Introdução
Discute-se atualmente a validade da cláusula, inserida em contrato coletivo de prestação de serviços de assistência à saúde, que permite a alteração da mensalidade na hipótese de aumento da “sinistralidade”. Grupos de defesa de interesses de consumidores alegam que tal cláusula é intrinsecamente abusiva, por permitir que a seguradora aumente unilateralmente o valor dos prêmios mensais, em afronta ao art. 51, X, do CDC. Sustentam que a referida cláusula também pode ser considerada abusiva à luz do inc. IV do art. 51, também do CDC, já que consagra vantagem exagerada para a seguradora. Por sua vez, as operadoras de planos de saúde apóiam-se em entendimento contrário, por não enxergarem abusividade na dita cláusula. Acrescentam que nem sequer se pode pretender a aplicação do CDC ao tipo contratual em tela, já que se traduz num pacto entre empresas, onde o autor não utiliza os serviços na condição de destinatário final, figurando como mero estipulador das condições contratuais em favor de terceiros.
A cláusula que gera a discordância prevê o recálculo do prêmio em função da sinistralidade, isto é, toda vez que o índice de sinistros pagos atingir determinado percentual, em função do prêmio cobrado em período imediatamente anterior (de três meses), a seguradora está autorizada a fazer o cálculo de novo prêmio, segundo fórmula prevista na mesma cláusula.
A análise da natureza de tal cláusula nos obriga a um exame preliminar da natureza do próprio contrato coletivo (plano) de saúde, até mesmo para definir se a ele se aplicam (ou não) as normas do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Com efeito, muitos sustentam que o contrato de plano de saúde empresarial não é um contrato de adesão, uma vez que suas cláusulas são discutidas e eleitas de forma equilibrada pelos contratantes, a operadora e a empresa que contrata o plano, que escolhe livremente o tipo de plano, o preço, os prazos de carência, os tipos de procedimentos cirúrgicos cobertos, o número de beneficiários, entre outras condições, ou seja, típico contrato empresarial onde não se enxerga a figura de uma parte hipossuficiente, em desvantagem diante de outra mais forte e que tem a supremacia da relação contratual. A despeito dessa orientação, iremos demonstrar que o contrato coletivo de plano de saúde é modalidade de contrato de consumo e que, mais do que isso, trata-se de verdadeiro “contrato cativo”, onde os consumidores (beneficiários) estão sujeitos a desequilíbrios idênticos à contratação individual, devendo se lhe aplicar os mesmos princípios protetivos, com destaque para o princípio da conservação dos contratos.
Natureza jurídica do plano coletivo de assistência à saúde
Um princípio geral em matéria de contratos é o de que as convenções não prejudicam nem beneficiam as partes que nelas não intervêm. É o chamado princípio da relatividade dos contratos, significando que não podem produzir efeitos além das pessoas dos contratantes que se auto-obrigaram. Esse princípio, contudo, não é absoluto, pois algumas espécies contratuais produzem efeitos sobre o patrimônio jurídico de terceiros que não concordaram para a formação do vínculo, do qual não podem escapar por força da lei ou da vontade das partes que o constituíram. É o caso, por exemplo, da doação modal em favor de terceiro, do contrato de seguro em favor de terceiro (beneficiário), da constituição de renda quando há um terceiro beneficiário, da promessa de fato de terceiro (previsto no art. 439, caput, do C.C.) ou ainda em todos os casos genéricos das estipulações em favor de terceiro. Esses tipos de contratos são muito diferentes dos demais atos negociais porque, em todos eles, os efeitos vão atingir um estranho à celebração do negócio jurídico, o qual, apesar de não participar inicialmente da avença, vai adquirir a qualidade de sujeito de direito da relação contratual.
A esse rol distinto de contratos pode-se juntar o plano ou seguro saúde empresarial, modalidade contratual estabelecida entre duas pessoas, em que uma (o empregador, sindicato ou entidade associativa) convenciona com outra (a operadora ou administradora do plano) a prestação de serviços de assistência à saúde de terceiros, mediante o pagamento de uma certa quantia mensal em dinheiro pelos beneficiários ou de forma rateada com o empregador.
Em verdade, a figura do plano de saúde, quer seja ele individual (ou familiar) quer seja ele empresarial, pode ser distinguida da do seguro-saúde. Na primeira espécie, o contrato é feito com qualquer empresa (privada), cooperativa ou associação de médicos, que assume a responsabilidade da prestação de serviços médico-hospitalares, diretamente ou através de uma rede de operadores conveniados. A segunda é um típico contrato de seguro, firmado com uma companhia seguradora, pelo qual, mediante a paga de um prêmio, o segurador se obriga perante o segurado a preveni-lo dos riscos (financeiros) à sua vida e integridade física, pagando-lhe uma indenização ou simplesmente reembolsando os gastos que fizer com a manutenção e recuperação de sua saúde. A doutrina, todavia, de há muito reclamava um tratamento jurídico unificado para ambas as espécies, com a criação de órgãos reguladores e de fiscalização também unificados. A Lei 9.656, de 03.06.98, que regulamentou os planos e seguros-saúde privados de assistência à saúde, tratou-os como uma única espécie, tanto que no seu art. 10 instituiu o “plano ou seguro-referência de assistência à saúde”[1]. Assim, o contrato de “plano” ou seguro-saúde pode ser caracterizado por envolver a transferência (onerosa e contratual) de riscos futuros à saúde do segurado (consumidor) e seus dependentes, mediante a prestação de assistência médico-hospitalar diretamente ou por meio de entidades “conveniadas”, ou pelo simples reembolso das despesas[2].
O que realmente faz diferença (e gera problemas) é a forma de contratação desses planos ou seguros-saúde, que se pode dar por meio da contratação individual, que são aqueles oferecidos no mercado para a livre adesão de consumidores, pessoas físicas, facultada ou não a inclusão de seus dependentes ou grupo familiar, ou através de uma contratação coletiva, quando no contrato é oferecida cobertura dos riscos à saúde de população delimitada e vinculada a uma determinada pessoa jurídica – a empresa que contrata o plano (que também pode prever a inclusão dos dependentes da comunidade de beneficiários do contrato coletivo). A adesão dos beneficiários (consumidores) em geral é automática na data da contratação do plano ou no ato da vinculação como empregado, filiado ou associado da pessoa jurídica (empregador, sindicato ou associação), se bem que em algumas modalidades de contratação coletiva, a adesão é prevista apenas de forma espontânea e opcional dos funcionários, associados ou sindicalizados (com ou sem a possibilidade de inclusão do grupo familiar ou dependentes)[3].
Estamos diante, pois, de um típico contrato de consumo – o contrato de prestação de serviços de assistência médico-hospitalar vem sendo caracterizado, na doutrina e jurisprudência, como contrato de consumo para fins de aplicação das normas de proteção do CDC[4] -, mas em que os consumidores não intervêm na formação do vínculo contratual. A contratação não é feita por eles (ou entidade representativa deles), mas diretamente pela empresa empregadora com a operadora de plano de assistência à saúde.
Como é a própria empresa, sindicato ou associação que faz a negociação com a operadora, sem interveniência direta dos beneficiários e verdadeiros sujeitos de direito do “plano” ou seguro-empresarial, pode ocorrer divergências entre eles quanto à execução do contrato. Muitas vezes, no momento de discutir reajustes, de adaptar o plano para outra modalidade, de escolher dentre as segmentações previstas em lei, os interesses da empresa empregadora e dos seus empregados (consumidores) nem sempre vão ser coincidentes, especialmente quando aquela concorre com o pagamento de parcela dos custos do contrato. Daí surge a necessidade de se procurar definir a natureza jurídica desse tipo contratual, para, em seguida, delinear com exatidão a extensão dos direitos e deveres das partes. A importância desse estudo é motivada também em razão da grande difusão que essa forma contratual (contrato coletivo de saúde) assumiu nos dias atuais[5].
E o melhor método para se perquirir a natureza jurídica de uma nova modalidade contratual é compará-la com as formas típicas, já definidas em lei.
Percorrendo esse caminho, fica fácil enxergar que o contrato que o empregador celebra com a operadora ou administradora de plano saúde aproxima-se da categoria da estipulação em favor de terceiro, como acordo de vontades que produz efeitos em relação a terceiro, que não participa da formação do vínculo. O nosso Código Civil admite a validade e eficácia da estipulação a favor de terceiro, disciplinando-a nos arts. 436 a 438. Há, contudo, uma diferença fundamental em relação a essa forma contratual. A estipulação em favor de terceiro, disciplinada no Código Civil, consagra sempre e exclusivamente uma vantagem para o não interveniente, enquanto que nos contratos de planos/seguros de saúde coletivo a estipulação, a par de gerar uma vantagem – o direito a usufruir os serviços de assistência médica de responsabilidade da operadora – faz nascer também obrigações para os terceiros (segurados), que consistem, em geral, no pagamento de parte dos custos de execução do contrato, na forma de mensalidade ou prêmio como contraprestação pelos serviços oferecidos pela operadora. No contrato de plano ou seguro saúde coletivo, o segurado não é um mero favorecido, mas ao mesmo tempo um co-obrigado, pois tem o dever de pagar o prêmio mensal estabelecido (ou parte dele), podendo inclusive vir a ser executado em caso de inadimplemento, para que a operadora possa ser ressarcida dos custos que suportou durante o prazo em que manteve os seus serviços à disposição do segurado. Tanto a seguradora (operadora) como o segurado (consumidor) têm vantagens proporcionais, que se equivalem; um, percebendo em pecúnia o direito ao prêmio, e o outro, usufruindo-se dos serviços médicos e hospitalares. Trata-se de modalidade de contrato oneroso, pois envolve prestações e contraprestações, com cada um desses contraentes visando a obter vantagem. Existe um perfeito equilíbrio de obrigações e de interesses que se coadunam. É diferente, repita-se, da estipulação em favor de terceiro, onde a vantagem para a pessoa alheia à convenção é sempre considerável (ainda que não inteiramente gratuita).
Outro ponto de distinção entre as formas contratuais em análise tem a ver com a relação das partes que participam da formação do vínculo. Na estipulação em favor de terceiro o estipulante pode exonerar o promitente de suas obrigações, caso o terceiro (beneficiário) não reclame o direito de exigir a execução do contrato (art. 437 do C.C). No contrato coletivo de plano de saúde empresarial, a situação não é a mesma, pois o segurado tem o direito, em todas as circunstâncias, de exigir o cumprimento das obrigações do contrato.
Uma última dessemelhança poderia ser apontada, ligada a um requisito subjetivo. É que na estipulação em favor de terceiro o estipulante atua em seu próprio nome, enquanto que no contrato de saúde coletivo a avença é formalizada em nome de terceiro (beneficiário), preponderando uma ação em nome alheio.
A estrutura contratual típica em que mais se adequa o “plano privado empresarial de assistência à saúde”, pelo menos quanto ao objetivo, é mesmo com o contrato de seguro, na medida em que ambos visam a eliminar riscos. Mas não se pode dizer que a contratação coletiva empresarial de plano privado de assistência à saúde reflita simplesmente um nítido contrato de seguro. É certo que pode haver contrato de seguro em que a pessoa do segurado não coincide com a do beneficiário, como é o caso do seguro de vida, em que a indenização é recebida pelo parente (ou qualquer outra pessoa) indicado no contrato. O plano empresarial de saúde também cobre o risco à vida do segurado, podendo haver previsão de indenização para os seus familiares (beneficiários). Só que, no contrato de seguro, quem sempre arca com o pagamento do prêmio é a própria pessoa que contrata, e não o beneficiário, enquanto que no plano privado empresarial de assistência à saúde quem contrata é a empresa, mas quem paga a mensalidade (pelo menos parte dela, em alguns casos) é o empregado (segurado e beneficiário).
Vê-se, portanto, que o “plano coletivo empresarial de assistência à saúde” não se enquadra em nenhuma das modalidades contratuais típicas, por revestir características próprias. Pode-se dizer que seja um misto de estipulação em favor de terceiro e contrato de seguro, que pode ser conceituado como o negócio em que uma pessoa jurídica contrata com outra, em favor dos empregados ou pessoas físicas de alguma forma vinculadas a uma delas, a prestação continuada de serviços ou cobertura de custos de assistência à saúde, mediante preço pago integral ou parcialmente pelos beneficiários.
A relação contratual que se forma do acordo de vontades entre o empregador e a operadora do plano com o intuito de criar um vínculo jurídico, tem a finalidade de estabelecer o dever de prestar um benefício (assistência à saúde) a terceiros, inicialmente estranhos ao contrato, mas que posteriormente, quando manifestam sua concordância com o negócio entabulado pelas outras duas partes, passam a ser credores concorrentes de uma delas (a operadora), e mesmo eventualmente de ambas, quando acontece de o empregador assumir a obrigação de arcar com parcela do prêmio pago à operadora (e torna-se inadimplente). Em verdade, há uma relação contratual dupla, ligando o empregador (empresa) à operadora e esta ao segurado (empregado). As relações entre empregado e a operadora só aparecem na fase de execução do contrato, quando aquele passa a ser credor, podendo exigir o cumprimento da prestação prometida, de acordo com as condições e normas ajustadas anteriormente (e separadamente) pelo empregador (em conjunto com a operadora).
A terceira pessoa da relação, o segurado/beneficiário, não precisa sequer ter aptidão para contratar, pois, por não intervir ou participar na formação do vínculo, apenas limitando-se a aceitá-lo, pode ser inclusive um menor (como ocorre, p.ex., no caso dos dependentes menores dos segurados) ou mesmo uma pessoa indeterminada no momento da contratação (mas desde que determinável).
Podemos anotar, depois de vistas as características principais do contrato em estudo, as seguintes conseqüências jurídicas desse tipo de avença:
a) como sujeito de direito dessa relação contratual, o empregado (segurado) vai poder exigir o cumprimento das normas e condições pactuadas no contrato, direito que, da mesma forma, fica assegurado ao próprio estipulante (o empregador). Na fase de execução contratual, tanto o empregador, na condição de estipulante das normas contratuais, bem como o segurado que se beneficia delas, podem exigir seu cumprimento, quanto às obrigações da operadora voltadas à prestação dos serviços de assistência à saúde;
b) o empregador, em nenhuma hipótese, pode exonerar a operadora dos deveres assumidos em relação aos terceiros segurados, ainda que estes não se reservem o direito de reclamar-lhes a execução. O empregado-segurado quando por algum meio manifesta sua aceitação, não necessita ressalvar o direito de reclamar a execução contratual, direito esse que decorre da própria natureza do contrato e de sua condição de sujeito de direito da relação jurídica negocial. Como a prestação do serviço deverá ser realizada em benefício do segurado, este se torna credor da operadora (seguradora), aperfeiçoando-se o ajuste no momento em que o aceita. A operadora se obriga fundamentalmente perante o segurado, embora não deixe de vincular-se também ao empregador. A exigibilidade da prestação passa ao beneficiário, sem que aquele a perca.
c) nas modalidades em que o empregador assume a responsabilidade pelo pagamento de parte do prêmio mensal, se deixa de honrar com esse compromisso no prazo de vigência inicial do contrato, o empregado (segurado) ou mesmo a seguradora têm o direito de exigir o cumprimento forçado dessa obrigação.
d) durante o prazo inicial de vigência do contrato, nem o empregador nem a operadora (seguradora) podem revogá-lo, mas pode acontecer de o segurado voluntariamente desligar-se do plano.
e) qualquer alteração durante a vigência do contrato, como, p. ex., modificação dos critérios de reajuste, mudança para outro tipo de plano dentre as seguimentações previstas na Lei 9.656/98 ou troca de prazos de carência, pressupõe a anuência dos consumidores (segurados), que podem se manifestar individualmente ou por meio de entidade representativa, já que, com a adesão deles e conseqüente início da execução do contrato, passam a ser sujeitos de direito e co-contratantes.
f) quando a empresa assume a “co-participação” no pagamento do plano, e torna-se inadimplente, deixando de pagar a parcela (ou parcelas) do prêmio a que está obrigada, a operadora assume a responsabilidade de disponibilizar planos de saúde individuais para os segurados, com o mesmo padrão de atendimento e cobertura, desde que estes complementem o preço, assumindo integralmente os custos com o pagamento da mensalidade. Além disso, a empresa inadimplente, se a inadimplência corresponder a uma (ou mais) parcela do prazo inicial de vigência do contrato, pode ser forçada judicialmente, pela operadora ou pelos segurados, a cumprir com a obrigação desfeita.
Em conclusão, podemos afirmar que os direitos do segurado em contrato (plano) coletivo de assistência à saúde são praticamente idênticos àqueles decorrentes da contratação direta individual, resumindo-se no direito que ele tem de exigir o cumprimento das normas e condições pactuadas. Em termos de regulamentação, o plano coletivo de assistência à saúde encontra-se no mesmo plano das demais relações contratuais de consumo, no que diz respeito à aplicação das normas de proteção do consumidor, em especial o CDC. Trata-se de negócio jurídico em que uma das partes assume a obrigação de prestar serviços em favor de pessoa indicada pelo outro contratante (estipulante), mediante remuneração, enquadrando-se perfeitamente nos conceitos legais de consumidor e fornecedor (arts. 2o. e 3o. do CDC) – que definem a natureza da relação contratual de consumo. O segurado (beneficiário) é consumidor, pois utiliza os serviços na condição de destinatário final (art. 2o.), enquanto que a operadora do plano se enquadra na definição de fornecedor, uma vez que presta serviços (art. 3o.) de assistência à saúde (do segurado), sendo esses serviços prestados mediante remuneração (par. 2o. do art. 3o.). A forma da contratação, com a intermediação do estipulante, no intuito de criar o vínculo jurídico que liga a operadora aos segurados (consumidores), não descaracteriza a natureza consumerista do ajuste.
Aplicação do princípio da conservação dos contratos de consumo ao plano coletivo de assistência à saúde
Visto que o contrato privado de assistência à saúde é contrato de consumo, quer seja ele de contratação individual ou de contratação coletiva (empresarial ou por adesão), e, como tal, regido pelas normas de proteção ao consumidor, um dos efeitos jurídicos desse enquadramento tem a ver com a “perpetuidade” das obrigações contratuais da operadora ou, para usar outra expressão, com a conservação do vínculo contratual por tempo indeterminado. Com efeito, uma vez expirado o prazo inicial de vigência de contrato dessa natureza, as partes contratantes – a empresa empregadora e a operadora do plano – não se liberam “ad nutum” do liame obrigacional, pois a extinção do vínculo contratual depende do consentimento dos segurados (os empregados, pessoas físicas).
O vínculo jurídico que prende as partes não se esvanece com o simples atingimento do termo final, do prazo inicial de vigência da relação contratual. Os efeitos jurídicos em contrato dessa natureza expandem-se e perpetuam-se no tempo, havendo uma continuidade, uma renovação automática das condições e normas contratuais. Isso se deve ao princípio da conservação dos contratos de consumo de longo prazo (ou, na terminologia cunhada por Cláudia Lima Marques, “contratos cativos de consumo”).
Como característica principal do plano de assistência à saúde, em ambas as suas modalidades (quer na forma do fornecimento direto de assistência médica quer na forma de reembolso das despesas), destaca-se o fato de envolver prestações de trato sucessivo. Trata-se de contrato de fazer de longa duração, que se prolonga no tempo, razão porque a moderna doutrina contratual vem identificando os contratos de seguro-saúde no contexto dos “contratos cativos de longa duração”[6] (ou “contratos pós-modernos”, como preferem outros).
Essa espécie de contrato caracteriza-se por criar uma “catividade” ou dependência dos clientes desses serviços (consumidores). São contratos que envolvem não uma obrigação de dar (para o fornecedor), mas de fazer; normalmente são serviços privados ou mesmo públicos, autorizados pelo Estado ou privatizados, mas sempre prestados de forma contínua, cuja execução se protrai no tempo[7]. Não são simples contratos de trato sucessivo, pois além da continuidade na prestação assume destaque o dado da “catividade”. Baseiam-se mais numa relação de confiança, surgida do convívio reiterado, gerando expectativas (para o consumidor) da manutenção do equilíbrio econômico e da qualidade dos serviços. O consumidor mantém uma relação de convivência e dependência com o fornecedor por longo tempo (às vezes por anos a fio), movido pela busca de segurança e estabilidade, pois, mesmo diante da possibilidade de mudanças externas na sociedade, tem a expectativa de continuar a receber o objeto contratualmente previsto. Essa finalidade perseguida pelo consumidor faz com que ele fique reduzido a uma posição de cliente-“cativo” do fornecedor. Após anos de convivência, pagando regularmente sua mensalidade, e cumprindo outros requisitos contratuais, não mais interessa a ele desvencilhar-se do contrato, mas sim de que suas expectativas quanto à qualidade do serviço oferecido, bem como da relação dos custos, sejam mantidas. Também contribui para seu interesse na continuação da relação contratual, a circunstância de que esses serviços (de longa duração) geralmente são oferecidos por um só fornecedor ou por um grupo reduzido de fornecedores, únicos que possuem o poder econômico, o know how ou a autorização estatal que lhes permite colocá-lo (o serviço) no mercado. Nessa condição, a única opção conveniente para o consumidor passa a ser a manutenção da relação contratual.
A peculiaridade desses contratos (de prestação de serviços de longa duração), portanto, fez com que aparecesse a necessidade de um avanço ainda maior na teoria contratual, de forma a proteger os consumidores da relação de dependência que adquirem com o fornecedor. A sociedade de consumo no estágio atual, onde os serviços assumem indiscutível importância, pois passam a ser imprescindíveis para a vida e conforto do homem, fomenta o aparecimento desse tipo contratual, socialmente relevante e merecedor de uma nova disciplina, de modo a fornecer respostas eqüitativas à nova realidade.
Assim, assumindo o princípio da conservação dos contratos especial destaque nessa modalidade contratual, cuida-se de evitar que o fornecedor libere-se do vínculo contratual, sempre que este não lhe seja mais favorável ou interessante (rescindindo, denunciando, resolvendo o vínculo, cancelando o plano etc.).
Com esse exato propósito é que sobreveio a regra do artigo 22, X (parte final), do Decreto No. 2.181, de 20 de março de 1997, que, complementando a lista de cláusulas abusivas do art. 51 do CDC, prevê a aplicação de multa ao fornecedor que fizer inserir cláusula que lhe permita, nos contratos de longa duração ou trato sucessivo (inclusive nos que envolvem operação securitária), “o cancelamento sem justa causa ou motivação, mesmo que dada ao consumidor a mesma opção”.
Por força dessa norma, passando o contrato de plano ou seguro-saúde a vigorar por prazo indeterminado, é nula (por abusiva) a cláusula que confere o direito de rescisão unilateral e sem direito à indenização à outra parte, através de simples pré-aviso pelo interessado. Tal impedimento ao desligamento do vínculo só cede diante de um justo motivo, devidamente comprovado e que impeça a continuidade das relações obrigacionais em plena comutatividade, como, aliás, está a indicar a própria redação do dispositivo normativo mencionado (art. 22, X, do Dec. 2.181/97).
É importante destacar que essa regra (art. 22, X, do Dec. 2.181/97) aplica-se também aos contratos coletivos de plano de saúde, que, por envolver prestações de trato sucessivo, protraindo-se no tempo, gera a “catividade” ou dependência do segurado empregado. Ao filiar-se a plano dessa natureza, o empregado envolve-se numa relação de confiança com a operadora (e também com a empresa empregadora, no que tange à expectativa de seu cumprimento quanto ao pagamento de sua cota), tornando-se parte “cativa” dessa relação, que não pode sofrer solução de continuidade, sob pena de levá-lo (o segurado) à uma situação de insegurança e instabilidade.
Tanto é verdade que os contratos coletivos de plano de saúde merecem o mesmo tratamento, quanto à indeterminação do prazo de vigência, que a Lei 9.656/98, que regulamentou a prestação dos serviços de saúde suplementar, não distinguiu entre contratos individuais e coletivos, juntando-os em um único conceito (“plano privado de assistência à saúde”), exposto no inc. I do art. 1º (já na redação da MPV nº 2.177-44, de 24.8.2001). Além do mais, seu art. 13 explicitou o princípio da conservação dos contratos de planos e seguros privados de assistência à saúde, estabelecendo que “têm renovação automática a partir do vencimento do prazo inicial de vigência, não cabendo a cobrança de taxas ou qualquer outro valor no ato da renovação”. A MPV n. nº 2.177-44, que deu nova redação ao mencionado art. 13 não alterou essa circunstância, mantendo a mesma unificação de tratamento jurídico quanto a ambas modalidades de planos, quer seja coletivo quer seja individual. Tão-somente, no seu parágrafo 1º, estabeleceu que os contratos individuais devem ter prazo (inicial) mínimo de vigência de um ano[8].
Nesse sentido, todo e qualquer plano coletivo de assistência à saúde deve ser contratado sem determinação de prazo. Se acontecer, no entanto, de ser estabelecido prazo determinado de vigência, a prorrogação do contrato é automática ao final desse prazo, mantendo-se as mesmas normas e condições do instrumento contratual prorrogado. Se a empresa empregadora contratante, ao final desse prazo, não mais desejar permanecer com a obrigação da “co-participação”, que é a parte efetivamente paga por ela como contraprestação aos serviços de saúde prestados aos seus empregados, pode livrar-se do vínculo a partir de então (do término do prazo inicial de vigência), mas a operadora permanece vinculada, sendo obrigada a oferecer, nesse caso, planos individuais com a mesma amplitude de cobertura, assumindo o empregado o percentual antes suportado pela empresa empregadora.
A abusividade da cláusula de reajustamento pelo critério da “sinistralidade”
Um outro efeito jurídico do enquadramento do plano coletivo de saúde na categoria de contrato de consumo tem a ver com a limitação dos reajustes, imposta no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). A operadora não pode reajustar unilateralmente os preços (as mensalidades) pagos pelos segurados, em razão da proibição contida no inc. X do art. 51 desse estatuto.
Em matéria de plano de assistência à saúde, como se sabe, são admissíveis três formas de reajuste, a saber: a) em razão da variação dos custos; b) em função da mudança de faixa etária; e c) mediante revisão técnica. No contrato (plano ou seguro) de assistência à saúde, como em qualquer outro, pode ser convencionado (ou posto em regulamento estatal) o reajustamento dos valores com base em índice adotado oficialmente como padrão de correção monetária, de forma a permitir acompanhar a variação dos custos operacionais. Além do reajuste que objetiva evitar a defasagem dos preços em função da inflação (variação dos custos operacionais), também é admissível que se prevejam as situações e momentos determinados no tempo em que podem ser modificados os valores inicialmente previstos, para atender à peculiaridade da atividade securitária, que se fundamenta na ciência atuarial, onde os custos são dimensionados em função das condições de riscos do bem segurado. Especificamente no contrato de plano de saúde, a idade do segurado (e dos seus dependentes, se for o caso) é o fator mais determinante quando se cuida da assunção, pela seguradora, dos riscos futuros à sua saúde (do segurado), uma vez que é estatística e cientificamente comprovada a maior probabilidade de uma pessoa de idade avançada ser mais suscetível às doenças em geral, necessitando, então, utilizar-se dos serviços de assistência médico-hospitalar com mais freqüência. Assim, não se afigura descabida a previsão de modificação dos valores (mensalidades) quando da passagem do usuário para faixa etária mais elevada[9]. As regras para aplicação de reajuste por mudança de faixa etária estão previstas na própria Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/98), bem como no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03). Como terceira categoria de reajuste dos planos de saúde, ainda temos a chamada “revisão técnica”, que vem a ser um procedimento excepcional para eliminar ou corrigir situações de desequilíbrio das carteiras mantidas pelas operadoras. Quando o desequilíbrio na carteira de planos de uma determinada operadora atinge patamar tal que possa comprometer sua liquidez e solvência, ela pode recorrer a esse procedimento da “revisão técnica” e, por meio dele, eventualmente ser autorizada a proceder ao “reposicionamento dos valores das contraprestações pecuniárias” pagas pelos segurados[10].
Acontece que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não controla os reajustes da mesma forma para todo e qualquer tipo de plano. O controle difere de acordo com a modalidade do contrato de prestação de serviços de saúde, ou seja, depende de a contratação se dar de maneira coletiva ou através de contrato individual. A política da ANS é de dar uma maior proteção aos planos contratados por pessoas físicas (planos individuais e familiares), reservando para os coletivos apenas uma atividade de “monitoração”. A justificativa é de que, nos contratos firmados com pessoas jurídicas (planos coletivos e empresariais), são realizadas negociações diretas entre os contratantes. “Nestas negociações, os contratantes têm importante poder de barganha porque a Lei dos Planos de Saúde garante aos usuários destes planos o direito de não terem de cumprir carência antes de poderem receber atendimento à saúde. Assim, o contratante pessoa jurídica pode trocar de operadora sem prejudicar ao grupo de pessoas que representa, caso não concorde com o índice de reajuste pleiteado pela operadora”, conforme consta da justificativa da própria ANS[11]. Em suma, em razão de enxergar acentuado poder de barganha nas empresas que contratam planos de saúde para seus empregados ou associados – o que, por via reflexa, implicaria em conferir a eles (segurados) uma proteção satisfatória -, a ANS não regulou a forma como se pode implementar alguns tipos de reajuste. Por exemplo, em relação ao reajuste em função da variação dos custos, a ANS fixa anualmente um índice máximo de aumento das mensalidades que deve ser observado pelas operadoras nos planos individuais. Não faz o mesmo quanto aos planos coletivos; apenas “monitora” os reajustes praticados, exigindo que as operadoras informem os índices adotados. Também no que diz respeito ao reajuste por meio da revisão técnica, a resolução normativa que a ANS baixou sobre o assunto não engloba os planos coletivos[12].
Os contratos coletivos ficam, portanto, livres para incluir regras próprias para esses tipos de reajuste. Para corrigir desequilíbrios decorrentes de variação de custos assistenciais ou da freqüência da utilização, as operadoras criaram então mecanismos de reajustes através de cláusulas contratuais que permitem a alteração da mensalidade na hipótese de aumento da “sinistralidade”. A previsão de recálculo do prêmio em função da “sinistralidade” funciona assim: toda vez que o índice de sinistros pagos atinge determinado percentual, em função do prêmio cobrado em período imediatamente anterior (geralmente de três meses), a seguradora fica autorizada a fazer o cálculo de novo prêmio, segundo fórmula prevista na mesma cláusula. A questão é saber se cláusula de tal natureza pode ser livremente inserida nesses tipos de contratos (coletivos).
Parece-nos que não. A validade desse tipo de cláusula pode ser contestada diante de normas superiores de proteção ao consumidor. Como já expusemos acima, o contrato (plano) de prestação de serviços de saúde, ainda que contratado de forma coletiva, por meio da intermediação de empresa que participa diretamente da negociação em favor de seus empregados ou associados, inclui-se na categoria dos contratos de consumo e, assim, está submetido ao regramento maior do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Ainda que a agência reguladora que tem o papel de fiscalizar a atuação das operadoras de planos e seguros-saúde – a ANS – não tenha regulado estritamente a forma de reajuste desses contratos, eles não podem ser negociados ao arrepio da legislação e dos princípios de proteção do consumidor.
Nesse sentido, a cláusula que permite o reajuste do prêmio em razão da sinistralidade viola a disposição contida no inc. X do art. 51 do CDC, que impede o fornecedor de reajustar unilateralmente os preços (as mensalidades) dos seus serviços. Com efeito, ao submeter o reajuste a fórmula de variação que não permite, ao segurado (consumidor), saber de antemão os seus ônus contratuais, a cláusula é atingida pela mácula da abusividade. É imprescindível que qualquer aumento contratualmente previsto seja veiculado através de fórmula claramente definida, de sorte a fornecer antecipadamente ao contratante que suporta a majoração dos valores uma perfeita noção dos ônus que lhe serão carreados em cada etapa contratual. Limitando-se simplesmente a remeter a fórmula, cujo resultado depende de dados elaborados e manipulados unilateralmente pela operadora, sem prévia definição do percentual do aumento, indiretamente entrega-se ao fornecedor (segurador) o poder de variação do preço contratual, sendo nula de pleno direito tal estipulação, nos termos do art. 51, X, do CDC.
Sobre a cláusula que permite uma revisão unilateral dos preços contratados, em caso de aumento nos preços dos insumos e serviços dos setores relacionados com os serviços objeto de contrato de prestação de serviços de saúde, já tinha assim me manifestado em sede doutrinária:
“A revisão do contrato, quando circunstâncias supervenientes altera a situação inicial de equilíbrio, é direito de qualquer uma das partes, daí porque pode o fornecedor (segurador) perseguir esse direito em juízo, quando ocorre uma excessiva onerosidade em função da variação dos custos iniciais. Havendo elevado aumento nos preços dos produtos e serviços médico-hospitalares, em decorrência de circunstâncias imprevisíveis que provocam alterações profundas em alguns setores da economia relacionados com a prestação de assistência à saúde, onerando em demasia as obrigações contratuais inicialmente assumidas pelo fornecedor, pode este perfeitamente invocar a cláusula rebus sic stantibus e pedir a revisão judicial do contrato.
O que não pode, no entanto, é prever potencialmente para si o direito de alteração contratual de forma unilateral, na hipótese de variação dos elementos que influenciam os custos de manutenção da prestação dos serviços assumidos. Essa revisão contratual só pode ser feita em juízo, onde o fornecedor tem de comprovar a quantidade do aumento, para proporcionar ao julgador proceder a uma justa e proporcional majoração das mensalidades. Caso contrário, fica o fornecedor com o poder de apreciar unilateralmente a variação dos custos e decidir, a seu talante, o montante da majoração a ser imprimida ao contrato.
É de fundamental importância e de acentuada conotação sócio-política a aceitação da impossibilidade da revisão unilateral dos valores contratuais, de maneira a se evitar sobretudo uma prática comercial irregular que parece dominar o mercado de seguros. Como forma de captação de clientes, as empresas que exploram os serviços de assistência médico-hospitalar oferecem inicialmente baixos valores para os prêmios dos seguros, mas, gradativamente, aumentam esses valores, justamente amparadas no mecanismo contratual que lhes permite, através do superdimensionamento dos custos dos serviços, praticar a majoração dos preços. Essa prática, manifestamente abusiva e ilegal, deve ser combatida e, mais do que isso, devem ser responsabilizadas as empresas que assim se comportam, através da aplicação de pesadas multas. Alguns dos contratos de seguro-saúde oferecidos no mercado conformam-se em verdadeiras armadilhas para o consumidor; além da baixa qualidade dos serviços que efetivamente proporcionam, sujeitam o segurado, quando já cativo e dependente, à vontade suprema do segurador, sendo-lhe fácil alterar a equação-financeira inicial para aumentar os seus lucros”[13].
Ainda outro argumento pode ser levantado contra a cláusula que prevê aumento em razão da “sinistralidade”. Ela também pode ser considerada abusiva à luz do inc. IV do art. 51, igualmente do CDC, já que consagra vantagem exagerada para a seguradora. De fato, ao permitir que o preço do contrato possa ser reajustado sempre que houver um aumento na utilização dos serviços, a cláusula elimina a característica aleatória do contrato de seguro (plano) de saúde. Como se sabe, através do contrato de seguro o segurador assume a obrigação de garantir a outra parte (o segurado) contra os prejuízos resultantes de riscos futuros, previstos no instrumento contratual mas de acontecimento incerto. É esse evento futuro e incerto que o contrato de seguro garante que mostra sua característica aleatória. O segurado paga o prêmio e o segurador o recebe, ambos sem saber se o evento ocorrerá ou não. Se o segurador adquire o direito de se precaver, mediante aumento automático do prêmio, contra a ocorrência do evento futuro, desaparece a aleatoriedade do contrato. É o que acontece, na prática, com a adoção da cláusula de reajuste por “sinistralidade”. Precavendo-se da eventualidade de ter que arcar com custos acima de um certo patamar, a operadora elimina a aleatoriedade do contrato em relação à sua pessoa, transferindo ônus que, em princípio seria seu, para a outra parte (o segurado). Todos os riscos, que são próprios da atividade securitária, são transferidos para a outra parte, o segurado. Como se vê, a par de criar vantagem exagerada para o fornecedor (operadora), por manter os custos de operação em patamar que lhe convenha (eliminada a aleatoriedade própria do contrato de seguro), a cláusula de reajuste baseada na “sinistralidade” também impõe à outra parte (o conjunto de beneficiários do plano) uma onerosidade excessiva, na medida em que a sujeita a aumentos aleatórios, desfigurando o objeto do contrato de seguro. Considerando a natureza e conteúdo do contrato de seguro, é imperativo reconhecer a patente abusividade da cláusula de reajuste em função da “sinistralidade”.
Isso não significa concluir que os contratos de plano de saúde coletivo não possam conter mecanismos de reajustes periódicos. Como qualquer outro contrato de consumo, pode conter cláusula de reajuste, mas desde que o faça de maneira clara, permitindo aos demais contraentes uma perfeita noção dos percentuais de aumento que lhe serão impostos ao longo da sua execução. Sem essa completa e antecipada definição dos deveres e ônus contratuais assumidos, o segurado (consumidor) é colocado em situação de completa submissão diante do fornecedor (operadora do plano).
Não fica descartada, ainda, a possibilidade de ser feita uma revisão judicial do contrato (plano de saúde coletivo). Quando circunstâncias supervenientes alteram a situação inicial de equilíbrio, surge como direito de qualquer uma das partes, daí porque pode o fornecedor (segurador) perseguir esse direito em juízo, quando ocorre uma excessiva onerosidade em função da variação dos custos iniciais. Havendo elevado aumento nos preços dos produtos e serviços médico-hospitalares, em decorrência de circunstâncias imprevisíveis que provocam alterações profundas em alguns setores da economia relacionados com a prestação de assistência à saúde, onerando em demasia as obrigações contratuais inicialmente assumidas pelo fornecedor, pode a operadora perfeitamente invocar a cláusula rebus sic stantibus e pedir a revisão judicial do contrato (provando essas alterações).
Essa via da “judicialização do procedimento” de reajuste, no entanto, não é a que oferece melhor solução prática. Os juízes teriam imensas dificuldades para avaliar a justeza e a adequada proporção dos reajustes em cada um dos contratos que fossem levados ao seu conhecimento. Sem o aparato técnico e os recursos hoje existentes na agência reguladora específica para o setor de saúde suplementar (a ANS), o Judiciário se mostraria ineficiente, isso sem contar com o agravamento dos problemas que sua reconhecida morosidade provocaria.
O ideal é que a ANS assuma uma política mais extensa e adequada. A atual política que exerce, no caso dos reajustes dos planos coletivos, limitando-se a um trabalho de “monitoramento”, data vênia deixa muito a desejar. O contrato de plano ou seguro-saúde, seja ele contratado coletivamente ou não, tem forte conotação social, devendo a regulamentação estatal nesse campo ser exercida de maneira mais presente, especialmente no que tange ao aspecto dos reajustes. A política do simples “monitoramento” revela-se, senão uma clara omissão, uma espécie de intencional opção política em favor do setor economicamente mais forte (o conjunto de operadoras e seguradoras de planos de saúde). É mister que a ANS exercite um poder maior de ação e de controle dos preços dos planos coletivos.
Não se diga que a ANS nessa matéria se prende à execução da lei. O comportamento da ANS está mais para uma opção política do que propriamente de cumprimento de uma diretriz legal. Não se nega que, em alguns aspectos, o legislador atribuiu um tratamento claramente diferenciado entre as categorias de planos de saúde[14]. Mas no que tange à política diferenciada de controle de reajustes, onde a ANS fixa o teto máximo de reajuste anual do plano de saúde contratado por pessoas físicas (contrato individual ou familiar) e reserva para o contrato coletivo apenas uma tarefa de “monitoramento”, cuida-se verdadeiramente de opção política, pois nada há na lei que imponha ou justifique esse comportamento discriminatório. Observe-se, por exemplo, a questão do reajuste por revisão técnica. Inicialmente, através da Resolução RDC n. 27, de 26 de junho de 2000, a regulamentação do procedimento para esse tipo específico de reajuste abrangia, além dos contratados individualmente, os planos coletivos que não fossem “financiados total ou parcialmente pela pessoa jurídica empregadora”. Posteriormente, uma outra resolução (a Resolução Normativa n. 19, de 11 de dezembro de 2002) limitou a previsão regulamentar apenas “aos planos individuais ou familiares e àqueles operados por entidades de autogestão não patrocinada cujo financiamento se dê exclusivamente por recursos de seus beneficiários” (art. 2o.). Como se vê, a prática de controle de reajustes em planos de saúde é matéria afeta exclusivamente ao poder da agência regulamentar do setor de saúde suplementar, que tem deixado transparecer sua opção política de deixar os contratos coletivos fora do alcance do seu poder regulatório.
Deixar essa categoria de plano de saúde fora dos limites dos reajustes fixados anualmente (e mesmo dos procedimentos de revisão técnica), como se disse, não parece ser a melhor política. Isso tem gerado insegurança e conflitos que terminam no Judiciário. Os planos contratados de forma coletiva representam hoje 80% do mercado nacional de planos de saúde[15]. As peculiaridades da contração não justificam o tratamento desigual entre os planos, no que se refere ao controle de reajustes, sobretudo no que tange àqueles que são contratados coletivamente (com a intermediação da empresa empregadora) mas são financiados exclusivamente pelos consumidores (segurados). Quer seja participante de um plano coletivo ou não, o segurado sempre apresenta vulnerabilidade técnica e inferioridade econômica diante da operadora.
Informações Sobre o Autor
Demócrito Reinaldo Filho
Magistrado em Pernambuco.