processo Penal contém a seguinte disposição:

“Art. 385.  Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”. (BRASIL, 1941, p. 19.688.)[16]

A controvérsia em torno do tema se propõe a discutir se o posicionamento do Ministério Público sobre a absolvição é vinculante; ou se o juízo está habilitado a proferir sentença em sentido oposto, de modo a conduzir o réu ao cumprimento de uma pena.

O Poder de punir deve apoiar-se na obra do legislador, havendo, contudo, necessidade de interpretação da lei, para que melhor de adeque aos ditamos da carta constitucional.

São máximas do direito que a sentença deve mostrar-se congruente com o pedido (sententia debet esse conformis libello), que a sentença não pode versar sobre o que não se pediu (non valetsententia lata de re non petita), e que a sentença não pode ser proferida fora dos limites do pedido (ne eat iudex ultra et extra petitum partium).

A partir de tais premissas, nota-se o necessário liame entre a sentença e a pretensão formulada pelas partes. Tais noções basilares advindas da Teoria Geral do Processo também agasalham o processo penal – e, porque não dizer, principalmente ele, que pode impor a mais grave das sanções: a perda da liberdade.

Não é possível que, através da utilização do argumento de independência, sejam cindidas as noções de acusação e sentença; ao contrário, deve ser guardada sua fidelidade estrita.

Para exprimir a referida interdependência, o direito processual consagrou o termo “correlação”, de modo que, no processo penal, seu uso expressa a vinculação que deve haver entre a voz da acusação e o disposto na sentença.

No sistema processual penal brasileiro, a violação da regra de correlação e sentença não se encontra entre as hipóteses expressamente previstas de nulidade, mas sua consequência como nulidade absoluta é obvia.

A acusação é formada pela sucessão de atos complementares que, concluídos, originam a pretensão punitiva.

Num primeiro momento, o Ministério Público elabora requerimento ao juízo, expondo a existência de indicativos capazes de instaurar a persecução penal. Trata-se do oferecimento de denúncia, que terá por base indícios mínimos de autoria e materialidade do delito. Nessa ocasião, o órgão acusador apenas aponta para a possibilidade de existência de fatos penalmente relevante. Frisa-se que se trata de mera suposição, ainda baseada em dados preliminares, obtidos em procedimento prévio à acusação com função de fundamentá-la.

Num segundo momento, após a instrução probatória, e diante das manifestações da defesa, o Ministério Público, ao apresentar suas alegações finais, requer a condenação e a aplicação da sanção cabível, caso entenda pertinente. Isto porque, após o inicio da ação penal, esta será regida pelo Contraditório, com objetivo de discutir se as razões apresentadas pela acusação são idôneas à provocação de um juízo condenatório.

Por obvio, o processo penal não pode ser reduzido a um único momento – em que o órgão acusador deva formular sua pretensão de modo definitivo e imutável. Desse modo, o oferecimento da denúncia não esgota a pretensão acusatória. O poder de punir do Estado é condicionado ao pleno exercício da pretensão punitiva pelo Ministério Público – como exercício pleno, deve ser compreendido não apenas o oferecimento da peça acusatória com descrição do fato típico e todas as suas circunstâncias, mas também o pedido final de imposição de sanção ao indivíduo.

Contudo, há quem entenda que a acusação se aperfeiçoa com a formulação da denúncia perante o juízo. Segundo esse posicionamento, o mero exercício da ação penal seria capaz de, por si só, permitir a prolação de uma sentença condenatória, de modo que a pugnação pela absolvição posteriormente formulada pelo Ministério Público não vincularia a decisão final. Isto porque o pedido do Ministério Público não estaria previsto em lei como causa determinativa da cessação da pretensão punitiva.

O que se busca nesse trabalho é desconstituir tal assertiva, apontando para um caminho que traduz a pretensão punitiva não como derivação de um único ato processual, mas de uma conclusão que somente se formará ao final do processo, como resultado de toda a fase probatória.

Após a instrução, haverá maior riqueza de elementos capazes de formar o convencimento não só do magistrado, mas também do órgão que anteriormente formulou a denúncia. A cognição, então, não terá como objeto apenas alegações iniciais advindas da fase pré-processual; mas sim vasto elemento probatório, capaz de possibilitar a avaliação de questões mais profundas não suscitadas anteriormente.

Uma vez que a cognição se dará de forma exauriente, não será mais juridicamente válido que o magistrado fundamente sua decisão em meras suposições, devendo haver o juízo de certeza que a instrução criminal proporciona.

Por assim ser, a mera formulação de pedido condenatório contida na denúncia não é apta a justificar uma condenação – que deve ser fundamentada em ampla análise probatória, o que, obviamente, não era possível no momento do início da ação penal. Em outras palavras, a denúncia tem serventia à inauguração do debate, exercendo a função de limitar o teor da decisão, não sendo instrumento legítimo a, por si só, ensejar a condenação, uma vez que para seu oferecimento e posterior recebimento, basta que haja justa causa para o início da ação penal, ou seja: indícios mínimos de autoria e materialidade.

É durante o desenrolar processual que será verificada a veracidade dos elementos inicialmente apresentados como indiciários. Para que isso ocorra, é necessário que tais elementos sejam submetidos ao Contraditório, que não se esgota na possibilidade de manifestação das partes; ao contrário, impõe a necessidade de que as alegações trazidas à baila possam influenciar no convencimento do julgador.

Diante da possibilidade de surgimento de novos dados que alterem a imputação anteriormente formulada, deve-se dar ao debate sua verdadeira importância, de modo que só é possível, tanto ao juiz quanto ao membro do Ministério Público, formularem seu convencimento após esgotadas as argumentações.

Sustentar o posicionamento segundo o qual a opinião final ministerial é a narrada na denúncia equivale a esvaziar por completo a função do processo, e, principalmente, da fase instrutória. Estar-se-ia diante de mera formalidade condenatória, com objetivo de formalizar um resultado jurídico fundado em impressões superficiais dos fatos e que já estaria previamente determinado, restando apenas definir o quantum da pena a ser aplicada.

Ao manifestar o entendimento sobre a inocência do réu, o Ministério Público se posiciona de forma contrária ao pedido formulado na denúncia, transmutando o caráter de sua pretensão de acusatória para absolutória.

Como pretensão, pode ser entendido aquele provimento que se deseja obter ao fim do processo. Se o juiz deixar de proferir sentença nos moldes da pretensão formulada pelo acusador, violará os Princípios da Correlação entre acusação e sentença e da Inércia da Jurisdição (em razão de prover além do que foi requerido pelas partes), o que tornará nulo o provimento, por error in procedendo. Diante da interposição de recurso, será necessária a prolação de nova decisão pelo órgão que prolatou a anterior, nos limites da pretensão ministerial – ou seja, absolvendo o réu.

O pedido formulado em alegações finais da acusação além de delimitar concretamente as possibilidades do pronunciamento judicial, assegura a plenitude de defesa, conforme será a seguir demonstrado.

O requerimento de condenação pelo Ministério Público é necessário para que, através de seu conteúdo, possa ser produzido um debate válido, tendo ambas as partes delimitado seu alcance. Uma vez que todos os fundamentos da sentença devem ter sido objeto do debate, pode-se dizer que a regra de correlação entre acusação e sentença emana dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. Entender que o magistrado pode proferir sentença condenatória extrapolando o pedido ministerial é aceitar que a decisão se produza tendo como base fundamentos que não foram exaustivamente discutidos pelas partes.

Quando, em alegações finais, o Ministério Público pede a absolvição do acusado, por obvio, não suscita argumentos em prol da condenação. Logo, não há o que ser contraditado pela defesa. Isto quer dizer que se após a instrução criminal o Ministério Público representa pela absolvição, em resposta, a defesa não se colocará em posição de resistência, o que faz com que determinadas questões escapem ao debate. Estas, por esse motivo, não podem ser valoradas na sentença, sob pena de infringir o Princípio do Contraditório.

Eventual condenação, portanto, não terá oportunizado à parte a paridade de armas, uma vez que, não havendo imputações ministeriais às quais se opor, o réu não evidenciará argumentos concretos capazes de conduzir o magistrado à decisão que lhe seja favorável.

Ao formular suas alegações finais, o Ministério Público valora a prova (assim como o faz o magistrado) para verificar se os elementos trazidos aos autos sustentam a imputação contida na denúncia. Caso o acusador entenda pela inexistência de circunstancias que conduzam à condenação, não está o julgador habilitado a editar uma sentença em sentido diverso. Em outras palavras: diante do posicionamento da acusação pela absolvição, não há norma constitucional que permita sustentar que o magistrado tenha legitimidade para condenar, uma vez que o Ministério Público é único titular da pretensão punitiva.

Para que haja uma condenação juridicamente válida, há necessidade de um expresso pedido de condenação após a instrução criminal. Se o Ministério Público não o faz, o julgador não está autorizado a condenar. O pedido de absolvição equivale à retirada da acusação, uma vez que esta não está sendo sustentada por seu titular privativo. O juízo que, nessa situação, prolata sentença penal condenatória está agindo sem a necessária provocação ao acolher imputação não mais existente. Um julgamento condenatório sem pedido final nesse sentido estará fundado em uma pretensão punitiva que deixou de ser veiculada em juízo, sendo nulo em razão do nullum iudicium sine accusatione.

No dizer de Américo Bedê Freire Júnior,

“(…) deve-se ir além. Mais do que simplesmente a separação entre acusação e julgamento há, para efetivação do jus puniendi, a necessidade de que a acusação e o julgador se entendam quanto à existência de crime. Na verdade, há uma relação de prejudicialidade entre o convencimento do promotor e do magistrado, melhor explicando: entendendo o Ministério Público pela não existência de crime, não cabe ao magistrado exercer qualquer juízo de valor sobre a existência ou não do crime, uma vez que a partir desse momento o magistrado estaria atuando de ofício, ou seja, sem acusação e em flagrante desrespeito ao sistema acusatório”. ( FREIRE JÚNIOR, 2005, p. 19.)[17]

Portanto, pode-se dizer que diante da formulação ministerial pela absolvição, não cabe ao julgador outro acertamento senão a declaração da inocência, sob pena de nulidade da sentença. A conclusão final do Ministério Público representa sua opinião acerca da acusação, gerando efeito vinculante para o julgador.

A única conclusão compatível com as garantias constitucionais conduz à declaração de invalidade da condenação nos casos em que o Ministério Público assim não tenha requerido após a instrução processual. Caso contrário, restaria ao acusado ter como adversário não apenas o Ministério Público, mas também o julgador.

Portanto, viola o sistema acusatório constitucional a regra prevista no art. 385 do CPP, que prevê a possibilidade de condenação ainda que o Ministério Público peça a absolvição, uma vez que, substituindo-se ao acusador, o juiz faz ressurgir a pretensão por ele abandonada. A confusão entre as funções de acusar e de julgar traduz o mais claro retrocesso ao modelo inquisitório.

Diante da ausência de acusação – entendida como a pretensão final do Ministério Público, eventual decisão condenatória transformará o juiz em parte, afastando-se da missão que lhe reserva a Constituição no art. 5º, incisos XXXVII e LIII. O juiz é um garantidor, e jamais um acusador que se insurgirá contra o réu diante do convencimento do Ministério Público sobre sua inocência.

4. CONCLUSÃO

Chegado o momento de concluir a exposição, torna-se evidente a necessidade de adaptação do processo penal à função a qual se destina: conter abusos durante a persecução penal.

O processo é servil à promoção dos Direitos Humanos, devendo assegurar que indivíduos tenham acesso a um provimento jurisdicional amparado por todas as garantias asseguradas pela Constituição da República. Entre essas garantias está o de submeter-se a sentença fundada em acusação prévia e indubitável, que contenha expresso pedido de condenação ao final da instrução probatória, sob pena de, não entendendo o Ministério Público pela força probatória dos elementos contidos nos autos, ser o réu declarado inocente. Sem uma perfeita acusação, não há sentença capaz de sustentar-se como válida.

A finalidade do processo é promover a paz jurídica, sendo instrumento da tutela do direito material. Contudo, em patamar acima da função instrumental está a função protetiva dos direitos fundamentais do acusado e da sociedade como um todo, que tem como interesse comum o freio a abusos por parte dos agentes estatais.

Um sistema processual tirânico é ineficiente por não atender à necessidade de respeito às garantias constitucionais e às liberdades civis.

Para que uma decisão esteja em consonância com o Estado Democrático de Direito deve atentar-se às circunstâncias do caso concreto, e, por isso, basear-se nos elementos trazidos pelas partes, em pleno respeito ao Princípio do Contraditório.

Se virtude das provas produzidas no debate, o Ministério Público modificar sua opinião acerca da autoria ou materialidade do delito, entendendo pela absolvição do acusado, seu pleito deve prevalecer. Isto porque o pronunciamento final do juízo deve ser fundado em uma contundência argumentativa exposta pelas partes, e não em um grado de superioridade que emane do julgador.

O artigo 385 do CPP caracteriza-se como resquício do Sistema Inquisitório que ainda permite que o juiz exerça o papel do Ministério Público quando sustenta, por si só, a pretensão condenatória, em nome de uma suposta “verdade” real, só a ele revelada.

Trata-se de exercício indevido e simultâneo de papeis que a Constituição reservou a órgãos distintos, como fator de garantia do devido processo legal. 

Efetiva construção de uma realidade democrática exige a diminuição do abismo existente entre os ditames constitucionais e o Código de Processo, que teima em manter consigo ranços de um contexto político ditatorial.

Quando a legislação estiver em desconformidade com a Constituição da República, não poderá ser aplicada. Situação análoga ocorre figurando o Código de Processo Penal como personagem principal, que, diante da violação a preceitos constitucionais, não deve prevalecer.

As disposições da Lei Maior não sucumbem às normas jurídicas que lhe sejam avessas; ao contrário, atuam como orientadoras para a interpretação destas, que devem ser lidas à luz do dos mandamentos emanados do legislador constituinte.

Em resumo, as leis devem ser interpretadas de acordo com a Carta Magna, sendo inaceitável delimitar a extensão das garantias nela contidas tomando por base a legislação infraconstitucional.

Sobre o caráter normativo dos princípios, assevera BADARÓ:

“(…) os princípios processuais poderão impor uma releitura ou trazer novo conteúdo a um dispositivo da legislação infraconstitucional. É necessário ‘revisitar’ o nosso sistema processual penal”. (BADARÓ, 2013. p. 140) [18]

Nos moldes do que foi apresentado, não é possível que seja conferida aplicabilidade ao artigo 385 do Código de Processo Penal, por ser claramente incompatível com o sistema acusatório.

O artigo 385 do CPP, portanto, não foi recepcionado pela Constituição de 1988, por não sobreviver à filtragem que tem como parâmetro o Princípio Acusatório, caracterizado pela separação absoluta entre as funções de acusar e julgar.

Em nenhum caso, é tolerável a assunção da acusação pelo juiz, como ocorre na situação descrita no art. 385 do CPP. A radical separação entre juiz e acusação é o mais importante de todos os elementos do modelo acusatório.

Logo, embora o referido artigo disponha de modo diverso, à luz da Constituição da República de 1988, não restam dúvidas de que o juiz não pode condenar sem tomar por base a acusação, sob pena de ser nula a sentença.

“Quem tiver um juiz por acusador, precisa de Deus como defensor.”[19]

O autoritarismo se mascara sob muitas faces. Para isso, utiliza-se da falsa crença de que é necessária a ampliação do poder punitivo estatal.

Enganosa é pretensão de fazer do direito penal um instrumento de transformação social à custa do enfraquecimento dos direitos fundamentais. Acaba por ser, em verdade, troca de uma estrutura democrática por uma opressora.

Mais perigosos que os delitos penais podem ser os excessos do poder punitivo.

 

Referências
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Notas
[1] BRASIL, Decreto-Lei nᵒ 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, nᵒ238, 13 OUT. 1941. Seção I, p. 19.688.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 439.

[3]GONZAGA, J. Bernardino Apud PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994.

[4]FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª ed., revista e ampliada, Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986, p.950

[5] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin. Clássicos Quartier. 2005. Tradução: Alexis Couto de Brito

[6] BRASIL, Decreto-Lei nᵒ 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, nᵒ238, 13 OUT. 1941. Seção I, p. 19.688.

[7] Nesse caso, não há que se falar em inconstitucionalidade material superveniente. Como consequência da não recepção, conforme já decidido pelo STF (ADI de n. 3833), normas anteriores à Constituição de 1988 apenas podem ser tocadas pelo fenômeno da revogação, pois o advento de uma nova constituição não tem o condão de tornar inconstitucional uma norma que estava em consonância com o ordenamento jurídico anterior.

[8] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Legibus Solutio: a sensação dos que são contra a reforma global do CPP. Boletim IBCCRIM. n. 210, v. 18, 2010. P. 2

[9] LOPES JUNIOR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 9 ed. 2012. p. 214

[10] Em alguns casos, há exceção à titularidade do Ministério Público de buscar a condenação. Trata-se de situações em que o legislador conferiu à vítima (ou a seu representante legal) a faculdade de promover a ação penal por meio de queixa-crime. Cumpre mencionar que, embora o Estado confira ao particular o direito de perseguir a condenação (jus accusationis), continua a manter exclusivamente o direito de punir (jus puniendi).

[11] Trata-se de mutatio libelli, tema sobre o qual não cabem maiores exposições nesse trabalho.

[12] Trata-se do instituto denominado emendatio libelli, sobre o qual também não cabem maiores exposições.

[13] KARAM, Maria Lúcia. O direito à defesa e à paridade de armas. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo Rudge (coords.). Processo Penal e Democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pag. 405

[14] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A Conformidade Constitucional das Leis Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.42.

[15] PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo. Processo Penal e Democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[16] BRASIL, Decreto-Lei nᵒ 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, RJ, nᵒ238, 13 OUT. 1941. Seção I, p. 19.688.

[17] FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Da impossibilidade do juiz condenar quando há o pedido de absolvição formulado pelo Ministério Público. São Paulo: Boletim do IBCCrim, nº 152 – julho 2005, p. 19.

[18] BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação Entre Acusação e Sentença. 3 ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 140

[19] Trata-se de brocardo do Direito Penal que jamais deve ser esquecido


Informações Sobre os Autores

Renata Moura Tupinambá

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes aprovada nos concursos públicos para o cargo de analista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e defensor público do Estado da Bahia

Karine Azevedo Egypto Rosa

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ pós-graduada pela Universidade Cândido Mendes em Direito Penal e Processual Penal e aprovada nos concursos para defensor público na Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso e Defensoria Pública do Estado da Bahia


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