A necessidade de novos contornos jurídicos acerca do instituto da sexualidade: um estudo à luz da constitucionalização do direito privado

Resumo: O presente estudo se pauta na análise do direito à sexualidade, enquanto espécie dos direitos da personalidade. Averigua as espécies de sexualidade existentes no mundo contemporâneo e os reflexos que cada qual ocasiona nas searas social e jurídica, demonstrando os aspectos polêmicos e controversos bem como trazendo a forma pela qual tem se dado as decisões judiciais acerca da matéria. Analisa criticamente, ainda, se os direitos e garantias constitucionais têm sido preservados em litígios que abarcam o tema. Por fim, traz possíveis soluções para as problemáticas levantadas, se valendo, sobretudo, de uma visão constitucionalizada do Direito Civil.

Palavras-chave: Sexualidade. Constitucionalização. Estado Democrático de Direito.

Abstract: The present study is based on the analysis of the right to sexuality, as a species of personality rights. It investigates the species of sexuality existing in the contemporary world and the reflexes that each causes in the social and legal fields, demonstrating the controversial and controversial aspects as well as bringing the way in which the judicial decisions about the matter have been given. It also critically analyzes whether constitutional rights and guarantees have been preserved in litigation covering the subject. Finally, it brings possible solutions to the problems raised, using, above all, a constitutional view of Civil Law.

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Keywords: Sexuality. Constitutionalisation. Democratic of Law State.

Sumário: Introdução. 1. Problemáticas jurídicas acerca do instituto da sexualidade. 2. Possíveis soluções: Uma análise acerca da constitucionalização do Direito Privado. Conclusão. Referências.

Introdução

O Direito Civil vem passando, nos últimos tempos, por diversos obstáculos frente ao dinamismo que o cenário social hodierno vem apresentando. Algumas problemáticas começam a ser levantadas em relação a vários de seus institutos, mormente no que diz respeito ao sexo civil, o qual passou, nos últimos anos, por profundas mudanças, sendo o que se pretende tratar no presente trabalho.

No que diz respeito à sexualidade, Sá e Naves asseveram que a “sexualidade é antes de tudo cultural. Formação histórica que constitui importantes aspectos do ser humano, abrangendo nuances de cunho biológico, psíquico e comportamental, que se integram entre si. A integração desses aspectos é denominada status sexual. A partir do status sexual, surge, para o indivíduo, o direito à identificação sexual, que, por sua vez, se insere no campo dos direitos da personalidade” (SÁ; NAVES, 2015, p.318).

No Brasil, inflamada e polêmica é a discussão a despeito da sexualidade. Como observa Caio Mário, o atual “século, tem sido marcado por um problema que envolve comportamento sexual, indagações jurídicas, moralidade pública, tolerância ou aceitação pelos meios sociais, participação da mídia e discussão científica” (PEREIRA, 2001, p. 38).

Introdutoriamente, vale esclarecer que, num contexto histórico, desde o início da década de 80, a sexualidade era aferida apenas pelo aspecto biológico – ou anatômico -, observadas as condições físico-genital de cada indivíduo. Ocorre que, com o passar dos anos, a medicina, mormente o campo da psiquiatria, vislumbrou casos de pessoas que nasciam com determinado sexo, o biológico, mas, psiquicamente, desejavam viver e serem aceitas pela sociedade como sendo do sexo oposto, situação em que a medicina tratava como um transtorno mental, então denominado como transtorno de identidade de gênero. São os casos do “homossexualismo, bissexualismo e transexualismo” (PEREIRA, 2001, p. 38).

No transexualismo, por exemplo, o indivíduo rejeita o sexo anatômico que possui, tendo em vista que, em seu fator psíquico, deseja viver e ser aceito pela sociedade como sendo do sexo oposto. “Sendo o fator psicológico predominante na transexualidade, o indivíduo identifica-se com o sexo exposto, embora dotado de genitália externa e interna de determinado sexo” (ACQUAVIVA, 2009, p.844). Em sendo assim, diante da divergência do sexo anatômico e do sexo psíquico do transexual, dizia-se existir um “missexualismo psíquico” (SUTTER, 1993, p.106), o que era tratado como uma patologia mental para a medicina.

É mister tecer que, apesar da antiquada posição do transexualismo como forma patológica da sexualidade, o movimento que se apresenta é o de reconstrução dos paradigmas técnico-conceituais da psiquiatria, no que diz respeito à sexualidade. No cenário internacional, em razão de grandes campanhas e manifestações realizadas pelas classes interessadas mundo a fora, os manuais de psiquiatria vêm demonstrando sinais de que ser transexual não será mais sinônimo de ter um transtorno ou uma disforia mental. (BENTO; PELÚCIO, 2012).

Com os avanços da tecnologia e, sobretudo, da ciência medicinal, visando possibilitar a adequação do sexo anatômico ao sexo psíquico da pessoa transexual, o Conselho Federal de Medicina veio, em 1997, por meio da resolução CFM n. 1482/97, autorizar a cirurgia de redesignação de sexo, hoje denominada de transgenitalização[1]. De lá pra cá, várias foram as regulamentações do Conselho Federal de Medicina acerca da matéria, e, deploravelmente, o Direito não vem acompanhando a dinâmica medicinal. O Código Civil, em via oblíqua, parece, inicialmente, surgir como empecilho às intervenções médicas de redesignação de sexo, ao dispor que, exceto “por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes” (BRASIL, 2016, p.156).

Cediço é que a despeito da sexualidade, ainda não há no ordenamento jurídico brasileiro, ato normativo capaz de garantir uma eficaz integração social àqueles que optam por determinada forma de sexualidade, havendo uma escancarada marginalização social de determinados grupos minoritários, em virtude de preconceitos e intolerâncias demonstrados das mais diversas formas, seja por intermédio da mídia, da política, do esporte, da educação, do trabalho, dentre outros, o que acaba por ocasionar um completo açoitamento a inúmeras garantias fundamentais.

No cenário contemporâneo do Direito Privado, especialmente no âmbito do Direito Civil, se vê, em verdade, muitos esforços despendidos pela jurisprudência[2] e pela doutrina, no sentido de regularem situações pertinentes à sexualidade, mas, por muitas vezes, em virtude da ausência de tratamento legislativo, magistrados acabam por proferirem decisões conflitantes nos litígios oriundos do tema, causando, o próprio Estado, danos irremediáveis a determinadas pessoas, traduzindo numa demasiada insegurança jurídica ao Estado Democrático de Direito.

Entrementes, a Constituição é a norma suprema do sistema jurídico brasileiro, à qual deve obediência todos os demais atos normativos, o que não é diferente com o Direito Civil. Sob a ótica moderna do Direito Civil constitucionalizado, deve-se buscar na Constituição todo o fundamento principiológico da ciência civilista, de modo a permitir que os valores fundamentais sejam a base para se buscar a paz social (GONÇALVES, 2015). Neste diapasão, é oportuno esclarecer que, inobstante o Código Civil não tenha tratado, com a atenção merecida, sobre a sexualidade, deve-se observar, sempre em primeira linha, os valores fundamentais, entabulados pela Constituição da República, aplicáveis ao instituto, tais como a igualdade substancial, a solidariedade social e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana.

“Em linha de coerência com o que se afirma, é de se perceber que os problemas atuais (muito polêmicos e controversos) que permeiam a civilística reclamam solução a partir dos princípios constitucionais e da valorização existencial da pessoa humana” (FARIAS; ROSENVALD, 2006). Igualmente, a ênfase que se dá aos princípios e valores constitucionais proporciona a tutela a grupos minoritários, desfavorecidos e marginalizados, tais como as minorias étnicas, religiosas e sexuais.

Neste cenário, acerca do sexo civil, é iminente a necessidade de uma nova visão do Direito Civil, a partir de valores contemporâneos, oriundos da legalidade constitucional. A possibilidade da cirurgia de transgenitalização, a mudança do registro civil do transexual, o casamento homoafetivo, o direito à vida familiar e à integração social do transexual, são exemplos de institutos não tratados pelo Direito Civil, institutos sobre os quais magistrados do Brasil inteiro já vêm proferindo decisões das mais variadas. Quer-se, em verdade, um Direito Civil que propicie um cenário jurídico capaz de estar em harmonia com o mundo contemporâneo e com a ordem constitucional do Estado Democrático de Direito. É neste sentido que se estabelece, portanto, o sexo civil, como tema do presente trabalho.

1. Problemáticas jurídicas acerca do instituto da sexualidade

Quando se fala em sexualidade, como direito da personalidade, depara-se, em verdade, com várias problematizações acerca do sexo civil, tendo em vista o reflexo causado pelo instituto nas esferas social, política, medicinal, jurídica, dentre outras.

Dentre as diversas formas de orientação sexual emergem indagações das mais variadas, tais como: Qual seria a diferença entre o sexo genético, gonático, fenotípico, psicológico, psíquico, civil e jurídico? Quais seriam as espécies de sexualidade existentes no contexto social contemporâneo? Heterosexualismo, homosexualismo, bisexualismo, transexualismo e pansexualismo seriam espécies exaustivas? E ainda, na opção por determinada espécie de sexualidade, como ficaria o direito à vida familiar em cada uma delas? Como ficariam possíveis sociedades conjugais? Quanto às relações de filiação e paternidade, estas sofreriam alguma alteração? Em caso de transexualidade, como ficariam sexo e nome no registro civil após a cirurgia de transgenitalização? Seria possível a implementação do “nome social” no Brasil?

Enfim, várias são as problemáticas, oriundas do tema, que refletem diretamente em vários institutos civilísticos, para as quais o Direito tem de ofertar as devidas respostas. Não se pode tapar os olhos para os problemas que vêm surgindo, acerca da sexualidade, e fazer pensar que está tudo “sob controle”. Inúmeros indivíduos vêm sendo lesados em seus direitos e garantias basilares.

Embora sabido que a sexualidade é espécie dos direitos da personalidade e, portanto, goza de tutela jurídica, sabe-se, também, que mesmo após a revolução sexual[3], ainda existem muitos tabus e preconceitos acerca da matéria. Corroborando com o que ora se afirma, Ceccarelli já relatava, no início do século presente, casos fáticos que demonstravam atitudes intolerantes contra determinados grupos sexuais, veja: “Recentemente a mídia noticiou que uma professora de uma escola pública de São Paulo teria obrigado que um aluno de quatro anos lavasse a boca com sabão por ter beijado um colega. Nos USA um aluno de sete anos foi indiciado por assédio sexual por ter abraçado uma colega!”. (CECCARELLI, 2000, p. 19).

E segue o referido autor, relatando “sobre um renomado colégio da Capital paulista que estava ameaçando de expulsão um aluno que se declarou homossexual e disse estar apaixonado por um colega” (CECCARELLI, 2000, p. 19).

Não é diferente o que ocorre nos dias atuais. A título de exemplo vale averiguar o que diz o atual Deputado Federal Jair Bolsonaro, para quem “ter filho gay é falta de porrada” (BOLSONARO, 2014).

Diante da grande polêmica a despeito da sexualidade, e da ausência de regulamentação acerca do tema, magistrados dos mais variados cantos do país vêm proferindo diversas decisões conflitantes quando o litígio versa sobre sexualidade, gerando, por conseguinte, profunda insegurança jurídica à ordem pública. Neste diapasão, nunca é demais lembrar a polêmica e memorável decisão, versando agora sobre transexualidade, proferida por um juiz da comarca de São Paulo, trazida por Sílvio Rodrigues: “Caso muito rumoroso, que se circunscreveu à órbita criminal, ocorreu na cidade de São Paulo, onde famoso cirurgião operou e tratou de transexual, transformando-o praticamente em pessoa de outro sexo. Realmente, após extirpar seus órgãos masculinos, o cirurgião, com uma excepcional habilidade, dotou-o de um corpo feminino, com seios e vagina, enfim, com o gesto e desenvoltura de uma mulher. Usei o advérbio praticamente, pois, como não podia deixar de ser, não se constituíram os órgãos internos, como por exemplo o útero. Verdade, entretanto, é que o Ministério Público, ao ter ciência do fato, denunciou o sábio cirurgião por crime de lesão corporal de natureza grave, logrando obter, em primeira instância, sua condenação e detenção de dois anos, beneficiado o réu com sursis, por se tratar de primário. Felizmente o Tribunal de Apelação deu provimento ao recurso e entre as razões de decidir, houve o reconhecimento de que a vítima apresentava uma personalidade feminina, pensava como mulher e ao depor no processo, revelou-se extremamente feliz com o resultado do tratamento que lhe havia devolvido seu verdadeiro sexo”. (RODRIGUES, 1998, p. 89).

Observa-se que ao reformar a decisão do juízo a quo, o tribunal levou em consideração a extrema felicidade que a vítima, do suposto delito, sentiu com a adequação de seu sexo biológico ao seu sexo psíquico. É esse um dos valores que o Direito Privado deve seguir. A busca da felicidade, da solidariedade e o respeito à dignidade humana. “Não é justo que se imponha a um semelhante o suplício de ser aquilo que ele não é, sob pena de se lhe negar o superior direito à felicidade” (GAGLIANO; FILHO, 2013, p. 208).

No mesmo sentido, ainda se referindo a transexualidade, Maria Berenice Dias aduz que: “Psicanalistas norte-americanos consideram a cirurgia corretiva do sexo como a forma de buscar a felicidade a um invertido condenado pela anatomia. Segundo Edvaldo Souza Couto, o que define e caracteriza a transexualidade é a rejeição do sexo original e o consequente estado de insatisfação. A cirurgia apenas corrige esse ‘defeito’ de alguém ter nascido homem num corpo de mulher ou ter nascido mulher num corpo de homem”. (DIAS, 2001, p. 123).

Nesta  senda, com base na constitucionalização do Direito Civil, afirma-se que a ciência civilista, deve buscar permitir que os valores fundamentais sejam a base para se buscar a paz social, devendo observar sempre, em primeira linha, aqueles valores entabulados pela Constituição Federal como verdadeiros corolários do Estado Democrático de Direito, tais como a igualdade substancial, a solidariedade social, a dignidade da pessoa humana, dentre outros.

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No contexto social hodierno, é evidente que determinadas classes sociais, em razão de suas respectivas opções sexuais, acabam por serem marginalizadas, o que contraria diversos direitos e garantias fundamentais, contribuindo para uma verdadeira subversão do sistema constitucional. A perseguição e a intolerância se apresentam intensas em diversos tratamentos da pessoa humana, tudo em razão da opção por determinadas orientações sexuais. E o Direito Privado se mostra estanque na tratativa de tais enlaces.

Nesse sentido, o problema que se apresenta pode ser solidificado com a seguinte indagação: Qual medida deve-se tomar para que haja uma verdadeira ruptura com o paradigma atual do Direito privado e a consequente formação de uma nova visão do fenômeno civilista, em compasso com o mundo contemporâneo e eficaz na garantia dos direitos fundamentais?

É o que se passa a verificar.

2. Possíveis soluções: Uma análise acerca da constitucionalização do Direito Privado

Em primeira análise, como mencionado no item anterior, por versar, o tema, de matéria interdisciplinar, acredita-se que medidas têm de ser tomadas em diversas esferas, mormente nas esferas social e jurídica, respectivamente.

 Sob o ponto de vista social, por exemplo, entende-se que o Poder Público, pautado nas atribuições que lhe são impostas pela Constituição Federal, deveria, em tese, se valer de políticas públicas capazes de propiciar uma verdadeira integração social entre pessoas das mais variadas orientações sexuais. Educar a população, esclarecendo as espécies de sexualidade existentes, ajudaria, a princípio, erradicar a marginalização de determinados grupos. Investir em palestras, seminários, disciplinas obrigatórias nos diversos cursos de universidades, e inclusive nos ensinos fundamental e médio, seria um pontapé inicial para uma possível integração social.

Acredita-se, em verdade, que uma sociedade mais bem esclarecida e orientada a despeito do tema, contribuiria para que houvesse uma verdadeira desmistificação e abolição de dogmas e pensamentos por vezes arcaicos e ultrapassados, que acabam colidindo frontalmente com os direitos e garantias fundamentais tão batalhados para se conquistar num, não muito longínquo, contexto histórico. Uma sociedade bem orientada e educada, cooperaria para uma comunidade mais fraterna e solidária, isenta de preconceitos, com a consequente promoção do bem-estar de todos. Trata-se, portanto, de hipótese, sob a ótica social.

Neste diapasão é que se adentra ao âmbito jurídico. É cediço que as leis nascem a partir do dinamismo social que vai se apresentando em determinado momento histórico, dinamismo esse, que acaba por clamar uma nova resposta do Direito. Não é diferente com o que ocorre com o tema em análise. A sociedade contemporânea brame por uma nova visão do Direito, especialmente do Direito Privado, acerca da matéria ora examinada.

No cenário hodierno, já se vislumbra uma enorme mutação no que tange à sexualidade. É inafastável o argumento de que não é mais possível se valer dos conceitos, espécies e referências tradicionais acerca do sexo civil. Assim sendo, em razão da mutação a que se refere, é de se concluir que existe a necessidade de adequação do Direito Privado a essa nova realidade que se apresenta, mormente para que se evite lesões a direitos e garantias fundamentais, inerentes a toda e qualquer pessoa humana, independentemente de sua orientação sexual.

É implacável o argumento da necessidade de rompimento definitivo com a visão tradicional do Direito Privado, o qual se mostra cada vez mais ineficaz na tutela do direito à sexualidade. Não se quer nada mais do que tratar de maneira igualitária toda pessoa humana, seja ela bissexual, homossexual, transexual ou heterossexual. Não é nada fora do comum pretender observar o princípio constitucional da igualdade substancial quando o assunto é o direito ao estado sexual da pessoa humana. É hora de romper com o paradigma atual, pautados em preconceitos de ordem moral e/ou de natureza religiosa. Sá e Naves obtemperam que: “A sexualidade humana vai para além do campo biológico e físico-naturalista, uma vez que o sexo não pode mais ser visto como mera função reprodutora. Isso aconteceu no tempo em que a noção de “vida boa” nos era imposta por meio da sacralização do Direito, o que não se admite em um Estado plural”. (SÁ; NAVES, 2015, p. 336).

No mesmo contexto de necessidade de novos contornos acerca do instituto da sexualidade, aduzem Gagliano e Filho: “Talvez seja a hora, realmente, de mudar a concepção a respeito do assunto, pondo preconceitos de lado. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana não autoriza ao juiz, e à sociedade em geral, desprezarem o enfrentamento de situações como a transexualidade ou a homossexualidade”. (GAGLIANO; FILHO, 2013, p. 207).

Maschio, citada por Viegas e Poli, explanando sobre a pluralidade familiar, leciona, com fundamentos à luz da principiologia constitucional, sobre a possibilidade de reconhecimento, como entidade familiar, de pessoas independentemente de sua opção sexual, verifica-se: “Ora, se a base da constituição da família deixou de ser a procriação, a geração de filhos, para se concentrar na troca de afeto, de amor, é natural que mudanças ocorressem na composição dessas famílias. Se biologica-mente (sic) é impossível duas pessoas do mesmo sexo gerarem filhos, agora, como (sic) o novo paradigma para a formação da família – o amor, em vez da prole – os “casais” não necessariamente precisam ser formados por pessoas de sexo diferentes”. (VIEGAS; POLI, 2015, p. 62).

Portanto, reforça-se o argumento acerca da necessidade de afastamento, do modelo atual do Direito Privado, e criação de novos contornos jurídicos acerca do instituto da sexualidade, isto é, contornos modernos e em compasso com os valores estabelecidos constitucionalmente e com o dinamismo que se apresenta socialmente.

Defende-se, por fim, que, com a criação de novas leis, tratando expressamente de institutos de Direito Civil, voltadas às diversas espécies de sexualidade, contribuiria sobremaneira para uma nova visão do Direito Privado. É por óbvio que uma lei que trate expressamente de institutos como, casamento entre homoafetivos, cirurgias de redesignação de sexo, nome social e estado de filiação, para transexuais, por exemplo, contribuiria demasiadamente para que sujeitos destas classes, não sofressem com eventuais deboches, injúrias, preconceitos e até mesmo difamações. É de se repisar que o cenário contemporâneo clama por uma ruptura paradigmática com o modelo civilístico atual, visando obter normatizações talhadas em categorias jurídicas modernas, construídas num olhar voltado para legalidade constitucional, cujos valores máximos são voltados para a proteção da pessoa humana, independentemente de sua orientação sexual.

Conclusão

Optou-se pelo presente tema em razão da grande relevância que o mesmo apresenta. O instituto da sexualidade, como cediço, passou por grandes transformações ao longo dos anos. Como visto outrora, a independência do homem, sua libertação da heteronomia religiosa e, principalmente, os avanços da tecnologia e da ciência medicinal, contribuíram, para uma ampliação das espécies sexuais existentes, sendo certo que, cada vez mais, indivíduos se manifestam por suas diferentes opções sexuais.

Ocorre que, mesmo com a evolução da humanidade, quando o assunto é sexualidade, a existência de preconceitos, dogmas, mitos e pensamentos arcaicos, oriundos dos mais diversos grupos e classes sociais, acabam por contribuir para a marginalização de determinados clãs sexuais, que por sua vez, conduz ao inafastável abalroamento com os direitos e garantias fundamentais inerentes à pessoa humana.

São muitos os atos de intolerância que ocorrem no mundo dos fatos. Exemplificativamente, inúmeras pesquisas sociais têm demonstrado que muitas pessoas têm sido privadas de estudar, ou, mesmo tendo conseguido realizar suas respectivas matrículas, sofrem atos intolerantes no âmbito escolar, fato que ocorre tanto em escolas públicas quanto em particulares, quer seja no ensino fundamental quer seja no ensino médio, em razão de suas opções sexuais. Não é diferente o que ocorre, dentre diversos outros cenários sociais, quando o assunto é mercado de trabalho, onde praticamente não há espaço para aqueles que não são heterossexuais.

Não se pode olvidar, é claro, que existem lá suas exceções. Há aqueles “não heterossexuais” que conseguem exercer amplamente todos os seus direitos e garantias essenciais, assim como também existem muitos empregadores, diretores e proprietários de estabelecimentos escolares que não possuem preconceitos e acabam por admitir toda e qualquer pessoa, independentemente de sua opção sexual. Ademais, a sociedade vem demonstrando uma certa evolução no sentido de admitir os status sexuais existentes. Mas é válido ressaltar, que tal evolução vem caminhando a passos vagarosos, sendo certo que na exorbitante maioria dos casos, lastimavelmente, o preconceito está presente, açoitando os direitos e garantias assegurados constitucionalmente à pessoa humana.

Neste sentido, é imperiosa a afirmação da necessidade de rompimento definitivo com a visão tradicional do Direito Privado, o qual se mostra cada vez mais ineficaz na tutela da vida humana quando o assunto é sexualidade. A visão tradicional do Direito Privado, aliás, em nada contribui para o fim da discriminação e da intolerância contra grupos sexuais minoritários. Ao revés, se monstra completamente estanque frente ao volumoso dinamismo social apresentado.

Quando o assunto é sexualidade, pugna-se por um Direito Privado que vise a promoção dos valores e princípios constitucionais que tenham o condão de propiciar proteção a grupos minoritários abandonados à própria sorte. Noutras palavras, quer-se um Direito Privado capaz de remontar as categorias jurídicas civilistas em consonância com a principiologia constitucional, fundada, sobretudo, como já mencionado noutro momento, na dignidade da pessoa humana, na solidariedade social e na igualdade substancial.

Ademais, defende-se um movimento de reconstrução dos paradigmas do direito privado de acordo com o contexto do Estado Democrático de Direito. É preciso deixar de lado os velhos e antiquados ideais, inspirados em padrões ultrapassados, e fazer se valer de valores calcados na predominância da dignidade humana, a qual deve ser efetivamente tratada como fundamento do Estado Democrático de Direito.

Não é à toa que Cristiano Chaves de Farias, já às vésperas da entrada em vigor do atual Código Civil, dizia que a “nova codificação nasceu velha e, descompromissada com o seu tempo, desconhece as relações jurídicas e problemas mais atuais do homem”. E prossegue: “Tome-se como exemplo o Livro do Direito de Família que desconhece o DNA e suas importantes influências na determinação da filiação, a pluralidade dos modelos familiares e o avanço da biotecnologia, dentre outros graves equívocos e omissões” (FARIAS, 2002).

Dessarte, o âmbito jurídico exige um comportamento voltado para a criação de novos contornos acerca de diversos institutos do Direito Privado, mormente no que tange ao instituto da sexualidade. Pugna-se por um Direito privado construído à luz da legalidade constitucional, capaz de defender a vida humana em sua inteireza e moderno em perfeita sintonia com a sociedade a qual lhe é dado tutelar.

 

Referências
ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Acquaviva. 3ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Rideel, 2009. 1.035p.
BENTO, Berenice; PELÚCIO, Larissa. Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas. Revista Estudos Feministas. vol.20, n.2, Florianópolis, Maio/Agosto. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2012000200017&lng=pt&nrm=iso&tlng=en>. Acesso em: 20 out. 2016.
BOLSONARO, Jair Messias. Pragmatismo Político. Youtube, 06 de março de 2014. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=QJNy08VoLZs>. Acesso em: 29 out. 2016.
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e autonomia privada. 2ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009. 257p.
BRASIL, Código Civil (2002). Código Civil. Vade Mecum SARAIVA 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 148-315.
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CECCARELLI, Paulo Roberto. Sexualidade e Preconceito. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, v. III, 3, p. 18-37, set. 2000.
DIAS, Maria Berenice. União homossexual – O Preconceito e a Justiça. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 123.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – Teoria Geral. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 628p.
FIUZA, Cesar. Direito Civil Curso Completo. 8ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 1028p.
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil. vol 1: parte geral. 15ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. 543p.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. vol 1: parte geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 565p.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. vol 1: parte geral. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 89.
SILVA, Caio Mario Pereira da. Direito civil – alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001, 332p.
SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual de Biodireito. 3ª ed. rev. atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. 432p.
SUTTER, Matilde Josefina. Determinação e mudança de sexo: aspectos médico-legais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. 173p.
VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo; POLI, Leonardo Macedo. O reconhecimento da Família Poliafetiva no Brasil: Uma análise à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, autonomia privada, pluralismo familiar e isonomia. Revista Duc In Altum – Cadernos de Direito. Recife, vol. 7, nº13, p. 54-99, set-dez. 2015.
 
Notas
[1] A Resolução CFM n. 1652/02, que revogou a Resolução CFM n. 1482/97, batizou, a intervenção de redesignação de sexo, de transgenitalização. Atualmente, a intervenção é regulada por meio da Resolução CFM n. 1955/10, a qual manteve a nomenclatura.

[2] O enunciado nº 276 da IV jornada de Direito Civil, estabelece, ipsis literis, que “o art, 13 do CC, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil”.

[3] A revolução sexual foi um fenômeno social ocorrido na década de 60, através do qual, dentre outras tantas inovações, a aceitação do uso de métodos contraceptivos, pílulas, sexo fora das relações monogâmicas e heterossexuais e posição de igualdade sexual da mulher em relação ao homem (FIUZA, 2008).


Informações Sobre o Autor

Guilherme Igor Alves e Silva

Advogado com experiência nos Serviços Registrais Imobiliários das Comarcas de Betim-MG e Contagem-MG. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais


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