Resumo: A responsabilidade civil, dever de reparar dano causado a outrem, muitas vezes nasce de ato criminalmente imputável. A legítima defesa real é excludente de antijuridicidade e exclui também o dever de indenizar o agressor. Não obstante, a legítima defesa putativa tem o condão de excluir a aplicação da pena no âmbito criminal, mas não o faz no âmbito cível, gerando àquele que se presumia sofrendo agressão injusta, a obrigação de indenizar.
Palavras-chave: Legítima Defesa – Responsabilidade Civil – Dever de Indenizar – Dano.
INTRODUÇÃO
O Estado, detentor do jus puniendi, que tem por escopo restabelecer o equilíbrio jurídico abalado, e tutor, por força constitucional, dos bens jurídicos da sociedade, não é hábil para obstar agressões ilegítimas aos bens tutelados, de tal forma que confere ao cidadão a legitimidade para, diante da agressão injusta, defender subsidiariamente o bem que pertence a si ou a terceiro. O ato de repelir o injusto, por autorização normativa, não constitui ilícito, restando legitimada a ação e excluída a antijuridicidade do fato, desde que preenchidos os requisitos legais. Nos casos em que o agente recai em erro acerca das circunstâncias que o levam a agir acreditando atuar em legítima defesa, a análise pormenorizada do conjunto de fatos é imprescindível para que se verifique a exclusão da culpabilidade e, consequentemente, da aplicação da pena, uma vez que o Direito não se perfaz inerte ante ao ilícito, nem apena aquele que não age com culpa. Entretanto, a visão da aplicação ou não da sanção penal não pode ser confundida com a aplicação ou não da sanção na esfera cível, vez que tais ramos do Direito tutelam bens de natureza diversa.
O objetivo deste estudo é aflorar no jurista, paradoxalmente, a união e a separação do Direito Penal e do Direito Civil, ambos os ramos atuando sobre o mesmo fato. Para que este alvorecer intelectual se perfaça, é necessário que alguns conhecimentos básicos sejam demonstrados, papel que esta pesquisa procura desempenhar.
A escolha do tema se justifica pela escassez de textos abordam a matéria, vez que raro são produzidos textos que analisem profundamente tanto o Direito Criminal quanto o Direito Civil, versando sobre um mesmo fato
Metodologicamente, o estudo em tela foi pautado em pesquisa bibliográfica, imprescindível à argumentação do assunto, que, pelos motivos expostos, tornam este ensaio enriquecedor para o universo jurídico.
DESENVOLVIMENTO
1. A ANTIJURIDICIDADE E O DIREITO
A antijuridicidade é conduta contrária ao conjunto jurídico-normativo. É, pois, à luz da doutrina penalista, uma ação atentatória ao Direito, sendo formulado juízo de reprovabilidade normativa acerca do ato praticado pelo agente. Este conceito não se confunde com o de culpabilidade, conceito este muito mais amplo e que se refere ao juízo de reprovabilidade social da conduta,[1] sendo pressuposto de aplicação da pena. O elemento antijurídico do tipo tem como característica analítica a objetividade. Ou seja, a verificação da antijuridicidade que reveste a conduta, independe da análise subjetiva da ação ou omissão praticada pelo agente. Leciona Cezar Roberto Bitencourt:
“[…] A antijuridicidade é concebida fundamentalmente de um modo objetivo, o que, aliás, é perfeitamente explicável, uma vez que se tratava de dotá-la de autonomia ante a característica da culpabilidade, concebida então, como a parte subjetiva das infrações penais.”[2]
Apesar de a análise em questão recair sobre o sistema normativo penal, é importante frisar que condutas antijurídicas são verificadas em todos os ramos do ordenamento jurídico. Dito isto, há que se diferenciar a antinormatividade do instituto em análise. Welzel leciona que “toda realização do tipo de uma norma proibitiva é certamente antinormativa, mas nem sempre é antijurídica”.[3] A antinormatividade recai sobre a conduta contrária ao tipo descrito numa norma proibitiva, enquanto a antijuridicidade recai de forma conglobante sobre o sistema jurídico. Luiz Regis Prado confirma este pensamento quando afirma que a antijuridicidade “exprime a relação de contrariedade de um fato com todo o ordenamento jurídico (uno e indivisível), com o Direito positivo em seu conjunto”[4] e novamente ratifica a ideia quando o autor cita em sua obra o jurista Welzel: “[a antijuridicidade] é a violação da ordem jurídica em seu conjunto, mediante a realização do tipo”.[5] Infere-se daí que uma norma, isoladamente, pode ser proibitiva em relação a uma conduta e, interpretando-a sistematicamente, uma excepcionalidade pode permitir tal conduta, fazendo com que esta seja antinormativa em relação à norma que a proíbe, mas não sendo antijurídica, pois não afronta o ordenamento jurídico. Ora o Direito veda uma conduta, ora permite a realização de uma ação tipificada. Para que seja antijurídica, a conduta deve se amoldar ao tipo penal ante a ausência de causa que a justifique (causa de justificação).[6]
A doutrina divide a antijuridicidade em formal e material. A antijuridicidade formal contraria a norma em si, enquanto a material lesa efetivamente o bem jurídico tutelado. Bitencourt afirma que a antijuridicidade é instituto indissolúvel, uma vez que uma conduta contraria a norma, concomitantemente, lesionará o bem jurídico tutelado.[7] Cláudio Brandão afirma que a antijuridicidade não é elemento do crime, mas o próprio crime em si, sendo a tipicidade a ratio cognoscendi da antijuridicidade.[8]
1.1 OS EXCLUDENTES DE ANTIJURIDICIDADE
Quando o Estado se tornou detentor do jus puniendi (direito de prescrever sanções coercitivamente), avocou para si a tutela dos bens jurídicos, sendo vedado ao cidadão a autotutela, sob pena de agir em exercício arbitrário das próprias razões, ressalvando-se os casos excepcionados pela legislação pátria.[9] Tais permissões normativas são as denominadas causas justificantes ou de justificação. Excludente de antijuridicidade é um instituto que afasta a afronta ao ordenamento jurídico, tornando a conduta do agente acolhida pelo Direito. Nos dizeres do insigne jurista Cláudio Brandão, “em determinados casos excepcionais, o Estado concede ao particular a tutela dos bens jurídicos”,[10] adequando assim a conduta, em tese, contrária aos ditames legais, consonante com a lei. Aduz-se, então, que as causas justificantes têm caráter permissivo,[11] mesmo perante a qualidade impeditiva inerente à legislação penal. Cezar Roberto Bitencourt enriquece nosso entendimento com suas palavras:
“A antijuridicidade, entendida como relação de contrariedade entre o fato e a norma jurídica, tem sido definida, por um setor doutrinário, como puramente objetiva (grifo do autor), sendo indiferente a relação anímica entre o agente e o fato justificado (grifo do autor). No entanto, segundo entendimento majoritário, assim como há elementos objetivos e subjetivos no tipo, originando a divisão em tipo objetivo e tipo subjetivo, nas causas de justificação (grifo do autor) – que excluem a antijuridicidade – há igualmente componentes objetivos e subjetivos (grifo do autor). Por isso, não basta que estejam presentes os pressupostos objetivos de uma causa de justificação, sendo necessário que o agente tenha consciência de agir acobertado por uma excludente, isto é, com a vontade de evitar um dano pessoal ou alheio”.[12]
As causas legais de excludente de ilicitude estão elencadas no artigo 23 do Código Penal brasileiro vigente, in verbis:
“Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. […]”[13]
Entretanto, o aludido rol não é exaustivo, sedo meramente regra geral, verificando-se outras causas de excludente de antijuridicidade mais específicas nos artigos: 128, I (aborto necessário) e 146, §3º, I (constrangimento ilegal), ambos do Código Penal[14] pátrio em vigor e, ainda que não esteja codificado penalmente, o Art. 188, II (permissão para deteriorar ou destruir coisa alheia, a fim de remover perigo iminente) do Código Civil de 2002[15] traz em seu bojo uma causa de excludente de antijuridicidade. A doutrina aponta o consentimento do ofendido como causa supralegal de excludente de ilicitude do fato.[16]
1.1.1 Legítima defesa
A legítima defesa é a causa de justificação mais antiga. O Código de Manu já fazia alusão ao instituto em comento mas, historicamente, a versão mais aperfeiçoada do instituto surgiu no Direito Romano, que a admitia “não só para salvaguardar a vida e a integridade corporal, senão também para a proteção do pudor e dos bens quando o ataque contra eles estivesse acompanhado de perigo para a pessoa”.[17] O Direito Germâmico não legislava expressamente sobre o instituto, mas a morte do agressor era interpretada como execução antecipada de sua pena. O Direito Medieval não considerava culpado aquele que agia respaldado pela legítima defesa[18]. No Brasil, o Código Criminal do Império, datado de 1830, consagra o instituto formalmente[19]. Ante o exposto, percebe-se que as raízes da legítima defesa encontram-se enlaçadas com as raízes do Direito Penal.
A legítima defesa é uma reposta a uma agressão injusta, atual ou iminente, contra direito próprio ou de outrem. De acordo com Bettiol, é um instinto natural que leva o agredido a repelir a ofensa, mediante lesão a bem jurídico do agressor.[20] É, então, a legítima defesa, além do reconhecimento dos instintos humanos mais primitivos, também o reconhecimento, por parte do Estado, de que o mesmo não é onipresente, sendo incapaz de proteger os bens jurídicos da sociedade a qualquer tempo e em qualquer lugar.
As teorias subjetivas consideram a legítima defesa como causa excludente da culpabilidade. Já as teorias objetivas a consideram causa de exclusão da antijuridicidade. O Direito pátrio adota a teoria objetiva, considerando excluída, ante o instituto, a antijuridicidade do fato.
A figura jurídica em análise tem fulcro no Art. 25 do Código Penal brasileiro vigente (“Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”)[21]. A lei prevê como requisito para que a legítima defesa se configure: agressão injusta atual ou iminente, meios moderados para repelir tal agressão e animus defendendi. O bem jurídico a ser protegido pode ser daquele que repele a agressão ou de terceiro. É, nas palavras de Cláudio Brandão, “um contra-ataque, uma reação”.[22]
1.1.1.1 Agressão injusta, atual ou iminente
A agressão é ato comissivo, posto que não se poderia reagir a uma omissão. Ato omissivo não dá causa à legítima defesa por ausência de causalidade e voluntariedade de realização.[23] A reação pressupõe uma ação anterior. Cláudio Brandão frisa que esta ação é humana, não podendo alegar legítima defesa quem age contra animal ou contra ação reflexa.[24] É imprescindível que “o ato agressivo seja consciente e voluntário (grifo do autor), com o objetivo de lesar o bem jurídico”.[25] Sem a ausência de consciência e voluntariedade, pode-se invocar estado de necessidade, conforme a preleção de Roxin:
“Não agride quem golpeia à sua volta em um ataque convulsivo epilético ou durante o sono; quem vagueia pelas ruas e cai sem sentidos por estar ébrio; quem desmaiado perde o domínio de seu veículo, nem aquele que é jogado pela janela e com a queda põe em perigo outras pessoas.”[26]
É injusta a ação não autorizada nem permitida pelo Direito, ou seja, a agressão não legitimada. A agressão permitida pelo Direito não pode ser entendida como antijurídica, não cabendo, portanto, a alegação de legítima defesa. Percebe-se, então, que a agressão advinda do estado de necessidade não é contrária ao ordenamento jurídico e, diante desta, a parte que sofre a agressão, que no caso não é injusta, não pode invocar a legítima defesa, mas pode, em contrapartida, também invocar estado de necessidade, vez que o Direito não exige que um indivíduo suporte agressão contra bem jurídico seu, em que pese ser a agressão contra este bem injusta. O jurista Cláudio Brandão explana que, diante de agressões autorizadas pelo Direito, a reação nunca estará respaldada pela legítima defesa, eventualmente sendo invocado o estado de necessidade.[27] Excepcionalmente, no caso de excesso cometido quando da repulsão do injusto, o agressor inicial pode invocar legítima defesa para repelir o excesso cometido pelo inicialmente agredido por este – é a denominada legítima defesa sucessiva. A agressão, frise-se, não pode ser confundida com provocação ao agente.[28] Não é necessário que constitua um ato ilícito penal, mas, em sentido amplo, esta agressão, para ensejar legítima defesa, deve constituir um ato ilícito, posto que não pode ser invocada legítima defesa contra ato lícito[29], conforme comentário supra.
Não há que se questionar se a agressão repelida era previsível ou evitável, sendo irrelevante a possibilidade de fuga do agredido.[30] O Direito não admoesta a autodefesa, censura apenas a autotutela.
É cabível legítima defesa contra agressão provocada por inimputáveis, inclusive vulnerável[31]; por aqueles que fizeram uso de entorpecentes e contra agressão provocada em razão de erro de proibição inevitável.[32] Luiz Regis Prado afirma ainda que é cabível o instituto em tela contra, em geral, aqueles que agem inculpavelmente.[33] Tal afirmação é incongruente com a posição majoritária da doutrina, posto que é pressuposto para ensejar legítima defesa a agressão dolosa, conforme supramencionado.
Quanto ao momento da agressão, esta pode ser atual ou iminente. Atual é aquela que está ocorrendo naquele instante e ainda não foi encerrada, sendo a agressão em si suportada naquela ocasião pelo agredido. Iminente é aquela que está por suceder, sendo este momento bastante próximo, não sendo admitida a demora na repulsa. Não se deve confundir agressão iminente com perigo futuro, pois este último dá ensejo a atitude diversa da repulsão do injusto. No primeiro caso, ao repelir a ação, o agredido tem por objetivo sustar a agressão, fazer com que esta cesse. No segundo caso, o escopo daquele que está por ser agredido é evitar o início do injusto. Não se admite legítima defesa contra ato que já cessou, podendo vir a constituir-se autodefesa ou exercício arbitrário das próprias razões, que se configura em usurpar do Estado o jus puniendi.
1.1.1.2 Direito próprio ou alheio
Qualquer bem jurídico pode ser objeto de resguardo através da legítima defesa, seja este bem disponível ou indisponível, pessoal ou impessoal.[34] A classificação da legítima defesa em própria ou de terceiro depende da titularidade do bem jurídico que sofre a ofensa ilegítima. É denominada legítima defesa própria quando o indivíduo age para defender bem jurídico se sua titularidade. A legítima defesa de terceiro é aquela que ocorre quando o indivíduo age para salvaguardar bem jurídico de outrem. Neste caso, a natureza do bem jurídico agredido deve ser observada, uma vez que, em sendo um bem disponível, pertencente a pessoa capaz, esta pode decidir-se por outra via para proteger o seu bem, ou até mesmo pode exercer o direito de optar por não oferecer resistência ao injusto sofrido.
1.1.1.3 Uso moderado dos meios necessários para repelir a agressão injusta
De acordo com o exposto, infere-se que o Direito não é inerte ante ao ilícito, permitindo que o particular intervenha para proteger-se. A ação do particular, no entanto, restringe-se unicamente à proteção do bem lesado, não podendo ultrapassar a intensidade do injusto nem o momento em que o mesmo é acometido pela hostilização ilegítima. Bitencourt afirma que a configuração do instituto jurídico em argumentação “está diretamente relacionada com a intensidade e gravidade da agressão, periculosidade do agressor e com os meios de defesa disponíveis”.[35]
Meio necessário, ensina João Mestieri, “é aquele que, estando disponível ao agente, é hábil para repelir agressão injusta” (grifo do autor).[36] Ao permitir o uso dos meios necessários para repelir a ação injusta, o Direito não está autorizando a possibilidade de causar lesão a outrem indiscriminadamente, mas tão somente permite que o injusto seja afastado da maneira menos lesiva quanto possível. Adverte Bitencourt:
“Necessários são os meios suficientes e indispensáveis para o exercício eficaz da defesa. Se não houver outros meios, poderá ser considerado necessário o único meio disponível (ainda que superior aos meios do agressor), mas, nessa hipótese, a análise da moderação do uso deverá ser mais exigente.”[37]
É, então, necessário que, durante a análise do caso concreto, busque-se aplicar o princípio da proporcionalidade, examinando a natureza e a relação entre a agressão injusta e o meio utilizado para repeli-la.
1.1.1.4 Animus defendendi
O animus defendendi é a intenção de defender-se da ação lesiva ilegítima. Este é o único elemento subjetivo da configuração da legítima defesa, sendo os outros elementos objetivos do instituto em tela. Esta análise é fundamental, pois, nos dizeres de Bitencourt, “um fato que na aparência exterior apresenta-se objetivamente com os mesmos aspectos pode, dependendo da intenção do agente, receber definição variada”.[38] Assim, na ausência do ânimo de defesa, pode a ação configurar-se discrepante da legítima defesa.
2. RESPONSABILIDADE CIVIL: BREVE HISTÓRICO, CONCEITO E ESPÉCIES
A responsabilidade penal é anterior à responsabilidade civil. Entretanto, nos primórdios da sociedade como agrupamento organizado juridicamente, a responsabilidade criminal confunde-se com a civil. A responsabilidade civil nasce no Direito Romano e emana da obrigação de reparar dano causado a outrem. No Direito Romano, essa obrigação era fixada por contrato verbal[39] e possuía natureza de obrigação jurídica. A parte contratante respondia civilmente pelo descumprimento do contrato firmado. A Lex Aquilia de Damno trouxe ao ordenamento jurídico da época a ideia de reparação de dano[40], esmaecendo então os preceitos da Lei de Talião. Para que houvesse a responsabilidade indenizatória, deveria obrigatoriamente ser verificada a culpa do agente; sem culpa, inexistia o dever de indenizar. A ideia de culpa, desde logo, reside na tríade “negligência – imprudência – imperícia”. Estando presente um dos institutos, comprovada restaria a culpa. Percebe-se, desde então, a intervenção do Estado nos conflitos privados.
A responsabilidade civil sob a ótica do direito pátrio foi inspirada no Direito Francês, tendo em vista que “a teoria da responsabilidade civil apenas se consolidou com o trabalho científico desenvolvido pelos grandes doutrinadores, em especial os franceses, à época das Codificações”.[41] Até o século XIX, a teoria da responsabilidade subjetiva consubstanciava-se no dever de indenizar emanado do prejuízo causado por consequência de ação ou omissão praticada com culpa ou dolo.[42] A partir da segunda metade do século XIX, acompanhando a evolução da sociedade, também o instituto da responsabilidade civil evoluiu, nascendo o conceito de responsabilidade civil objetiva. Assim expõe Arantes de Paula:
“De fato, a incapacidade de a responsabilidade civil subjetiva solver os conflitos decorrentes da era moderna, que reduziu à miséria várias vítimas dos danos, principalmente ocasionados por atividades lícitas, impulsionou a consolidação da responsabilidade civil objetiva, com vistas à equidade, atenta para a necessidade do equilíbrio social.”[43]
O Código Civil de 1916 pouco tratava acerca do instituto da responsabilidade civil. Já o Código Civil de 2002 discorre sobre o assunto de maneira um tanto mais satisfatória, mantendo as noções consolidadas pelo Código de Napoleão.
2.1 CONCEITO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
Muitos são os conceitos de responsabilidade civil. No entanto, quaisquer que sejam os vocábulos utilizados para conceituar o instituto, decerto observa-se que seu conceito amplo conduz “à ideia de restauração de equilíbrio, contraprestação e até de reparação de dano”.[44] A análise do instituto integra o estudo do Direito das Obrigações.
A responsabilidade civil é a terceira maior fonte das obrigações jurídicas, antecedida apenas pelos contratos e pelos atos unilaterais de vontade,[45] e pode ser conceituada como a relação jurídica entre devedor e credor que obriga o primeiro a indenizar dano causado ao segundo, respondendo o patrimônio do devedor pela obrigação. Villaça Azevedo afirma que “o ordenamento jurídico impõe ao devedor a responsabilidade pela reparação dos danos que tiverem sido causados, tanto os danos materiais como os morais”.[46]
O dano é pressuposto de existência fática do dever de indenizar. Dano é “ação ou efeito de danificar; inutilização, estrago de coisa alheia; mal ou prejuízo causado a alguém”.[47] Tal dano deve causar deterioração ou destruição da coisa alheia. Pode existir responsabilidade civil sem culpa, mas inadmissível é mencionar o instituto na ausência de dano. Neste sentido, o Professor Rafael de Menezes afirma que o dano, seja material ou moral, é elemento mais importante que a culpa na configuração da responsabilidade civil.[48] Corroborando o apontamento, Schreiber discorre sobre a evolução histórica do dano, sob o ponto de vista jurídico:
“Cortes que, em outros tempos, fechavam suas portas a ações judiciais promovidas sem demonstração da culpa ou do nexo causal, deixando a vítima sem qualquer forma de compensação, hoje emitem, muitas vezes, provimentos jurisdicionais favoráveis em virtude de uma manipulação mais flexível – ou, […], até de uma presunção ou desconsideração – dos pressupostos tradicionais da responsabilidade civil.”[49]
Apesar de a reparação do dano ter cunho pecuniário, o dano em si não é necessariamente material, podendo ser também um dano moral, psicológico. Supõe o legislador que uma prestação pecuniária tem o condão de aliviar o sofrimento causado ao ora credor da relação civil de reparação, através dos prazeres que uma certa quantia monetária pode proporcionar.
No caso do dano material, deve aquele que o causou restituir ao lesado a quantia equivalente ao dano provocado (sem prejuízo de eventuais correções monetárias e juros). Já no caso do dano material, muito discute a doutrina, vez que não é simplória a tarefa legada ao magistrado de monetizar sentimentos. Ainda, há a questão probatória, concretizando-se a prova mais facilmente nos casos de danos materiais.
O dano pode ser causado pelo próprio agente que por ele responde ou por pessoas e coisas sob a responsabilidade daquele que deve reparar o prejuízo. É o caso de dano causado por inimputável que deve ser ressarcido por seu responsável legal ou mesmo dano causado por representante de pessoa, seja física ou jurídica. No caso de coisas, enquadram-se tanto os bens inanimados como os bens semoventes.
2.2 ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE CIVIL
A responsabilidade civil é classificada como subjetiva quando o sujeito que responde pelo dano foi o seu efetivo causador. É classificada como objetiva quando a responsabilização independe da culpa daquele que responde pelo dano, ressaltando que, neste caso, o responsável pela reparação tanto pode ser uma pessoa física como uma pessoa jurídica.
A teoria do risco versa sobre a responsabilidade objetiva por dano decorrente de atividade desenvolvida que implique em risco para outrem, ratificando que independe de culpa do responsável pela reparação do dano.[50]
A LEGÍTIMA DEFESA COMO CAUSA MOTIVADORA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Legítima defesa putativa é a também denominada legítima defesa ficta. A situação de perigo existe tão somente no imaginário daquele que supõe repelir legitimamente um injusto. Constitui descriminante putativa ou seja, o agente “supõe a ocorrência de uma excludente de criminalidade que, se existisse, tornaria sua ação legítima”.[51] Por conseguinte, a ação do que se supõe agredido é revestida de antijuridicidade, em divergência daquele que age em legítima defesa real. Afirma Jescheck que “o fato praticado sob a suposição errônea de uma causa de justificação continua, pois, sendo um fato doloso”.[52]
Conforme discorrido nas laudas supra, a legítima defesa é instituto que exclui a antijuridicidade da ação daquele que repele a agressão injusta. Diferentemente, a legítima defesa putativa, por constituir erro sobre a situação fática, pode ser causa justificante através da eliminação da culpabilidade do agente ou causa de diminuição de pena, conforme expõe Bitencourt:
“A legítima defesa putativa supõe que o agente atue na sincera e íntima convicção da necessidade (grifo do autor) de repelir essa agressão imaginária (legítima defesa subjetiva). […] No entanto, se esse erro, nas circunstâncias, era inevitável, exculpará o autor; se era evitável diminuirá a pena, na medida de sua evitabilidade”.[53]
A culpabilidade é elemento pressuposto da aplicação da pena, não excluindo a antijuridicidade do fato, incidindo apenas sobre o momento no qual o Estado inflige a punição ao agente. A análise da culpabilidade é um juízo de reprovação subjetivo, acerca do autor do fato típico e antijurídico, e sua presença se perfaz quando o autor do fato, podendo agir em conformidade com o Direito, resolve, voluntariamente, agir em desconformidade com o sistema normativo.[54] A análise do instituto da culpa, em tela, é jurídica, não moral ou religiosa. Excluída a culpa, por conseguinte, verifica-se excluída a aplicação da pena, uma vez que esta é proporcional à responsabilidade subjetiva do autor do fato.
Rememorando os vernáculos supramencionados de Bitencourt, ao destrinchar o caso concreto da legítima defesa putativa, quando o erro for inevitável, não podendo exigir-se do indivíduo conduta diversa, restará excluída a culpa do autor e, quando evitável, o injusto ficto atua como causa de diminuição da pena. O julgador, ao apreciar os fatos, deve ter a cautela de analisar as provas, vincular sua análise ao animus defendendi e às circunstâncias que levaram o autor do ilícito ao erro, buscando assim a verdade real, escopo investigatório do processo penal brasileiro, que leva à aplicação da justiça.
Ante o exposto, poderia o pesquisador ser levado a concluir que a exclusão da culpa penal acarreta na exclusão da culpa civil, ou seja, na exclusão da responsabilidade de indenizar. Este pensamento é errôneo, vez que responsabilidades penal e civil não se confundem. A responsabilidade penal diz respeito a bens jurídicos tutelados tais como a vida e a liberdade, enquanto a responsabilidade civil recai, especialmente, sobre o patrimônio, tanto do responsável pela reparação do dano, quanto daquele que sofreu a lesão patrimonial ou moral. O professor Rafael de Menezes reforça a afirmação quando aponta que o titular da ação penal, no caso das ações penais incondicionadas, é o Ministério Público, enquanto o titular da ação civil é o indivíduo particular que sofreu o dano ou seus representantes legais.[55] Ainda, apenas a legítima defesa real exclui o dever de indenizar o agressor, tendo o indivíduo que agiu em legítima defesa direito de impetrar ação regressiva contra o infrator caso atinja terceira pessoa ou bem de outrem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em que pese ser o Estado responsável pela tutela dos bens jurídicos dos cidadãos, em especial os bens indisponíveis, se vale aquele de uma ferramenta para exercer essa tutela, ofertando à sociedade, dessa forma, a plena sensação da persecução e concretização da Justiça, em sua acepção filosófica.
Onde o homem vive organizado em grupos, se faz presente Direito e Religião. Daí, infere-se que o Direito é, certamente, mais relevante que a ciência. O propósito do Direito é o justo, a razoabilidade e a resolução dos conflitos de direitos que colidem entre si. Embasado neste objetivo, o Estado, tutor dos bens jurídicos da sociedade e provedor do bem-estar social, confere ao particular a faculdade de agir, em situações específicas, de forma a resguardar bem jurídico que sofre ou possa vir a sofrer agressão ilegítima. A ação do indivíduo, nesta situação, é típica, mas não antijurídica. Ou, ainda, pode ser típica e antijurídica, mas uma conduta tal que não se reveste de culpabilidade, como no caso da legítima defesa putativa.
O choque de dois ramos do Direito que versam distintamente sobre bens tutelados pode levar o estudioso a falsamente crer na tese da exclusão da responsabilidade civil no caso da legítima defesa putativa, por conta da não imposição de pena, no sentido criminal (quando dessa forma couber a aplicação do direito). A exclusão da culpabilidade no âmbito penal não exclui a culpa na esfera cível, consequentemente não esmaecendo o dever de reparar o dano causado, este decorrente de erro do agente ao apreciar a situação fática.
Informações Sobre o Autor
Bruna Fernandes Coêlho
Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2007); Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco; Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes (RJ); pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Gama Filho (RJ); pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal Militar pela Universidade Cândido Mendes (RJ); graduanda em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7399915688574739