A não-cumulatividade na nova Reforma Tributária (PEC n. 233 )

I – Introdução:

Em 28 de fevereiro de 2008, o Governo apresentou ao Congresso Nacional
a proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 233, contendo o seu texto final
para mais uma reforma tributária. A nova PEC tem como principais objetivos (i)
a simplificação do sistema tributário nacional, (ii) o aumento da formalidade,
(iii) a eliminação das distorções da estrutura tributária, (iv) a eliminação da
guerra fiscal e (v) o aperfeiçoamento da política de desenvolvimento regional.

Dentre as alterações propostas, está a reformulação da competência até
aqui conferida aos Estados para legislar sobre o Imposto sobre Operações
relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de
Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS).

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Conforme a Exposição de Motivos do Ministério da Fazenda, o novo ICMS
passará a ser de competência conjunta da União e dos Estados, tendo a
legislação unificada em âmbito nacional.

Nos limites desse novo ICMS, merece grande atenção, por parte de todos
os segmentos da sociedade civil, a modificação do tratamento constitucional
conferida ao princípio da não-cumulatividade.

Atualmente, a Constituição dispensa conteúdo exaustivo à definição do
princípio, conforme estabelece o art. 155, 2º , I, in verbis:

Art.
155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

II – operações
relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as
operações e as prestações se iniciem no exterior;

§ 2.º O imposto
previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I – será
não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à
circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas
anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;”

Com a mensagem enviada ao Congresso, o Executivo propõe que o
dispositivo seja substituído pelo art. 155-A, 1º , I, da seguinte forma:

“art. 155-A.Compete conjuntamente
aos Estados e ao Distrito Federal, mediante instituição por lei complementar, o
imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre
prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.

§1º O imposto previsto neste
artigo:

I – será não-cumulativo, nos
termos da lei complementar.”

Como se nota, por meio da simples confrontação dos dois dispositivos,
a nova definição da não-cumulatividade tenciona esvaziar completamente o seu
conteúdo constitucional, relegando a norma inferior esse mister. Tendo em vista
a importância doutrinária e jurisprudencial que uma mudança desse porte comportaria,
nos propomos a discorrer nas linhas que se seguem sobre seus possíveis
impactos.

II – Breve Histórico do
Princípio da Não-Cumulatividade no ICMS:

O antecessor do ICMS, o Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC), era
um tributo plurifásico e cumulativo que incidia “em cascata” sobre todas as
fases da circulação das mercadorias, desde a produção até o consumo. A exação
onerava sobremaneira o consumidor final, que com a incidência a cada venda,
acabava por arcar com uma elevada carga tributária.

Nesse contexto, em 1965, também com uma Reforma Tributária,
instituiu-se o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM) – ainda sem o S –
substituindo o IVC, e criando uma sistemática que buscava eliminar os efeitos
perniciosos da cobrança cumulativa do imposto sobre o consumo.

Assim, com a Emenda Constitucional 18/65 a não-cumulatividade foi
elevada à condição de princípio constitucional. Contudo, a definição dos
limites que tal princípio representava não foram tratados pela emenda, que
delegou a lei complementar tal dever.

Ato contínuo, com a vigência da Constituição de 1967, manteve-se o
princípio, cabendo o disciplinamento ainda a lei infraconstitucional, nos
seguintes termos:

  “Art. 24. (…)

§ 5º – O imposto sobre
circulação de mercadorias é não-cumulativo, abatendo-se, em cada operação, nos
termos do disposto em lei, o montante cobrado nas anteriores, pelo mesmo ou
outro Estado, e não incidirá sobre produtos industrializados e outros que a lei
determinar, destinados ao exterior.”

Em seguida, a EC 23/83
preservou o direito ao abatimento, com as mesmas características anteriores:

“Art.
23. (…)

II – operações relativas à
circulação de mercadorias realizadas por produtores, industriais e
comerciantes, imposto que não será cumulativo e do qual se abaterá, nos termos
do disposto em lei complementar, o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo
ou por outro Estado. A isenção ou não-incidência, salvo determinação em
contrário da legislação, não implicará crédito de imposto para abatimento
daquele incidente nas operações seguintes.”

Finalmente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o princípio
da não-cumulatividade ganhou contornos definitivos, estabelecendo-se
exaustivamente o conteúdo do direito ao abatimento, sem qualquer menção a lei
infraconstitucional, sendo:

“ não-cumulativo,
compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de
mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo
mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.”

III – Do Status Constitucional
do Princípio da Não-Cumulatividade:

Na Constituição vigente, o princípio da não-cumulatividade tornou-se
mecanismo de limitação ao poder de tributar do Estado, vez que incorporado no
chamado Estatuto Constitucional do Contribuinte de maneira completa.

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Para se dimensionar a importância desse conteúdo constitucional,
contido no art. 155, 2º, I, vale a lição do mestre Roque Antonio Carrazza,
segundo o qual:

a dicção constitucional
“compensando-se o que for devido (…)” confere, de modo direto, ao sujeito
passivo do ICMS o direito de abatimento, oponível, “
ipso facto”, ao Poder Público no caso de este agir de
modo inconstitucional, seja na instituição (providência legislativa), seja na
cobrança (atividade administrativa) do tributo
.”

No mesmo sentido, manifesta-se o doutrinador Paulo de Barros Carvalho:

O primado da não-cumulatividade
é uma determinação constitucional que deve ser cumprida, assim por aqueles que
dela se beneficiam, como pelos próprios agentes da Administração Pública. E
tanto é verdade, que a prática reiterada pela aplicação cotidiana do plexo de
normas relativas ao ICMS e ao IPI consagra a obrigatoriedade do funcionário,
encarregado de apurar a quantia devida pelo “contribuinte”, de considerar-lhe
os créditos, ainda que contra sua vontade.”

Assim, o status
constitucional do conceito da não-cumulatividade confere ao contribuinte o
direito amplo de fruir do abatimento sem reservas ou condições além daquelas
estritamente previstas no texto da Constituição.

Ao tratar do conteúdo constitucional conferido pela atual redação da
Magna Carta ao que tange ao princípio da não-cumulatividade, o ilustre
professor Roque Antonio Carrazza pontua que:

Não estamos, na hipótese,
diante de simples recomendação do legislador constituinte, mas de norma cogente
que, por isso mesmo, nem o legislador ordinário, nem o administrador nem, muito
menos, o intérprete podem desconsiderar
.”

IV – Apreciação Crítica da
Alteração Proposta com a Nova Reforma Tributária:

Como se notou, o princípio constitucional da não-cumulatividade é
resultado de um longo processo histórico, oriundo da experiência brasileira
paulatinamente absorvida pela Constituição. Em outros termos, o conteúdo ali
elaborado é decorrência de demorado processo dialético próprio da interação do
Estado com a Sociedade Civil.

Nessa toada, o princípio se insere no bojo dos limites constitucionais
do poder de tributar (jus tributandi), forma de contenção dos avanços
imoderados do Fisco sobre a propriedade privada dos administrados, e espelho da
formação do Estado de Direito

Conseqüentemente, o esvaziamento do conceito, relegando a norma de
nível inferior a disciplina da matéria há de ser percebido como retrocessão
dessa edificação gradualmente experimentada.

Ademais, àqueles que alegam que não cabe à qualquer lei a definição de
conceitos ou que a conceituação complessiva resulta no engessamento dos
institutos jurídicos, vale a percepção de que, no caso sub examine, a supressão resultará na fragilização de direitos
individuais duramente conquistados.

Caso fossem detectadas impropriedades técnicas no conceito
constitucionalmente já proposto, a reformulação deveria ocorrer com a
conservação da matéria ali tratada. O abrupto esvaziamento da definição
atualmente vigente, representaria, a bem da verdade, retrocesso das
instituições pátrias no que tange à técnica do creditamento do ICMS.

É bem possível que a legislação infraconstitucional que disciplinar o
instituto venha a repetir o conceito ora estampado na Constituição. Contudo, a
supressão do conceito constitucional fragiliza o direito conferido aos
contribuintes, que poderá ser reconfigurado ao (dis)sabor de ocasionais
interesses políticos.

Pelo que se nota, a Reforma Tributária vem ao encontro tão-somente do
Poder Executivo Federal, confirmando a tendência centralizadora do Estado nas
mãos da União, sem qualquer menção à redução da carga tributária sob um ponto
de vista holístico, e conseqüentemente, em detrimento do legítimo interesse
público.

De qualquer modo, vale a ressalva que estamos em um ano de eleições
municipais, e parece bastante difícil que a proposta percorra todas as etapas do
processo legislativo em curto prazo. Além do que, dadas as alterações sensíveis
na repartição de competências legislativas dos Estados no âmbito do ICMS, é
provável que o texto originalmente entregue sofra profundas alterações, com
longos debates e acomodações dos interesses representados nas casas do
Congresso.

Por fim, caso a norma seja aprovada, o texto não terá efeitos
imediatos, passando a viger somente a partir de 1º de janeiro do oitavo ano
subseqüente ao da promulgação desta Emenda. Até lá, como nossa História recente
tem nos mostrado, é bem provável que uma outra Reforma Tributária venha revogar
essa inovação.

 

Bibliografia:

1. BALEEIRO, Aliomar, “Limitações Constitucionais ao Poder
de Tributar, 7 ed., Rio de Janeiro, Forense. 1998.

2. BECKER, Alfredo Augusto, “Teoria Geral de Direito
Tributário”, 3 ed. Lejus, 1998

3. CARRAZZA, Roque Antônio, “ICMS”,. 2 ed., São Paulo:
Malheiros, 1995

4. CARVALHO, Paulo de Barros, “A Regra-Matriz do ICM”,
inédita, 1981.

5. PAULSEN, Leandro, “Direito Tributário. Constituição
e Código Tributário à luz da Doutrina e Jurisprudência”, 8 ed., Porto Alegre,
Livraria do Advogado, 2006

6. SILVA, José Antônio da, “Curso de Direito
Constitucional Positivo”, 25 ed., São Paulo, Malheiros, 2005.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Eduardo Fuser Pommorsky

 

Advogado tributarista membro do escritório Araújo & Policastro Advogados, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pós-graduando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica.

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