A norma jurídica: uma construção lógica

Resumo: O presente trabalho teve por finalidade a análise da construção lógica da norma tributária indutora. Para consecução de tal desiderato,  foi indispensável a verificação da estrutura da norma, razão pela qual tornou-se insofismavelmente relevante debruçar-se sobre aspectos anteriores à concepção da norma, como a tentativa de compreensão do Direito e da norma como fundamento lógico à compreensão do Direito. A partir de então passou-se à análise crítica da estrutura interna da norma para, após, analisá-la sob o aspecto conjuntural, sistêmico.  Para elaboração do presente trabalho, a metodologia aplicada foi basicamente pesquisa doutrinária, notoriamente fundamentando-se o marco teórico a partir da leitura dos ensinamentos do jurista Alfredo Augusto Becker, Lourival Vilanova,  Professor Paulo de Barros Carvalho e Torquato da Silva CASTRO JR.

Palavras-chave: norma,  construção lógica.

Abstract: The present work is fundamentally based on the analysis of the logical construction of the inducing taxation norm. For achieving this aim, it was imperative the verification of the structure of the norm, reason why it was so important to build the comprehension of some aspects that surrounds the conception of the norm, like the endeavor   for understanding the Law. Only after that, it was possible to go through the critical analysis of the internal structure of the norm and, after that, construe its comprehension over its systemic insertion. For the elaboration of this work, the methodology applied was basically doctrine research, overtly the lecture of the Alfredo Augusto Becker, Lourival Vilanova,  Professor Paulo de Barros Carvalho and Torquato da Silva CASTRO JR.

Key words: NORM, LOGICAL CONSTRUCTION.

Sumário: 1. Introdução; 2. Teoria da norma Jurídica 3. A criação lógica da norma ; 4.Considerações finais 5. Referências Bibliográficas

1. Introdução

A compreensão da ciência do direito não é atividades das mais fáceis. Pressupõe, de uma só vez desprendimento e dedicação por parte do estudioso: desprendimento por que, enquanto ciência, deve ser contemplada com distanciamento (se for possível) dos anseios parciais – morais e culturais – inerentes ao humano; dedicação, por que o estudo do direito exige labor interpretativo, lógico e sistemático.

A compreensão do direito não seria possível sem que houvesse uma análise detida de seu elemento essencial: a norma jurídica. Exatamente por isso, o presente estudo tem o objetivo de analisar a norma partindo-se dos pressupostos para sua construção, passando por seu isolamento do sistema jurídico e para especulação dos elementos internos que a consubstanciam e, finalmente, avaliando-se a lógica conectiva entre os elementos internos da norma e desta ao fato concretamente ocorrido.

2. Teoria da norma jurídica

2.1.Premissa: compreensão do conceito de direito (ou uma tentativa)

A compreensão do conceito de Direito perpassa pela persistente dificuldade atinente à linguagem que se lhe aplica. É possível partir de enfoques mais abstratos, por meio dos quais a definição de Direito estaria num conjunto infinito de possibilidades de situações, como também é possível partir de um ponto de vista mais limitado e circunstanciado, de maneira que nem todas as possibilidades do direito seriam atendidas através de uma única definição.

Nesse diapasão, Tércio Sampaio Ferraz Jr.[1] pondera ser necessário atentar para o fato de que conceito (nominal) é diferente da descrição da realidade (real). Isso por que, para descrever a realidade é preciso entender o conceito e este, está relacionado à linguagem.

Em sendo a linguagem o meio fundamental para a compreensão do conceito e estando aquela atrelada à palavra, a qual relaciona-se a situações distintas, é possível concluir que a definição de Direito depende do enfoque da análise, podendo esta ser para Tércio Ferraz: (i) formal: direito como vocábulo, sendo adjetivo, substantivo ou advérbio; (ii) semântica: direito em relação ao seu objeto, compreendendo-o através do comportamento interativo; (iii) pragmática: direito tendo em vista que ou para quem se usa o termo, usando-se a palavra para provocar o respeito.

Assim, o conceito de direito é denotativamente vago, haja vista a vastidão de definições: “Direito é uma ciência (1) que estuda o direito (2) quer no sentido do direito objetivo (3), quer no sentido subjetivo – faculdades (4)”; conotativamente ambíguo, de maneira que é impossível enunciar uniformemente as suas propriedades; as quais não podem ser abarcadas igualmente em todas as situações: direito como ciência é diferente de direito como conjunto de normas; e, pragmaticamente, é uma palavra que carrega grande carga emotiva.

Dito de outra forma, para analisar a definição de direito, é indispensável considerar que uma definição meramente lexical beira à impossibilidade, de sorte que qualquer definição do direito, necessariamente, será persuasiva, posto nunca ser neutra. Considerando tal premissa, é possível concluir a extrema dificuldade/impossibildiade de conceituar o direito através de apenas um enfoque analítico.

Com efeito, bem explica a jurista Aurora Tomazini em sua tese de Doutorado que “o conceito de direito é formado em nosso intelecto, em razão das normas de uso da palavra no discurso, tendo em vista os referenciais culturais do intérprete. Assim, não há um conceito absoluto do “direito”. Cada pessoa tem sua ideia em relação a um dado contexto.”[2] A referida jurista acredita que para a definição do conceito de direito, faz-se indispensável analisar as proposições das principais teorias acerca do direito, a exemplo do Jusnaturalismo, da Escola da Exegese, do Historicismo, do Realismo Jurídico, do Positivismo, do Culturalismo Jurídico e do Pós-Positivismo. De tal sorte, o fato de cada uma delas adotar uma concepção é prova inabalável da inexistência de uma verdade absoluta acerca do direito, valendo mais o referencial teórico adotado.

Nesse contexto, Tércio Sampaio[3] vislumbra na zetética e na dogmática jurídica propostas por Viehweg, a possibilidade, segundo esses dois prismas, de conceituar o direito. Segundo a análise zetética (o que é o direito?), são as perguntas (e não respostas) que delimitam o campo de definição do direito; delimitam e ampliam, ao mesmo tempo, já que o aprofundam-se as possibilidades. Já no enfoque dogmático (como deve ser o direito), são dadas respostas/ensinamentos, de maneira informativa, mas preponderantemente, diretiva.

Apesar das dificuldades de conceituar o direito, entende-se indispensável a tentativa. É assim que, às voltas do sistema normativo brasileiro e, deixando-se influenciar pelos ensinamentos de Hans Kelsen, mas sem esquecer as novas concepções trazidas pelo giro linguístico, é possível compreender o direito como o conjunto de normas jurídicas válidas num determinado país[4], destinado a disciplinar a conduta social e acessível através da linguagem jurídica que lhe é própria.

Em virtude da necessidade de compreensão desta parcela da ciência do direito apelidada de “norma jurídica”, torna-se premente a realização de corte epistemológico para afastar-se, momentaneamente, todo o universo do direito e tratar, tão somente, da análise microssistêmica da norma jurídica. Insta obtemperar, contudo, que tal abordagem é fruto de ficção que se faz necessária para o entendimento desta célula que compõe todo o complexo sistema do direito. Ficção por que é impossível insular, concretamente, tal componente de todo o sistema que, logicamente o constrói direta ou indiretamente; e necessária para compreender a essência dessa estrutura mínima e complexa, a norma jurídica.

2.2. A norma jurídica como caminho à compreensão do Direito

Para efetivamente compreender o conceito de Direito (se é que isso é possível), partindo-se do entendimento inicial de que seja um conjunto de normas jurídicas válidas em um país, torna-se inequivocamente premente conceber o conceito de norma jurídica.  Exatamente por isso, a Ciência do Direito lida com a compreensão da norma e não das relações sociais em si mesma: é que é através da norma que incide o Direito. A compreensão da norma jurídica, portanto, é fundamental ao estudo do direito enquanto objeto científico, pois, segundo Aurora Tomazini, “sem sabermos ao certo a composição de suas unidades não conseguimos isolá-lo metodologicamente”.[5]

O grande embate na perquirição de uma teoria que explique a norma jurídica, contudo, é aceitar o fato de que “norma jurídica”, por ser fruto da linguagem, carrega em si o problema da ambiguidade, dificultando uma análise unívoca. Com efeito, tomando-se os ensinamentos de Paulo de Barros Carvalho[6], é possível perceber diversas acepções da expressão “norma jurídica”, de acordo com o plano de expressão da ciência do direito adotada.

Assim, a norma jurídica pode ser enunciado prescritivo (prescrição de conduta), se for adotado o plano físico; por outro lado, a norma pode ser considerada enunciado normativo, se for adotado o plano das significações isoladamente consideradas (proposições jurídicas); por fim, pode também ser entendida como norma jurídica em sentido estrito, se for levado em consideração o plano de significações deônticamente considerados. Para simplificar a confusão, a autora Aurora Tomazini indica ensinamento de Paulo de Barros de Carvalho, para quem a norma como enunciado prescritivo e a norma como enunciado normativo podem ser consideradas como norma em sentido amplo, ao passo que no plano das significações estruturadas ter-se-á norma em sentido estrito.

Portanto, a norma jurídica em sentido estrito seria exatamente a interpretação realizada pelo intérprete da leitura do texto legal. Interpretação esta que apenas pode ser realizada a partir de uma significação estruturada na forma hipotético-condicional do texto legislado. A norma apresenta, por assim dizer, uma unidade significativa mínima da mensagem legislada o que, para Lourival Vilanova seria dizer que a norma jurídica é o “mínimo irredutível da manifestação do deôntico”.

Para compreender a norma jurídica como uma significação estruturada, sendo o mínimo irredutível da manifestação do deôntico é preciso analisar as partículas formadoras de tal estrutura. Assim, temos que D(HàC): em H temos a parte da norma responsável por descrever a hipótese de fato prevista e que, caso ocorra, implicará em C, que é a prescrição da relação obrigacional oriunda do acometimento do que é previsto em H. Esta relação entre H e C, segundo Paulo de Barros, apenas é possível por existir um vínculo implicacional D; deôntico representativo da autoridade legislativa de quem emana a norma.

Assim sendo, explica Lourival Vilanova[7] que, por hipótese deve se entender por “proposição descritiva de situações objetivas possíveis, com dados de fato incidente sobre a realidade social e não coincidente com a realidade”. Há um campo de possíveis fatos que podem ocorrer, não que seja certo ou errado que ocorram, mas podem ou não ocorrerem no mundo concreto/fatual.

Com efeito, “a valoração do legislador promove recortes no fato bruto tomando como ponto de referência para consequências normativas”[8]. Ou seja, há uma decisão da autoridade legislativa em qualificar determinados fatos do mundo físico (concreto): o legislador seleciona alguns fatos que entende relevantes juridicamente para incorporá-los ao universo jurídico através de sua prescrição no antecessor (hipótese) da norma.

No que concerne ao operador deôntico, pode se dizer que trata da ferramenta interna da norma responsável por estabelecer o elo entre o a hipótese e a consequência previstas, bem como os sujeitos relacionados à esta situação jurídica. Consoante indica Aurora Tomazini, o operador deôntico é partícula conectiva que consubstancia o “functor” deôntico[9], na medida em que une duas proposições (hipótese e consequência).

Neste ponto, insta trazer à baila ensinamento de Lourival Vilanova que estabelece a distinção entre a lei da causalidade natural e a lei da causalidade jurídica e seus respectivos functores atléticos e functores deônticos. 

Para o brilhante doutrinador, na lei da causalidade natural, há uma relação entre a hipótese e a consequência descritiva, enunciativa. De tal sorte, é de maneira direta que se ocorre H, então C. Ou seja, não há uma interferência externa do legislador prescrevendo o efeito (C) decorrente da ocorrência da H prevista. Assim, a correspondência entre a hipótese e a consequência na lei da causalidade natural se dá através do functor atlético: “é possível, é necessário, é impossível que se H, então C”.

Por outro lado, na lei da causalidade jurídica, a relação implicacional entre a hipótese e a consequência se dá por disposição formal, estatuída pelo sistema positivo, tendo-se, nesse caso, o functor deôntico. Assim, tem-se na causalidade jurídica, a prescrição pelo sistema jurídico que, determina, dentre possíveis hipóteses e consequências, as relações que devem ser.[10]

Por fim, tem-se por consequente normativo uma proposição que circunscreve a relação jurídica oriunda do fato hipotético efetivamente ocorrido. Ao contrário da hipótese (descritora de uma conduta), no consequente normativo, há uma verdadeira prescrição da condutado. Prescrição esta que guarda relação direta com a hipótese, ou seja, a consequência normativa deverá estabelecer efeitos diretamente ligadas ao sujeito e fato previstos na hipótese normativa.

A partir deste corte metodológico, procedeu-se ao isolamento da norma, sendo possível analisar a norma em seu interior. Chegou-se à concepção da norma como uma estrutura englobadora de uma hipótese de fato escolhido pelo legislador para sobre ele cair o manto normativo (H) que, se verificada no mundo concreto, desencadeará efeitos também determinados pelo legislador (C) sendo que, tal efeito apenas ocorrerá em razão de um vínculo lógico essencial existente entre a hipótese e a consequência normativa, vinculo este denominado de operador ou functor deôntico (D).

Nada obstante, consoante dito anteriormente, a análise do interior da norma é feita tão somente à guisa de proposta metodológica, não sendo possível constatar-se a norma de forma isolada no mundo real. Na realidade, a norma completa apresenta face dúplice com norma primária e norma secundária. Assim, tem-se na norma primária, uma prescrição de conduta positiva ou negativa do sujeito e caso desrespeitada, ocasionará, a aplicação da norma secundária pelo Estado-Juiz, norma secundária esta que Hans Kelsen denominou norma sancionatória e cuja existência é indispensável, além de vinculada intrínseca e diretamente à norma hipotética, primária.

Nesta senda, é importante revelar terminologia diferenciada adotada por Carlos Cossio[11], para quem a norma é similar a uma célula, de maneira que tem, em seu núcleo a endonorma, prescritora da conduta e, na membrana, a perinorma, regente da sanção cabível em face do descumprimento da primeira. Na mesma esteira, Noberto Bobbio apresenta a norma completa como resultante de uma conjunção entre a norma de primeiro grau e a norma de segundo grau.

Segundo Norberto Bobbio, há dois sentidos para a questão das normas primárias e secundárias: o sentido cronológico, no qual o secundário é posterior ao primário. Assim, as normas primárias estabelecem o comportamento esperado dos cidadãos e as normas secundárias prevêem as sanções para quem descumprir as normas primárias. E o sentido axiológico ou valorativo em que a norma primária seria a principal e a secundária um acessório, de modo que o mais importante seria o cumprimento do comportamento previsto. Paralelamente a essa definição de Bobbio, outros autores apresentam outra opinião acerca do que viriam a ser normas primárias e normas secundárias. Kelsen, por exemplo, deu maior importância para as normas secundárias, ou seja, aquelas normas destinadas a estabelecer uma sanção. Isso ocorre porque na concepção de Kelsen, as normas jurídicas prescrevem, necessária e fundamentalmente, deveres jurídicos, ainda que, por derivação, determinem, também, faculdades.

Em face dessa análise realizada em torno da norma jurídica, foi possível verificar a estrutura interna da norma e o elo de ligação, promovido pelo functor deôntico, estabelecendo uma ponte entre a hipótese de incidência e a consequência normativa. Levando, portanto, em consideração esta estrutura lógica resultante da relação entre H e C, realizada por D, resta agora verificar a relação existente entre a norma e os fatos do mundo real e em que nível de validade tal procedimento de relação é possível.

3. A criação lógica da norma

3.1. A função do deôntico jurídico

O elo intrínseco que faz da norma uma criação lógica é o deôntico jurídico. É este elemento conectivo que possibilita a ligação entre hipótese e norma de maneira lógica e adequada: sujeito, fato e objeto pressupostos na hipótese, conectam-se, pela coincidência, à realidade provocando a instauração da aplicação da norma ao que era apenas possível, tornando real e implicando numa outra situação, dessa vez, consequencial.

Na realidade natural, como já foi dito anteriormente, as hipóteses e consequências se unem através de um procedimento de relação direta, não sendo necessário que um terceiro ente imponha que se ocorrer H, deverá ser aplicado C. Na realidade natural, se ocorre H, ocorre C. É assim que, se uma folha de papel é solta no ar, cairá. Não há necessidade de se valorar o acontecimento da soltura da folha de papel para que se decida que se essa folha de papel for solta, deverá cair.  Não há uma necessidade de se intermediar a realidade através da criação de uma extralógica[12]

Por outro lado, na realidade jurídica, é preciso haver um pré-juízo de valor de uma situação hipotética que, se ocorrida, deverá sofre certa consequência. É preciso que uma entidade autorizada (o legislador) descrimine determinada conduta hipotética e a respectiva consequência. O vínculo, no caso da realidade, jurídica, portanto, não é direto; é construído através de uma lógica criada pelo homem, a extralógica de Lourival.

Com efeito, não é verdade que se o homem mata outro homem (H), será preso (C); mas é verdade, no entanto, que se o homem perfura com faca a pele de outro homem (H), este sangrará (C). No primeiro caso, se não houvesse valoração da conduta praticada pelo homem que mata, além da vontade do legislador em sancionar tal atividade, não haveria que se falar em prisão. A relação com esta consequência não é direta, portanto. Ao contrário, se o tecido humano é perfurado, sangrará independente de qualquer valoração ou vontade. 

3.2.  Da realidade à norma: o caminho da incidência

No plano da realidade jurídica[13], é justamente a decisão do legislador e do intérprete que criará a lógica jurídica que imponha a uma situação hipotética, determinada consequência. A norma, é por assim dizer, um simulacro de Jean Baudrillard[14]: criação de uma realidade lógica simulada. Ora, não é lógica natural que quem mata deve ser preso, mas é atraente que assim o seja.[15]

Por outro lado, em vez de simulacro, Lourival Vilanova, tomando-se por base os estudos de Gaston Jèze, avalia a miscelânea do fato à norma, preferindo denominar de “concretização”. Com efeito, para o insigne jurista, as normas

“[…] originam-se de manifestações de vontade, como exercício de capacidade e competência: são efeitos jurídicos. Somente tais efeitos são concretos: “status” pessoais, relações jurídicas de direito privado e público, relações processuais e de direito substantivo. A norma ou o ato-regra genérico destina-se a se concretizar, como dissemos. A concretização importa no substituir o sujeito genérico, o objeto indeterminado, o fato jurídico típico, os poderes e deveres inespecificados, de um ato ou negócio jurídico típico, por sujeitos individualizados, prestações específicas, fato jurídico concreto.”[16]

Exatamente por tal razão, apenas a ocorrência do fato hipotético dá fôlego à norma. Pois, como ensina Lourival Vilanova, “as relações jurídicas pertencem ao domínio concreto”[17], de sorte que é a interposição do fato concreto sobre a norma que o torna um fato jurídico, desencadeando o “processo eficacial da efetivação da relação jurídica”.[18]

Neste mister, a norma, que seria uma objetivação conceptual, passaria ao plano da objetivação social, a partir do momento em que passa ao plano dos fatos. Nas palavras de Lourival Vilanova, a norma “adquire algo de coisidade do social”[19], uma vez que sua realização pressupõe um processo de individuação:

“O fato é topicamente um aqui-e-agora. O ato típico, como classe (ou conjunto, em sentido matemático), inexiste como dado existencial: é uma construção conceptual, objetiva, sim, mas que não oferece a resistência das coisas e dos fatos que compõem o meu mundo circundante. A classe das coisas imóveis, no sentido jurídico, como classe, não é móvel, nem imóvel (divisível ou indivisível, disponível ou indisponível)”.[20]

É, portanto, a sobreposição, através da coincidência, do fato concreto à norma que a torna eficaz, fazendo nascer o fato jurídico e a respectiva relação jurídica; e tal situação somente é possível a partir da existência de dois conectores: primeiro, o conector da realidade concreta a uma hipótese escolhida por uma entidade autorizada (competente e capaz); segundo, o conector entre a hipótese, agora verificada concretamente e transformada em realidade jurídica, a uma consequência previamente prevista por aquela mesma entidade autorizada. Apenas assim tem-se o fato jurídico. Pois é certo que, “a lei geral, enquanto não ocorra o fato ao qual a causalidade normativa ligue os efeitos, não provoca situação, que é o plano eficacial (dos efeitos)”.[21]

Assim é que a relação de passagem da norma geral ao caso concreto (individuação e concreção) faz-se mediante ato de manifestação de vontade de um ente competente e capaz, sendo tal passagem explicável, para Duguit e Gaston Jèze, através do ato-condição, que seria justamente a verificação do fato-jurídico, constatado através do exercício da competência e capacidade de ente (poder), o qual escolhe a regra abstrata, que incidindo no caso concreto (enquadramento do ato ou indivíduo no esquema genérico da lei), gera o efeito jurídico. [22]

4. Considerações finais

O estudo da ciência do direito é atividade deveras árdua, posta a necessidade de constante distanciamento do objeto analisado das nuances subjetivas do sujeito que o analisa. Mesmo assim, é indispensável continuar nesta incansável perquirição.

À guisa de corte epistemológico, o trabalho ora apresentado tomou por base os ensinamentos de Hans Kelsen e partiu da acepção do direito como o conjunto de normas jurídicas válidas num determinado país, a partir do que tornou-se, portanto, insofismavelmente relevante a compreensão do sentido da norma jurídica como meio de se intentar alcançar ferramentas para se conceber a essência do direito. 

Assim, a análise ora apresentada teve por escopo o estudo microsistêmico da norma jurídica: desde sua importância como caractere consubstanciador do direito até a inter-relação eficacial da norma com a realidade verificada concretamente.

 

Referências
BARBOSA, Cláudia Maria. Lógica e Direito: Linguagem, jurídica sob diferentes paradigmas. Curitiba: Editora Juruá, 2005.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Relógio d’Água Editores, 1991.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Editora Lejus, 3ª ed., 1998.
CASTRO JR., Torquato da Silva. A Bola Do Jogo: uma metáfora performativa para o desafio da pragmática da norma jurídica. In: Adeodato, J. M.; Bittar, E. C. B.. (Org.). Filosofia e Teoria Geral do Direito: homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Júnior. São Paulo: Quartier Latin, 2011.
CARVALHO, Aurora Tomazini. Teoria Geral do Direito: o constructivismo lógico-semântico. Doutorado em Direito, PUC/SP, 2009.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 21ª Ed., 2009.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Editora Noeses, 2008.
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos de incidência. São Paulo: Editora Saraiva, 6ª Edição, 2008.
FERRAZ JR., Tércio Sampio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. Editora Atlas, 6ª Edição.
MORRIS, Clarence. Rudolf von Ihering; Jean Dabin In: Os grandes filósofos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002.
SOBOTA, Katharina. Dont't Mention the Norm! International Journal for Semiotics of Law, IV/10 (1991). Tradução de João Maurício Adeodato, da Faculdade de Direito do Recife. 
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Editora Noeses, 3ª Edição.
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2ª ed.,
VILANOVA, Lourival. Escritos Jurídicos e Filosóficos. São Paulo: Ed. Noeses, vol. 2.
 
Notas:
[1] FERRAZ JR., Tércio Sampio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. Editora Atlas, 6ª Edição.

[2] CARVALHO, Aurora Tomazini. Teoria Geral do Direito: o constructivismo lógico-semântico. Doutorado em Direito, PUC/SP, 2009.

[3] Idem. Ibidem.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 21ª Ed., 2009, p. 2.

[5] CARVALHO, Aurora Tomazini. Ibidem, pag. 213.

[6] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Editora Noeses, 2008, pág. 129. 

[7] VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Editora Noeses, 3ª Edição, pág. 89.

[8]CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos de incidência. São Paulo: Editora Saraiva, 6ª Edição, 2008, pág. 24.

[9] Termo trazido por Lourival Vilanova.

[10] Na lei da causalidade natural, a relação entre hipótese e consequência é enuncitiva, descritiva. Podemos esquematiza-la no seguinte módulo: “é assim que (it is so) se H, então C”. Modalizando com functores atléticos, diremos: “é possível, é necessário, é impossível que se H, então C”. A lei da causalidade procura reconstruir conceptualmente o que realmente ocorre, as sequências regulares, partindo de exemplificações concretas para alcançar o nível da lei geral. Por isso, a lei causal natural é verdadeira, se confirmada, falsa, se infirmada.
Na lei da causalidade jurídica há sequências regulares, iterativas, cuja expressão é a implicação formal (que leva em conta a conexidade de conotação entre H e C). Mas é o sistema jurídico positivo que estatui, preceitua, preestabelece, dentre as possíveis hipóteses e as possíveis consequências as relações que devem ser. O minimum genérico que há nas espécies “obrigatoriedade”, “proibitividade”, “permissividade”, é que tais modos são modos de dever ser. Sob o ponto de vista sintático “lógico”, fica em suspenso o problema de se o dever ser é um mero operador, u um modo de ser ontológico, ou uma expressão do fato empírico de uma vontade (teria imperativa do dever –ser) ou uma categoria tão só gramatical, um sintagma verbal composto. In: VILANOVA,  Lourival. Causalidade e relação no Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2ª ed., 1989, págs. 52-53.

[11] CARLOS COSSIO. La teoria egológica del Derecho. Apud CARVALHO.  Aurora Tomazini. Ibidem., pág. 235.

[12] VILANOVA, Lourival. Escritos Jurídicos e Filosóficos. Vol. 2, pág. 18.

[13] Pois, é certo que, conforme ensina Alfredo August Becker, no “Momento Pré-Jurídico: o fim do Direito não é atingir a verdade (realidade); a busca da verdade (a realidade) é o objeto das ciências. A ciência faz a colheita e a análise dos fatos (realidade) físicos, biológicos, psicológicos, econômicos, financeiro, sociais e morais. Momento jurídico: com o auxílio ou contra aqueles fatos colhidos e analisados pelas ciências pré-jurídicas, o Estado age, utilizando o Direito.” BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Editora Lejus, 3ª ed., 1998.

[14] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Relógio d’Água Editores, 1991.

[15] Nota: a obra de Jean Baudrillard, e sua profundidade, não será analisada detidamente no presente estudo, ficando, mesmo que brevemente, o registro de sua perfeita aplicação na teoria da norma. Com efeito, a norma representa uma realidade, é simulacro natural, posto que baseada numa imagem ou na instituição ideal.  O real e o ideal, com a incidência normativa, absorvem-se entre si, excluindo a distância que os separa. Pois, assim explica Jean Baudrillard:
“Não há real, não há imaginário senão a uma certa distância. Que acontece quando esta distância, inclusive a distância entre o real e o imaginário, tende a abolir-se, a reabsorver-se em benefício excusivo do modelo? Ora, de uma categoria de simulacros a outra, a tendência é bem a de uma reabsorção desta distância, deste devio que dá lugar a uma projeção ideal ou crítica (…)” Idem. Ibidem, pág. 152.

[16] VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2ª ed., 1989, pág. 85.

[17] e 17 Idem. Ibidem.

[19] e 19 Idem. Ibidem, pág. 90.

[21]  Idem. Ibidem, pág. 93.

[22] Idem. Ibidem, pág.94.


Informações Sobre o Autor

Fabiana Augusta de Araújo Pereira

Advogada, Professora de Direito Tributário e Gestão da Regulação na UFRPE, Mestranda em Direito do Estado, Regulação e Tributação Indutora pela UFPE, Pós-Graduação em Direito Tributário pelo IBET e Direito Constituicional pela Universidade Anhagura, Bacharela em Direito pela UFPE.


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