A posição do Brasil perante a regulamentação internacional de investimentos estrangeiros: estudo de caso da situação da Argentina no ICSID e comparação com a posição brasileira

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Resumo: Os investimentos estrangeiros exercem papel fundamental nas relações econômicas entre os países, na medida em que permitem uma expansão de mercado, para o investidor estrangeiro, e um maior desenvolvimento social e econômico, para o país receptor. A fim de regulamentar essas trocas, existem diversos instrumentos internacionais, tanto bilaterais como multilaterais. O objetivo deste trabalho é analisar a Convenção de Washington, os acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos e criticar a posição brasileira perante ambos. Para tanto, foi feito um estudo de caso da atual situação da Argentina no ICSID. Conclui-se que, enquanto não houver mudanças nos instrumentos internacionais de regulamentação de investimentos estrangeiros, a posição do Brasil é a mais correta e segura, uma vez que as atuais normas protegem exaustivamente os interesses dos investidores, sem, contudo, instituir obrigações que garantam ao Estado receptor seu principal objetivo ao atrair investimentos estrangeiros: o desenvolvimento social e econômico.

Palavras-chave: Investimento estrangeiro – Convenção de Washington – ICSID – Acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos.

Sumário: Introdução. 1. Regulamentação do investimento estrangeiro no direito internaciona. l.1.1. Os acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos – BITs. 1.2. O TRIMs. 1.3. O AMI. 2. A convenção de Washington e a criação do ICSID. 2.1. Histórico. 2.1.1. Objetivo. 2.2. Estrutura do Centro. 2.3. Competência. 2.3.1. Ratione Personae. 2.3.2. Ratione Materiae. 2.3.3. Ratione Voluntatis. 3. A posição do Brasil perante o ICSID. 3.1. A “pesificação” na Argentina e os casos no ICSID. 3.1.1. A crise econômica e financeira na Argentina. 3.1.2. Os casos no ICSID. 3.2. A posição do Brasil frente à Convenção de Washington e aos BITs – análise comparativa com a posição argentina. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Especialmente nos contratos econômicos e no mundo comercial, o recurso à arbitragem é progressivamente encarado não como mais um meio ao qual recorrer quando da existência de relações controvertidas, mas sim como o meio por excelência de resolução de litígios e justa composição de controvérsias.

Nesse quadro econômico internacional, a proteção aos investimentos internacionais é feita por meio das legislações nacionais e dos instrumentos internacionais convencionais, como acordos bilaterais e multilaterais. Vale destacar que os primeiros têm-se mostrado mais eficazes na recíproca proteção dos investimentos e dos interesses deles decorrentes do que os últimos. Contudo, reveste-se de extrema importância prática a Convenção de Washington para a Solução de Conflitos sobre Investimentos entre Estados e Cidadãos de Outros Estados, cuja assinatura, em 18 de março de 1965, foi impulsionada pelo Banco Mundial. De fato, quaisquer investimentos realizados por este Banco ou sob sua égide contêm obrigatoriamente uma cláusula de subordinação do respectivo regime ao texto da referida Convenção. Trata-se de um considerável marco na história do comércio internacional, pois, ao oferecer maior segurança aos investidores, estimula-se o investimento internacional e consegue-se atrair para o país uma maior quantidade de capital externo.

A Convenção criou o ICSID (International Centre for Settlement of Investment Disputes), tribunal arbitral que cuida da resolução de litígios sobre investimentos entre Estados e cidadãos de outros Estados. A cláusula compromissória à arbitragem do ICSID é encontrada, normalmente, nos contratos de investimento entre os países membros e investidores de outros países membros; entretanto, um crescente número de anuências feitas por Estados a fim de se submeterem à arbitragem ICSID, não obstante não serem signatários da Convenção de Washington, pode ser visto em mais de 900 acordos bilaterais sobre investimentos[1].

Não é possível ignorar a relevância do tema, uma vez que a maioria das medidas internacionais de proteção aos investimentos foi criada por países desenvolvidos, tradicionalmente exportadores de capital. Os países receptores, geralmente em desenvolvimento, alegam que os instrumentos internacionais protegem apenas ao investidor, e recusam-se a fazer parte de acordos multilaterais de proteção, limitando-se aos bilaterais, que tentam assegurar de maneira mais adequada o interesse do Estado receptor do investimento. Contudo, a prática tem nos revelado que nem mesmo os acordos bilaterais de promoção e proteção aos investimentos têm atingido seu objetivo, uma vez que tutelam os interesses dos investidores e não se preocupam em estabelecer obrigações ao investidor que assegurem ao Estado receptor seu objetivo: promover o desenvolvimento e crescimento da nação.

Diante de tal contexto, torna-se mister analisar a posição do Brasil frente à Convenção de Washington e aos acordos bilaterais de promoção e proteção ao investimento, devido ao aumento da competitividade internacional decorrente do desenvolvimento da economia mundial como um todo, bem como o uso da arbitragem como método de solução de controvérsias internacionais.

1 Regulamentação do investimento estrangeiro no Direito Internacional

Para analisar a regulamentação do investimento estrangeiro no Direito Internacional, escolhemos examinar três fontes distintas: a) Os acordos bilaterais de proteção aos investimentos; b) o TRIMs – Trade Related Investment Measures; e c) o AMI – Acordo Multilateral de Investimentos da OCDE[2].

No quadro jurídico internacional têm especial importância as convenções bilaterais, menos ambiciosas que as multilaterais e por isso mesmo mais eficazes na proteção recíproca dos investimentos e dos interesses deles decorrentes. Por essa razão, a discussão sobre os acordos bilaterais será mais detalhada do que a discussão sobre os acordos multilaterais. Obviamente, ainda analisaremos de forma detalhada a Convenção de Washington, para a qual será dedicado o próximo capítulo.

Todos esses instrumentos, na verdade, cuidam da promoção e da proteção dos investimentos. Não definem procedimentos burocráticos para suas transferência; tal definição é objeto da legislação nacional. A regulamentação internacional visa fomentar as trocas entre os países, criando um ambiente de segurança jurídica para os investidores.

1.1. Os acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos – BITs

Os acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos são instrumentos que estabelecem os termos e as condições para o investimento privado por pessoas físicas e jurídicas de um país na jurisdição de outro[3]. Com a finalidade de facilitar a leitura, adotaremos a sigla em inglês BITs (Bilateral Investment Treaties) para fazer referência aos acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos.

As convenções bilaterais perseguem um duplo fim: por um lado, o de sancionar internacionalmente o tratamento que o Estado importador de capitais dá ao investimento estrangeiro; por outro, o de manifestar a vontade política do Estado importador de garantir uma proteção adequada dos investimentos estrangeiros realizados em seu território. Os acordos bilaterais típicos citam dois objetivos em seu preâmbulo: a criação de condições favoráveis para investimentos por pessoas físicas e jurídicas de uma parte no território da outra e o aumento da prosperidade nos dois Estados. Em resumo, visam a promover o aumento da prosperidade através do investimento estrangeiro.

Os riscos cobertos pelos BITs são aqueles políticos, não os comerciais. Procuram abranger quatro principais áreas: a admissão do investimento estrangeiro direto, o tratamento, a expropriação e a solução de controvérsias.[4]

Conforme a lição da professora Adriana Pucci[5], os tratados bilaterais sobre investimentos obedecem a um modelo padrão, que tem sido aprimorado no decorrer dos anos no seio da OCDE, e contêm cláusulas de proteção aos investimentos dos nacionais originários dos países que o ratificam. Pode-se identificar, apesar de algumas variações, a presença das seguintes cláusulas de proteção aos investimentos estrangeiros: a) tratamento justo e eqüitativo (fair and equitable treatment); b) proteção completa (full protection); c) não-discriminação (non discrimination); d) tratamento nacional (national treatment); e) tratamento da nação mais favorecida (most favored nation – mfn); f) garantias relativas aos casos de nacionalização e/ou desapropriação; g) garantias relativas à repatriação de capital e remessa de lucros ao exterior.

Além das cláusulas de proteção e garantia, os BITs estabelecem mecanismos jurídicos para solução de controvérsias. Trata-se de mais uma proteção para o investidor estrangeiro, no sentido de evitar insegurança legal e conflitos políticos, com o objetivo de predeterminar a competência para a resolução de litígios. A arbitragem internacional é o meio mais usado para dirimir conflitos oriundos de investimentos.

Geralmente se prevê uma arbitragem ad hoc[6], conforme as normas da UNCITRAL[7], quando as disputas são entre Estados. Contudo, quando as partes são o Estado receptor do investimento e o investidor da nacionalidade do outro Estado, são estabelecidas várias possibilidades, conforme o tratado. Além da arbitragem ad hoc, há os que optam por uma arbitragem institucional[8], em órgãos arbitrais de comércio. Mas a maioria deles, quando os dois Estados são membros da Convenção de Washington de 1965, opta pela arbitragem ICSID, ou, quando apenas um dos Estados é parte, adota-se a arbitragem conforme o mecanismo complementar do ICSID.

A década de 1990 foi prolífera em matéria de ratificação de tratados bilaterais sobre investimentos. Vários países da América Latina ratificaram esses tratados com países exportadores de capital e também com outras nações tradicionalmente receptoras de investimentos. A Argentina, objeto de estudo neste trabalho, firmou aproximadamente cinqüenta acordos, o que a qualifica como o Estado parte do Mercosul com maior número de BITs assinados[9]. Todavia, o Brasil adotou uma posição distinta. Em que pese tenha assinado quatorze tratados bilaterais sobre investimentos, não chegou a ratificar nenhum desses acordos. A posição do Brasil perante os acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos será analisada no último capítulo desta monografia.

1.2 O TRIMs

No âmbito da OMC, existem três acordos multilaterais que cuidam do assunto investimento estrangeiro: o TRIMs (Trade Related Investment Measures), o TRIPs (Trade Related Intelectual Property Measures) e o GATS (General Agreement on Trade and Services).

O TRIPs regulamenta questões de propriedade intelectual envolvendo os países membros; já o GATS regulamenta as prestações de serviços nos países membros da OMC. São acordos multilaterais de caráter genérico, que trazem princípios a serem adotados pelas legislações internas dos países, para torná-las válidas em face das normas internacionais da OMC. Devido a esse conteúdo não específico, não iremos aprofundar a discussão sobre esses instrumentos, voltando maior atenção ao TRIMs, que tem maior importância prática com relação a regulamentação de investimentos estrangeiros.

O acordo TRIMs foi assinado em dezembro de 1993, durante a Rodada do Uruguai, onde participantes do acordo GATT[10] acordaram em eliminar medidas que limitavam ou forçavam certos tipos de investimentos, mais interessantes para a economia local, e também em oferecer tratamento nacional aos investidores estrangeiros[11]. O acordo estabelece uma lista exemplificativa de medidas que, quando fixadas pelos países receptores de capital, são consideradas prejudiciais ao comércio internacional. Seu principal objetivo é eliminar as restrições ao comércio e facilitar a entrada de capital estrangeiro, de acordo com a ótica liberal da OMC[12].

O fundamento para a definição de quais medidas prejudicam o comércio internacional é a cláusula de tratamento nacional, que está prevista no artigo III do acordo GATT, e proíbe a discriminação entre mercadorias nacionais e importadas. Assim, o TRIMs proibiu o uso de três tipos de restrições: índice de nacionalização (local content), restrições quanto a quantidade de exportações (trade balancing) e restrições quanto a utilização de insumos importados na composição de bens manufaturados localmente (foreign exchange balancing).

O índice de nacionalização refere-se à proibição de medidas que exijam a agregação de conteúdo nacional no produto fabricado. Também foram consideradas contra o comércio medidas que exigissem que um investidor não importasse mais do que exportasse, ou mantivesse uma proporção de exportações ou um mínimo de superávit comercial (trade balancing). O foreign exchange balancing reporta-se a medidas que restringem a importação de insumos usados na produção local, mediante a limitação de acesso a divisas estrangeiras em valor equivalente à entrada de recursos realizada pelo investidor.

O acordo entrou em vigor em 1º de julho de 1995 e definiu que os países desenvolvidos teriam prazo de dois anos para deixar de praticar as TRIMs; os países em desenvolvimento teriam cinco anos e os menos desenvolvidos, sete anos.

Uma grande crítica é feita pela doutrina ao acordo, no sentido de que somente protegeu o interesse dos países desenvolvidos, tradicionais exportadores de capital, pois proíbe a adoção de medidas (consideradas) restritivas ao comércio internacional pelos países receptores de investimento, mas não se reporta em momento algum às práticas abusivas das empresas transnacionais. Nesse sentido, temos a opinião de Eduardo Teixeira Silveira[13]:

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“[…] verifica-se que o acordo TRIMs por ora contempla apenas os interesses e objetivos individuais das nações desenvolvidas. Ao deixar de condenar as práticas abusivas das empresas transnacionais, mas simultaneamente vedando a adoção das medidas que as evitam pelos países hospedeiros, o TRIMs acaba refletindo de forma exclusiva os interesses unilaterais dos exportadores de capital.”

Ora, é direito inerente à soberania do país receptor, e até um dever de proteção dos interesses nacionais, assegurar uma política de investimentos estrangeiros favorável para a nação. Deve, sim, respeitar as normas internacionais de comércio, e o acordo TRIMs existe para definir esse limite. Porém, somente o fez na visão dos países desenvolvidos, como é usual em todos os atos internacionais relacionados a investimentos.

1.3 O AMI

O Acordo Multilateral sobre Investimentos (Multilateral Agreement on Investments) começou a ser negociado logo após a conclusão da Rodada do Uruguai, em 1995. O objetivo da OCDE é criar um acordo multilateral sobre investimento estrangeiro, que garanta a liberalização do fluxo de capital estrangeiro, a proteção dos investimentos e a definição de procedimentos para resolução de conflitos entre países e investidores estrangeiros. A intenção é unificar as disposições espalhadas por diversos acordos bilaterais e regionais (como o NAFTA e o Mercosul) sobre os investimentos, criando modelos de liberalização e proteção a investimentos, bem como um efetivo meio de solução de controvérsias.

Mais especificamente, o AMI ainda exige o comprometimento à permissão da livre transferência de recursos (repatriação e remessas de lucros), à limitação e posterior extinção de critérios de desempenho (índices de nacionalização, metas de exportação, etc.), bem como a não-realização da expropriação – que somente pode ocorrer por razões de interesse público e mediante o pagamento da devida indenização, pronta, adequada e efetiva.[14]

As negociações do AMI terminaram por falhar em 1998, quando a França anunciou que abandonaria as negociações. Inúmeras são as hipóteses levantadas para o insucesso do acordo. Muitos analisam que o grande motivo seria o acordo não incluir os benefícios necessários para motivar os Estados e os investidores para acreditarem em suas propostas e concluir o projeto. O Brasil participou como observador das negociações em 1997.

Sobre o tema, manifesta-se Eduardo Silveira Teixeira[15]:

“[…] o seu conteúdo é inegavelmente polêmico, por buscar uma liberalização irrestrita dos fluxos de capital, inclusive os especulativos. Nesse intento, o MAI visa à fixação de disposições que beneficiam francamente os países desenvolvidos e as suas empresas transnacionais, o que inegavelmente dificultará que os receptores de capital manifestem interesse na sua adesão ao tratado – isto admitindo-se a hipótese de que ele realmente será editado.”

Devido à complexidade de seu conteúdo e ao desinteresse de alguns países desenvolvidos, que já se encontram protegidos por acordos bilaterais e regionais, como os EUA, não há previsão para conclusão do acordo. Ademais, o AMI segue a tendência dos tratados sobre investimentos, qual seja a não-disciplina da atividade das empresas transnacionais, à luz dos interesses do país receptor do capital, mas apresenta uma preocupação primordial com a liberalização dos fluxos de capital, segundo as intenções dos países exportadores de capital.

2 A CONVENÇÃO DE WASHINGTON E A CRIAÇÃO DO ICSID

2.1 Histórico

A Convenção de Washington foi publicada em um momento no qual predominava a insegurança jurídica para os investidores estrangeiros. Ao verem seus investimentos desapropriados pelos Estados receptores, direta ou indiretamente[16], os investidores encontravam-se em uma situação de impotência, pois os meios de que dispunham para tentar reaver o capital, ou receber uma justa indenização, eram ineficientes. As alternativas disponíveis eram o recurso aos tribunais locais ou à proteção diplomática, pois os Estados se recusavam a submeter à arbitragem internacional controvérsias com investidores estrangeiros.

O recurso a tribunais locais gerava uma grande dúvida acerca da neutralidade da corte em ações contra o Estado ou entidades pertencentes a ele, e sobre a real chance de executar alguma decisão monetariamente favorável que o investidor viesse a obter. Os tribunais estão sujeitos a pressões políticas, que tendem a se acentuar em uma proporção direta à do montante em discussão. Caso se optasse pelo foro de um terceiro Estado, neutro, seria possível cogitar-se a obtenção de uma sentença imparcial. Contudo, ela dificilmente seria executada voluntariamente pela parte sucumbente.

Em outras situações, o investidor buscava a proteção diplomática de seu próprio Estado, para que este negociasse com o Estado desapropriante a possível devolução do investimento. Essa solução, porém, implicava até mesmo conflitos diplomáticos, de maneira que nem sempre o investidor obtinha a desejada proteção de seu Estado frente ao ato desapropriatório de um outro Estado[17]. Além disso, há o pré-requisito geral de o investidor primeiramente esgotar as vias locais para solução do conflito antes de procurar a proteção diplomática, o que poderia levar a um lapso de tempo muito grande, no qual restaria ao investidor apenas aguardar os trâmites judiciais de mãos atadas.

Nesse cenário foi criado o Centro Internacional de Resolução de Conflitos sobre Investimentos (International Centre for Settlement of Investment Disputes – ICSID), por meio da Convenção para a Solução de Controvérsias relacionadas a Investimentos entre Estados e Nacionais de outros Estados, conhecida como Convenção de Washington, proposta pelo Banco Mundial em 18 de março de 1965 e vigente desde 14 de outubro de 1966.

O Banco Mundial vinha, até então, exercendo papel de mediador e conciliador nas disputas acerca de investimentos internacionais, uma vez que seu papel era, e ainda é, justamente facilitar e viabilizar o fluxo de capitais como forma de se buscar melhores condições sócio-econômicas, sobretudo nos países em desenvolvimento. Pela instituição do ICSID pretendia-se desonerar o Banco Mundial e sua equipe, e, sobretudo, prestigiar, pela criação de um órgão especializado, a cultura do fluxo de investimentos como agente catalisador do desenvolvimento[18].

A adoção de uma convenção internacional, sob os auspícios do Banco Mundial, parece ser capaz de reconciliar os interesses contraditórios dos Estados soberanos e dos investidores privados. As partes privadas esperavam que os Estados fossem induzidos a aceitar esse novo esquema porque o ICSID é uma instituição arbitral internacional ligada ao Banco Mundial, e porque o foco estava na proteção da soberania do Estado. O Estado tem sua soberania protegida porque é livre para ratificar ou não a Convenção; e também porque as regras que governam a submissão de um caso à arbitragem parecem proteger o consentimento do Estado; e, finalmente, o Estado também tem sua soberania protegida porque a Convenção de Washington prevê a possível aplicação da lei nacional pelo tribunal arbitral[19].

Atualmente, 155 países assinaram a Convenção de Washington, dos quais 143 já depositaram seus instrumentos de ratificação. As últimas duas décadas foram prolíferas em número de arbitragens perante o ICSID: de apenas 20 casos autuados no tribunal nos primeiros 20 anos (1966 a 1985), a demanda subiu para quase 200 casos nos últimos 21 anos (1986 a 2006). Somente nos últimos cinco anos foram apresentados 107 novos processos arbitrais, e pelo menos 15 durante 2006. Neste momento, o ICSID possui 123 casos concluídos e outros 110 pendentes[20].

2.1.1 Objetivo

O objetivo perseguido com a aprovação da Convenção de Washington foi o de fomentar os investimentos nos países em desenvolvimento, sem o temor de que ocorresse uma desapropriação arbitrária e não-indenizada, em desacordo com as regras de direito internacional.

O fluxo de investimentos estrangeiros em um país pode proporcionar novas tecnologias e técnicas de produção, aumento dos salários, aprimoramento de habilidades de gerenciamento e de controle de qualidade, assim como maior acesso aos mercados de exportação. Mas também cria uma competição doméstica mais acirrada, má distribuição de renda, aumento na taxa de câmbio e uma dependência exagerada em recursos naturais, ao invés de proporcionar a modernização de setores produtivos da economia[21].

Fato é que, ao se fomentar o fluxo de capitais e o investimento em outros Estados, cria-se para eles a possibilidade de usar tais recursos como canais que, aliados a políticas públicas eficientes, detêm o potencial de trazer maior desenvolvimento para o país e sua população, desde que adequadamente gerenciados. Partindo-se desse pressuposto, o ICSID busca, ao proporcionar um fórum em que se discutirão questões relacionadas a investimentos, criar um cenário mais estável e previsível para a expansão do fluxo de capitais[22].

2.2 Estrutura do Centro

Primeiramente, faz-se necessário esclarecer que o ICSID não concilia ou arbitra os casos a ele levados, mas simplesmente administra os procedimentos de conciliação e arbitragem previstos na Convenção. Sua função, conforme o artigo 1º, é a disponibilização dos meios para a conciliação e para a arbitragem das controvérsias relativas a investimentos e verificadas entre Estados Contraentes e cidadãos de outros Estados Contraentes.

O ICSID é uma pessoa jurídica de direito internacional, que possui capacidade de assinar contratos, adquirir ou alienar bens móveis e imóveis e de representar-se em juízo (art. 18). Goza de imunidades e privilégios próprios, definidos nos artigos 19 a 24 da Convenção; o pessoal a seu serviço, inclusive conciliadores e árbitros, goza de privilégios e imunidades ratione officii, à semelhança dos cônsules.

O Centro é composto por um Conselho de Administração e por um Secretariado (art. 3º). O Conselho de Administração é composto por um representante de cada um dos Estados Contraentes, sendo presidido pelo presidente do Banco Mundial (chairman). O Secretariado é composto pelo Secretário-Geral, por um ou mais secretários gerais adjuntos e pelo pessoal restante.

O Secretariado gerirá uma lista (panel) de conciliadores e árbitros, que é constituída por pessoas qualificadas e designadas pelos Estados contraentes. Cada Estado pode designar, para inclusão em cada uma das listas, quatro pessoas, não necessariamente suas cidadãs. Outras dez pessoas são indicadas pelo chairman. As designações são feitas por períodos de seis anos, renováveis. Todos os indicados devem gozar de alta reputação moral, possuir reconhecida competência em matéria jurídica, comercial, industrial e financeira, bem como oferecer todas as garantias de independência no exercício das suas funções. O presidente deverá garantir a representação dos principais sistemas jurídicos do mundo, bem como das principais formas de atividade econômica.

A possibilidade de uma pessoa física ou jurídica atuar em um tribunal internacional foi uma grande inovação trazida pela Convenção de Washington, a qual contribui significativamente para o debate sobre a possibilidade de o indivíduo ser reconhecido como sujeito de direito internacional.

Vale ressaltar o comentário de Celso de Tarso Pereira[23], sobre o tema:

“Um dos pontos mais inovadores da Convenção é que ela estabelece a capacidade de um indivíduo ou uma empresa – tradicionalmente sem locus standi em tribunais criados por tratados entre Estados – integrar uma relação jurídica junto com um ator estatal, dessa maneira contribuindo para o reconhecimento do indivíduo como sujeito de direito internacional.”

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O efeito prático de tal posição é a garantia dada ao investidor estrangeiro de buscar seus direitos imediatamente, e não ter que se submeter a questões políticas de seu governo, como era o caso quando a única alternativa era o velho recurso à proteção diplomática.

2.3 Competência

De acordo com o artigo 25 da Convenção de Washington, para que um conflito seja julgado sob a jurisdição do ICSID são necessárias três condições, cumulativas: ratione personae, ratione materiae e ratione voluntatis.

2.3.1 Ratione Personae

A regra geral é de que as controvérsias submetidas ao ICSID devem resolver conflitos entre um Estado-parte da Convenção de Washington e um ente (pessoa física ou jurídica) nacional de outro Estado-parte, ressalvada a utilização do mecanismo complementar, que será descrito posteriormente.

Quanto às pessoas físicas, não surgem grandes dúvidas para determinar sua nacionalidade, ainda que se trate de caso de mudança de nacionalidade ou múltiplas nacionalidades. A pessoa natural tem sua nacionalidade determinada pela lei interna do Estado-parte; se cumpridos os requisitos internos, tem-se caracterizada a nacionalidade. Vale observar que o artigo 25 determina que, em casos de múltiplas nacionalidades, a pessoa natural não poderá ter a nacionalidade do Estado que é outra parte na controvérsia.

No que diz respeito às pessoas jurídicas, há algumas observações importantes para determinação de sua nacionalidade, para fins de jurisdição do ICSID. A prática do tribunal apontou para dois critérios predominantes para essa definição: o lugar de sua constituição – place of incorporation – e o local do domicílio ou da sede social – siège sociale.

Há, ainda, o critério do controle, previsto na alínea b, do inciso I, do art. 25 da Convenção de Washington. Trata-se de um exemplo interessante de como a lei leva em consideração a realidade econômica. É comum que o Estado receptor do investimento exija que o investidor constitua uma sociedade no país em que se realizará o investimento, uma sociedade[24] formada sob suas leis. Formalmente, essa sociedade tem a nacionalidade do Estado receptor, bem como seu principal domicílio no país. Contudo, opera sob total controle estrangeiro. Para fins de submissão de controvérsias ao ICSID, será considerada como se tivesse a nacionalidade de um outro Estado-parte, tendo em vista que nacionais deste outro Estado-parte exercem o controle da sociedade. Se não fizesse essa exceção, uma importante esfera de investimentos não seria abrangida pela Convenção.

2.3.2 Ratione Materiae

No que concerne à competência em razão da matéria, dois conceitos devem ser levados em conta: as controvérsias devem ser jurídicas (legal disputes) e devem ter surgido diretamente de um investimento. Nenhum dos termos é definido na Convenção, cabendo à doutrina e à jurisprudência determinar seus limites.

A controvérsia jurídica exclui simples conflitos de interesse entre as partes, como a vontade de renegociar o acordo ou disputas factuais concernentes à contabilidade, por exemplo. O conflito deve envolver a existência ou alcance de direitos e obrigações, ou medidas de reparação de uma violação já ocorrida, e não razões exclusivamente políticas ou econômico-comerciais. Caso contrário, um investidor poderia interferir em decisões políticas do Estado receptor do investimento, o que até mesmo representaria uma violação da soberania desse Estado.

Sobre o tema, cabe observar a situação da Argentina, que após a crise econômica de 2001-2002, teve vários casos protocolados no ICSID contra si, demonstrando que decisões de política econômica acabam tendo reflexo em contratos firmados com investidores[25]. Apesar dos esforços argentinos na tentativa de caracterizar a ausência do requisito ratione materiae para afastar a competência dos tribunais arbitrais constituídos sob o sistema do ICSID, o fato é que até o momento as decisões quanto à jurisdição têm sido favoráveis aos investidores[26].

O segundo conceito que abrange a competência em razão da matéria é o de investimento, uma vez que, via de regra, somente controvérsias que tratem de investimentos podem ser submetidas ao foro do ICSID. A não-definição do termo pelo texto da Convenção confere uma maior flexibilidade ao Centro e permite sua adequação à evolução de novas formas de associação entre Estados e investidores estrangeiros: à época de elaboração da Convenção pensava-se basicamente em concessões e joint-ventures relativas a recursos naturais e investimentos industriais; têm-se hoje as figuras de contratos de serviço e gerenciamento, turn-key contracts, transferência de know-how e tecnologia, etc[27]. A definição de investimento deve se coadunar com os preceitos do sistema de regras do ICSID para que o requisito ratione materiae seja cumprido. Destacamos a lição de Gilberto Giusti e Adriano Drummond C. Trindade, acerca do assunto[28]:

“A conseqüência é que, apesar de ser conferido um alto grau de subjetividade aos tribunais do ICSID, a ausência de um conceito definido e hermético de investimento propicia a evolução desse conceito ao longo do tempo. Dessa forma, admite-se a evolução do conceito de investimento de acordo com as práticas comerciais então vigentes, em vez de limitá-lo a um conceito estanque definido no bojo da Convenção de Washington, cuja alteração e modernização demandariam uma série de assinaturas e ratificações dos Estados-parte.”

Nesse sentido, a doutrina considera que para a caracterização do investimento podem ser adotados dois critérios distintos: um subjetivo, outro objetivo. Pelo critério subjetivo, deve-se aferir a vontade das partes quanto à realização de um efetivo investimento que estaria amparado pela Convenção de Washington. Pelo critério objetivo, devem estar presentes três elementos: 1) a realização de aportes de capital, bens ou direitos 2) durante um espaço de tempo considerável e que 3) envolva certo grau de risco[29]. Além disso, considera-se essencial, para determinar a jurisdição do ICSID, que o investimento esteja relacionado diretamente com uma contribuição para o desenvolvimento do Estado receptor, objetivo manifestamente expresso no preâmbulo da Convenção.

Tendo em vista todos esses fatores, aliados ao conceito amplo que o termo investimento pode assumir, as decisões dos tribunais do ICSID têm adotado um ponto de vista de combinar os critérios subjetivo e objetivo. Assim é que os tribunais do ICSID já reconheceram a ocorrência de investimento, por exemplo, em casos envolvendo investimentos industriais, a construção de hotéis, a exploração de recursos naturais, contratos de assistência técnica, contratos de administração e contratos de licença[30].

2.3.3 Ratione Voluntatis

Finalmente, é necessário o requisito da manifestação expressa de aceitação da arbitragem, para caracterizar a jurisdição do ICSID. Esse requisito advém do princípio da autonomia da vontade, norteador do instituto da arbitragem como um todo. O consentimento do investidor pode se dar pelo contrato firmado com o Estado ou por qualquer documento, como uma carta ou declaração, ou, ainda, pelo simples fato de submeter seu pleito ao ICSID[31]. Já o consentimento do Estado se dá em duas etapas: pela adesão à Convenção de Washington e pela manifestação por escrito de sua aceitação para submeter determinada causa à arbitragem.

De acordo com o preâmbulo e com o art. 25, a simples adesão à Convenção não implica aceitação de arbitragem para todos os conflitos oriundos de investimentos. A ratificação deve ser combinada com a aceitação, por escrito, para submeter aquela causa à arbitragem. Surge na doutrina, então, uma discussão sobre as formas pelas quais essa aceitação por escrito pode ocorrer.

A maneira mais simples de se identificar a aceitação é quando ela é dada por meio de um contrato regulando um investimento específico firmado entre o investidor e o Estado-parte, ou mesmo no respectivo contrato de concessão que regerá o empreendimento. Atualmente, com a proliferação dos tratados internacionais de investimentos, esses instrumentos passaram a conter disposições referentes à solução de controvérsias.

Também se admite a possibilidade de o consentimento do Estado ser veiculado em um BIT firmado com o Estado de origem do investidor. Essa “oferta unilateral de arbitragem” tem sido aceita pelos tribunais do ICSID para caracterizar sua jurisdição, e assemelha-se a uma oferta pública para a arbitragem, irrevogável, que permanece válida enquanto o tratado permanecer em vigor[32]. Contudo, a doutrina faz ressalva a esse entendimento, afirmando que é necessário analisar acordo por acordo para verificar a existência desse consentimento. A simples referência ao ICSID não configura o compromisso arbitral: algumas cláusulas contêm um compromisso inequívoco; outras, entretanto, contêm promessas de consentimento futuro, dizem que o consentimento poderá ser dado em acordo futuro com o investidor ou apenas mantêm um panorama de considerações[33].

Ademais, a jurisprudência do tribunal também considera a possibilidade de a legislação nacional do país receptor do investimento prever a jurisdição do ICSID. Há notícia de que mais de 30 legislações nacionais utilizem essa prática.

O caso mais conhecido em que um ato unilateral – no caso, a lei – de um Estado foi considerado como consentimento por escrito é o caso Egoth, cujo título completo é Southern Pacific Properties (Middle East) Limited v. Arab Republic of Egypt, caso nº ABR/84/3 do ICSID. Como explica Brigitte Stern[34], o Egito, não tendo assinado nenhuma cláusula arbitral ou compromisso com o investidor, negou a jurisdição do tribunal do ICSID. A SPP apoiou-se, então, no artigo 8º da Lei egípcia nº 43, que estabelece que “disputas de investimento com respeito à implementação das provisões desta lei deverão ser solucionadas da maneira a ser acordada com o investidor, ou dentro da estrutura dos acordos em vigor entre a República Árabe do Egito e o país natural do investidor, ou dentro da estrutura da Convenção para Solução de Disputas de Investimentos entre o Estado e os nacionais de outros países, à qual o Egito aderiu”. Em uma decisão de jurisdição do tribunal do ICSID, em 14 de abril de 1988, foi reconhecida sua competência para a controvérsia, acolhendo o argumento do investidor, in verbis[35]:

“Várias considerações tornam impossível ao Tribunal aceitar que as expressões ‘dentro da estrutura da Convenção’ e ‘onde esta se aplica’ têm o efeito de introduzir no art. 8º um requisito implícito de um consentimento expresso adicional para poder estabelecer a jurisdição do Centro.”

Por fim, cabe esclarecer que, segundo o art. 26, o consentimento das partes em submeterem-se à arbitragem no quadro da Convenção de Washington é considerado como renúncia a qualquer outra forma de recurso, seja a tribunais locais, a outros tribunais arbitrais internacionais ou à proteção diplomática.

3 A POSIÇÃO DO BRASIL PERANTE O ICSID

Com o objetivo de analisarmos criticamente a posição do Brasil perante a Convenção de Washington, propomos um estudo da crise econômica e financeira que atingiu a Argentina no final de 2001, início de 2002, e que resultou em muitas demandas junto ao ICSID. As medidas tomadas pelo governo para, pretensamente, aliviar uma crise econômica que começou nos anos 80 tiveram grande impacto sobre os investidores estrangeiros que levaram maciçamente seu capital para o país na década de 1990.

Esses investidores, resguardados pelos acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos e pela Convenção de Washington, da qual a Argentina é signatária desde 21 de maio de 1991, recorreram ao ICSID para obter ressarcimento pelos prejuízos que as medidas causaram. Até o momento, houve poucas decisões de mérito sobre os casos, mas várias decisões incidentais, especialmente sobre competência, e todas têm sido a favor dos investidores. A análise dessa crise pela qual passou o nosso vizinho sul-americano é um interessante paradigma para analisarmos a nossa posição frente aos BITs e à Convenção de Washington.

3.1 A “pesificação” na Argentina e os casos no ICSID

3.1.1 A crise econômica e financeira na Argentina

Podemos citar a crise institucional que ocorreu nos anos 80 como um ponto de partida para todos os problemas que a Argentina viria a enfrentar quase vinte anos depois. Àquele tempo, o país apresentava um aparelho estatal inchado e ineficiente e uma economia frágil, resultante de uma inflação muito alta e crises cambiais. Todos esses problemas levaram o presidente Carlos Menem, que assumiu o poder em 1989, a instaurar um programa de reforma estatal de grandes dimensões[36].

Uma das primeiras medidas do programa foi a privatização das empresas públicas prestadoras de serviços públicos, motivada pela carência de pessoal e recursos para gerenciar os serviços públicos. Foi realizada uma reestruturação do setor público e também a privatização de um grande número de entidades estatais, através de concessões e licenças em longo prazo. O programa incluiu a revogação de restrições ao investimento estrangeiro e estabeleceu diversas garantias para os investidores. O setor de regulação foi reformado e fortalecido; havia uma proteção para reajustes das tarifas – a lei garantia “tarifas justas e razoáveis, que dessem um retorno razoável”; enfim, foi criado todo um ambiente favorável para o investimento estrangeiro no país[37].

O processo de privatização de serviços públicos foi um sucesso no sentido de promover uma grande modernização nos setores e permitir, em muitos casos, uma tarifa mais barata do que quando o governo os controlava[38].

No final dos anos 90, o programa de privatização do Estado argentino levou milhões de dólares em investimento para o país e atraiu grandes companhias multinacionais, que foram para a Argentina em grande parte estimuladas pela estrutura legal, promessas e garantias oferecidas pelo governo[39].

Em 1991, o presidente Menem promulgou a Lei da Convertibilidade – Lei no 23.928, de 27.03.91. As determinações de política econômica contidas na lei atingiram seu objetivo: segurar a inflação, evitando que o Estado financiasse débitos imprimindo mais dinheiro. Implantou a paridade do peso argentino ao dólar americano, fixando a taxa de câmbio em um para um. Trata-se do modelo currency board, no qual a autoridade monetária era obrigada a manter reservas de dólar na mesma quantidade de pesos em circulação, para que cada peso pudesse ser “realmente” convertido em um dólar.[40]

Segundo Paulo Nogueira Batista Júnior[41], as principais características do modelo são: a) a fixação da taxa de câmbio em relação ao dólar (ou alguma outra moeda de credibilidade internacional); b) a conversibilidade, que é a eliminação de restrições à transformação de moeda nacional em moeda estrangeira e vice-versa; e c) a definição de um “lastro” para a moeda nacional (uma regra que subordina a emissão de passivos monetários à existência de reservas em dólares). A idéia básica é trocar a flexibilidade pela credibilidade, trazida por uma moeda forte, e impedir o Estado de se aproveitar da flexibilidade monetária e cambial para cometer abusos inflacionários.

Simultaneamente, e para engrossar ainda mais a lista de atrativos para os investidores estrangeiros, o governo criou ambicioso programa de negociações de acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos – mais de 50 BITs foram assinados pela Argentina nos anos 90.[42]

Toda essa estrutura criada pelo governo teve como objetivo a atração de investidores estrangeiros para suas recém-privatizadas empresas de serviço público, por meio da garantia de proteção aos seus investimentos.[43]

Apesar de aparentar ser uma economia estável e crescente nos anos 90, vários fatores ocorreram ao longo da década que culminaram com a grave crise econômica sofrida pelo país no início da década seguinte. A economia tornou-se vulnerável a crises externas, como a do México em 1995, a do leste da Ásia em 1997 e a da Rússia em 1998. As conseqüências do modelo currency board são intensas, enfraquecendo a moeda nacional e “dolarizando” as operações financeiras e os contratos internos. Tal fenômeno não se reverte espontaneamente: a “desdolarização” na Argentina ocorreu de forma compulsória, pela reforma monetária coordenada pelo governo do presidente Eduardo Duhalde. Como agravantes, podemos citar uma grande dívida do Estado, reformas tributárias feitas em momentos errados e diversas outras medidas tomadas pelo governo que levaram à grande crise monetária internacional que atingiu a Argentina no início dos anos 2000[44].

Em 6 de janeiro de 2002, o presidente Duhalde publicou a “Lei de Emergência Pública”, que acabou com a convertibilidade um para um do peso para o dólar, deixando o valor do peso flutuar livremente no mercado. Como era esperado, a moeda argentina sofreu uma grande desvalorização, gerando impactos em vários setores da economia. O peso chegou à proporção de quatro para um, depois se firmando em três para um, cotação que permanece até hoje.

Ademais, a Lei de Emergência Pública continha previsões específicas para o setor público, no que se referia à cobrança de tarifas. As empresas foram obrigadas a cobrar dos consumidores com a antiga indexação de um dólar/um peso, apesar de todo o mercado estar trabalhando com valores diferentes. Paolo Di Rosa[45] nos traz um exemplo que esclarece bem a situação: uma conta de luz de trinta dólares era convertida para trinta pesos, porque as empresas eram obrigadas a usar a proporção um para um na cobrança de tarifas. Contudo, os trinta pesos recebidos do consumidor eram, no mercado, convertidos para aproximadamente apenas dez dólares. Esse fenômeno ficou conhecido como “pesificação” das tarifas, e trouxe prejuízos de grande magnitude para as empresas que operavam sob o regime de concessão e licença nos serviços públicos.

Além disso, as concessionárias de serviços públicos foram proibidas de reajustar tarifas e obrigadas a continuar cumprindo integralmente os contratos de concessão. Tais medidas tornaram praticamente impossível a manutenção das empresas num médio ou longo prazo e colocaram as companhias em uma enorme dificuldade financeira. Conseqüentemente, a integridade e qualidade dos serviços públicos na Argentina ficou seriamente comprometida[46].

3.1.2 Os casos no ICSID

Devido a todo esse contexto e à falta de perspectiva em serem ressarcidos, de alguma maneira, pelo prejuízo sofrido, os investidores procuraram a arbitragem internacional, protegidos pelos BITs e pela Convenção de Washington. A grande questão de mérito nessas arbitragens é se o governo argentino poderia ter atingido seus objetivos de conter a crise econômica sem impor medidas tão severas às concessionárias de serviços públicos.

Segundo Paolo Di Rosa[47], as principais questões a serem analisadas são relacionadas diretamente à natureza dos investimentos realizados, ao contexto em que foram feitos, às garantias oferecidas pelo governo no momento do investimento, às expectativas dos investidores ao irem para o país, à natureza da própria crise econômica e às justificativas das medidas adotadas pelo Governo em resposta a ela.

Os investidores alegam que o governo violou as medidas de proteção definidas nos BITs – como garantias de tratamento justo e eqüitativo (fair and equitable treatment), proteção completa (full protection), não-discriminação (non discrimination), tratamento nacional (national treatment) e tratamento da nação mais favorecida (most favored nation – mfn). Argumentam que houve expropriação indireta e que não havia um “estado de necessidade” que justificasse tais medidas.

Já o governo argentino tenta afastar a competência dos tribunais do ICSID para julgar as demandas. Como um primeiro argumento, alega que, se houve alguma violação, foi face aos contratos de concessão, e não aos BITs, o que restringiria as demandas às cortes locais. Os tribunais do ICSID têm entendido que esses fatos, ao constituírem quebra de regras dos contratos, ao mesmo tempo estabelecem uma abertura para remissão aos BITs[48]– aplicação da chamada umbrella clause, pela qual uma violação a um contrato de investimento constituiria uma violação ao BIT. Esse ponto deverá ser discutido nas decisões de mérito em vários casos da Argentina.

Além disso, o governo argentino argumenta que, ao fazer parte da Convenção de Washington, não abriu mão, e nem pode ser julgado, por exercer suas decisões soberanas para resguardar interesses públicos, como reestruturar o sistema monetário nacional. Tais decisões políticas deveriam ser vistas como determinações inerentemente soberanas, imunes de qualquer contestação legal por qualquer indivíduo ou entidade. A arbitragem deveria se restringir a questões puramente comerciais.

Ademais, o governo argentino alega que os investidores não podem usar os BITs para buscar ressarcimento por conseqüências adversas que venham a sofrer, como resultado de políticas econômicas do Estado receptor do investimento.

As decisões dos tribunais do ICSID, até o momento, têm sido a favor dos investidores, no sentido de rejeitar esses argumentos do governo e confirmar sua completa competência para julgar os casos baseados na subordinação aos BITs. Entretanto, em outubro de 2006, um tribunal do ICSID[49] aceitou o argumento de “estado de necessidade” da Argentina, e a eximiu de compensar financeiramente alguns investidores americanos pelos prejuízos sofridos na “pesificação” das tarifas no período entre dezembro de 2001 e abril de 2003, mas reconheceu que o país ainda poderia responder por prejuízos relacionados à violação do BIT ocorridos fora desse período.

Como tem perdido nessas questões incidentais de competência, o que leva à fase seguinte, que é o julgamento de mérito, o governo argentino tem reconsiderado sua defesa. Tem apontado para uma nova política de efetivamente buscar a renegociação desses contratos de concessão com os investidores lesados, como uma maneira de resolver disputas pendentes e envidando esforços para expandir as oportunidades de negócios na Argentina.

Neste momento, a Argentina aparece como parte demandada em 43 (quarenta e três) casos no ICSID. Dez estão concluídos, dos quais quatro se iniciaram entre 1997 e 1999 (e não serão considerados como estatística para o presente estudo, apesar de tratarem de temas de concessão de serviços públicos); cinco foram encerrados por acordo entre as partes; e um teve decisão de mérito[50]. Trinta e três estão pendentes, dos quais um está em procedimento de revisão da sentença; três em procedimento de anulação da sentença; e vinte e nove estão em andamento, ainda sem decisão de mérito.

Só nos resta aguardar para ver se a Argentina vai suportar as conseqüências das sentenças de mérito que têm dado razão aos investidores ou resistir a elas, tentando procedimentos de anulação perante o ICSID ou simplesmente não as cumprindo. Essa última atitude seria inédita na história do ICSID, devido à expressa previsão na Convenção da força obrigatória das sentenças e também das retaliações econômicas que podem ocorrer por parte do Banco Mundial.

3.2 A posição do Brasil frente à Convenção de Washington e aos BITs – análise comparativa com a posição argentina

Conforme exposto no segundo capítulo deste trabalho, o Brasil, na década de 1990, assinou quatorze acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos[51]; dos quais seis foram encaminhados ao Congresso Nacional para aprovação, sem êxito. Tampouco foram ratificados os Protocolos que cuidam da promoção e proteção de investimentos no âmbito do Mercosul[52].

Ademais, o Brasil adotou posição distinta dos países sul-americanos perante a Convenção de Washington, não aderindo ao acordo. Argentina (21.5.1991), Bolívia (3.5.1991)[53], Chile (25.1.1991), Colômbia (18.5.1993), Equador (15.1.1986), Guiana (3.7.1969), Paraguai (27.7.1981), Peru (4.9.1991), Uruguai (28.5.1992) e Venezuela (18.8.1993) aderiram à Convenção, ratificando a postura da região de buscar uma inserção mais dinâmica na economia mundial, sendo uma das ações o oferecimento ao investidor estrangeiro de uma moldura legal apropriada para solução de controvérsias.

Certo é que a Convenção de Washington oferece um seguro sistema jurídico para resolução de litígios, transparente e que atende aos interesses dos investidores. Mas, ao analisarmos a situação da Argentina, percebemos que as estruturas internacionais ainda são controladas e regidas em conformidade aos interesses dos países desenvolvidos, o que nos leva a questionar se a relação custo/benefício, ao aderir a esses instrumentos internacionais, atende aos interesses do Estado receptor do investimento.

Cabe ressaltar o comentário de Gilberto Giusti e Adriano Drummond C. Trindade[54]:

“Vê-se, portanto, que os mecanismos de proteção aos investimentos em um outro Estado não acompanharam as diversas formas de manipulação desse investimento pelo Estado receptor, de maneira a conferir, de um lado, uma proteção razoável ao investidor e, de outro, possibilitar ao Estado receptor a alocação desse investimento como forma de desenvolvimento de suas próprias políticas públicas sociais e econômicas.”

Ora, os BITs são chamados acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos. Entretanto, quando firmados entre um país desenvolvido e um país em desenvolvimento, atendem a um fluxo de capital que existe em uma só via, do desenvolvido para o em desenvolvimento. Para ilustrar essa realidade, basta constatar que menos de dez por cento dos casos pendentes atualmente no ICSID têm como parte demandada uma nação desenvolvida. A reciprocidade se restringe à obrigação de proteger os investidores, sem, contudo, garantir ao Estado liberdade para fazer frente a emergências ou a desequilíbrios econômicos, a fim de alcançar um equilíbrio entre a promoção e a proteção dos investimentos estrangeiros e a faculdade soberana dos Estados receptores de investimentos[55]. Essa atual característica dos BITs levou a inúmeras demandas contra a Argentina junto aos tribunais do ICSID.

Além disso, ainda não ficou comprovada a relação entre a assinatura dos acordos e sua capacidade de atrair mais investimentos. Segundo Karla Closs Fonseca[56], um estudo realizado pelo Banco Mundial concluiu que os BITs não são considerados substitutos de instituições nacionais frágeis, mas complementos na atração de investimentos em países que já contam com instituições razoavelmente sólidas. Muitos países africanos assinaram acordos sobre investimentos, mas não receberam nenhum investimento estrangeiro. Os EUA são os maiores investidores em Hong Kong, Macau e Taiwan, apesar do BIT com os EUA não ter sido concluído. Regras sobre investimentos são apenas um dos elementos que influenciam a decisão do investidor: tamanho do mercado, infra-estrutura, estabilidade econômica e existência de um sistema de regulação são, geralmente, mais importantes. Fatores econômicos, institucionais e políticos afetam as decisões dos investidores, sendo o fator mais importante o desenvolvimento e crescimento do mercado receptor[57].

Há doutrina que defende a criação de uma nova geração de BITs, para que os acordos possam refletir um equilíbrio entre os direitos dos investidores estrangeiros e os interesses dos países receptores. Atualmente, somente se preocupam em proteger o investidor, sem considerar o verdadeiro objetivo dos países quando interessados em atrair os investimentos estrangeiros: o desenvolvimento econômico[58]. Essa nova geração representa uma tentativa de alcançar um equilíbrio entre a proteção dos investimentos estrangeiros e a proteção da soberania do país receptor, e pode ser vista nos novos modelos de acordos bilaterais de investimentos dos EUA, do Canadá e do Japão[59].

Ademais, não há qualquer garantia de que os investimentos estrangeiros fomentarão a economia do país receptor. Este assume diversas obrigações frente aos investidores, mas não há inclusão de obrigações para os investidores, inclusive porque o que se denomina “obrigações dos investidores” pode ser entendido como imposição de requisitos de desempenho. De acordo com Karla Closs Fonseca[60]:

“O investimento pode produzir efeitos positivos no processo de desenvolvimento de um país desde que corretamente administrado. A correta administração dos procedimentos de entrada e de permanência dos investimentos implica a capacidade do Estado em perseguir e implementar políticas para assegurar que os investimentos estrangeiros tragam benefícios e efeitos positivos a toda a sociedade, bem como implementar políticas que evitem seus efeitos negativos.”

A premissa sobre a qual são firmados os BITs e criadas as convenções internacionais, como a Convenção de Washington, é a de que o investimento estrangeiro permite o desenvolvimento econômico, e que esses instrumentos levam ao aumento do fluxo de entrada de investimentos estrangeiros. Ambas as afirmações são contestáveis, conforme acima demonstrado.

Não obstante, o mecanismo de solução de controvérsias da Convenção de Washington fere o princípio jurídico brasileiro de esgotamento dos recursos internos e oferece um tratamento discriminatório entre investidores nacionais e estrangeiros, considerando-se que somente os estrangeiros teriam acesso à arbitragem internacional[61].

Nesse sentido, entendemos que a posição do Brasil frente aos acordos bilaterais de promoção e proteção recíproca de investimentos e à Convenção de Washington não deve ser alterada. O país recebeu grandes quantidades de capital estrangeiro quando do programa de privatizações implementado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, sem aderir a nenhum desses instrumentos, e reúne características suficientes para atrair mais investidores, como, p.ex., estabilidade política e econômica e um mercado forte e crescente.

Quanto à segurança jurídica dos investimentos, a lei de arbitragem brasileira[62] e a jurisprudência firmada fortaleceram o instituto em âmbito nacional, assim como a atitude dos agentes econômicos perante a arbitragem. Sua aplicação tem respeitado seu conteúdo e princípios, o que demonstra que a posição brasileira perante a arbitragem é de reconhecimento da importância do instituto, especialmente no que concerne à atração de investimentos estrangeiros[63].

Os BITs não apenas não garantem um retorno para a sociedade, mediante a criação de empregos, a transferência de tecnologia, enfim, do desenvolvimento econômico – que depende muito mais das políticas internas e da administração dos recursos –, como colocam o Estado numa situação de vulnerabilidade, na qual assume muitas obrigações perante os investidores e se submete a um sistema de solução de controvérsias claramente defensor dos interesses dos países desenvolvidos – toma-se como exemplo a situação da Argentina.

A criação instrumentos internacionais que visem a proteger os investimentos estrangeiros, reconhecendo seu valor para o desenvolvimento das nações é extremamente importante. Porém, não é por meio da formalização de acordos que protegem os investidores de quaisquer contratempos, que muitas vezes não poderiam ser evitados pelos governos, que se atingirá o objetivo de aumentar as trocas internacionais de capitais. Os termos destes acordos, bem como a força que dão aos direitos dos investidores, é que precisam ser reavaliados.

CONCLUSÃO

Os investimentos estrangeiros exercem papel fundamental nas relações sócio-jurídico-econômicas entre os Estados no atual cenário do comércio internacional. Sua regulamentação é feita por meio de acordos internacionais, bilaterais ou multilaterais, sendo que, na prática, os BITs apresentam maior importância e efetividade ao fim a que se propõem. A solução de controvérsias relativas a investimentos é um dos temas abordados pelos acordos, que em sua maioria elegem a arbitragem como método de solução de conflitos, por se demonstrar mais eficiente para atender às necessidades das partes.

O ICSID, tribunal arbitral criado pela Convenção de Washington, tem como objeto a resolução de controvérsias entre Estado e particular em matéria de investimentos estrangeiros. A grande maioria dos BITs em vigor estabelecem cláusulas compromissórias à arbitragem do Centro em caso de conflitos originados pelo descumprimento dos acordos.

Trata-se de uma pessoa jurídica de direito internacional, com capacidade jurídica plena. Sua principal função é a disponibilização de meios para conciliação e arbitragem das controvérsias relativas a investimentos entre Estados e cidadãos de outros Estados. A demanda perante os tribunais do ICSID aumentou consideravelmente nos últimos anos, devido a grande dinâmica da economia mundial e das relações comerciais internacionais.

O principal objetivo dos países ao aderirem a instrumentos internacionais, como a Convenção de Washington e os BITs, é atrair investimentos estrangeiros a fim de fomentar o desenvolvimento social e econômico. Contudo, esse objetivo esbarra em diversos entraves, pois não é todo e qualquer investimento que possibilita o alcance dessa meta. Ademais, o excessivo desequilíbrio entre a promoção e a proteção dos investimentos já se tornou característica dos BITs.

O investimento estrangeiro por si só não significa a promoção do desenvolvimento. É necessário que esses recursos sejam alocados de maneira correta, para que possibilitem, por exemplo, o aumento no número de empregos ou da competitividade das empresas locais. Para tanto, os acordos precisam conter cláusulas que não apenas protejam os investimentos, mas que também promovam a capacidade estatal de implementar políticas que assegurem que esses investimentos tragam benefícios a toda a sociedade.

A Argentina enfrentou uma grave crise econômica entre 2001-2002, o que obrigou o governo a adotar medidas econômicas severas para controlar a crise e reestruturar a ordem monetária interna. Diversos investidores estrangeiros sofreram prejuízos com essas medidas, e ingressaram com pedidos de arbitragem nos tribunais do ICSID a fim de serem ressarcidos, alegando descumprimento dos BITs. Até o momento as decisões têm sido desfavoráveis à Argentina, o que tem causado grande preocupação ao país.

Diante deste contexto, o Brasil permanece afastado dos instrumentos internacionais de regulamentação do investimento estrangeiro, principalmente pelo método de solução de conflitos definido. Acredita-se que as estruturas internas, como o mercado em expansão, o crescimento da economia, a estabilidade econômica e política são fatores que pesam muito mais para a decisão do investidor estrangeiro do que a adesão aos BITs ou à Convenção de Washington. Para que esses acordos tornem-se instrumentos que atendam aos interesses das duas partes – Estado e investidor – é necessária uma grande mudança nos seus termos, no sentido de garantir ao Estado maior liberdade de regular com base no interesse público.

Na América Latina, Bolívia e Venezuela também começam a adotar essa posição. O primeiro país denunciou à Convenção de Washington em 2 de maio do presente ano, e foi a primeira nação a fazê-lo. O governo boliviano acredita que o ICSID favorece as corporações internacionais em detrimento dos governos. Já a Venezuela tem ameaçado se retirar da Convenção de Washington, pois o país passou a exercer maior controle sobre a atuação das companhias que têm contratos de concessão para exploração de petróleo em seu território, e tem sofrido pressões por parte delas, que ameaçam levar os casos aos foros internacionais.

Ora, os investidores não podem levar a um extremo a possibilidade de resolver controvérsias com o Estado mediante a arbitragem internacional, demandando o Estado inclusive por atos de governo que respondem às necessidades internas, e que muitas vezes são contrários também aos interesses dos investidores nacionais.

Caso os investidores obtenham sucesso na maioria de seus pedidos junto ao ICSID, nos casos contra a Argentina, poderá ser criado um precedente para reclamações contra outros países que, no contexto de uma crise econômica, adotem medidas que possam ser consideradas contrárias às obrigações assumidas nos BITs. Tal precedente é perigoso e serviria para reforçar a posição de proteção excessiva aos investidores, sem garantir direitos aos Estados receptores.

Há uma profunda necessidade de mudanças no tratamento dos investimentos estrangeiros no âmbito internacional, capaz de assegurar o desenvolvimento social e econômico e de alcançar um equilíbrio entre direitos privados e interesses públicos. Até lá, o Brasil deve manter a posição adotada até então, que tem atendido plenamente aos interesses de promoção e proteção dos investimentos estrangeiros no país.

 

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Notas:
[1] THE WORLD BANK GROUP. Disponível em <http://www.worldbank.com/icsid/about/about.htm>. Acesso em 30 de agosto de 2006.
[2] Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
[3] AUTOMATED SYSTEM FOR CUSTOMS DATA (AYSCUDA). Disponível em <http://www.asycuda.org/cuglossa>. Acesso em 16 de março de 2007.
[4] ICSID Bilateral Investment Treaties. Disponível em <http://www.worldbank.org/icsid/treaties/intro.htm>. Acesso em 16 de março de 2007.
[5] PUCCI, Adriana Noemi. Arbitragem e investimentos estrangeiros. Revista brasileira de arbitragem, Porto Alegre: Síntese, vol.1, n. 2, abr/jun 2004, p. 16.
[6] Arbitragem ad hoc é aquela realizada de forma independente, na qual um tribunal é estabelecido de acordo com as Normas de Arbitragem da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL), adotadas pela Resolução da Assembléia Geral n. 31/98, de 15 de dezembro de 1976.
[7] Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional.
[8] Arbitragem institucional é aquela realizada sob a égide de um Tribunal Arbitral Internacional, como a Câmara de Comércio Internacional (CCI), a Corte de Arbitragem Internacional de Londres (LCIA), a Câmara de Comércio de Estocolmo e, claro, o Centro Internacional para Resolução de Conflitos sobre Investimentos (CIRCI ou ICSID).
[9] JIMÉNEZ, Sonia Rodríguez. Los tratados bilaterales de promoción y protección recíproca de inversiones como vía de acceso al CIADI. Direito do comércio internacional – temas e atualidades – investimento estrangeiro, Florianópolis: Fundação Boiteux, DeCita 03.2005, p. 134.
[10] Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio.
[11] AUTOMATED SYSTEM FOR CUSTOMS DATA (AYSCUDA). Disponível em                                                          < http://www.asycuda.org/cuglossa.asp?term=trims>. Acesso em 9 de abril de 2007.
[12] SILVEIRA, Eduardo Teixeira. A disciplina jurídica do investimento estrangeiro no Brasil e no direito internacional. São Paulo: J. De Oliveira, 2002, p. 186.
[13] SILVEIRA, Eduardo Teixeira. A disciplina jurídica do investimento estrangeiro no Brasil e no direito internacional. São Paulo: J. De Oliveira, 2002, p. 194.
[14] SILVEIRA, Eduardo Teixeira. A disciplina jurídica do investimento estrangeiro no Brasil e no direito internacional. São Paulo: J. De Oliveira, 2002, p. 195.
[15]  Ibidem, p. 196-197.
[16] A doutrina considera que ocorre desapropriação indireta quando o Estado impõe medidas tão onerosas ao investidor que impede o aferimento dos frutos, o que equivale, na prática, à desapropriação.  Como exemplo, podemos citar medidas que limitam ou impossibilitam o repatriamento de capitais ou remessa de lucros, condições específicas que inviabilizam a operação de um projeto após a sua regular instalação e tratamentos mais favoráveis a investidores de outros Estados.
[17] GIUSTI, Gilberto; TRINDADE, Adriano Drummond C. As arbitragens internacionais relacionadas a investimentos: a convenção de Washington, o ICSID e a posição do Brasil. Revista de arbitragem e mediação, São Paulo: RT, vol.2, n. 7, out/nov 2005, p. 51.
[18] Ibidem, p. 53.
[19] STERN, Brigitte. O contencioso dos investimentos internacionais. São Paulo: Manole, 2003, p. 100-101.
[20] THE WORLD BANK GROUP. Disponível em < http://www.worldbank.org/icsid/cases/cases.htm>. Acesso em 04 de maio de 2007.
[21] GIUSTI, Gilberto; TRINDADE, Adriano Drummond C. As arbitragens internacionais relacionadas a investimentos: a convenção de Washington, o ICSID e a posição do Brasil. Revista de arbitragem e mediação, São Paulo: RT, vol.2, n. 7, out/nov 2005, p. 53.
[22] Ibidem, p. 52-53.
[23] PEREIRA, Celso de Tarso. O Centro Internacional para Resolução de Conflitos sobre Investimentos (CIRCI – ICSID). Revista de informação legislativa, Brasília: Subsecretaria de Publicações do Senado, ano 35, n. 140, out/dez 1998, p. 88.
[24] O termo “sociedade”, neste contexto, refere-se a todas as formas societárias existentes, uma vez que, no direito brasileiro, “empresa” significa a atividade exercida pelo empresário.
[25] A situação da Argentina após a crise da “pesificação” será analisada detalhadamente no próximo capítulo.
[26] Como exemplo, citamos a decisão preliminar do tribunal sobre questão de jurisdição no caso Gas Natural SDG, S.A. contra a República da Argentina, ICSID Case nº ARB/03/10.
[27] PEREIRA, Celso de Tarso. O Centro Internacional para Resolução de Conflitos sobre Investimentos (CIRCI – ICSID). Revista de informação legislativa, Brasília: Subsecretaria de Publicações do Senado, ano 35, n. 140, out/dez 1998, p. 89.
[28] GIUSTI, Gilberto; TRINDADE, Adriano Drummond C. As arbitragens internacionais relacionadas a investimentos: a convenção de Washington, o ICSID e a posição do Brasil. Revista de arbitragem e mediação, São Paulo: RT, vol.2, n. 7, out/nov 2005, p. 65.
[29] Ibidem, p. 66.
[30] GIUSTI, Gilberto; TRINDADE, Adriano Drummond C. As arbitragens internacionais relacionadas a investimentos: a convenção de Washington, o ICSID e a posição do Brasil. Revista de arbitragem e mediação, São Paulo: RT, vol.2, n. 7, out/nov 2005, p. 66.
[31] Ibidem, p. 62.
[32] SPIERMANN, Ole. Individual rights, state interests and the power to waive ICSID jurisdiction under bilateral investment treaties. Arbitration Internacional, vol. 20, n. 2, 2004, p. 180.
[33] JIMÉNEZ, Sonia Rodríguez. Los tratados bilaterales de promoción y protección recíproca de inversiones como vía de acceso al CIADI. Direito do comércio internacional – temas e atualidades – investimento estrangeiro, Florianópolis: Fundação Boiteux, DeCita 03.2005, p. 135.
[34] STERN, Brigitte. O contencioso dos investimentos internacionais. São Paulo: Manole, 2003, p. 108.
[35] STERN, Brigitte. O contencioso dos investimentos internacionais. São Paulo: Manole, 2003, p. 109.
[36] DI ROSA, Paolo. The recent wave of Arbitrations against Argentina under bilateral investment treaties: background and principal legal issues. The University of Miami inter-American law review, Miami: vol. 36, n. 1, outono 2004, p. 44
[37] DI ROSA, Paolo. The recent wave of Arbitrations against Argentina under bilateral investment treaties: background and principal legal issues. The University of Miami inter-American law review, Miami: vol. 36, n. 1, outono 2004, p. 45.
[38] Ibidem, p. 46.
[39] Ibidem, p. 46.
[40] Ibidem, p. 44.
[41] BATISTA JR., Paulo Nogueira. Argentina: uma crise paradigmática. Estud. av. ,  São Paulo,  v. 16,  n. 44, 2002 .  Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em 07 de agosto de 2007.
[42] DI ROSA, Paolo. The recent wave of Arbitrations against Argentina under bilateral investment treaties: background and principal legal issues. The University of Miami inter-American law review, Miami: vol. 36, n. 1, outono 2004, p. 45.
[43] Ibidem.
[44] DI ROSA, Paolo. The recent wave of Arbitrations against Argentina under bilateral investment treaties: background and principal legal issues. The University of Miami inter-American law review, Miami: vol. 36, n. 1, outono 2004, p. 46.
[45] Ibidem, p. 47.
[46] DI ROSA, Paolo. The recent wave of Arbitrations against Argentina under bilateral investment treaties: background and principal legal issues. The University of Miami inter-American law review, Miami: vol. 36, n. 1, outono 2004, p. 49.
[47] Ibidem.
[48] Ver Enron Corp. v. Arg. Rep., ICSID Case nº ARB/01/3 (Decison on Jurisdiction of Jan. 14, 2004).
[49] LG&E Energy Corp., LG&E Capital Corp. and LG&E International Inc. v. Argentine Republic. ICSID Case nº ARB/02/1. (Decision on Liability of October 3, 2006).
[50] Caso LG&E Energy Corp., LG&E Capital Corp and LG&E International INC. v. Argentine Republic (Case nº ARB/02/01). A decisão foi proferida no dia 25 de julho de 2007, e não foi publicada no site do ICSID até o encerramento deste trabalho.
[51] O Brasil assinou os seguintes tratados bilaterais sobre promoção e proteção recíproca de investimentos: Alemanha (21.9.1995); Chile (22.3.1994); Coréia (1.9.1995); Cuba (26.6.1997); Dinamarca (4.5.1995); Finlândia (28.3.1995); França (21.3.1995); Itália (3.4.1995); Países Baixos (25.11.1998); Portugal (9.2.1994); Reino Unido da Grã-Bretanha (19.7.1994); Suíça (11.11.1994); União Belgo-Luxemburguesa (6.1.1999) e Venezuela (4.7.1995).
[52] Protocolo de Colônia para a Promoção e Proteção Recíproca de Investimentos no Mercosul (para investimentos intrazona) e o Protocolo de Buenos Aires sobre Promoção e Proteção de Investimentos Provenientes de Estados Não-Partes do Mercosul (para investimentos extrazona).
[53] A Bolívia denunciou à Convenção de Washington em 2.5.2007.
[54] GIUSTI, Gilberto; TRINDADE, Adriano Drummond C. As arbitragens internacionais relacionadas a investimentos: a convenção de Washington, o ICSID e a posição do Brasil. Revista de arbitragem e mediação, São Paulo: RT, vol.2, n. 7, out/nov 2005, p. 52.
[55] FONSECA, Karla Closs. Os acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos e o equilíbrio entre o investidor estrangeiro e o estado receptor de investimentos. Dissertação (Mestrado em Direito). Centro de Ciências Jurídicas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007, p. 48.
[56] FONSECA, Karla Closs. Os acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos e o equilíbrio entre o investidor estrangeiro e o estado receptor de investimentos. Dissertação (Mestrado em Direito). Centro de Ciências Jurídicas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007, p. 42.
[57] RAGHAVAN, Chakravarthi. Bilateral investment agreements play only a minor role in attracting FDI. Disponível em <http://twnside.org.sg>. Acesso em 3 de setembro de 2007.
[58] GARCÍA-BOLIVAR, Omar E. The teleology of international investment law: the role of purpose in the interpretation of international investment agreements. The Journal of World Investment and Trade. Genebra: v. 6, nº 5, Outubro/2005, p. 754.
[59] FONSECA, Karla Closs. Os acordos de promoção e proteção recíproca de investimentos e o equilíbrio entre o investidor estrangeiro e o estado receptor de investimentos. Dissertação (Mestrado em Direito). Centro de Ciências Jurídicas. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007, p. 45.
[60] Ibidem, p. 51.
[61] Ibidem, p. 36.
[62] Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Publicada no DOU de 29.09.96.
[63] PUCCI, Adriana Noemi. Las nuevas tendencias en materia de arbitraje comercial vigentes en el Brasil, ¿ofrecen suficiente protección a las inversiones extranjeras? Direito do comércio internacional – temas e atualidades – investimento estrangeiro, Florianópolis: Fundação Boiteux, DeCita 03.2005, p. 239.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Thaís Sundfeld Lima

 

Bacharel em Direito e Servidora Pública Federal

 


 

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