Sumário: 1. Introdução – 2. Algumas noções preliminares.
2.1. Sistema jurídico-penal. 2.2. Norma penal. 2.3. Tipo penal. 2.3.1.
Pressupostos de admissibilidade para a criação válida do tipo penal. 2.3.2.
Funções do tipo penal. 2.4. Conceito de crime. 2.5. Procedimento de construção
do crime (Iter criminis). 2.6.Elementos constitutivos do crime. 2.6.1.
Tipicidade. 2.6.1.1.Tipicidade objetiva. 2.6.1.2.Tipicidade subjetiva. 2.6.1.3.
Tipicidade formal. 2.6.1.4. Tipicidade material. 2.6.1.5. Tipicidade conglobante.
2.6.2. Antijudicidade. 2.6.3. Injusto penal. 2.6.4. Relação entre tipicidade
material, antinormatividade e ilicitude. 2.6.5. Culpabilidade. 2.7. Tentativa.
2.7.1. Finalidade. 2.7.2. Conceito. 2.7.3. Fundamento da punibilidade da
tentativa (teoria objetiva). 2.7.4. Identificação dos atos de execução pelo
critério objetivo-individual de Welzel (tipificação da tentativa). 2.8.
Desistência voluntária e arrependimento eficaz. 2.8.1. Conceitos. 2.8.2.
Fundamentos à impunidade. 2.8.3. Natureza jurídica – 3. Punibilidade. 3.1.
Noções básicas. 3.2. Princípios constitucionais legitimadores da punibilidade.
3.3. Circunstâncias do crime – 4. Interpretação sistemática do tipo penal de
tentativa (art.14, II do CP). 4.1. Conceito e sentido da expressão
circunstâncias alheias à vontade – 5. Interpretação sistemática do tipo penal
de desistência voluntária (art.15 do CP). 5.1. Conceito e sentido da palavra
voluntariamente. 5.2. Significado da expressão só responde pelos atos já
praticados (tentativa qualificada) – 6. Natureza jurídica da desistência
voluntária (e do arrependimento eficaz). 6.1. Causa excludente de adequação
típica. 6.1.1. Críticas. 6.2. Causa de exclusão de punibilidade – 7. Um
comentário de natureza processual – 8. Conclusões extraídas do estudo apresentado.
1. Introdução
Uma das questões mais
intrigantes da teoria do delito é a discussão doutrinária para se determinar
qual a efetiva natureza jurídica da desistência voluntária (ou do
arrependimento eficaz) do agente que já iniciara a execução de um crime. Analisando-se
as controvérsias ora existentes, preponderam, atualmente, duas correntes de
pensamento: uma, defendendo a tese de que o ato de desistência voluntária (ou
de arrependimento eficaz) seja causa
pessoal excludente de tipicidade; outra, entendendo ser causa pessoal de exclusão da punibilidade.
Os que defendem a atipicidade
alegam que a punibilidade é um dos pressupostos da impunidade. Só é passível de punição quem pratica
determinado crime. Logo, só quem pode
ter a punibilidade excluída é o autor de delito que preencha determinados
requisitos legais. Na hipótese de desistência voluntária, consideram, os
estudiosos, que deixou de se concretizar o tipo abstrato de tentativa (art.14,caput,II
do CP), em razão de o agente, por vontade própria, ter evitado a
consumação do resultado típico. Portanto, não havendo crime tentado algum
(pressuposto indispensável à punibilidade),
inexiste a possibilidade jurídica de extinção de pena.
Os juristas que endossam
a tese de exclusão de pena afirmam ser impossível excluir-se a tipicidade a posteriori de conduta inicialmente
típica, pelo fato de o agente executor desistir (ou arrepender-se), voluntária
e eficazmente, no curso da execução do delito planejado. Se foram efetivamente
constituídos os elementos do crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade),
jamais um ato de arrependimento poderá ser justificativa à desconstituição
superveniente da tipicidade, por ser materialmente impossível retirar-se, do
mundo fático, atos juridicamente proibidos e já realizados, que estão
diretamente interligados ao resultado típico antes visado, em perfeita relação
de causalidade material.
Diante da questão
exposta, dúvidas ainda persistem na aferição da solução jurídica mais precisa e
consentânea com a dogmática jurídico-penal em vigor. Pretendo, por conseguinte,
com base na teoria finalista da ação
e na relação de causalidade material,
realizar uma interpretação adequada e satisfatória das normas penais aplicáveis
ao caso, para que seja ratificada a tese da exclusão[1] da
punibilidade. Isso por entender que a teoria da excludente de tipicidade
ignora o caráter material da tipicidade e seus efeitos concretos, em
razão de desconstituí-la após uma simples interpretação lógico-formal,
realizada ex post facto do tipo
tentado.
2. Algumas noções preliminares
2.1. Sistema jurídico-penal
As relações entre as
pessoas podem ser resumidas em duas espécies: relações de concorrência e
relações de cooperação[2].
As primeiras caracterizam-se pela inevitável existência de competição ou
disputa entre sujeitos, sem qualquer ajuda recíproca entre eles, a fim de
conquistar determinado bem da vida (existente em quantidade limitada na
natureza), ou ainda, com o propósito de exercer, plena e concomitantemente, os
direitos subjetivos dos quais são titulares.
É o que se dá, exempli gratia,
quando indivíduos buscam a conquista de determinado emprego ou, na segunda
hipótese, quando procuram exercer as faculdades inerentes ao seu direito de
propriedade, tendo, em contrapartida, que se sujeitarem ao direito de vizinhança
dos demais. As relações de cooperação são, por natureza, inesgotáveis. As pessoas, em mútuo consenso, desejam um
resultado comum. Colaboram, para tanto,
entre si. Às vezes, com intenções
contrapostas, a conduta de um é a causa da conduta do outro, como, por exemplo,
acontece nos contratos bilaterais[3];
outras tantas vezes, pessoas, com os mesmas intenções, conjugam seus esforços
em busca de um fim comum e determinado. É o caso de indivíduos que,
conjuntamente, destinam bens para a constituição de uma entidade filantrópica.
Levando-se em conta que
se trata de uma sociedade pertencente a um Estado Democrático de Direito, que
tem como parâmetro e fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana[4],
mister se faz a criação de um sistema jurídico válido e eficaz, que possa ser
capaz de prevenir prováveis conflitos de interesses oriundos das relações
intersubjetivas inevitáveis ou, subsidiariamente, que possa ser apto a
restaurar, in concreto, o estado de
legalidade violado, reprimindo e reeducando os responsáveis pelas infrações às
respectivas normas de conduta, que ocasionaram a intranqüilidade da população e
a conseqüente descrença na segurança jurídica.
A depender da espécie do bem da vida agredido, da gravidade da lesão por
ele sofrida e da correspondente repercussão no contexto social vigente, o
restabelecimento da ordem social dependerá, prioritariamente, da aplicação e da
eficácia das respectivas normas jurídicas penais, as quais se submeterão os
infratores.
O objeto de estudo do
jurista são as normas jurídicas, que constituem o direito objetivo de um
Estado. Considerando-se o conjunto das normas que estabelecem as regras mínimas
de convivência em sociedade, verifica-se a existência de vários comandos
fragmentados, isolados entre si. A priori,
deve o operador do direito submetê-los a um tratamento indutivo e racional,
visando a evidenciar princípios (expressos ou implícitos) que os interliguem ou
os afastem. É a fase de descoberta de idéias e valores éticos e sociais,
abstratamente considerados, constantes de um sistema normativo. Passa-se, então, à fase de elaboração de conceitos
jurídicos (que expressam idéias e integram as normas) e de fixação da terminologia
(linguagem), o que viabilizará o desenvolvimento do raciocínio jurídico e a
construção do sistema. A elucidação dos princípios, a determinação dos
conceitos e a fixação dos termos lingüísticos adequados constituem a metodologia dogmática[5]. A dogmática
jurídica analisa a letra do texto, o decompõe analiticamente em elementos
(dogmas) e os reconstrói com lógica e coerência, formando o sistema jurídico e
estabelecendo a sua unidade[6]. Sistema
jurídico é, portanto, um conjunto de normas jurídicas, compatíveis entre
si, que regulamentam a convivência em sociedade.
O sistema jurídico-penal
brasileiro é o conjunto de normas jurídicas penais nacionais, compatíveis entre
si, extraídas das leis stricto sensu criadas
pelo Congresso Nacional (art.22,I da CRFB), para incidirem em situações
concretas que sejam insolucionáveis pela incidência de normas de natureza não
criminal (caráter subsidiário e fragmentário das normas penais),
com o propósito de restabelecer a ordem social e a confiabilidade dos
administrados na eficácia do ordenamento jurídico violado, submetendo, para
tanto, os agentes criminosos, em regra, ao cumprimento de penas privativas de
liberdade, a título de retribuição e reeducação (finalidade preventiva especial
da pena).
2.2. Norma penal
A norma jurídica que
compõe o sistema é um comando dirigido a uma finalidade. É uma norma de conduta
do homem, de natureza preventiva; mas é também, principalmente, norma de
composição de conflito de interesses[7].
A norma jurídica possui
sempre dois elementos internos: o comando
e a sanção. Aquele determina como se
conduzir; esta, estabelece as conseqüências na hipótese de violação do comando.
São elementos inseparáveis. A coercibilidade
é a essência da norma jurídica, inexistindo esta quando não haja sanção.
A estrutura externa da
norma é a forma como ela é apresentada. É o instrumento que a exterioriza, que
a veicula. Na hipótese da norma penal, é
a própria lei stricto sensu (Código
Penal).
O conteúdo material
é composto de idéias e valores (éticos, morais, econômicos etc.)
incorporados na norma jurídica pelo criador. A norma penal tem conteúdo
eminentemente social. Tutela bens jurídicos que, se lesados, causam
instabilidade e insegurança na ordem social e desconfiança na ordem jurídica[8]. Em um Estado Democrático
de Direito, tais bens da vida (vida, liberdade, intimidade etc.) são protegidos
pela própria Constituição.
As normas penais podem
ser da espécie incriminadora, que são
normas extraídas da interpretação de tipos penais que descrevem condutas
passíveis de punição; ou da espécie não
incriminadora (normas de permissão: afirmam a licitude ou determinam a impunidade de condutas
típicas realizadas em certas circunstâncias; e complementares ou explicativas:
elucidam o conteúdo normativo ou delimitam o âmbito de aplicação de outras) [9].
Em se tratando de um
sistema jurídico-penal vigente em um Estado Democrático
de Direito, a criação de normas penais tem por finalidade precípua
servir de instrumento de delimitação entre o poder intervencionista do Estado (jus puniendi) e as liberdades pessoais.
Significa que o exercício desse poder condiciona-se não às noções de utilidade
social ou de qualquer outro fim que justifique a atuação estatal, mas, sim,
pela necessidade de garantia dos mesmos direitos a todos, nas hipóteses
expressa e precisamente estabelecidas em lei. Assim
compreendida, a norma penal tanto pode ser proibitiva quanto determinativa,
estando sua validade dependente não da sua finalidade legal (ratio legis), mas da real
necessidade de sua promulgação e das garantias que ofereça[10].
2.3. Tipo penal
2.3.1. Pressupostos de admissibilidade para a
criação válida do tipo penal
A sociedade está em
permanente evolução social, econômica e tecnológica. Muitos dos valores culturais que prevaleciam
na consciência humana em épocas passadas, merecendo a proteção do sistema
jurídico-penal, hodiernamente perderam a importância. Condutas, antes injustas
e culpáveis, passaram a ser consideradas lícitas e socialmente adequadas[11]
ou, ainda, inadequadas socialmente, porém criminalmente insignificantes[12]
para que o agente responsável sofra a coerção penal.
Dessa forma, à medida
que os conceitos de valores se alteram, o legislador, como membro da
coletividade e representante do povo, sofre inevitável influência sobre suas
convicções político-criminais. As razões
que embasaram a criação de determinados modelos legais de condutas proibidas,
elevando-as à categoria de crime, são enfraquecidas ou desaparecem por
completo. O critério político-criminal
que impulsionava a atuação do legislador para a construção de tipos penais é
modificado. Fatos que antes deveriam
submeter-se à incidência das normas penais, ou são descriminalizados, ou, caso
ainda estejam previstos legalmente como crime, tornam a norma penal sem
eficácia social[13].
Portanto, o Poder
Legislativo Federal, para constituir o tipo penal incriminador, classificando,
conseqüentemente, certa conduta como delituosa, deve observar os seguintes
princípios, em se tratando de um Estado Democrático de Direito:
a) princípio da reserva legal (art.5.º,XXXIX
da CRFB), cujo conteúdo se compõe de quatro subprincípios[14]:
1- a lei que estabelece o tipo penal só deve ser aplicada a fatos futuros,
salvo se para beneficiar o réu (lex
praevia); 2- só a lei stricto sensu
pode criar delitos, sendo, por conseguinte, inadmissível a criminalização por
costumes (lex scripta); 3- é
juridicamente impossível a aplicação analógica (in malam partem) de norma penal para fundamentar ou agravar a pena
de fato que não tenha sido legalmente erigido prévia e expressamente à
categoria do crime correspectivo (lex
stricta); 4- os tipos penais devem ser certos, claros, precisos em seu
texto o suficiente a não deixar dúvidas sobre a ratio legis, visando a obstar possíveis abusos decorrentes de
juízos de valor do intérprete, necessários para uma correta interpretação e
aplicação da norma (lex certa). Caso contrário, a segurança jurídica estaria
abalada e as garantias individuais seriam materialmente inexistentes[15];
b) princípio da intervenção mínima. Significa dizer que determinada
conduta só deve ser considerada, por lei, como crime, se a aplicação de normas
não-penais forem insuficientes a restaurar a paz social, abalada pelo resultado
por ela causado. A criminalização de
condutas específicas identifica a natureza fragmentária
da norma penal. Condutas são
selecionadas para constituírem modelos proibidos, dentro de um universo de
outras possibilidades de escolha, tendo em vista a relevância que a
Constituição da República atribui a determinados bens da vida sob sua tutela
(vida, liberdade, honra, propriedade etc.).
O caráter subsidiário da norma
penal também é evidenciado, pois, se a lesão não alcançou a magnitude
suficiente para seu autor sujeitar-se à coerção penal, deverá submeter-se, em
regra, às sanções civis;
c) princípio da lesividade. Quatro funções podem ser atribuídas a este
princípio[16]: 1-
proíbe-se a incriminação de sentimentos pessoais, internos ao agente; 2-
proíbe-se a incriminação de condutas que não agridam bens de terceiros. Não
existem motivos para punir o agente por ter provocado danos a bens próprios,
sem que haja qualquer efeito socialmente reprovável. Em regra, o autor possui
plena disponibilidade sobre o que lhe pertence; 3- veda-se a incriminação de
estados pessoais ou simples condições existenciais, ou seja, o ser humano não
pode sofrer sanções em função de sua personalidade, por ser considerado perigoso.
Deve ser punido em virtude do que produziu, não do que ele é. É o que se
entende por direito penal do autor, plenamente inconstitucional, por
incompatibilidade com os postulados democráticos que regem o sistema
jurídico-penal vigente; 4- proíbe-se a
incriminação de condutas que, apesar de moralmente reprováveis, não violam bens
de terceiros. São condutas desviadas do conceito do moralmente aceito pela
maioria da população em determinado contexto social[17];
e
d) princípio da proporcionalidade[18].
O princípio da proporcionalidade será o critério legitimador do
exercício da atividade legislativa que imponha a privação da liberdade ao
indivíduo, em razão de ter praticado o ato ora capitulado como crime. Tal
princípio terá como função aferir a razoabilidade da norma penal
recém-construída, por uma análise de sua adequação, de sua necessidade
e de sua proporcionalidade em sentido estrito[19]. A criação do tipo penal terá sido adequada[20]
se for o meio apto e idôneo a produzir o
resultado desejado pela norma e seja conforme aos postulados constitucionais. A
necessidade[21]
indica que o meio[22]
adequado e gravoso adotado deve ser indispensável ao alcance do fim[23]
social perseguido, pois, se houver conduta menos onerosa e de eficácia social
equivalente, a tipificação terá sido inconstitucional. E, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito irá
avaliar se, ao sacrifício imposto ao direito fundamental do indivíduo
(liberdade), corresponde um benefício ao direito privilegiado[24],
compatível e razoável com os ideais mínimos de justiça.
Criado o tipo penal, as
seguintes características passam a ser-lhe inerentes: exclusividade,
pois só ele estabelece in abstrato
que condutas são criminosas;
imperatividade, independentemente de ser a norma permissiva ou
incriminadora. Se concretizada a hipótese legal, necessariamente, o respectivo
comando normativo produzirá efeitos em relação ao agente; generalidade, com eficácia erga
omnes, em razão de ser dirigido a todos os indivíduos, alertando-os para
que não executem a conduta descrita; abstratividade e impessoalidade, por viabilizar a punição, em tese, de fatos futuros
a ele subsumidos, não se endereçando a alguém, especificamente; e, por fim,
possui caráter fragmentário, em
virtude de não ter natureza permanente[25].
2.3.2. Funções do tipo penal[26]
Ressaltando-se, sempre,
a plena submissão do sistema jurídico-penal aos postulados inerentes ao Estado
Democrático de Direito, ao tipo penal atribuem-se as seguintes funções:
a) função sistemática. A função sistemática do tipo tem o propósito de
obstar a transformação do Direito Penal em instrumento para cometimento de
arbitrariedades pelos agentes públicos que tenham atribuição ou competência
para operá-lo, em virtude das delimitações precisas dos elementos objetivos,
subjetivos e normativos, configuradores de um delito, que não devem ser
concretizados em face de um contexto definido.
Possibilita, com base no princípio da legalidade, a regulamentação
sistemática (em sintonia com as normas não penais) e eficaz dos conflitos
intersubjetivos inevitáveis da sociedade;
b) função político-criminal. Já se sabe que os bens da vida
merecedores de tutela jurídico-penal devem possuir importância reconhecida
constitucionalmente. Assim sendo, só estarão aptas a serem selecionadas e
classificadas, ex lege, como condutas
criminosas, aquelas que, sob o ponto de vista genérico e abstrato,
indubitavelmente, possam ser idôneas a causar dano ou perigo concreto de dano
aos respectivos bens sob proteção jurídica. A realização, pelo legislador, de
um juízo prévio de probabilidade de ocorrência de tais eventos lesivos sobre os
respectivos bens, conjuntamente com o juízo prévio da projeção social dos
conseqüentes efeitos decorrentes, constituirá o parâmetro sob o qual recairá a
função político-criminal do tipo. Essa função do tipo penal visa a possibilitar
o entendimento, pelos destinatários da norma penal, das razões pelas quais
certas condutas foram consideradas delito e, assim, a viabilizar a compreensão
dos sentidos do texto e a extensão de seu alcance social; e
c) função dogmática. Tem a finalidade de “esclarecer fundamentadamente em que medida e em que forma se deve
considerar que determinada conduta ingressa na zona do ilícito.”[27]
Diante da diversidade de situações passíveis de caracterizar uma conduta
delituosa, mister se faz a fixação precisa dos seus elementos identificadores,
para que inexistam dúvidas no momento de se constatar se houve ou não a
violação da norma pelo agente e, dessa forma, evitar-se qualquer espécie de
injustiça e agressão à sua dignidade. Essa função busca a estabilidade e a
segurança jurídicas, viabilizando soluções concretas para fatos delituosos
enquadrados nos respectivos tipos penais[28]. Traduz-se na observância do princípio da legalidade
para a execução da norma penal.
2.4. Conceito de crime
Crime, em sentido material,
é toda conduta humana lesiva, ou potencialmente lesiva, a determinado bem
jurídico penalmente tutelado. Se um
ato humano praticado causou dano ou perigo concreto de dano a um bem da vida
alheio, garantido pelo ordenamento jurídico-penal em razão de sua relevância
constitucional, gerando, destarte, insegurança jurídica à comunidade, deve ser
eficazmente sancionado. É indispensável que a magnitude da lesão, provocada
pelo agente, seja açambarcada pela ratio
legis, tendo em vista o contexto social onde o fato se consumou, e,
simultaneamente, seja considerada socialmente reprovada pelo sentimento
popular.
Pelo aspecto formal,
é todo fato típico, antijurídico e culpável. Típico, por
concretizar hipótese abstrata prevista em lei; antijurídico, por
contrariar diretamente norma jurídica previamente estabelecida (art.5.º,II da
CRFB), sem o respaldo da incidência de alguma norma permissiva, apta a excluir ipso
iure a ilicitude; e culpável, em razão de sua reprovabilidade social.
2.5. Procedimento de construção do crime (Iter criminis)
Iter criminis é o caminho necessariamente percorrido pelo agente criminoso, no
intuito de consumar o delito planejado. Em tese, inicia-se com a cogitação da
prática do crime e é finalizado com a produção do resultado típico respectivo.
Para consumar-se um
delito qualquer, mister se faz a realização de um planejamento prévio. O
agente, em seu foro íntimo, imagina o injusto penal e passa a desejá-lo, em
busca da concretização do resultado correspondente. Começa-se, então, o
planejamento dos atos indispensáveis à prática eficaz do desígnio
criminoso.
O planejamento envolve
diversas fases, que se sucedem cronologicamente. Primeiramente, cogita-se a resolução do
crime. A seguir, decide-se por executá-lo.
Estes dois momentos constituem a fase interna do iter criminis, não exteriorizada e não punível, por situar-se
integralmente no plano psicológico do autor.
Determina, todavia, o estado anímico do agente. Esta fixação da intenção de ânimo
importa para efeito de se descobrir a real vontade que impulsionou a
conduta delituosa e, também, para se identificar se houve (ou não) instigação
ou induzimento do agente à prática do crime, em dado instante. Parte-se, daí, à
fase externa do plano, constituída por atos preparatórios e de execução,
exteriorizados e dirigidos à consumação do delito visado. É a etapa que
evidencia a natureza do delito, fundamental à análise do tipo penal de
tentativa.
É indispensável a
descoberta do instante em que o primeiro ato executivo foi materializado, a fim
de se identificar os atos a este sucessivos,
que efetivamente se subsumiram
ao tipo da tentativa, adquirindo a tipicidade formal, por extensão, e
também a material, em face do ordenamento jurídico como um todo, de modo a tornar tais atos passíveis de
punição.
2.6. Elementos constitutivos do crime
2.6.1. Tipicidade
Considera-se um fato
como sendo típico se, quando realizado, preencheu todos os requisitos
constitutivos da respectiva hipótese legal.
Tipicidade é a adequação exata de um fato concreto da vida a um
determinado tipo legal que, abstratamente, o descrevia em seus elementos
objetivos, subjetivos e normativos (quando for o caso).
A
tipicidade penal é pressuposto essencial do crime. É, até então, vista como
indício de ilicitude (ratio cognoscendi)
pela doutrina tradicional. Portanto, se
o fato é típico, presume-se seja antijurídico, salvo incidência de norma que o
considere lícito. Entretanto, não se
deve mais identificar na tipicidade o indício absoluto de que a conduta
praticada foi ilícita. Devem, o tipo e a ilicitude, submeterem-se
a uma análise prévia e concomitante para se verificar se a incriminação da
conduta realizada é ou não, independentemente de previsão legal, incompatível
com a ordem social democrática.
2.6.1.1. Tipicidade objetiva
Um fato é objetivamente
típico quando concretiza todos os elementos objetivos previstos no tipo
legal. Considerando-se tão-somente o
perigo de dano criado ou o evento efetivamente produzido, verifica-se se houve
a correspondência entre o fato real da vida e o fato abstrata e objetivamente
descrito no tipo penal, ignorando-se os elementos subjetivos. Se positivo, houve a tipicidade objetiva.
2.6.1.2. Tipicidade subjetiva
Um fato é subjetivamente
típico quando o agente, ao conduzir-se finalisticamente em busca de um
resultado proibido, é impulsionado por uma vontade qualificada pelo elemento
subjetivo previsto no tipo penal a ser concretizado. A identificação da vontade de se
consumar um resultado típico ou de se alcançar determinado objetivo tipificado
caracteriza a conduta dolosa do autor. Se evidenciada a intenção do agente em
realizar uma conduta lícita e se, por falta da diligência necessária, o
resultado típico tenha sido efetivado,
estará configurada apenas a sua culpa stricto sensu (elemento normativo); jamais o dolo.
2.6.1.3. Tipicidade formal
A tipicidade formal
caracteriza-se pelo ajuste de uma conduta, efetivamente praticada, aos
elementos do tipo legal do delito a ela correspondente. Evidenciada a mera coincidência formal entre
o fato real da vida e a hipótese abstrata expressa na lei penal, o fato é
formalmente típico.
2.6.1.4. Tipicidade material
O juízo de tipicidade,
para que tenha relevância na esfera jurídico-penal, exige que o tipo seja
entendido em sua “concepção material,
como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal,
de cunho eminentemente diretivo”.[29]
A tipicidade material
considera o tipo penal como “expressão de
danosidade social da conduta descrita”.
Não basta a mera coincidência formal entre o fato real da vida e a
hipótese abstrata da lei penal para considerar-se o fato típico. Deve, também,
ser concretamente lesivo a bens jurídicos tutelados ou ética e socialmente
reprovável[30]. Iniciados os atos de execução pelo autor,
mister se faz observar o potencial lesivo da conduta in concreto, além da subsunção formal do fato à hipótese, para que
sejam abrangidos pela norma extensiva da tipicidade. Desta forma, desprezam-se
condutas socialmente adequadas (não necessariamente éticas ou morais[31])
ou penalmente irrelevantes (de lesividade inexpressiva[32]).
2.6.1.5. Tipicidade conglobante[33]
A mera subsunção do
comportamento do agente aos elementos constitutivos do tipo penal não é
suficiente para se afirmar com precisão que a tipicidade penal está
configurada. Isso porque, ao se considerar a unidade do sistema jurídico
vigente, pode ocorrer de a conduta praticada, apesar de estar perfeitamente
enquadrada na hipótese abstrata prevista na lei penal como crime, ter sido
realizada no estrito cumprimento do dever legal[34]
ou, ainda, em função de determinada autorização normativa fomentadora[35],
tendo em vista a promoção do bem-estar social ou a garantia do interesse
coletivo. Tal fato caracteriza a existência de contradição entre mais de uma
norma, aparentemente, aplicáveis ao caso concreto (antinomia aparente)[36].
Daí o motivo de a tipicidade penal não poder ser confirmada somente sob o
enfoque do ordenamento jurídico-penal. Leva-se em conta também todas as normas
jurídicas não-penais, pois a natureza unitária do sistema jurídico nacional não
permite que a solução da incerteza, decorrente da antinomia aparente, produza
resultado concreto injusto ou desigual[37].
Há tipicidade penal se,
na hipótese concretizada, evidenciar-se que o comportamento do sujeito ativo,
além de ter efetivamente lesado bem da vida relevante de terceiro, tiver sido
contrário à norma penal e não tiver sido imposto ou incentivado por qualquer
outra espécie de norma pertencente ao ordenamento jurídico (antinormatividade). A “tipicidade
penal implica a tipicidade legal” (tipicidade formal) “corrigida pela tipicidade conglobante” (constituída pela
antinormatividade e pela tipicidade material), “que pode reduzir o âmbito de proibição aparente que surge da consideração
isolada da tipicidade legal”.[38]
2.6.2. Antijuridicidade[39]
Em seu aspecto puramente formal, a ilicitude exprime valor contraditório ao
direito, oposto à ordem jurídica como um todo (antinormatividade). Com
efeito, só haverá ilicitude penal se, preenchido o tipo penal, forem exauridos
todos os meios previstos no sistema jurídico nacional em favor da prevalência
da liberdade do sujeito, quando então, tornar-se-á ou será legítima eventual
intervenção do Estado para reprimir a conduta praticada.[40]
Haverá, portanto, a
antecipação do juízo de ilicitude da conduta, em razão da necessidade
inafastável de se averiguar a existência, dentro do ordenamento jurídico
vigente, de determinações ou de autorizações legais de incentivo, que excluam o
caráter antinormativo da conduta realizada em momento social oportuno. Assim,
evita-se, por meio de uma interpretação sistemática mais precisa, chegar a
conclusões que não sejam as mais adequadas juridicamente.
A ilicitude estará
evidenciada se determinada conduta humana e voluntária for adequadamente típica
em função dos princípios norteadores da tipificação penal e for causa de perigo
concreto de lesão (ou de efetiva lesão) proporcionada a bem jurídico tutelado,
sem, contudo, ter incidido nas hipóteses em que o próprio ordenamento jurídico
determina (ou fomenta) o agir (ou o omitir), ou naquelas em que o próprio
titular do respectivo bem jurídico violado (patrimônio) consentiu, previamente,
com a produção do resultado[41],
com base em seu poder de disposição.
Deixa a ilicitude de ser mera infração formal de uma norma legal,
abrindo, em contrapartida, o caminho para a construção de causas supralegais de justificação[42],
diante do constante dinamismo social,
que faz com que fatos, antes proibidos pela ordem jurídica, tornem-se
insignificantes ou socialmente aceitos.
2.6.3. Injusto penal[43]
O tipo penal e a
ilicitude não podem mais ser analisados separadamente. Concretizado o tipo
penal, este não pode mais ser considerado como indício de que a conduta
praticada foi ilícita. Devem, o tipo e a ilicitude, sujeitarem-se ao mesmo
juízo prévio para se verificar se a incriminação da conduta realizada é (ou
não), independentemente de previsão legal, incompatível com o sistema jurídico
vigente. Se houver compatibilidade,
estará configurado o injusto penal,
isto é, a existência de um fato típico
e antijurídico; caso contrário, a
conduta será lícita, constituindo, qualquer proibição legal, ato abusivo
e ilegítimo de manifestação do jus
puniendi do Estado. Despreza-se a
possibilidade de incidir uma norma penal proibitiva quando, ao limitar o âmbito
do que seja lícito, viole os preceitos essenciais de garantia da proteção
humana. A concepção de injusto faz com que o fundamento originário da
vedação legal da conduta humana não se subordine tão-só ao bem da vida tutelado, mas, também, e principalmente, na real
necessidade de privação da liberdade, uma vez consideradas as garantias
constitucionais de proteção à dignidade humana.
A situação concreta
da vida e a necessidade de proteção individual são os fatores
determinantes para se concluir se o tipo e a ilicitude devem ser analisados
separados ou simultaneamente, tornando-se, dessa forma, relativizado o nexo de
causalidade absoluto antes existente entre ambos, de antecedente (verificação
da subsunção do fato ao tipo penal) a conseqüente (constatação da ilicitude).
2.6.4. Relação entre tipicidade material,
antinormatividade e ilicitude
Existirá a tipicidade material quando determinado fato concreto tiver
produzido uma lesão ou dano relevante ao bem jurídico tutelado, verificado após
uma análise direta entre a conduta do agente e a lesão gerada ao sujeito
passivo do crime, visando à descoberta dos efeitos reais provocados.
A ilicitude, da mesma forma que a tipicidade material, também leva
em conta a lesão material provocada pela conduta do agente, contrária a alguma
norma jurídica penal. Todavia, o juízo de antijuridicidade é feito em um
momento posterior ao juízo de tipicidade material e considera, além da lesão, a
existência ou não de alguma causa de justificação. O aspecto lesivo não
é analisado isoladamente, como na tipicidade material, mas, sim, agrupado a
outras circunstâncias fáticas existentes na ocasião, que podem ou não legitimar
o dano provocado pelo suposto criminoso.
Tradicionalmente, o exercício regular de um direitoe o estrito
cumprimento do dever legal são considerados causas legais excludentes da
ilicitude do fato (art.23,III do CP).
Entretanto, com base na teoria do injusto penal, quando alguém
exerce determinada função, autorizado por alguma norma jurídica (em sentido
material), ou desenvolve alguma atividade fomentada pelo Estado ou aceita
pela sociedade, não há que se falar em ilicitude e, sequer, em tipicidade,
pois o tipo penal não foi criado para penalizar condutas socialmente aceitas
ou materialmente insignificantes.
Dessa forma, o caráter antinormativo da conduta, nada mais é do
que antecipar-se a constatação de o agente ter ou não atuado no exercício
regular de um direito ou no cumprimento de um dever jurídico. Caso
positivo, não há violação ao ordenamento jurídico e quiçá a antinormatividade.
Esta é reconhecida quando há o exercício abusivo ou ilegal de um direito
ou o descumprimento do dever jurídico. A ilicitude, todavia,
passa a constituir, com base no mais amplo exercício das liberdades públicas
promovidas pelo Estado Democrático de Direito, a lesão material relevante e
contrária à ordem jurídica, realizada na ausência de legítima defesa
ou do estado de necessidade.
2.6.5. Culpabilidade[44]
O agente, com plena
capacidade de entender a natureza ilícita de um fato e de posicionar-se em
relação a seu entendimento (imputável), que realiza voluntariamente um injusto
penal (fato típico e ilícito), com a potencial ciência de seu caráter ilícito
e, ainda, com a possibilidade física e atual de evitá-lo, age de modo reprovável socialmente, estando
passível de sujeitar-se aos meios de coerção penal.
A culpabilidade é um juízo
de censura que o julgador faz do autor de um injusto penal. Tem por
objeto de valoração o agente e sua conduta.
A culpabilidade, como juízo de valor, procura desvendar a intensidade do
dolo que dirigiu a conduta criminosa e, também, se a atuação era ou não
evitável, levando-se em conta, in
concreto, as circunstâncias do meio e as condições pessoais do agente. Visa a avaliar a reprovabilidade efetiva
da conduta do autor e seus reflexos no contexto social, de modo a possibilitar
a correta dosimetria da pena e a sua punição justa (proporcional à
gravidade da conduta) e útil (capaz de satisfazer os fins preventivos da
pena)[45],
em consonância com os princípios constitucionais da individualização da pena (art.5.º,XLV),
da culpabilidade (art.5.º,LVII) e da dignidade humana (art.1.º,III).
O princípio da
culpabilidade se resume em três sentidos fundamentais[46]:
a) culpabilidade como elemento integrante
do conceito analítico de crime,
sendo o fundamento da pena (nulla
poena sine culpa). Constatado a existência concreta de um injusto penal,
analisar-se-á o grau de reprovabilidade do fato consumado, que
viabilizará (ou não) a classificação do fato como criminoso e a conseqüente
punição (ou não) do agente responsável por ele; b) culpabilidade como fator de graduação da pena, eis que a sanção a ser aplicada ao
agente não poderá ser desproporcional à reprovabilidade da conduta, sob pena de
ser violada a sua dignidade humana. É indisponível a sua atuação como critério regulador da pena[47] e
de concretização da justiça material;[48]
e c) culpabilidade como princípio
impedidor da responsabilidade penal objetiva, o que torna imprescindível a existência de dolo ou culpa para
que se configure uma possível conduta criminosa. A responsabilidade penal é
sempre subjetiva, servindo o princípio da culpabilidade como limite subjetivo à aplicação de pena (art.29, caput do CP c/c art.5.º,
XLV da CRFB).
2.7. Tentativa
2.7.1. Finalidade
Terminada a fase interna
do plano do autor, na qual este cogita e estuda todos os movimentos que serão
necessários à realização do delito, dá-se início à exteriorização do
procedimento elaborado, por meio dos atos materiais de preparação e dos
subseqüentes atos de execução, tendo em vista o resultado típico
pretendido. Entretanto, pode ocorrer de o evento programado não se produzir por
razões alheias à vontade de agente executor, caracterizando apenas hipótese de
tentativa. Assim, se fossem levados em
conta tão-só os tipos legais de delitos previstos no ordenamento, não haveria
como sancionar o infrator, em decorrência de sua conduta não ter preenchido
todos os elementos do tipo, exigidos para a configuração de determinado crime.
Objetivando impedir que condutas ameaçadoras ou lesivas à ordem social ficassem
impunes, simplesmente porque o autor não obteve êxito em alcançar o evento
típico colimado pela prática dos atos executivos, criou-se o tipo de tentativa,
no intuito de viabilizar a tipificação dos atos executados e a punição do
responsável.
Seu escopo é ampliar a
proibição contida nas normas penais incriminadoras, tipificando, subsidiariamente,
atos executórios anteriores à efetivação do tipo penal visado, a este não
subsumidos diretamente, porém, pertencentes ao mesmo processo causal e
dirigidos a sua concretização[49].
É uma norma de ampliação temporal da figura típica, de eficácia extensiva,
criada para evitar a impunidade do agente e garantir a paz social.
2.7.2. Conceito
Ao iniciar-se na
execução de determinado crime, o autor busca, dolosamente, o resultado injusto,
ou praticando alguns atos de execução necessários a consumá-lo, sem esgotá-los,
ou exaurindo-os, realizando todos os atos pertinentes que estão a seu alcance,
segundo o seu próprio entendimento, naquele momento, do que seja possível
concretizar. Na primeira hipótese, não se consumando o fato típico por
circunstâncias alheias a sua vontade, dá-se a tentativa imperfeita, inacabada[50]
ou propriamente dita. Na segunda, constitui-se a tentativa perfeita, acabada ou crime falho[51]. Em ambas, há uma “disfunção
entre o processo causal e a finalidade que o direcionava”[52],
por fatores externos à vontade do autor e, por ele, inevitáveis.
Tais atos devem possuir,
objetivamente, aptidão e idoneidade
suficientes à produção do resultado, avaliados segundo um juízo de observador
imparcial, baseado na experiência geral do homem, em determinado contexto
social. Se criado objetivamente um
risco, que põe materialmente em perigo o bem jurídico protegido, justifica-se a
punibilidade concreta da tentativa[53]
.
2.7.3. Fundamento da punibilidade da tentativa
(teoria objetiva)[54]
A punição da tentativa,
pela teoria objetiva, está embasada no efetivo perigo criado para o bem
tutelado. Analisando-se o caso concreto
e verificando-se a existência de uma relação de causalidade efetiva entre os
atos de execução e o resultado típico visado, quanto maior o perigo de lesão
causado ao bem jurídico, quanto mais próximo da consumação chegar o agente com
a realização dos atos praticados, maior será a pena a que se submeterá. A contrario sensu, mais branda,
necessariamente, será a pena se mais distante ficou da consumação do evento
desejado. É a teoria adotada pela lei penal pátria, nos termos do parágrafo
único do dispositivo legal da tentativa.
2.7.4. Identificação dos atos de execução pelo
critério objetivo-individual de Welzel (tipificação da tentativa)[55]
O método
objetivo-individual limita-se à tipificação dos atos já praticados que, estando
no plano concreto do agente, sejam potencialmente lesivos e tenham vínculo
direto de causalidade com o resultado típico planejado. Apesar de não
apresentar fórmula certa para solucionar todas as hipóteses legalmente
possíveis, é o critério mais aceito pela doutrina, funcionando como um princípio geral orientador[56].
2.8. Desistência voluntária e arrependimento eficaz
2.8.1. Conceitos
Diz o art.15 do Código
Penal, in verbis: “o agente que, voluntariamente, desiste de
prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos
atos já praticados”. Iniciada a
execução do delito, pode acontecer de o resultado almejado não se concretizar
em decorrência de conduta voluntária e
eficaz do próprio agente executor, provocada por motivos psicológicos autônomos
(não necessariamente éticos ou morais[57]),
que não sejam considerados causas de
impedimento obrigatório de prosseguir na execução[58].
É hipótese de desistência voluntária,
se os atos de execução constituíram tentativa inacabada; e de arrependimento eficaz, se evidenciaram a
tentativa perfeita, sendo, em ambas, o resultado evitado com sucesso, sponte sua.
2.8.2. Fundamentos à impunidade[59]
A teoria da política
criminal
sustenta a exclusão da punibilidade na desistência voluntária (ou no
arrependimento eficaz), com base em uma ponte
de ouro, criada pelo legislador, para que o agente pudesse voltar à esfera
do direito. A exclusão da pena seria o estímulo a evitar o resultado.[60]
Na teoria da graça, a exclusão da punibilidade funciona como recompensa
pela conduta voluntária de desistência
(ou de arrependimento), impeditiva da consumação do resultado, sendo o agente
merecedor do perdão. E tem a teoria dos fins da pena, que considera a
punição do agente que evitou o resultado, por vontade própria, contrária ao fins
de prevenção geral e especial da pena[61].
2.8.3. Natureza jurídica.
Segundo um juízo de
subsunção do fato, em face do tipo do art. 15 do CP, o agente que
voluntariamente desistiu ou ativamente arrependeu-se de continuar a empreitada
criminosa planificada, evitando a consumação do respectivo tipo penal objetivo,
torna-se impunível pela tentativa do crime em si, sujeitando-se, tão-só, à
punibilidade pelos atos de execução realizados.
Surgem as controvérsias
em torno de qual seja a natureza jurídica do ato de desistência voluntária (ou
do arrependimento eficaz), de autoria do agente executor, que evita a
consumação do resultado.
Damásio[62]
considera tais atos como causas de
exclusão da adequação típica. Afirma que “(…) quando o crime não
atinge o momento consumativo por força da vontade do agente, não incide a norma
de extensão (…)”, sendo, portanto, “(…)
os atos praticados não típicos em face do
delito que pretendia cometer”. A ocorrência de circunstâncias externas,
alheias à vontade do agente, é elementar do tipo de tentativa. Em sua ausência,
o fato é atípico diante da norma ampliativa da tipicidade. Todavia, em face do princípio da consunção, tais atos serão puníveis se relevantes ao
direito penal, por caracterizar a tentativa
qualificada: a norma consuntiva (definidora da tentativa),
tornando-se inaplicável, faz restaurar a aplicabilidade autônoma do preceito
primário antes consumido aos atos praticados que, porventura, ensejem a
punibilidade. Segundo ele, a atipicidade é extensiva aos atos do partícipe,
cuja conduta é acessória ao fato
principal imputado ao agente[63].
Frederico Marques[64]
participa do mesmo entendimento.
Heleno Fragoso[65]
também afirma que “(…) não há
tentativa, porque o resultado deixa de ocorrer em virtude da vontade do agente”. Defende que o agente responderá “(…) pelos atos já praticados, se os
mesmos configuram qualquer delito consumado”. Em sua opinião, “não se trata de escusas absolutórias nem de causas de extinção da
punibilidade”, pois “a tentativa estende
a tipicidade a atos que constituem realização incompleta do tipo objetivo”. Na hipótese, “(…) inexiste crime por ausência de tipicidade”. Não obstante,
diverge da posição doutrinária dos já citados juristas, se houver concurso de
pessoas: a desistência ou o
arrependimento do agente executor não exclui a punibilidade da tentativa dos
partícipes. Se o arrependimento advier
do autor mediato ou do partícipe, “(…) só ficarão impunes se o executor também se arrepender ou se
impedirem que o resultado se produza”. Ressalta que a desistência
beneficiará ao co-autor ou partícipe que “(…)
anular integralmente a sua contribuição à empresa comum”.
Na mesma linha de
raciocínio, Cezar Roberto Bittencourt[66]:
“na desistência voluntária e no
arrependimento eficaz inexiste a elementar “alheia à vontade do agente”, o que
torna o fato atípico, diante do preceito definidor da tentativa” . Advoga não serem causas de extinção da
punibilidade, por não ter havido causa de punibilidade (a tentativa), que,
indispensavelmente, deveria antecedê-las.
Com entendimento
diametralmente oposto, ensina Nelson Hungria[67]:
“(…) trata-se de causas de extinção de
punibilidade (…), ou seja, circunstâncias que, sobrevindo à tentativa de um
crime, anulam a punibilidade do fato a esse título. Há uma renúncia do Estado
ao jus puniendi (…), inspirada por motivos de
oportunidade”. No mesmo sentido se
posiciona Magalhães Noronha[68].
Zaffaroni[69]
leciona ser impossível o ato de desistir ou de se arrepender “(…) ter a virtualidade de tornar atípica
uma conduta que antes era típica” ou “(…)
extinguir a reprovabilidade de parte da conduta já realizada”. Para ele, a
desistência voluntária (e o arrependimento eficaz) funciona como causa pessoal que extingue a punibilidade do
crime, sem, contudo, beneficiar aos partícipes, salvo se estes,
voluntariamente, também desistirem.
Alberto Silva Franco[70]
posiciona-se como sendo “(…)
causas inominadas de exclusão da punibilidade (art.107 do CP), que têm por
fundamento razões de política criminal”.
Paulo José da Costa Jr. [71]
entende que a impunidade do agente de sustenta na escusa absolutória ou causa
pessoal de isenção de pena. Se, após
a desistência, os atos executados tornaram-se atípicos, já não o eram
antes. Para que a impunidade recaia
sobre partícipes, mister que eles “(…)
desistam ou se arrependam eficazmente”.
3. Punibilidade
3.1. Noções básicas[72]
Punibilidade é a coerção
penal materializada na imposição de pena a quem cometeu determinado delito. É
uma das conseqüências penais da existência do crime.
A punibilidade tem dois
sentidos: pode significar merecimento de
pena, por ser a conduta (típica, ilícita e censurável) digna de punição; e
pode significar possibilidade de se
infligir a pena, pois, em determinadas hipóteses, apesar da consumação do
delito, o agente poderá ficar legalmente impune.
3.2. Princípios
constitucionais legitimadores da punibilidade
Evidenciada a ocorrência de um fato-crime, indispensável se faz, a
princípio, promover a identificação do provável agente responsável, a fim de
que seja instaurado o processo penal e fique viabilizada a sua condenação, nos
limites de sua culpabilidade individual.
Desse modo, a observância do princípio da intranscendência da pena (art.5.º,XLV) e do princípio da culpabilidade (art.5.º,LVII) assegura a aplicação de uma sanção justa e útil apenas ao efetivo
responsável pelo resultado lesivo produzido, após ser proferida decisão
jurisdicional condenatória irrecorrível, que pôs fim ao devido processo legal (art.5.º,LIV),
com o respeito às garantias do réu à ampla
defesa e ao contraditório (art.5.º,LV). Inadmissível, em
respeito à dignidade humana (art.1.º,III), a extensão da punibilidade,
atribuída legitimamente ao infrator, a quem sequer fora partícipe na execução
do delito e tampouco teve oportunidade de defender-se em Juízo.
3.3. Circunstâncias do
crime[73]
Circunstância do crime (genéricas,
específicas ou judiciais) é todo fato que o circunda, considerado
apto a influenciar na quantidade da pena, sem, contudo, afetar a configuração
dos seus elementos constitutivos (tipicidade, ilicitude e culpabilidade). Tais fatos podem ser de natureza objetiva (condições de tempo, lugar onde
foi praticado, modo como foi executado etc.) ou subjetiva (motivos determinantes da conduta), podendo ser relevante
para o aumento ou para a redução da pena. As genéricas e as específicas
estão tipificadas no Código Penal (na Parte Geral e Especial, respectivamente),
e as judiciais (art.59 do CP) serão aferidas pelo Juízo na ocasião em
que for fixar a pena-base a ser imputada ao réu.
Postas as premissas básicas, passo à análise dos tipos da tentativa e da
desistência voluntária, por meio de uma interpretação sistemática, em respeito
à unidade e harmonia do sistema jurídico em vigor. [74]
4. Interpretação
sistemática do tipo penal de tentativa (art.14, II do CP)
Expressa, in litteris, o
art.14, caput, inciso II do Código Penal: “Art.14. Diz-se o
crime:(…) II- tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por
circunstâncias alheias à vontade do agente”.
Prima facie, mister se faz conhecer
o tipo do delito, previsto no código penal (ou em alguma lei penal
extravagante), que o agente planejou executar, pois não haveria sentido
falar-se em tentativa de cometimento de um crime se, quiçá, o intérprete conseguiu
identificar sobre qual delito se tratou.
Entretanto, apenas será possível realizar essa constatação se a
respectiva execução já houver sido iniciada, com uma vontade predeterminada
a um fim, pois inexistem meios legítimos que possibilitem o Estado-juiz
punir alguém somente em função de seus pensamentos malévolos. Assim, verificar-se-á como o agente se
conduziu ao externar a sua vontade
própria, pela prática inicial dos atos previamente cogitados e planejados,
e se, de fato, proporcionou algum perigo
concreto de dano ou dano significativos a determinado bem
jurídico relevante.
Os atos de execução deverão ser idôneos à identificação dos
elementos subjetivos do delito colimado e, preponderantemente, capazes de
produzir lesão efetiva ao bem jurídico relevante tutelado pelo sistema
jurídico-penal, concretizando, como conseqüência, os elementos objetivos do
tipo. O critério objetivo-individual, na hipótese, funcionará como um princípio
geral orientador para a percepção do momento exato em que a execução foi
encetada.
Execução existente, existente também a tipicidade da tentativa (formal,
material e conglobante). O juízo de
tipicidade deve ser realizado no instante em que foi dado início à
execução. Neste momento, inexistem dúvidas para o agente executor de que seus
atos são dirigidos ao fim de produzir o resultado típico planejado. Com o desenrolar desses atos, tende a
agravar-se progressivamente a respectiva lesão (ou o perigo concreto) até então
já produzida, chegando ao ápice quando o delito se consumar.
Em virtude de dado comportamento do agente (formal e axiologicamente
considerado) ter-se encaixado perfeitamente dentre aqueles tipos penais de
injusto legitimamente construídos e que,
em princípio, merecem ser reprimidos, passa-se a proceder um juízo de
culpabilidade, com base nos fatos até então concretizados, ocorridos no
curso do processo de execução em análise e ainda pendente[75]. Levando-se em conta ser o autor imputável,
potencialmente capaz de conhecer a ilicitude dos atos já praticados e com possibilidades
de ter agido na esfera da licitude, evidencia-se a reprovabilidade de
seu comportamento em face do contexto social. Até agora, está flagrante que o
agente está tentando consumar um fato injusto e culpável, isto é, fato
considerado concretamente ilícito perante a ordem jurídica e censurável pelo
sentimento predominante na sociedade.
Todavia, no transcurso da execução, podem ocorrer circunstâncias alheias a vontade do agente, que venham a impedir
que o evento previsto e desejado aconteça, o que proporcionará a sua submissão
à sanção cominada no respectivo tipo de delito tentado. Com efeito, indispensável descobrir-se o
sentido da palavra vontade, expressa
no referido dispositivo legal.
4.1. Conceito e sentido
da expressão circunstâncias alheias à
vontade
Entende-se, como sendo vontade
do agente, o ânimo, o sentimento, a intenção interna que o motiva a
exteriorizar materialmente (ou declarar) os atos a ela correspondentes, em
conformidade com o seu direito constitucional à liberdade (art.5.º,II), que
assegura, em regra, a predominância do princípio da autonomia. A vontade real do indivíduo, quando
externada, representa a motivação da conduta por ele praticada, dando-lhe o
verdadeiro sentido. Todavia, a
exteriorização da conduta só terá validade se, efetivamente, traduzir a
intenção do agente, destinada à produção de alguma conseqüência jurídica. Assim, a vontade
interna do agente, além de constituir o suporte da exteriorização dos atos
planejados, representa a força criadora
dos efeitos almejados e porventura produzidos. Inexistente a vontade interna,
inexistirá conduta a ela relacionada. Viciado o seu conteúdo, deturpada será a
sua exteriorização.[76]
Sabe-se que o agente criminoso, antes de iniciar a execução
(exteriorização) dos atos dirigidos à produção do resultado típico, planeja
mentalmente todo o iter criminis. O querer a realização desse plano
identifica o conteúdo da vontade
própria do criminoso, no momento em que dá início aos atos lesivos de
execução do crime.
Percebe-se, assim, que a
expressão circunstâncias alheias à
vontade, prevista no tipo de tentativa, é referente à vontade própria do agente,
existente no início e propulsora dos atos
de execução então externados. Se, por algum acontecimento superveniente ao
início da execução, esta vontade, este animus laedendi, não se concretizar no resultado visado, estará
caracterizada a tentativa do crime.
Independe[77] se tais
fatos alheios vão atuar no aspecto psicológico[78]
do agente, fazendo-o, por si só e contra a sua vontade inicial,
interromper o processo executivo, ou se vão impedir o resultado pelo desvio
natural do nexo causal[79].
Importa, sim, é que fatores,
inexistentes e imprevisíveis no instante inicial da execução, surgiram a posteriori e atuaram contrariamente
à vontade lesiva e inicial do agente. Sob este enfoque, tais fatores, como
elementos constitutivos da vontade de desistir (ou do se arrepender), não
deixam de caracterizar circunstâncias
alheias àquela vontade delituosa, que é a verdadeira impulsionadora dos atos de
execução.
Estando inequivocamente demonstrada a vontade inicial (e proibida) do agente no momento em que
iniciou a execução e provocou concretamente os conseqüentes efeitos
danosos, responderá o agente pela prática de crime tentado, caso não tenha alcançado o resultado típico
desejado, por circunstâncias alheias
àquela vontade inicial que o impulsionou a agir de forma injusta e culpável,
salvo a existência de norma
eliminadora da pena, como a da desistência
voluntária.
5. Interpretação
sistemática do tipo penal de desistência voluntária (art.15 do CP)
Descreve o art.15 do Código Penal, in
verbis: “Art.15. O agente que,
voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se
produza, só responde pelos atos já praticados”.
Até então, constatou-se que, iniciada a execução do plano delitivo,
motivado por aquela vontade inicial, portadora do inequívoco animus laedendi, o agente demonstra
indubitavelmente a presença dos elementos subjetivos do delito (dolo ou fins
específicos) em sua mente, por meio do liame que os une ao modo como os
atos são executados e aos danos concomitantemente ocasionados. Estes representam a procura incessante pelo
resultado típico pretendido, constituído pelos elementos objetivos do crime de
resultado naturalístico.
Não obstante, pode ocorrer de, no curso do procedimento de execução, o
agente, voluntariamente, desistir de prosseguir com os atos necessários ainda
pendentes ou, se já os houver terminado, impedir que tais atos provoquem aquele
resultado típico antes querido.
Surge, então, o âmago da questão, em torno do qual se desenvolve toda a
controvérsia sobre a natureza jurídica de tais institutos. O tipo de tentativa descreve ser delito
tentado aquele cuja execução foi iniciada, mas não se consumou por circunstâncias
externas à vontade do agente. O tipo
de desistência voluntária (ou de arrependimento eficaz) determina que, caso o
agente evite, com eficácia, a produção do evento antes desejado e ainda em fase
de execução, não responderá pelo correspondente delito (rectius: pela tentativa deste), mas, tão-somente, pelos fatos
praticados até o momento da desistência ou do arrependimento (se configurarem
algum delito subsidiário).
A priori, devemos entender o
sentido das expressões formadoras do tipo sob exame.
5.1. Conceito e sentido
da palavra voluntariamente
A vontade, da qual resultará o comportamento voluntário, deve ser
a realmente existente no interior do agente, podendo ou não ser livre a sua
exteriorização. Aí está o cerne do
problema: saber a respeito de que e de
quem a vontade deve ser considerada autônoma ou livre, o que possibilitará
a compreensão do sentido de voluntariamente.[80]
Em regra, há voluntariedade quando o agente puder mas não quiser[81]continuar
os atos de execução. Diz-se em regra
porque nem sempre o não-querer manifestado pelo agente está vinculado a sua
manifestação livre de vontade[82].
A partir de tais considerações, pode-se entender que a desistência será voluntária nas hipóteses em que o agente constituiu a sua nova vontade, livremente, no transcurso
do procedimento de execução, sem estar
coagido por alguma ação especial do sistema penal[83],
circunstâncias estas que suprimir-lhe-ía a opção de poder agir de outro
modo. Ademais, mesmo se presente a
possibilidade real de agir diversamente, a voluntariedade estará ausente
se todos os demais caminhos disponíveis a serem seguidos representarem um risco
ou uma desvantagem desproporcional, que qualquer ser humano de padrões normais
não suportaria[84]. A nova vontade, impulsionadora da conduta
de desistência, não seria livre em tais hipóteses, mas, sim, imposta coativamente
pelas circunstâncias a seu redor.
Independe, para se excluir a voluntariedade da conduta, se tal
ação especial do sistema existiu apenas na imaginação do agente, em função de
sua falsa representação da realidade[85].
Basta, contudo, que determinado fato concreto[86]
se coloque como empecilho à liberdade de agir conforme o plano delituoso
inicial.
Desnecessário, também, para o conceito de voluntariedade, saber
se o agente desistiu motivado (ou não) por valores éticos ou morais de conduta[87]. Caso contrário, o agente que desistiu poderia
ser prejudicado em razão de um entendimento puramente subjetivo[88]
por parte do aplicador da lei, por ser objetivamente impossível
descobrir-se o ânimo real e condicionante da vontade de desistir do agente. O
fato relevante é que a desistência foi efetivamente voluntária e evitou a
consumação do resultado típico previamente pretendido.
Se o agente desiste voluntariamente e, algum tempo depois,
retorna ao local e retoma a execução do delito, aproveitando-se do que antes
fizera, inexistiu desistência voluntária, pois a suposta desistência do
propósito criminoso apenas postergou a realização deste. Todavia, se o agente
volta ao local e recomeça tudo novamente, não se aproveitando de nenhum dos
atos antes praticados, existiu desistência voluntária em relação ao fato
precedente[89].
É fundamental, para caracterizar a voluntariedade, que o agente seja imputável[90].
Todavia, é prescindível que a exteriorização da desistência voluntária (ou do
arrependimento ativo) seja espontânea, pois, o que importa é o agente ainda
possuir o domínio das decisões[91]
sobre os atos de execução.
Independentemente de se tratar de desistência
voluntária ou de arrependimento ativo,
mister se faz que a conduta contrária e neutralizante
da causalidade[92],
movimentada pela exteriorização da vontade inicial e criminosa do agente, seja eficaz, evitando[93]
(ou impedindo), que a lesão típica de consume.
5.2. Significado da
expressão só responde pelos atos já
praticados (tentativa qualificada)
Considerada eficaz a neutralização dos efeitos produzidos em decorrência
dos atos executivos realizados até o momento em que desistiu ou arrependeu-se,
o agente ficará impune, por força do conteúdo normativo do dispositivo legal
sob comento. Todavia, se os atos de
execução até então praticados preencherem todos os elementos constitutivos de
algum tipo de delito subsidiário e autônomo, o agente que os realizou estará
sujeito à correspondente coerção penal.
É hipótese de tentativa qualificada[94],
existente quando os atos de execução dirigidos à consumação de determinado
crime, abarcam[95],
inevitavelmente, algum tipo penal subsidiário, por ser o caminho necessário e
servir de instrumento (crime-meio) à realização do objetivo visado.
6. Natureza jurídica da
desistência voluntária (e do arrependimento eficaz)
6.1. Causa excludente de
adequação típica
Parte da doutrina entende ser a desistência voluntária ou o
arrependimento eficaz uma causa de
exclusão de adequação típica, conforme os argumentos já mencionados.
Diz Rogério Greco[96]:”(…)
só nos é permitido punir a tentativa quando existe uma norma de extensão, como
aquela prevista no inciso II do art. 14 do Código Penal. A lei penal, ao
determinar que o agente responderá pelos atos já praticados, quis, nos casos de
desistência voluntária e arrependimento eficaz, afastar a punição pelo conatus.
Assim, devemos concluir que, devido à total impossibilidade de ampliarmos o
tipo penal, para nele abranger fatos não previstos expressamente pelo
legislador, tal situação nos conduzirá (…) a atipicidade da conduta inicial
do agente. Como o art.15 do Código Penal visa, justamente, evitar (sic) a
punição do agente pela tentativa, uma vez que a lei nos retira a possibilidade
de aplicação da norma de extensão do inciso II do art. 14 (…), o caso é de
atipicidade no que diz respeito à tentativa (…)”.
Combate
também a tese da desistência voluntária (ou do arrependimento eficaz) como
causa excludente de punibilidade do agente, afirmando que a impunidade
pelo fato consumado pressupõe a existência dos requisitos que viabilizam a punibilidade
do agente por sua conduta, que são inexistentes por ser o fato atípico.
6.1.1. Críticas
O professor Luiz Regis Prado[97]
sintetiza bem a falha em se considerar a desistência voluntária como causa de
atipicidade do fato. Segundo ele, “(…) a principal objeção que se pode
formular contra o argumento daqueles que pretendem ver na desistência uma
atipicidade, seja objetiva, seja subjetiva, encontra-se na impossibilidade de
ter a desistência a virtualidade de tornar atípica uma conduta que antes era
típica. Se o começo de execução é objetivo e subjetivamente típico, não se
compreende como um ato posterior possa eliminar o que já se apresentou como
proibido, situação que muito se assemelha à do consentimento subseqüente. Na
relação direta com a natureza da desistência e do arrependimento, encontra-se o
seu fundamento, vale dizer, a causa ou explicação do critério
político-penal que explica a sua imunidade. Se assim não fosse, seria
incompreensível e ilógico o fato de o desistente ou o arrependido responderem
pelos atos já praticados no decorrer do iter criminis. O juízo de
atipicidade excluiria toda tipicidade anterior”.
Alberto Silva Franco[98]
observa que “Se fosse correta a tese da atipicidade da desistência
voluntária e do arrependimento eficaz, porque não se acomodam ao modelo da
tentativa, é evidente que a norma do art. 15 do CP seria prescindível.
Bastaria, então, que fosse chamada à colação a norma do art. 14, II, do CP: ‘Se
a consumação deixou de ocorrer por manifestação voluntária do agente, os atos
realizados não poderiam ter enquadramento típico’. Mas a realidade é bem outra.
Tanto a desistência quanto o arrependimento eficaz pressupõem que o agente
tenha dado início, em obediência a um plano precedente estabelecido, à execução
de um fato criminoso o qual, contudo, não alcançou a fase consumativa.
Destarte, houve, sem dúvida, tal como sucede com a tentativa punível, um começo
de execução que se revela, sob o enfoque objetivo, e sob o ângulo subjetivo,
como típico. É evidente, nessa situação, que a sustação voluntária do processo
de execução do delito ou a realização voluntária, depois do exaurimento desse
processo, de uma ação em contrário, no sentido de impedir a consumação, não
permitiriam tornar atípico o que, até então, tinha inequívoca conotação típica”.
E conclui que “(…) existe um ponto comum entre a tentativa
penalmente relevante, a desistência voluntária e o arrependimento eficaz: o da
tipicidade dos atos realizados pelo agente antes da cessação, voluntária ou
involuntária, do iter criminis. Desta forma, a diferença fundamental
entre estes institutos penais não pode ser buscada na teoria do crime, mas
apenas na de sanção punitiva. Se a interrupção do processo executivo do crime
decorreu de circunstâncias alheias à vontade do agente, houve tentativa
punível, mas se tal interrupção for voluntária ou se o agente, esgotado todo o
processo de execução do crime, logrou obstar a consumação, houve desistência voluntária
ou arrependimento eficaz, procedimentos impuníveis”.
Acrescento, ainda, que não se deve ignorar o conteúdo axiológico das
normas, no intuito de adotar-se uma conclusão satisfatória por intermédio de
uma simples interpretação lógico-formal dedutiva que, na prática, atente
contra os princípios básicos de hermenêutica, contra a unidade
sistemática, contra a própria ordem dogmática-penal[99]
e, também, contraria a função primordial do tipo penal de garantir a
liberdade individual[100].
Os fatores (naturais ou psicológicos) supervenientes ao início do
procedimento de execução do crime proporcionaram a mudança de comportamento do
agente responsável, levando-o a desistir voluntariamente de consumar a lesão
antes intencionada. Tais fatores podem ser considerados como legítimas
circunstâncias alheias à vontade inicial e lesiva do agente, ou seja, como
os verdadeiros causadores da alteração da vontade criminosa do executor do
crime, prescrita no tipo de tentativa, que o fazem impedir (ou evitar),
pessoalmente, a concretização do resultado final planejado. Uma vez sendo a
sistematicidade um dos propósitos a serem alcançados pela operação dos métodos
hermenêuticos, somente uma interpretação puramente formal e inflexível
inviabiliza esse entendimento. A unidade sistemática só será respeitada se o
sentido dado à expressão circunstâncias
alheias for construído, levando-se em conta o real conteúdo da vontade
do agente, ao qual ela se refere na descrição do tipo de tentativa. Dessa
forma, o próprio agente executor, motivado por tais circunstâncias que
inexistiam e eram imprevisíveis no início da execução, está apto a interromper
o procedimento delitivo, sem que se desconfigurem os atos materializados da
tentativa.
O fato de o tipo de desistência voluntária tornar impune os atos de
execução abrangidos pelo tipo de delito tentado, não significa que inexistiu a
incidência da norma de extensão da tentativa, mas, sim, que o agente, apesar de
inicialmente ter cometido uma conduta injusta e culpável, agiu posteriormente e
com eficácia suficiente para neutralizar a causalidade em curso, sendo, por
isso, merecedor da impunidade, por força de lei (tipo de desistência
voluntária). A benesse legal não é causa
excludente de adequação típica da tentativa. É, indubitavelmente, uma norma jurídica
criada a servir de estímulo ao agente, para que redirecione a causalidade
lesiva, por ele instaurada, à esfera da licitude. Por esse motivo e por
respeito aos princípios da culpabilidade
e da justiça penal, a impunidade não
se estende aos co-autores e partícipes que também não tenham contribuído para a
neutralização dos efeitos dos atos de execução já realizados[101].
Ademais, considerar-se a desistência voluntária (ou o arrependimento eficaz)
como causa excludente de adequação típica significa dar-se o mesmo valor e
tratamento a condutas axiologicamente diversas[102],
desconsiderando-se o conteúdo da
formulação do tipo e sua função de garantia da liberdade individual.
Não
procede, também, o argumento de que são inexistentes os pressupostos jurídicos
que possibilitam a punibilidade do agente, tornando-se, dessa forma, inviável a
defesa da desistência voluntária como causa excludente de punibilidade do
agente. De fato, para que seja
possível deixar o agente impune, é necessário que ele tenha cometido um delito.
Entretanto, a defesa da causa excludente da tipicidade é baseada em falsa
premissa: a atipicidade do fato. Considerando-se o fato atípico,
obviamente, será impossível incidir qualquer causa excludente de punibilidade,
por ter sido a conduta praticada dentro do âmbito da licitude.
Percebe-se, portanto, o equívoco de se considerar a natureza jurídica da
desistência voluntária (ou do arrependimento eficaz) como sendo causas
excludentes de atipicidade.
6.2. Causa de exclusão
de punibilidade
A melhor solução, com base na crítica acima esposada, é compreender a
desistência voluntária (e o arrependimento eficaz) como sendo causa pessoal de exclusão de punibilidade,
motivada por razões de política criminal ou por motivos contrários à finalidade
da pena.
Resume Alberto Silva Franco[103]:
“Se o próprio agente, por sua vontade, susta a execução do delito ou obsta,
mesmo depois de terminado o processo de execução do crime, que advenha o
resultado ilícito, interessa ao Estado que seja ele recompensado com a
impunidade, respondendo apenas pelos atos já realizados, desde que constituam
crimes ou contravenções, menos graves, já consumados. Destarte, se não
existirem fatos residuais que devam ser punidos, só resta ao Estado-juiz,
através de sentença dotada de carga exclusivamente declaratória, proclamar a
extinção da punibilidade, em virtude da desistência voluntária ou do
arrependimento eficaz, das infrações penais debitadas ao agente”.
Ressalto que o único argumento que contesta esta tese é afirmação de
que, para haver causa de extinção de punibilidade, é indispensável a existência
dos pressupostos da punibilidade, consubstanciados em uma conduta típica
ilícita e culpável. Como o fato, para eles, é atípico, não faz sentido falar-se
em causa extintiva de punibilidade. Tal fundamento não tem suporte na dogmática
jurídico-penal vigente e tampouco em uma correta interpretação sistemática das
normas jurídicas que a compõe. Apóia-se somente e equivocadamente na falsa
premissa, criada por eles próprios em defesa de sua opiniões, de que os atos
executivos são atípicos, o que, como se viu, não passa de uma utopia jurídica,
baseado em argumento ab absurdo[104]
.
7. Um comentário de
natureza processual
Muitos defensores da atipicidade,
provocada pela desistência voluntária (ou pelo arrependimento eficaz),
em especial, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados,
agarram-se neste entendimento, tendo em vista a proteção da dignidade humana e
a economia processual. Alegam que
sujeitar o indiciado à situação jurídica de réu, durante o longo trâmite de um
processo penal constrangedor, sabendo-se, de antemão, que houve,
inequivocamente, a desistência voluntária, é uma afronta à presunção de
inocência e à dignidade do ser humano, além de criar um custo processual
desnecessário, em função de uma sentença penal sem a menor utilidade
prática.
Porém, a fato de sustentar a tese excludente
de punibilidade, não obriga à instauração do processo penal. Se foi
verificado, por quem de direito, que o indiciado praticou uma conduta, inicialmente
típica, ilícita e censurável (crime planejado e efetivamente tentado), mas
que em razão de uma nova conduta posteriormente realizada (desistência
ou arrependimento eficaz), aquela conduta inicial teve a correspondente
pena legalmente isenta (art.15 do CP), não existe justificativa alguma à
instauração de processo penal, para que, ao fim, seja o réu declarado impune
por sentença. Eventual título executivo a favor da vítima, deverá ser
conseguido diretamente em processo de conhecimento promovido na esfera cível.
A denúncia só será fundamentada, caso
inexistam provas da ocorrência das citadas causas de exclusão de pena,
que, todavia, poderão ser demonstradas pelas partes no decurso da instrução.
Idêntico procedimento vale para os crimes de competência do Tribunal do Júri.
Percebida pelo Juiz, durante o procedimento de admissibilidade, a existência de
desistência voluntária (ou de arrependimento eficaz), deverá absolver
sumariamente o réu, aplicando, por analogia, o art.411 do CPP, pois ratio
ubi eadem, eadem iuris dispositio.
Conclui-se que, constatando o Parquet
que houve, v.g., a desistência voluntária, ao invés de denunciar
o indiciado, deverá pedir o arquivamento do inquérito, em razão de ausência
de justa causa[105](art.43,III
do CPP). Contudo, se verificada a consumação de crime subsidiário,
far-se-á a denúncia, com base neste (art.41 do CPP c/c art.15,in fine do
CP).
8. Conclusões extraídas
do estudo apresentado
1) Os atos manifestados pelas pessoas têm o ordenamento jurídico como
parâmetro (art.5.º,II da CRFB). Toda conduta não-proibida pelo sistema jurídico
em vigor e praticada sem abuso de direito no desenrolar das relações que se
formam é juridicamente válida e produz efeitos.
Outras, em face da elevada potencialidade danosa e do conseqüente grau
de insegurança e intranqüilidade que levariam ao sentimento dos que vivem em
sociedade, são expressamente vedadas por lei e, dessa forma, erigidas à
categoria de crime. Estas condutas proibidas, descritas de modo genérico e abstrato
e que constituem o texto da lei, consubstanciam os tipos penais.
2) O tipo penal, por restringir o âmbito de liberdade dos indivíduos e
cominar sanções àqueles que violarem a norma jurídica dele extraída, deve ser
criado por lei formal e material, que observará, necessariamente, os princípios
da intervenção mínima, da lesividade e da proporcionalidade, sob pena de ser inconstitucional ab initio. Legitimamente construído, torna-se exclusivo, imperativo, genérico, abstrato, impessoal e de natureza fragmentária,
em razão de proibir, abstratamente, a qualquer pessoa, sob pena de submeter-se
à prisão, de praticar a conduta expressa e selecionada que considerou delito,
em momento histórico e contexto social determinados.
3) O tipo penal, legitimamente integrado ao sistema jurídico, exerce uma
função sistemática, possibilitando a
precisa identificação de condutas ilícitas praticadas, que tenham sido
concretamente lesivas à coletividade, e a devida aplicação proporcional de
medidas repressivas ou ressocializantes aos respectivos infratores, rechaçando,
em contrapartida, qualquer arbitrariedade. Para tanto, é indispensável a
compreensão de sua função
político-criminal pelo legislador, devendo classificar como crime somente
condutas lesivas e, em tese, consideradas idôneas à produção de dano à
sociedade, a fim de que as pessoas entendam o porquê da vedação e se conduzam
conforme a orientação legal. Desta
feita, o tipo penal, com base em sua função
dogmática, cumprirá sua finalidade essencial de esclarecer em que medida e em que forma uma conduta
realizada adentra no âmbito da ilicitude, viabilizando a estabilidade das
relações jurídicas e o respeito à dignidade da pessoa humana.
4) Consumado um fato social
danoso cometido voluntariamente por alguém, primeiramente, deve o operador do
direito verificar se existe algum tipo penal que, abstratamente, incrimine a
conduta que o produziu. Em caso
positivo, analisará, partindo do caso
concreto, se a conduta do agente é antinormativa,
se ajusta-se formal e materialmente aos elementos do tipo e se, ipso facto, foi a causa principal do
resultado juridicamente inaceitável. Evidenciado o injusto penal e descoberto o
responsável por ele, o intérprete ou o aplicador da norma avaliará as
possibilidades da conduta reprovável ter sido evitada, com base nas condições
pessoais do agente e nas circunstâncias em que se encontrava no momento em que
agiu. Se reconhecidos o potencial
conhecimento do ilícito pelo agente, a sua imputabilidade e a viabilidade concreta de ter agido conforme o
direito, será considerado culpado pelo acontecimento anti-social e, em
conseqüência, submetido à correspondente coerção penal, de acordo com a
culpabilidade individual apurada e com os princípios que regem a punibilidade.
5) Em certas ocasiões, após o agente já ter iniciado a execução de um
delito previamente planejado, impulsionado por vontade inicial livre e
consciente, acontece de ele suspender, também voluntariamente, os
atos de execução que se sucederiam até o alcance daquele objetivo inicial. Busca, com base nesta segunda conduta, a
neutralização do risco de o resultado, antes visado e querido, vir a ser
atingido. Obtendo sucesso nesta empreitada, terá desistido voluntariamente (ou
se arrependido eficazmente), o
que o deixa impune pela tentativa inicial do crime, respondendo apenas pelos
atos de execução concretizados que, porventura, caracterizem algum delito
autônomo subsidiário. Surge, daí, a
controvérsia sobre qual seja a natureza da desistência voluntária (e do
arrependimento eficaz), em face das interpretações diferenciadas que se fazem
dos respectivos tipos penais da desistência e da tentativa, confrontando-se as
teses de causa excludente de adequação
típica e de causa excludente de
punibilidade. Tal discussão é
desnecessária, porque, por meio de interpretação sistemática correta, chega-se
à conclusão de que tais institutos jurídicos são causas individuais e excludentes de punibilidade.
6) Por meio de uma interpretação sistemática precisa, retiram-se os
seguintes argumentos:
a) a palavra vontade, expressa
no tipo de tentativa, refere-se àquela vontade inicial do agente, criminosa, portadora do animus laedendi e propulsora dos atos de execução correspondentes
ao seu conteúdo, identificado no querer, no desejar a consecução do plano
delituoso elaborado. O conteúdo da
vontade que fundamenta a voluntariedade da desistência (ou do
arrependimento) é diferente do
conteúdo da vontade prescrita no tipo tentado. Aquele é formado e externado a posteriori; este constituiu-se durante
a elaboração do plano do agente, sendo exteriorizado com o início da execução.
b) não sendo iguais as vontades do agente que dão sentido ao tipo de
tentativa e ao tipo de desistência voluntária (ou de arrependimento eficaz),
não se pode entender o comportamento posterior da desistência voluntária como
sendo um fato excludente da tipicidade da tentativa, pois, dessa forma,
estar-se-ía fazendo uma interpretação puramente lógico-formal dedutiva e em dissonância com a unidade e coerência
do sistema jurídico.
c) iniciados os atos de execução, concretiza-se a exteriorização de atos
materialmente lesivos e causadores de perigo concreto progressivo (crescente),
que preenchem o tipo de tentativa, conforme se extrai da correta operação do
critério orientador objetivo-individual, com base nos princípios da reserva legal, da intervenção mínima, da lesividade,
da proporcionalidade e na própria
natureza do tipo de tentativa, considerado norma
de extensão da adequação típica mediata, exatamente para não deixar impunes
condutas que não adentrassem literalmente no verbo núcleo do tipo, não obstante
o inequívoco propósito do agente em consumar o respectivo delito.
d) para se efetuar o juízo de
tipicidade, deve-se considerar a conduta no momento em que foi iniciada a
execução. Naquele átimo estará presente a verdadeira vontade criminosa do
agente, o dolo com que agiu, a finalidade pretendida e a dimensão da lesão
social provocada. É com base no sistema jurídico vigente à época que deverá
estabelecer-se se houve ou não a compatibilidade dos atos realizados com a
ordem jurídica. É naquele instante que a reprovabilidade da conduta
deverá ou não estar configurada. Não se pode, portanto, levar em consideração
uma vontade posterior do agente, inexistente na ocasião de início de execução,
para, com suporte em um juízo ex post
facto, criar-se uma proposição jurídica com apego exclusivo à lógica
formal, ignorando-se todo o aspecto substancial dos fatos, em completa violação
às normas de hermenêutica jurídica que proporcionam a unidade sistemática.
e) considerar-se a desistência voluntária (ou o arrependimento eficaz)
como causa excludente de adequação típica significa valorar e tratar,
igualmente, condutas materialmente diversas, ignorando-se o conteúdo do tipo e sua função de garantia da liberdade individual.
f) os fatores naturais (humanos ou fenomênicos) ou psicológicos que
ensejam a vontade posterior de desistir (ou de se arrepender) do agente
constituem propriamente as circunstâncias
alheias à sua vontade inicial e criminosa, que, no instante da execução são
imprevisíveis e, tempos depois, impedem a consumação do resultado típico antes
programado. O fato de tais circunstâncias alheias serem colocadas em prática
pelo próprio agente, em virtude de alteração provocada em seu ânimo inicial, em
nada desconfigura o tipo tentado, que somente exige que tais circunstâncias
sejam alheias à respectiva vontade inicial e criminosa do agente. Essa
interpretação, além de propiciar a harmonia normativa do sistema, faz com que
sejam respeitadas a dogmática penal vigente e as funções de garantia do tipo
penal.
g) o fato de o tipo de desistência voluntária (ou de arrependimento
ativo) prescrever que o agente só responde pelos atos executivos praticados até
o momento da efetiva desistência (ou arrependimento), não significa que os atos
tentados foram plenamente desconstituídos, conforme defende, equivocadamente,
certa corrente doutrinária, por meio de utilização de uma interpretação
puramente dedutiva lógico-formal. Com
base em uma correta interpretação, extrai-se, sim, uma proposição
jurídico-penal que autoriza a exclusão da punibilidade da conduta, inicialmente
tentada, injusta e culpável e, posteriormente, neutralizada voluntariamente e
com eficácia pelo próprio agente executor.
h) apesar de a desistência voluntária eficaz (ou o arrependimento ativo)
tornar impune a tentativa efetivamente existente, faz com que os atos de
execução, até então materializados, possam concretizar os elementos
constitutivos de determinado tipo penal subsidiário (crime-meio), porventura
existente, que seja absorvido pelo delito tentado com a pena excluída. Para
tanto, fundamental se considerar a desistência voluntária (ou o arrependimento
eficaz) como causa pessoal de exclusão de pena, visando à coerência
sistemática, pois, a considerá-la causa da atipicidade do fato, estará
inviabilizada a punição do agente pelos atos de execução tipificados como
delito subsidiário (tentativa qualificada). Se o procedimento realizado é
atípico, considerado como um todo (sucessão de atos de execução interligados
entre si), não faz sentido que parcela dos atos que o compõem, isoladamente
considerada, possa caracterizar determinado crime e sujeitar o agente à
respectiva coerção penal. Se o conjunto é atípico, utilizando-se do próprio
raciocínio lógico dedutivo-formal a que se chega a esta conclusão, suas partes
também devem ser.
i) a impunidade pelo delito tentado será de natureza pessoal, alcançando
apenas os respectivos autores, co-autores ou partícipes que, de fato, tenham
contribuído eficazmente para que o evento lesivo fosse evitado ou
impedido. Rechaça-se, por força da
própria ratio (fundamento) do tipo de
desistência e do princípio da culpabilidade, a extensão da impunidade aos
co-autores ou partícipes que não desistiram (ou não se arrependeram) com
eficácia, o que faz prevalecer uma decisão jurídica, para o caso concreto, de
acordo com o princípio da justiça penal.
j) o único argumento utilizado para combater a tese que defende a
natureza jurídica da desistência voluntária (ou do arrependimento eficaz) como
sendo causa extintiva de punibilidade, não tem suporte na dogmática penal
vigente e quiçá em uma correta interpretação sistemática das regras que a
compõem e dos princípios que a norteiam. Tal argumento foi criado pela própria
doutrina que afirma serem os referidos institutos causas excludentes de
tipicidade do fato tentado. Partindo-se desta falsa premissa (e não da própria
base dogmática), afirmam que a impunibilidade pressupõe a existência dos
requisitos que habilitam a punibilidade (o que é correto), que inexistem em
razão do fato ser atípico (premissa errada). Demonstrado o equívoco dessa
sustentação jurídica, cai por terra a natureza jurídica dos institutos como
sendo causas excludentes de atipicidade.
l) A entender haver exclusão da tipicidade da tentativa, por força dos
atos de vontade posterior e independentes da vontade que impulsionou o processo
de execução, estar-se-á subvertendo a ordem
dogmática penal, pois, evidenciada a existência concreta de conduta
inicialmente injusta e reprovável, tendente a um fim específico, a ocorrência
de qualquer conduta posterior jamais poderá eliminar tal característica
consumada. A prevalecer opinião contrária, estará prevalecendo a forma em face
do fundo material, axiológico, valorativo, cujos reflexos já atingiram, a princípio,
o sentimento jurídico[106]
da sociedade.
7) Por último, a constatação, pelo MP, durante as investigações
preliminares, da ocorrência da desistência voluntária (ou do arrependimento
eficaz), será motivo para arquivamento do inquérito, por ausência de justa
causa (art43,III do CPP). Se houver crime subsidiário, a denúncia
basear-se-á neste (art.41 do CPP c/c art.15, in fine do CP).
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Notas:
[1]
Estou considerando, para efeito deste ensaio, o termo extinção como
sendo igual à exclusão, em razão da diferença existente ser irrelevante,
se comparada ao âmago da questão.
[2] DANTAS, San Tiago. Programa de direito civil. Teoria
geral. 3.ed., , p.111, Rio de Janeiro: Forense, 2001.
[3]
GOMES, Orlando. Introdução ao direito
civil. 14.ed, pp.337 et seq., Rio
de Janeiro: Forense,1999.
[4]
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da
pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988,
pp.67/78 e 124/125, Porto Alegre: Livraria do Advogado,2001.
[5] DANTAS, San Tiago. Op. cit, pp.8/ 9.
[6]
ZAFFARONI, E. R. e PIERANGELI,
J.H. Manual de direito penal brasileiro.
2.ed., pp.163/164, São Paulo: RT, 1999.
[7]
DANTAS, S.T., Op. cit., pp.31/ 33.
[8] Idem.
[9] JESUS, Damásio E. de. Direito
Penal. Parte Geral. 21.ed., p.16, São
Paulo: Saraiva, 1998.
[10]
TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal, p.158, Belo Horizonte: Del
Rey, 2000.
[11]
Cite-se, como exemplo, as condutas de mulheres que realizam topless nas praias do Rio de Janeiro,
fato inimaginável na década de 40, época de criação do Código Penal.
Certamente, estaria caracterizado o ato
obsceno, tendo em vista a ratio legis
do art.233 do CP. Com a evolução e mudança
dos valores sociais, a referida conduta não se subsume ao tipo penal do ato obsceno, se considerar-se a ratio legis no atual contexto.
[12]
Um indivíduo que furta uma caneta comete, em tese, o crime de furto (art.155 do
CP). Não se discute a reprovabilidade da conduta. Entretanto, em um Estado Democrático
de Direito, que prima pela preservação da dignidade da pessoa humana, não se
concebe que tal conduta seja reprimida por aplicação de pena privativa de
liberdade. Ponderando-se os interesses em conflito (liberdade x patrimônio
representado por uma caneta), seria inconstitucional considerar-se tal conduta
abrangida pela ratio legis do tipo de
furto.
[13]
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade
das normas constitucionais. 3.ed, pp.66/77, São Paulo: Malheiros, 1998.
[14]
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios
básicos de direito penal. 5.ed, pp.25/29, São Paulo: Saraiva, 2000.
[15] A
Constituição seria, sob tal enfoque, uma simples “folha de papel”. (LASSALE, Ferdinand apud SILVA, J. A. da. Op. cit.,
p.23)
[16]
BATISTA, Nilo apud GRECO, R., Curso de direito penal. Parte geral, ,
pp.44/45, Rio de Janeiro: Impetus, 2002.
[17]
Um sujeito que tatua todo o corpo não pode ser sancionado (exemplo do professor
Nilo Batista, citado por GRECO, op.cit.,
p.45).
[18]
SILVA, Celso de Albuquerque. Interpretação
constitucional operativa, pp.87/91, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
[19]
SARMENTO, Daniel. A ponderação de
interesses na Constituição Federal. 1.ed. 2. Tiragem, p.74, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2002
[20] É
adequada a tipificação da conduta de matar (art.121 do CP). A vida é um bem
jurídico tutelado pela Constituição. O homicídio é causa da insegurança social
e do enfraquecimento da confiança da população no ordenamento jurídico. Portanto, erigir o ato de matar à categoria
de crime e cominar-lhe uma pena de prisão justa
é perfeitamente adequado para se prevenir a prática de condutas dessa
natureza (prevenção geral) e, se preciso, restaurar a segurança social e a
confiabilidade jurídica com a justa punição do infrator (prevenção especial).
[21]
Seguindo com o delito de homicídio doloso. Se o ato de matar fosse considerado
apenas um ilícito civil e atribuísse ao infrator somente o dever de indenizar,
além de deixar impunes os agentes que não tenham condições econômicas de
ressarcir a família da vítima (violaria o princípio da igualdade material, art.5.º,caput) e permitir-lhes reincidir em tal
conduta, far-se-ía tabula rasa do
direito à vida (do qual todos os demais decorrem) e,
conseqüentemente, estaria aberto o caminho para a destruição da sociedade e do
Estado, quaisquer que fossem suas características. Indispensável, por isso, privar o criminoso
de sua liberdade, tanto para que seja impedido de novas práticas e seja
ressocializado, quanto para recuperar a tranqüilidade social e jurídica.
[22]
Incriminação da conduta e cominação de pena a quem a pratique.
[23]
Restauração da paz social e da confiabilidade no ordenamento jurídico.
[24]
Direito da coletividade a viver numa sociedade
livre, justa e solidária, sem marginalização (art.3.º, incisos I e III
da CRFB/88).
[25] JESUS, op.cit., pp.16/19.
[26]
TAVARES, op. cit., pp.168 et seq.
[27]
São palavras do professor TAVARES, Juarez . Op. cit., p.170).
[28]
Alexy, Robert. Teoria da argumentação
jurídica. 2.ed, p.253, São Paulo: Landy Editora, 2001.
[29]
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro Lopes. O
princípio da insignificância no direito penal. 2.ed, p.117, São Paulo: RT,
2000.
[30]
TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., pp.125,130 e131.
[31]
Exemplo: lesão corporal culposa ocorrida em jogo de futebol. O risco de lesão é
socialmente tolerável, apesar de a lesão corporal não estar permitida nas
regras deste esporte.
[32]
Exemplo: cheque de R$ 10,00, emitido em supermercado (Sendas, Carrefour, etc.),
intencionalmente, ciente da inexistência de fundos. O estelionato está
formalmente tipificado; materialmente, sequer houve dano efetivo à instituição
comercial.
[33]
ZAFFARONI, E. R. e PIERANGELI, J. H.. Manual de direito penal, pp.
549/563. GRECO, R., op. cit., pp. 151/155.
[34]
Por exemplo, o oficial de justiça, ao praticar busca e apreensão de determinado
objeto, cumpre o estrito dever legal (art.23,III do CP). Analisando-se apenas o
tipo penal de furto (art.155 do CP), poder-se-ía concluir, precipitadamente,
que sua conduta foi penalmente típica, o que não procede ex vi do art.5.º,LVII da CRFB/88 (princípio da presunção de
inocência), interpretado não só com base nas funções do tipo penal, como também
levando-se em conta o regime jurídico ao qual está submetido quando em
exercício de suas atividades profissionais (caráter normativo da conduta).
[35]
GRECO, op. cit. p.154. ZAFFARONI, E.R e PIERANGELI,
J.H, op. cit., pp.549/550. O
médico que recebe recursos do SUS para realizar cirurgias de emergência, não
pode ter sua conduta tipificada em lesão corporal dolosa (art.129 do CP), por
força do art.196, caput da CRFB/88 (a saúde é direito de todos e dever do
Estado).
[36]
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento
jurídico.10.ed., , pp.86 et seq.,
Brasília: Editora UnB, 1999.
[37]
Cita-se, por exemplo, um pai que, na ocasião de um incêndio, só tem
oportunidade de salvar um dos dois filhos menores, tendo que optar por um deles
(deveres de proteção idênticos, art.1.631 do NCC/2002). Seria socialmente
injusto interpretar a conduta do pai como violação do dever de proteção do
filho não salvo, considerando-a, por isso, ilícita,
em razão de sua omissão dolosa, porém inculpável,
face a natureza do dever de proteção violado e de sua impossibilidade física de
agir no momento. Todavia, à solução diversa se chegará se considerar-se o
sistema como unidade, pois é inconcebível imputar ao pai um fato omissivo
doloso se, sequer, existia para ele possibilidade física de agir, que é
pressuposto indispensável à caracterização da omissão. De fato, houve colisão
de deveres jurídicos impositivos, sem, contudo, existir possibilidade física
para atuar, o que, por si só, obsta a
tipificação do delito omissivo doloso (art.13 § 2.º, a do CP) (in ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H., op. cit., p.552).
[38] Idem, pp.550/551.
[39]
TOLEDO, op.cit, pp.161/164.
[40] A
concretização do tipo penal passa a ser vista como uma etapa metodológica para
que se prossiga na investigação de todos os pressupostos que legitimem a
coerção estatal (TAVARES, op. cit.,
pp.158 et seq.).
[41]
Exemplo: o proprietário de uma casa autoriza a sua demolição por terceiro. Não
houve o crime de dano, capitulado no art.163 do CP: ‘destruir (…) coisa alheia”
[42]
Exemplo específico é o caso do crime de adultério (art.240 do CP), cuja norma
penal, apesar de ainda vigente, perdeu a
eficácia social com o passar dos anos. Os valores culturais dos anos 40 (época
em que foi criado o código penal) são
completamente diferentes dos atuais, em relação à vida conjugal. Materialmente,
o adultério foi descriminalizado pela própria sociedade. Outro exemplo: dano (art.163 do CP) praticado
com o consentimento do ofendido. Formalmente houve a ilicitude: o agente
destruiu, dolosamente, coisa alheia, contrariando determinação legal. Todavia,
materialmente, inexistiu a lesividade, pois a permissão do próprio titular do
bem eliminou qualquer possibilidade de conflito ou insegurança social.
[43]
TAVARES, Juarez. Op. cit., pp.161 et
seq.
[44]
TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., pp.229 e ss.
[45] Prevenção geral negativa, intimidando à
população a não realizar tal conduta; prevenção
geral positiva, esclarecendo a população que os bens protegidos pelas normas penais devem ser respeitados, em nome
da ordem social, cf. ROXIN, op. cit.,
p.79, nota de rodapé n.º 159. Vale
ressaltar que, no Brasil, não há como se levar em conta os fins de prevenção
especial da pena, pois, ipso facto,
acarretaria o cometimento de um ato inconstitucional e, conseqüentemente, a
completa impunidade dos agentes delinqüentes. Isso porque os fins de prevenção
especial visam tanto à neutralização
do infrator (aspecto negativo: segregação, morte, prisão perpétua etc., vedada
pelo art.5.º, XLVII da CRFB/88), quanto
à sua ressocialização ou reeducação (aspecto positivo), o que,
diante da realidade do sistema penitenciário nacional, torna-se piada
(afrontaria o princípio da dignidade da pessoa humana, art.1.º, III da
CRFB/88).
[46]
Terminologia adotada com base em GRECO, R. Op.cit.,
pp. 82/85.
[47] RODA, Juan Córdoba apud GRECO, R., op. cit., p.83.
[48]
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito
penal brasileiro. 5.ed, p.81, São Paulo: RT, 2001.
[49]
JESUS, Damásio E. de.Op. cit., p.327.
[50]
CALLEGARI, André Luís. A tentativa e o
crime impossível no código penal brasileiro. Revista dos Tribunais, 1998,
p.487. v.755.
[51] Idem. JESUS, D.E. de. Op.cit., p.329. SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível,
pp.325/326, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000).
[52]
PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p.292.
[53]
CALLEGARI, André Luís. Op.cit.,
p.491.
[54]
ZAFFARONI, E. R. e PIERANGELI, J. H. Da
tentativa, pp.27/ 39.
[55]
MAGALHÃES, L. H. e FURTADO, M. G. Da
tentativa. RT-705, pp.444 e 445.
[56]
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H. Op.
cit., p.55.
[57] SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p.324. O autor dá o exemplo de um sujeito que
desiste de matar um outro, mesmo podendo consumar o fato, para matar um
terceiro.
[58] Idem, op. cit., pp.323/324. Causas
de impedimento obrigatórias são heterônomas, externas à vontade do agente. Portanto, retiram a voluntariedade da desistência ou do
arrependimento. Ex. medo de ser flagrado; bloqueio das rotas de fuga. JESUS,
D.E. de. Op.cit., p.337. O autor considera causas obstativas da
voluntariedade (involuntárias) do agente
que desiste de agir : a enérgica resistência da vítima; desvantagens ou riscos ( não suportáveis
por um sujeito normal) que comportamento diverso sujeitar-lhe-ía; a
impossibilidade de se praticar o ato.
[59] SANTOS,
op.cit., pp. 319 a 321.
[60] O
adequado será analisar o fato concreto e verificar se o agente tinha ou não o
conhecimento do benefício legal (impunidade)
proporcionado pela desistência voluntária ou pelo arrependimento eficaz.
Caso afirmativo, correto será o fundamento da impunidade com base na citada ponte
de ouro.
[61]
ZAFFARONI, E. R e PIERANGELI, J.H.. Manual
de direito penal brasileiro, pp. 104 e ss.
[62]
JESUS, Damásio E. de. Op. cit., pp.334/ 335.
[63] Idem, pp.336, 338 e 339.
[64]
MARQUES, José Frederico.Tratado de
Direito Penal.1.ed.atualizada, pp.386,387 e 391, Campinas: Bookseller,
1997. v.II.
[65]
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de
Direito Penal. 4.ed., pp. 244/245, Rio de Janeiro: Forense,1994.
[66] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Do crime consumado e do crime tentado.
RT-646, 1994, p.254.
[67] Apud
JESUS, Op.cit., p.334.
[68]
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal.
32.ed., p.130, São Paulo: Saraiva, 1997. v.1.
[69]
ZAFFARONI, E. R.e PIERANGELI, J.H., op.cit.,
pp.89 e 90.
[70]
FRANCO, A. S. et alii. Código
Penal e sua interpretação jurisprudencial. 7.ed., p.256, São Paulo: RT,
2001. v.1.
[71]
COSTA JR., Paulo José da. Direito Penal:
curso completo. 7.ed, p.75, São Paulo: Saraiva, 2000.
[72]
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H.. Op.
cit., pp.741 a 749.
[73]
JESUS, Damásio de. Op. cit., pp.541 et
seq..
[74]
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e
aplicação da Constituição. 4.ed., pp.192/193, São Paulo: Saraiva,
2001.
[75]
Pendente, pois se está analisando a execução sem que tenha se levado ainda em
conta a ocorrência de alguma circunstância alheia à vontade do agente,
impeditiva da consumação do resultado.
[76]
GOMES, Orlando. Op. cit., pp.269/275.
[77]
JESUS, D. E. de. Op. cit., pp.328/329.
[78]
Agente iniciou disparos de revólver sobre determinada autoridade pública e, sem
terminar a obtenção do êxito esperado, interrompe-a e foge, por ter sido
flagrado pela polícia que passava naquele instante. O medo de ser preso o fez
desistir de consumar o fato. A chegada da polícia foi a circunstância
superveniente e alheia à sua vontade inical que ocasionou o desvio do iter criminis. Não obstante, houve
tentativa de homicídio. Nessa hipótese, o agente altera a sua vontade inicial
por impossibilidade de agir diferentemente.
Outra vontade surgiu, tendo sido exteriorizada no ato de fugir. A vontade, portanto, é o ânimo que impulsiona
a respectiva conduta.
[79] O
agente efetua disparos certeiros contra um terceiro que, no exato instante em
que seria atingido, desloca-se do lugar em que se encontrava, por ter sido
chamado por alguém.
[80]
ZAFFARONI, E. R. e PIERANGELI, J.H..
Da tentativa, p.97.
[81]
FRANK apud ZAFFARONI, E.R. e
PIERANGELI, J.H., op. cit., p.97.
[82] Idem, p.98. É o que ocorre, por exemplo,
quando o agente desiste de prosseguir na execução do homicídio, em razão de a
polícia ter chegado ao local. A vontade delituosa permaneceu. Todavia, em
decorrência da impossibilidade física de obter o sucesso desejado, desistiu
coativamente.
[83]
Idem,
p.98. Segundo o autor, sistema penal é “todo o complexo que pode conduzir à
punição do fato, do qual não só participam os agentes de segurança e os
funcionários públicos, mas, também, os sujeitos passivos, os particulares, os
órgão de defesa , os aparelhos defensivos e tudo aquilo que possa servir para
delatar a execução e levar a reprimí-la”. Assim, vista a questão por esse
ângulo, desiste voluntariamente quem, por temor de ser flagrado, não provocado
por qualquer atuação do sistema, interrompe os atos executivos, mesmo com
possibilidade física de continuar, e foge. A
contrario sensu, inexiste voluntariedade se o agente foge por medo,
provocado pela presença da polícia durante ao atos de execução de um homicídio
ou por medo de que toque o alarme ao adentrar a residência de terceiro para
consumar o furto ou, ainda, em virtude de resistência da vítima.
[84]
Cite-se, por exemplo, um sujeito que, invadindo o terreno de terceiro para
furtar a casa deste, percebe que, para lá chegar, deve ultrapassar uma cerca de
alta tensão que a antecede, tendo, assim, duas possibilidade de ação: ou sair
do terreno e fugir; ou arriscar-se a morrer eletrocutado.
[85] O
agente que confunde um comum do povo com um policial e foge, por receio
equivocado de ser preso, não age voluntariamente (Idem, p.99).
[86] A
simples ameaça abstrata de sofrer uma pena ou um medo genérico não provocado
pelas circunstâncias fáticas do momento não são suficientes para excluir a
voluntariedade da desistência, pois, se quisesse, o agente teria possibilidade
física de continuar sua empreitada criminosa, sem atuação concreta de alguma
ação especial do sistema penal.
[87]
ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H., op.
cit., p.99.
[88]
Seria a adoção do tipo penal do autor, que é concretizado em função de
presumida periculosidade do agente (CONDE, Muñoz apud ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H., op.cit., 100). Haveria total
afronta ao princípio da legalidade penal
e, conseqüentemente, da dignidade da
pessoa humana.
[89]
JESUS, D. de. Op. cit., p.337.
[90] ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H., op. cit., p.103.
[91] WESSELS, Johannes apud GRECO, Rogério. Op. cit., p.258.
[92] ZAFFARONI, E.R. e PIERANGELI, J.H., op. cit., pp.105 e 107.
A conduta de desistência ou
arrependimento deve provocar um desvio do
curso causal previamente planejado pelo autor do delito ora evitado ou
impedido.
[93] O
ato de evitar, relativo à conduta de desistência voluntária poderá ser tanto
omissivo quanto comissivo. O que interessa saber é se os atos de execução não
foram todos esgotados, a fim de que possa ser caracterizada a desistência no
atuar eficaz do agente. Se os atos
executivos tiverem sido esgotados, será hipótese de arrependimento ativo.
Exemplificando, desiste voluntariamente, de modo comissivo, o agente que, após
disparar um tiro na vítima, de um total de seis possíveis, socorre-a, levando-a
para o hospital, onde é salva por um tratamento médico adequado. Portanto, nem
sempre basta a simples omissão de continuar a execução, um simples desejar que
o resultado não ocorra, sendo indispensável uma atitude neutralizante dos
prováveis efeitos típicos lesivos (Idem, p.105).
[94] Idem, p.112.
[95]
Um exemplo que ocorre muito no Brasil: falsificação de documentos de segurados
do INSS, pelos próprios servidores que lá trabalham, a fim de inserir no
sistema beneficiários fantasmas e, conseqüentemente, usufruírem dos proventos
que estarão disponíveis fraudulentamente.
Utilizou-se do crime de falsificação
(art.297 do CP), meio indispensável, na hipótese, para a consumação do crime de
estelionato qualificado (art.171 §3.º
do CP).
[96]
GRECO, R., op. cit., p.262.
[97]
PRADO, L. R., op. cit., p.297,
concluindo com o apoio de FRANCO, Alberto Silva.
[98] FRANCO,
A. S. et alii. Op. cit., p.256,
v.1.
[99]
Segundo HANS WELZEL, “a tipicidade, a
antijuridicidade e a culpabilidade são três elementos que convertem uma ação em
um delito. A culpabilidade – responsabilidade pessoal por um fato antijurídico
– pressupõe a antijuridicidade do fato, do mesmo modo que a antijuridicidade,
por sua vez, tem de estar concretizada em tipos legais. A tipicidade, a
antijuridicidade e a culpabilidade estão relacionadas logicamente de tal modo
que cada elemento posterior do delito pressupõe o anterior” (apud GRECO, Rogério.Op. cit., p.160).
[100]
TAVARES, Juarez. Op. cit., pp.165/167. Conclusão
extraída por analogia, com base na crítica feita, nessa obra citada, à teoria
dos elementos negativos do tipo. A
função de garantia do tipo assegura a liberdade de conduta dos
indivíduos, restringindo, por lei, apenas aquelas consideradas socialmente
lesivas e reprováveis. Portanto, a se considerar que a desistência exclui a
tipicidade da tentativa, estar-se-á classificando os atos de execução como
lícitos e permitidos, o que não é verdade.
Deve-se considerar o conteúdo material da norma para interpretá-la, não
só o seu aspecto formal. Para tanto, torna-se fundamental que o Estado
intervenha para inibir a conduta de alguém que possa ameaçar ou lesar (por meio
de atos injustos e reprováveis socialmente)
bem jurídico alheio, constitucionalmente tutelado.
[101]
Basta imaginar-se o partícipe que tente, por todos os meios a seu alcance,
impedir fisicamente que o agente executor desista ou se arrependa concretamente.
Se, mesmo assim, o agente obtiver sucesso na evitação do resultado, não fará
sentido o partícipe não responder pela participação na tentativa, cuja
tipicidade existiu. O agente, sim, terá a sua punibilidade excluída, em razão
de seus atos praticados eficazmente. Damásio estende a impunidade aos
partícipes. Alega que por ser a participação no crime uma conduta de natureza
acessória em relação à autoria direta da execução do crime, que é a conduta
principal, tornando-se atípica esta, a conduta acessória do partícipe também
será, independentemente deste ter desistido voluntariamente (ou se arrependido
eficazmente), juntamente com o agente executor, como está subentendido no tipo
de desistência (in op. cit., p.339). Tal conclusão demonstra, por si só, o quanto
é defeituosa para o sistema jurídico a adoção da desistência voluntária como
causa de atipicidade do fato.
[102]
Aplicação analógica da crítica que se faz à teoria
dos elementos negativos do tipo, que considera uma conduta típica apenas se
inexistir alguma causa justificante (legítima defesa, estado de necessidade,
exercício regular de um direito, consentimento do ofendido etc.) no atuar do agente. Se um homem matou outro
em legítima defesa, o fato será atípico, por estar presente uma causa justificante
(GRECO, Rogério. Op. cit.,
pp.159/160), da mesma forma que será atípica a conduta de quem matou uma
barata.
[103] Op. cit., p.256.
[104]
FERRAZ JR., T. S.. Op.
cit., p.331. Segundo
o professor Tércio Sampaio, “no plano da retórica, fala-se em absurdo
quando a demonstração conseqüente de uma proposição conduz-nos a uma conclusão
manifestamente inaceitável, o que nos obriga a reconhecer a verdade da
proposição oposta.” E conclui: “(…)
como argumento, absurdo não é destituído de sentido, mas o que tem o
sentido falso (isto é, inaceitável para o senso comum).”
[105]
JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal, 6.ªed., pp100/101, Rio
de Janeiro: Forense, 1997.
[106]
Expressão de LHERING, Rudolf von (in A
luta pelo direito.21.ed, Rio de janeiro: Forense, 2002).
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Renato Rodrigues Gomes