A Lei 11.442/2007 e suas implicações na justiça do trabalho

Foi publicada em 5 de janeiro de 2007, a Lei nº 11.442, que dispõe sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração, trazendo definições e exigências para efetivação do transporte de cargas por transportadores autônomos e por empresas de transporte de cargas.


Neste primeiro momento, criou-se uma falsa expectativa, principalmente no setor de empresas de transporte de cargas, entendendo as assessorias jurídicas que estariam sepultadas de vez as reclamatórias de ex-motoristas que reclamavam na Justiça do Trabalho e, com isso, estariam as empresas livres para efetuarem as contratações de transportadores autônomos, sobretudo em razão do que dispõem os artigos 2º e 4º da referida Lei.


Entretanto, uma análise mais percuciente da nova norma não deixa dúvida de que pouco ou nada mudou com seu advento.


O artigo 2º estatui que “a atividade econômica de que trata o art. 1o desta Lei é de natureza comercial, exercida por pessoa física ou jurídica em regime de livre concorrência, e depende de prévia inscrição do interessado em sua exploração no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas – RNTR-C da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT”, sendo exercida por Transportador Autônomo de Cargas – TAC e por Empresa de Transporte de Cargas – ETC.


O inciso I desse mesmo artigo conceitua Transportador Autônomo de Cargas como sendo a pessoa física que tenha no transporte rodoviário de cargas sua atividade profissional. Já o § 1º do art. 4º denomina de TAC-agregado aquele que coloca veículo de sua propriedade ou de sua posse, a ser dirigido por ele próprio ou por preposto seu, a serviço do contratante, com exclusividade, mediante remuneração certa e de TAC-independente aquele que presta os serviços de transporte de carga de que trata esta Lei em caráter eventual e sem exclusividade, mediante frete ajustado a cada viagem.


Quanto ao Transportador Autônomo de Cargas Independente, a própria definição legal deixou pouca margem para uma eventual discussão de suposto liame empregatício, já que a prestação dos serviços é eventual, isto é, esporádica e sem exclusividade. Assim, a prestação de serviços realizada para vários contratantes, sem fixação numa empresa, não caracteriza relação de emprego, até mesmo porque o transportador independente pode escolher quando e a quem quer prestar seus serviços de transporte.  


O mesmo não se pode dizer, todavia, quanto ao Transportador de Cargas Agregado, o qual possui características próprias que lhe aproximam da figura do empregado ou, se isto não ocorrer, será mais um instrumento para dissimular a relação empregatícia.


Mas, para correta delimitação do conceito, deve-se cotejar essa norma com a que consta do art. 1º da Lei nº. 7.290, de 19 de dezembro de 1984, derrogada tacitamente na parte relativa ao transporte de carga, segundo a qual Transportador Rodoviário Autônomo é “a pessoa física, proprietário ou co-proprietário de um só veículo, sem vínculo empregatício, devidamente cadastrado em órgão disciplinar competente, que, com seu veículo, contrate serviço de transporte a frete, de carga ou de passageiro, em caráter eventual ou continuado, com empresa de transporte rodoviário de bens, ou diretamente com os usuários desse serviço”.


Comparando o teor da Lei nº 11.442/07 com o disposto Lei nº 7.290/84, verifica-se que pouco mudou. Esta exige que o transportador autônomo seja proprietário ou co-proprietário de um só veículo automotor de carga, enquanto aquela permite ele possa ser proprietário ou arrendante de um ou mais veículos. Ambas as leis exigem que haja registro nos órgãos competentes, sendo que a mais antiga fala em órgão disciplinar e a última em Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de carga – RNTR-C da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT.


Alteração maior, entretanto, ocorreu no que diz respeito à natureza dos serviços prestados. Enquanto a Lei antiga permitia a prestação de serviços eventual ou continuada à empresa de transporte rodoviário de bens ou diretamente aos usuários desse serviço unicamente pelo transportador, a Lei recém-publicada autoriza a prestação de serviços à empresa de transporte de cargas ou embarcadores de carga pelo transportador autônomo, ou por seus prepostos, com exclusividade mediante remuneração certa.


Continuado é aquilo que se protrai no tempo; é o antônimo de eventual. Prestação de serviços continuada, portanto, é a que possui perenidade na empresa. Já exclusiva é a prestação de serviços que se atrela a um único contratante. As expressões “prestação de serviços em caráter continuado” e “prestação de serviços com exclusividade” não se equivalem, embora possam coexistir numa mesma relação jurídica.


Salta aos olhos a contradição do artigo 2º com o § 1º do art. 4º da Lei em testilha. Enquanto naquele se classifica a atividade de transporte rodoviário de cargas como de natureza comercial, praticado sob o regime da livre concorrência, neste se permite a prestação de serviços com exclusividade pelo Transportador Autônomo de Cargas agregado. Como se falar então em livre concorrência, se há exclusividade?


Mas, por certo, estranho é o fato de permitir a nova Lei o pagamento mediante remuneração certa ao transportador agregado, quando a retribuição destes profissionais é paga por frete, segundo o valor de mercado.


Essas contradições permitem deduzir que se trata de mais uma lei feita sob encomenda por setores da atividade econômica que buscam “escudo” para se verem fora do alcance da norma celetista, sem qualquer preocupação com a juridicidade e o respeito aos princípios basilares do ordenamento positivado.


A questão mais tormentosa, entretanto, trata-se de saber se a nova regulamentação permite ou não a terceirização da atividade-fim das empresas de transporte de cargas.


Apenas uma análise apressada e desvinculada dos princípios constitucionais e do direito do trabalho  por aqueles a quem esta prática desvirtuada interessa, permite concluir pela licitude da terceirização em atividade-fim no segmento abrangido por esta norma, já que o artigo 4º fala em “contrato a ser celebrado entre a ETC e o TAC” e seu § 1º diz que TAC-agregado é “aquele que coloca veículo de sua propriedade ou de sua posse, a ser dirigido por ele próprio ou por preposto seu, a serviço do contratante, com exclusividade, mediante remuneração certa”.


Viu-se no cotejo da Lei nº 7.290/84 com a presente Lei que não houve alterações substanciais. Aquela Lei permitia a prestação de serviços continuada, enquanto esta permite a prestação de serviços com exclusividade.


Não se pode entender que a expressão “a serviço do contratante, com exclusividade” esteja a autorizar a terceirização ilimitada da atividade empresarial.


Mesmo na vigência da Lei nº 7.290/84, havia dispositivo autorizativo de contratação de motoristas autônomos em caráter continuado, com espectro mais amplo, e, nem por isso, se permitia a terceirização desmedida.  


É cediço que, para que haja a terceirização, faz-se mister que os serviços tomados pelo cliente sejam estranhos à sua atividade-fim. Importa afirmar que a terceirização é permitida, tão-somente, nos casos de trabalho temporário (Lei nº 6.019/74), de serviços de vigilância (Lei nº 7.102/83), de conservação e limpeza, de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistam a pessoalidade e a subordinação direta (Súmula de nº. 331, incisos I e III).


A pensar-se de modo contrário, estar-se-ia permitindo a existência de empresas de transporte sem a existência de empregado. Seria a institucionalização do marchandage, caminho este há muito repudiado pela doutrina e jurisprudência pátrias. Em apoio do aqui dito, vejam-se os seguintes acórdãos:


TERCEIRIZAÇÃO ILEGÍTIMA. CONTRATAÇÃO DE TRABALHADOR PARA ATIVIDADE-FIM DA EMPRESA. A prestação de serviços essenciais (motorista) ao objetivo da empresa (com atividade no ramo de transporte de cargas e pessoas) revela contratação fraudulenta e configura ilegítima terceirização, redundando no reconhecimento do vínculo empregatício com o trabalhador, nos moldes do art. 3º da CLT.


(Recurso Ordinário no processo 05318-2002-902-02-00-2 – TRT da 2ª Região – 4ª Turma – Rel. Juiz Paulo Augusto Câmara – DOE/SP 12/09/2003)


TRANSPORTADOR RODOVIÁRIO AUTÔNOMO. LEI Nº 7.290/84. NÃO-CONFIGURAÇÃO. Deve restar cabalmente provado nos autos a configuração dos requisitos previstos no art. 1º da Lei nº. 7.290/84, bem como que não restaram evidenciados os do art. 3º da CLT, a fim de caracterizar que os serviços foram prestados na condição de transportador rodoviário autônomo. Não é possível a contratação de motorista autônomo por pessoa jurídica dedicada ao ramo de transportes.


(Recurso Ordinário no processo 01213-2005-046-12-00-3 – TRT da 12ª Região – Rel. Juiz José Ernesto Manzi – DJSC 29/03/2006 – p. 250)


RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA TOMADORA. A sentença impugnada reconheceu o vínculo de emprego com a segunda reclamada, contudo, diante das provas dos autos, o MM. Juízo “a quo” condenou as duas empresas de forma solidária. O argumento adotado pelo MM. Juízo “a quo” para justificar a responsabilidade solidária está na assertiva de que a primeira reclamada, a recorrente, além de fiscalizar o trabalho executado pelo reclamante, também não poderia terceirizar a sua atividade fim. A testemunha, Sr. Valdir, ouvido às fls. 96, confirma que “as vezes um funcionário da primeira reclamada fiscalizava o cumprimento da linha”. O documento de fls. 60/62 comprova que havia um contrato de prestação de serviços entre a primeira reclamada e a segunda. O objeto do contrato era o serviço de transporte, a qual é a atividade fim da primeira reclamada. Diante desse universo argumentativo, corroborado pelas provas dos autos, tem-se que o efetivo beneficiário dos serviços era a primeira reclamada, inclusive, fiscalizando os serviços prestados. Na qualidade de efetiva beneficiária dos serviços, além da vedação jurisprudencial a spacerterceirização na atividade fim, correta a imposição da responsabilidade solidária, diante dos ilícitos trabalhistas perpetrados contra os direitos do autor. O fato de o vínculo ter sido reconhecido com a segunda reclamada, de forma concreta, diante desse universo argumentativo, não elide a responsabilidade solidária. A responsabilidade solidária deriva do aspecto de que a fraude contra os direitos do autor é patente, logo, os que nela participaram são responsáveis solidariamente (art. 1.518, Código Civil de 1916, atual 942, Código Civil de 2002). Rejeito o apelo.(Recurso Ordinário 02939-1998-317-02-00 – TRT da 2ª Região – 4ª Turma – Rel. Juiz Francisco Ferreira Jorge Neto – DOE/SP 05/03/04)


Admitir-se a terceirização na atividade-fim desse segmento econômico seria um retrocesso inadmissível em um Estado Democrático de Direito que, como tal, acolhe o princípio do não-retrocesso social. Orienta este princípio, no dizer de Canotilho, que o núcleo essencial de direitos sociais já realizados e efetivados através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem criar esquemas alternativos, traduzam anulação, revogação, aniquilação desse núcleo essencial.


Noutra esteira, não parece que o disposto no art. 5º  dessa Norma veio  dar um salvo-conduto às empresas para  permitir a contratação de transportador, sem que  haja a existência de vínculo empregatício.


Lembremos de situações pretéritas, como a que aconteceu quando da edição da Lei nº. 8.949/94, acrescentando o parágrafo único ao art. 442 da CLT que excluiu a possibilidade de vínculo empregatício entre a cooperativa e seus associados e entre estes e os tomadores de serviço. Quase à unanimidade, a doutrina e a jurisprudência rechaçaram os termos do novo dispositivo, analisando e refutando a fraude, quando era verificada. A propósito, veja-se o excerto do artigo de Márcio Túlio viana, in verbis:


“… quando a lei exclui da CLT os cooperados, refere-se apenas àqueles que realmente são cooperados, mantendo entre si relação societária. Em outras palavras: pessoas que não se vinculam ao tomador de serviços, nem à própria cooperativa, pelos laços da pessoalidade, da subordinação, da não-eventualidade e do salário. Assim, ao usar a expressão: qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, a lei não está afirmando: qualquer que seja o modo pelo qual o trabalho é executado. O que a lei quer é exatamente o que está nela escrito, ou seja, que não importa o ramo da cooperativa. Mas é preciso que se trate realmente de cooperativa, não só no plano formal, mas especialmente no mundo real. Ou seja: que o contrato se execute na linha horizontal, como acontece em toda a sociedade, e não na linha vertical, como no contrato de trabalho. Em outras palavras, é preciso que haja obra em comum (co-operari) e não trabalho sob dependência do outro (subordinare)”.[1]


O mesmo aconteceu com a edição da Lei 4.886/65 que regula as relações de representação autônoma.  Diz essa Lei, no seu art. 1º, que: “exerce representação comercial autônoma a pessoa jurídica ou a pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual, por conta de uma ou duas pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para transmiti-los aos representados, praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios”. E, ainda, o seu art. 28 que “o representante comercial fica obrigado a fornecer ao representado, segundo as disposições do contrato ou, sendo este omisso, quando lhe for solicitado, informações detalhadas sobre o andamento dos negócios a seu cargo, devendo dedicar-se à representação, de modo a expandir os negócios do representado e promover os seus produtos”.


O diferencial entre o empregado e o representante autônomo reside no elemento subordinação, presente, de forma acentuada, no primeiro e, de forma reduzida, no segundo.


Em todos esses casos, cabe ao julgador, em atenção ao princípio da primazia da realidade, adentrar a situação fática do contrato e perquirir a existência de elementos caracterizadores do vínculo empregatício.


E não se trata apenas de investigar os pressupostos clássicos do contrato de trabalho previstos nos artigos 3º e 4º da CLT, como a subordinação, a onerosidade, a não-eventualidade e a pessoalidade. Devem ser verificados outros elementos relacionados aos pressupostos ou simplesmente auxiliares na determinação da existência de vínculo empregatício, v.g., a capacidade e idoneidade econômico-financeira do transportador; o controle direto e indireto; a contratação de auxiliares e remuneração deles pela empresa; estabelecimento de roteiros pré-determinados; possibilidade de trabalho fora dos horários da contratante; fixação consensual do preço do frete e sua compatibilidade com o mercado e com a dignidade da pessoa humana; custeio das demais despesas do transportador e seus auxiliares; inscrição no ISS e no INSS, entre outros.


A propriedade do veículo de carga, embora possa ser critério auxiliar, não é, por si só, excludente do vínculo empregatício, porque é perfeitamente possível a existência de contrato de locação conexo ao contrato de trabalho, sobretudo porque o valor ajustado traz implícito o valor do aluguel.


A questão mais intrincada, sem dúvida, diz respeito à existência de subordinação. No aspecto jurídico, foge do razoável imaginar que alguém possa colocar sua mão-de-obra a serviço de empresa do ramo de transportes, sem que esta lhe determine o modo de prestação de serviços com os roteiros pré-estabelecidos, prazo e condições para entrega, sobretudo quando estes transportadores também atuarem como cobradores.


Logicamente, impossível aos transportadores auto-organizarem suas atividades de forma autônoma, vez que devem obedecer à sistemática estabelecida pela empresa, até porque não têm qualquer participação no ajuste feito com esta pelos compradores das mercadorias.


A subordinação não deve ser vista exclusivamente sob o ângulo da dependência jurídica, mas também econômica,  que se manifesta pela necessidade do trabalhador de manter a sua subsistência e de sua família. É lógico que, ainda que não exista poder disciplinar explícito, a pior punição para o empregado é  a suspensão de seu pagamento. Assim, por vias oblíquas, torna-se o transportador subordinado quando a retribuição for insuficiente ao sustento seu e de sua família, de modo que o obrigue a trabalhar ininterruptamente, sem descansos ou férias para que possa receber o mínimo necessário.


Ademais, retirar deste trabalhador a tutela do Direito do Trabalho deixando-lhe o valor da remuneração o encargo exclusivo do mercado, como querem os entusiastas desta Lei, além de representar um retrocesso, fere a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, na medida em que não cria uma rede protetiva mínima para resguardar tais valores. A doutrina moderna, quando pugna pelo alargamento do objeto do Direito do Trabalho para alcançar todas as relações de trabalho dignas, sugere estabelecer um salário-mínimo hora para o autônomo capaz de abranger todos os direitos previstos no art. 7o da CR/88 cujos destinatários são os trabalhadores e não apenas os empregados[2], o qual, na hipótese do transporte, deveria representar apenas 20% do valor a ser pago, já os demais 80% seriam devidos em razão do contrato anexo de aluguel do caminhão.


Outro ponto importante na caracterização do vínculo empregatício será o atendimento aos requisitos previstos na Lei em comento, como a inscrição no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas – RNTR-C; ser possuidor ou proprietário de pelo menos um veículo de carga, registrado no órgão de trânsito como veículo de aluguel; ter experiência de três anos ou ter sido aprovado em curso específico. Isto porque são requisitos mínimos de qualificação e atuação do transportador autônomo, sem os quais não se caracteriza este profissional.


Mutatis mutandis, quando o art. 5º da Lei nº. 11.442/07 determina que, em nenhuma hipótese, haverá a caracterização de vínculo empregatício, está dizendo simplesmente que, quando presentes os elementos característicos da relação autônoma, não há vínculo empregatício. De modo contrário, presentes os elementos do vínculo empregatício, haverá vínculo empregatício. Nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos, relativos à Lei anterior:


VÍNCULO EMPREGATÍCIO – EMPRESA TRANSPORTADORA DE  CIMENTO E CAL – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS QUE SE IDENTIFICA COM A CONSECUÇÃO DOS FINS ECONÔMICOS DA RECLAMADA   PRESENÇA DOS ELEMENTOS TIPIFICADORES DO LIAME EMPREGATÍCIO. De acordo com o artigo 3º da CLT, “considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. A decisão do Regional está embasada na prova que demonstra a existência de fraude à legislação trabalhista, tendo em vista que o reclamante executava atividade essencial à consecução dos fins econômicos da reclamada, transportando cimento e cal para seus clientes. Não está demonstrado que auto-organizasse sua atividade, pois era a reclamada quem se comprometia com o cliente para a entrega da mercadoria, cujo transporte era realizado pelo reclamante, conforme roteiro preestabelecido, o que demonstra dependência consubstanciada na sua atividade econômica. A prestação de serviços era pessoal, habitual, com inteira exclusividade à empresa, consoante a prova oral, havendo perdurado por longos 25 anos. A remuneração, embora formalizada como de pagamento a autônomo, não descaracteriza o contrato-realidade, bem como a utilização, pelo recorrente, de veículo próprio de trabalho. Responsável também o reclamante pela manutenção e abastecimento do caminhão, não constitui o fato relevância capaz de afastar a relação de emprego, porquanto, como bem ressalta o Regional, é de conhecimento comum que os preços ajustados para frete envolvem não só a mão-de-obra, como também os gastos com o veículo. Recurso de revista não conhecido integralmente. (RR 718.617/00-4 – TST – 4ª Turma – Rel. Min. Milton de Moura França – DJ de 05/03/04)


VÍNCULO DE EMPREGO. RELAÇÃO DE FATO COMPROVADA.    INAPLICABILIDADE DA LEI Nº 7.290/84. A Lei nº 7.290, de 19.12.84 (DOU de 20.12.84), não veda a possibilidade de reconhecimento do vínculo de emprego nos casos em que ele efetivamente ocorre. O seu art. 1° não diz que nunca haverá relação de trabalho quando o transporte for realizado pelo proprietário ou co-proprietário do veículo. Estabelece, isto sim, uma série de condições, entre elas a inexistência do pacto laboral, para que o prestador do serviço seja considerado “transportador rodoviário autônomo de bens”. Então, cabe precipuamente ao Judiciário Trabalhista dizer se há ou não o vínculo de emprego à luz das disposições da CLT, tendo a referida Lei força relativa. Vínculo de emprego que se reconhece em razão da sujeição do reclamante aos comandos e procedimentos oriundos dos diversos setores da matriz da reclamada, da prestação laboral calcada no atendimento dos meios, métodos e formas por ela estabelecidos e orientada para a consecução dos seus fins socais, bem como da ausência de resquício de autonomia durante o período discutido nos autos. (Acórdão 10.921/1999 – TRT da 12ª Região – 1ª Turma – Relator Juiz Idemar Antônio Martini – DJSC 22/10/99 – p. 222)


Também deve ser abrandada a interpretação ao disposto no parágrafo único do art. 5º, quando determina que compete à Justiça Comum o julgamento de ações oriundas dos contratos de transporte de cargas. Este dispositivo deve ser lido conforme a Constituição, à luz da alteração ao art. 114 trazido pela EC 45/04.


Conforme art. 730 do novo Código Civil, deve-se considerar contrato de transporte ou de fretamento aquele que “alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas”.


Doutrinariamente, conceitua-se contrato de fretamento “aquele em que um contratante (fretador) se compromete, para com outro (afretador), mediante pagamento de frete, a realizar uma ou mais viagens preestabelecidas  ou durante determinado período de tempo, reservando-se o controle sobre a tripulação e condução técnica do veículo de transporte”[3].


Assim, percebe-se que contrato de transporte verdadeiramente é aquele em que uma pessoa se compromete a um resultado específico, o de colocar a mercadoria ou a pessoa em determinado ponto geográfico. É um contrato de resultado, pertencente às relações de consumo, porquanto o transportador contrata o serviço de transporte de carga ou pessoa com o destinatário final (art. 2º da Lei nº 8.078/90), conforme jurisprudência uníssona do Superior Tribunal de Justiça.


Embora haja divergência doutrinária, vez que ainda não se elucidou jurisprudencialmente o alcance do art. 114 da Carta Política, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/04, por ser relação de consumo, a competência para dirimir os conflitos existentes entre a empresa de transporte de cargas ou mesmo o transportador autônomo e o consumidor é da Justiça Comum.


Entretanto, a questão toma outros contornos quando se verificar a existência de lide entre o transportador e a empresa de transporte com a qual estabeleceu contrato. Nesta hipótese, há duas situações que devem ser analisadas.


A primeira diz respeito ao trabalhador, contratado como autônomo, mas que ajuíza reclamatória pedindo o pagamento decorrente do reconhecimento do vínculo empregatício.


Nesta primeira situação, não há dúvidas de que a competência seja da Justiça Laboral, já que a competência para o julgamento da demanda define-se em função da natureza jurídica da questão controvertida, demarcada pelo pedido e pela causa de pedir. Importante aqui trazer a lume a lição de Cândido Rangel Dinamarco, que, com muita razão, assim obtempera:


A determinação da competência faz-se sempre a partir do modo como a demanda foi concretamente concebida – quer se trate de impor critérios colhidos nos elementos da demanda ( partes, causa de pedir, pedido ), quer relacionados com o processo ( tutelas diferenciadas: mandado de segurança, processo dos juizados especiais cíveis etc.), quer se esteja na busca do órgão competente originariamente ou para os recursos. Não importa se o demandante postulou adequadamente ou não, se indicou para figurar como réu a pessoa adequada ou da que pediu etc. Questões  como essas não influem na determinação da competência e, se algum erro dessa ordem houver sido cometido, a conseqüência jurídica será outra e não a incompetência. Esta afere-se invariavelmente pela natureza do processo concretamente instaurado e pelos elementos da demanda proposta, in statu assertionis[4]


Desse modo, se o pedido ou a causa de pedir decorrer de uma suposta relação de emprego, ainda que esta não venha posteriormente a ser reconhecida em juízo, a competência será da Justiça Especializada, pois é a única que detém competência para verificar a existência dos pressupostos da relação de emprego, conforme ilação que se tira do art. 114 da Carta Política. A conseqüência lógica do não-reconhecimento do vínculo empregatício será a  improcedência, se não houver pedido sucessivo referente à relação de trabalho autônoma.


Situação que não difere é a decorrente do Transportador Autônomo de Cargas – agregado ou independente – que busca os direitos decorrentes da relação autônoma estabelecida no contrato de transporte firmado com empresa de transporte de cargas. Aqui também a competência será da Justiça do Trabalho, vez que a Emenda Constitucional nº 45, de 8.12.04, trouxe para a Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, como bem ensina Estevão Mallet, in verbis:


“Deixa a Justiça do Trabalho de ter como principal competência, à vista da mudança em análise, o exame dos litígios relacionados com o contrato de trabalho, para julgar os processos associados ao trabalho de pessoa natural em geral. Daí que agora lhe compete apreciar também as ações envolvendo a atividade de prestadores autônomos de serviço tais como corretores, médicos, engenheiros, arquitetos ou outros profissionais liberais, além de transportadores, empreiteiros, diretores de sociedade anônima sem vínculo de emprego, representantes comerciais, consultores etc, desde que desenvolvida a atividade diretamente por pessoa natural. Prestados os serviços por empresa, não havendo alegação de fraude, a competência não é da Justiça do Trabalho.”[5]


Estando o transportador prestando serviços a uma empresa e não ao destinatário final, é indubitável a competência da Justiça Laboral, sendo manifesta a inconstitucionalidade de norma que busque extirpar dela referida atribuição, mormente quando há célebres defensores da competência da justiça do trabalho mesmo quando o trabalho é prestado para o destinatário final.[6]


Mesmo na hipótese do contrato de trabalho em sentido amplo (prestação de serviço) ser conexo ao contrato de aluguel de veículo, a hipótese não seria de competência da Justiça Comum, pois, havendo prestação de serviço por conta alheia, a competência será da Justiça do Trabalho, tendo sido este o mote da Reforma introduzida pela EC 45/04. Ademais, não se argumente ser o valor do trabalho o menor se comparado ao devido em razão do aluguel para atrair a competência para a Justiça Comum.


Existem aqueles que advogam que o  “maior peso”[7]  aos contratos anexos ao contrato de prestação de serviço estaria a privilegiar aqueles em detrimento destes. Ora, a dignidade da pessoa humana e o valor trabalho são princípios basilares do Estado Democrático de Direito que impedem qualquer interpretação que “coisifique” o homem, pois o trabalhador não pode ser tratado como instrumento de produção, mas deve ser tratado sob um prisma ético – como pessoa que é fim em si mesma.


Deste modo, entende-se que, se interpretado conforme a Constituição, observadas as ponderações acima expostas, não há inconstitucionalidade no parágrafo único do artigo 5º da Lei em comento. Inconstitucional será a interpretação que transfira à Justiça Comum o julgamento de lide entre o transportador autônomo ou não e a empresa de transporte de cargas.


À guisa do arremate, pode-se concluir:


1) Na seara trabalhista, não houve alteração substancial entre o regramento da Lei nº 11.442/07 e o anteriormente previsto na Lei nº 7.290/84;


2) A Lei nº 11.442/07 não impede o juiz do trabalho de adentrar e verificar a existência dos pressupostos fáticos da relação de emprego entre o transportador autônomo e a empresa de transporte de cargas;


3) A Lei nº 11.442/07 não permitiu a terceirização desmedida da atividade-fim das empresas de transporte de cargas;


4) São da competência da Justiça Comum as lides em que são partes as Empresas de Transporte de Cargas ou o Transportador Autônomo de Carga, este último realizado sem a intermediação de empresa, e o consumidor do serviço de transporte;


5) São da competência da Justiça do Trabalho as lides existentes entre o transportador pessoa física, autônomo ou não, e as Empresas de Transporte de Cargas.


 


Notas:

[1] VIANA, Márcio Túlio. Cooperativas de Trabalho: um caso de fraude através da Lei. Revista do TRT da 3ª Região, nº 55/56. p. 51-53

[2] DELGADO, Gabriela Neves. “Direito Fundamental ao Trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006

[3] DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. São Paulo: Ed. Saraiva, p. 390

[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. 1. p. 417-418

[5] MALLET, Estevão. Apontamentos sobre a Competência da Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional nº 45. In Justiça do Trabalho: Competência Ampliada. Coordenadores Grijalbo Fernandes Coutinho e Marcos Neves Fava. São Paulo: LTr, 2005, p. 70-91

[6] Neste sentido: LIMA, Taísa Maria Macedo de. O sentido e o alcance da expressão “Relação de Trabalho”no art. 114, inciso I, da Constituição da República. In: Justiça do Trabalho: competência amplicada. São Paulo: LTr, 2005, p.497/512. SILVA, Antônio Álvares da“Pequeno Tratado da Nova Competência Trabalhista”. São Paulo: LTr, 2005.

[7] O parágrafo 4º do art. 201 do Decreto 3.048/99 e o art. 629 do Decreto 3.000/99 determinam que as bases de cálculo da contribuição previdenciária  e do imposto de renda dos transportadores autônomos sejam, respectivamente, de 20% e 40% do rendimento bruto.


Informações Sobre o Autor

Fábio Lopes Fernandes

Procurador do Trabalho no Ofício do Ministério Público do Trabalho em Uberlândia


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