A nova visão sobre a natureza jurídica dos serviços registrais e notariais, após a Constituição Federal, e os vícios da Lei 8935/94, bem como a visão sob uma relação de consumo para uma atividade privada delegada, a qual pode e deve ser fiscalizada pelo Ministério Público e pelos órgãos de defesa do consumidor, inclusive Procons Municipais


Com o advento da Constituição Federal de 1988, em especial, pelo seu artigo 236 da CF, ocorreu verdadeira mudança na natureza jurídica do serviço registral e notarial no Brasil, ainda incompreendido por boa parte dos juristas brasileiros.


É de ressaltar que a classe jurídica jamais se insurgiu de forma Institucional contra este sistema de registros públicos. Aliás, apesar de ter estado ligado ao meio jurídico, pouco se escreveu e se questionou sobre este tema, apenas se repetiram às velhas concepções jurídicas. Afinal, pesquisa do Direito no Brasil iniciou-se efetivamente apenas após a década de 80.


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Este sistema cartorial por muito tempo até dominou a estrutura jurídica, onde o próprio Judiciário convivia com esta prática e até dependia da mesma.


Algumas boas obras limitaram-se a descrever rotinas básicas, mas sem analisar o conteúdo do sistema cartorial, atendo-se a uma visão limitada pela fase anterior à Constituição de 1988, tentando justificar a estrutura arcaica.


Normalmente, os cursos jurídicos não estudam o aspecto histórico das Instituições Jurídicas, poucos sabem que as serventias judiciais já foram de natureza privada com servidores indicados pelos antigos cartorários, até a CF1988.


Contudo, com a Carta Magna de 1988 o Constituinte de forma corajosa rompeu com este paradigma cartorial, no art. 236 da CF, o qual tem a seguinte redação:


 “Os serviços notariais de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.


§1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.


§2º Lei Federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.


§3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público e provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.”.


Tal linha de entendimento foi corroborada em parte com a Lei 8935/94, a qual para atender lobbies corporativos, cometeu várias inconstitucionalidades, ao se regulamentar o parágrafo primeiro do art. 236 da CF.


De início, é preciso ressaltar que legislar sobre registro público é de competência privativa da União. O Projeto de Lei que foi encaminhado ao Congresso Nacional previa que o sistema registral e notarial fosse exercido em nível federal. Contudo, as corporações alegaram que era inconstitucional transferir da esfera estadual.


Ledo engano, pois não há norma expressa na Constituição sobre a atribuição para exercer este serviço, o qual poderia ser federal ou estadual; venceu este último, mas sob um argumento equivocado. Inclusive, a rigor, se a lei almejar o serviço registral e notarial municipal, será.


Em suma, o art. 236 da CF estabelece quatro normas básicas:


1)      Cabe ao Judiciário a fiscalização (mas não estabelece qual).


2)      A forma de provimento das serventias é por concurso público.


3)      O serviço é exercido por natureza privada.


4)      È prestado mediante delegação.


Entretanto, ao se elaborar a Lei 8935/94, violaram a Constituição Federal para se atender aos interesses corporativos do Judiciário e dos cartorários, nos seguintes aspectos:


a) O Judiciário não poderia controlar os cartórios, pois não é o Poder delegante, afinal isto é função do Executivo. Também não poderia realizar os concursos, pois é atividade do Executivo.


Ao Judiciário cabe apenas fiscalizar a regularidade dos atos registrais, mas isto nem seria atividade jurisdicional, mas sim administrativa, logo as partes não são obrigadas a contratar advogado, mas podem, se o desejarem.


b) De forma incoerente o §3º do artigo 236 da CF criou uma espécie de concurso interno para se fazer remoção, como se fosse uma carreira, o que não existe mais em uma atividade privada delegada.


c) Proibiu indiretamente a forma de extinção da delegação por desinteresse da Administração Pública, como se esta não pudesse decidir com base no poder delegante sobre as regras, inclusive, a Eficiência. Pelo texto da Lei, estes critérios serão de avaliação exclusiva do Agente Delegado.


d) Amolda a estrutura cartorária à do Judiciário Estadual, sem nenhuma previsão constitucional, sendo que o serviço registral e cartorial nem está no capítulo de funções essenciais à Justiça.


Dessa forma, as inconstitucionalidades da Lei 8935/94, mais o conservadorismo e interesses corporativistas, fizeram lei morta do art. 236 da Constituição Federal.


Para agravar a situação, em alguns Estados, o Judiciário passa a receber parte das custas extrajudiciais e as administra diretamente. Em suma, o fiscalizador passou a ser sócio indevidamente do fiscalizado.


As normas de Justiça Gratuita que valem de forma até abusiva no serviço judicial, no extrajudicial não têm a menor eficácia. Muitas vezes concede-se a gratuidade judicial, mas nega-se a extrajudicial.


A atividade de fiscal dos serviços registrais e notariais, não deveriam conceder também ao Judiciário o poder de iniciativa punitiva, sob pena de se restaurar o princípio do inquisitório, ferindo a real ampla defesa.


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Outro aspecto é que a descentralização dos cartórios, a falta de regras para a padronização da documentação expedida bem como a ausência de integração das informações entre os Cartórios; além da falta de tecnologia na grande maioria; somando os absurdos de disparate de remuneração entre os cartórios, onde alguns percebem menos de um salário mínimo, enquanto alguns chegam a um milhão de reais mensais; além da má distribuição das serventias, havendo ausência de critérios para a sua instalação, onde grandes cidades têm poucas serventias, enquanto pequenos municípios há serventias em excesso, principalmente distritais; demonstram que o sistema atual é um absurdo no século XXI.


A Lei 10.169/01, que regulamentou o parágrafo terceiro do art. 236 da CF, proibiu a prática comum de os tabeliães cobrarem de acordo com o negócio jurídico, salvo quando este tiver fé pública e for essencial a sua declaração.


Por exemplo, ao se transferir um carro o preço pago como taxa é único. Entretanto, no caso de Imóveis, querem cobrar na transferência o valor sobre faixas variáveis. O serviço feito no DETRAN é similar ao dos serviços registrais, apenas difere em razão da natureza da pessoa jurídica. Assim, deveria ser cobrado valor único, de acordo com o custo do serviço, também na transferência de imóveis. Na verdade, esta divisão em faixas é uma tentativa de se burlar o fato de que não se pode cobrar sobre o fato gerador de imposto (no caso IPTU), para evitar a bitributação.


Ademais, os serviços registrais não podem exigir escritura pública para imóveis com valor negocial abaixo de 30 salários mínimos. Aliás, a exigência de escritura pública é uma norma que apenas atende aos cartórios em vez do cidadão. Nesses casos o imóvel poderia ser registrado com escritura particular, a um custo menor, conforme estipulado no Novo Código Civil.


Entretanto, o cidadão não é obrigado a pagar em faixas, pois primeiramente não pode ser coagido a declarar o valor venal em cartórios, apenas nas Prefeituras. Em segundo, o Tabelião não dá fé pública ao valor declarado. Assim, somente pode cobrar o valor em faixa acima do mínimo legal, quando a parte interessada requerer que o Tabelião dê fé pública ao valor do negócio.


Mais absurdo, é o fato de que Taxas de Fiscalização de cartórios, como no Estado de Minas Gerais, estão variando em faixa de acordo com o valor do objeto, pois nesse caso é ainda mais frontalmente inconstitucional, pois estão tendo a mesma base de cálculo do IPTU. Ou seja, além de se pagar os Emolumentos, paga-se ainda a Taxa de Fiscalização.


Por oportuno, ressalta-se que apesar de o STF considerar os emolumentos como Taxas, esta é uma visão equivocada e se baseia em conceitos anteriores à Constituição de 1988. É fato que os emolumentos são tarifas. É de se ressaltar que tal nomenclatura não está na legislação brasileira, mas é largamente utilizada, inclusive para as terceirizações.


A diferença básica entre taxa e tarifa, é que a primeira é atividade estatal e somente pode ser instituída e modificada por lei. Enquanto, a segunda pode ser pode ser cobrada por terceiros e instituída mediante qualquer ato, inclusive contratos com a Administração Pública, tendo como exemplo, os pedágios.


Logo, os serviços registrais e notariais são apenas banco de dados, não se conseguindo vislumbrar que sejam mais importantes que o ensino e a saúde, e todas estas atividades estão sujeitas a ISS e às normas do Procon.


Todo serviço ainda que de natureza pública, quando feito por particulares deve pagar ISS (se estiverem na norma que os inclui) e sujeitar às normas do Procon.


O serviço notarial e registral não é atividade estatal, nem judicial.


É mera forma de desviar o foco da discussão quando se usa o argumento de que a documentação é direito de cidadania, pois em primeiro lugar, os cartórios de registro de pessoas físicas são os de menor remuneração e menor impacto. E em segundo, os cartórios de Notas, Protestos e Registros de Imóveis, mais dificultam do que facilitam a vida do cidadão, notadamente pela falta de integração dos dados entre as serventias.


Ademais, com a implantação do documento único nacional de identidade, pouca utilidade terá a certidão de nascimento. Aliás, ainda não se implantou a identidade única em razão da pressão de setores que lucram com a burocracia. (Lei 9454/97)


Outrossim, a atividade de serviço registral e notarial como função privada delegada insere-se no rol de atividades a serem fiscalizadas pelo Procon, pois presta um serviço de natureza consumerista para os consumidores. A relação não é de cidadania, principalmente nos cartórios de Registro, Notas e Protesto, neste a relação estabelecida é de consumidor, como no caso dos bancos, os quais também exercem atividade privada delegada de interesse público.


Os cartórios não mais integram o Judiciário, basta uma leitura do art. 92 da CF/88, e nem são função essencial.


A recente decisão do STF no sentido de que os Tabeliães estão excluídos do limite da aposentadoria compulsória aos 70 anos, associada ao entendimento de que não são servidores públicos e não podem aposentar pela previdência fechada dos Servidores Públicos, sendo inscritos apenas no
INSS (previdência geral), reforça o entendimento de que são uma classe de apenas agentes delegados.


Ainda é preciso ressaltar que a atual Constituição não lhes assegura mais a vitaliciedade como fazia a Constituição de 1967.


Por outro lado, a fiscalização prevista no art. 236 da CF pelo Judiciário não tem caráter de exclusividade ou de atuação privativa. Logo, pode o Ministério Público com base no art. 129, II, da CF, buscar meios de se melhorar a qualidade do serviço prestado ao cidadão, inclusive quanto ao serviço prestado pelo Judiciário.


Embora, com a Reforma do Judiciário, o serviço registral e notarial tenha ficado inserido no rol de atividades fiscalizatórias do Conselho Nacional do Judiciário, isto não significa que seja atividade jurisdicional, mas função administrativa e privada fiscalizada pelo Judiciário, podendo o CNJ apenas fiscalizar e não exercer a função como vem acontecendo.


Resenha:


Desta forma, cabe ao Executivo exigir que os serviços registrais e cartoriais sejam delegados apenas pelo Executivo, bem como este seja responsável pelos concursos e integração dos dados, além de fixar as regras para desempenho da atividade. Permitindo ao Judiciário apenas a fiscalização, mas não controle administrativo e de gestão, e somente sobre a regularidade dos atos registrais e notariais, função que pode constitucionalmente modificado, pois não é jurisdicional.


Outrossim, insere-se o serviço registro notarial e registral nas normas de defesa do consumidor, e sujeita-se à fiscalização do PROCON, bem como sujeita-se ao dever de pagar ISS, pois é atividade privada que presta serviços comuns, e inclusive atividades mais essenciais como saúde e ensino o fazem.


Por fim, como atividade privada delegada, não é mais possível crer que os Emolumentos sejam taxas, mas sim tarifas, devendo esta concepção ser reavaliada pelo STF.


Os tabeliães, admitidos após a Constituição de 1988, não são servidores públicos, mas podem ser considerados para fins específicos, como para caracterizar ilícitos penais e de improbidade.


Por analogia, cita-se o caso da área de educação onde as Universidades Particulares exercem uma concessão pública e são fiscalizadas pelo MEC e nem por isso estão imunes à atuação da área consumerista. E também o caso dos bancos, que são fiscalizados pelo Banco Central e também pelos órgãos de fiscalização consumerista.


Conclusão


A atividade de cartório extrajudicial (serviço de notariais e registro) pode também ser fiscalizada pelo Ministério Público conforme art. 129, II, da CF, inclusive quanto à obrigatoriedade da gratuidade e demais direitos assegurados na Constituição. E também podem ser fiscalizados pelos órgãos de defesa do direito consumidor, incluindo Procons Municipais, no tocante à prestação de serviços ao consumidor, pois é uma atividade exercida como atividade privada, devendo ser emitidas as Notas Técnicas para procedimentos de inspeção como é feito com o setor bancário.


É cabível ação civil pública na área de registro público.


É possível inscrição do cartório mau prestador de serviço no SINDEC (cadastro de descumpridos das normas consumeristas).



Informações Sobre o Autor

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André Luís Alves de Melo

Mestre em Direito Público pela Unifran e Promotor de Justiça em Estrela do Sul MG, pesquisador jurídico


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