Introdução
Depois da Constituição Federal de 1988, pouco ou quase nada há a se discutir no sentido de que só se propõe o tema da PROPRIEDADE desde que atendida sua função social. Nesse sentido, assim se fez expressamente consignar, especialmente em relação à urbana:
“Art. 5º: (…)
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.”
E, afinal, assim arrematou:
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.” (…) [1]
Melhor dizendo, só há PROPRIEDADE juridicamente reconhecida e assim protegida, no sistema normativo brasileiro, desde que atendida referida finalidade.[2]
Por dever de cautela, portanto, parece melhor abordar o tema como LIMITAÇÕES e/ou RESTRIÇÕES À PROPRIEDADE[3] e não ao “direito de propriedade” (sic), na exata medida em que este nada mais é senão a propriedade exercendo sua função coletiva, ou seja, dentro dos seus pretendidos e preordenados limites, genericamente constitucionais e legalmente especializados (e, ainda, conforme estipulado por cada Município, no âmbito urbano).
Este, pois, o primeiro e necessário registro acerca da delimitação do nosso objeto mentado: a conformação da propriedade (urbana ou rural) e o direito (do seu “titular”) à indenização que dela exsurge quando especialmente sacrificada para satisfação do interesse coletivo.
Tal pode se dar – adiantamos desde logo – mediante obrigações de fazer, de não fazer e/ou de suportar, o que dá ensejo a um plúrimo tratamento do tema e com difusa dimensão quando o ponto de partida é o chamado “poder de polícia”.[4] Então, embora fosse possível discorrer sobre o magistério dos mais ilustres administrativistas brasileiros da atualidade, isso de nada adiantaria para o fim almejado, qual seja, de apresentar os atuais e reconhecidamente comuns sentido, conteúdo e alcance das expressões poder de polícia e de polícia (administrativa).
De fato, basta um mero compulsar das (completas) obras de Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO,[5] de Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO,[6] de Hely Lopes MEIRELLES[7] e de Marçal JUSTEN FILHO,[8] dentre outras, para se constatar que cada autor, que desses termos ainda faz uso, vislumbra o tema de modo muito pessoal – ora ampliando, ora restringindo o conteúdo de cada expressão – de forma a objetivamente inviabilizar a pretensão de reconhecimento de um discurso comum.
Apenas relembrando, conceitos não são verdadeiros ou falsos, válidos ou inválidos, mas, tão-só, úteis ou inúteis, conforme a pretensão expositiva de quem deles faz uso.
Por exemplo, Marçal JUSTEN FILHO,[9] com a envergadura e coragem que lhe são próprias, aloca num mesmo capítulo os vários tipos de atividade administrativa voltadas à limitação da autonomia privada (poder de polícia administrativa), aí incluindo – no que concerne à propriedade – a servidão administrativa, o tombamento, a ocupação temporária, o parcelamento, a edificação ou utilização temporária, a desapropriação e a requisição de bens. Ou seja, para ele o poder de polícia é tomado em sentido mais amplo, como o adotado pelos norte-americanos há décadas.[10]
Tal postura, contudo e s.m.j., não é acompanhada pela maior parte da doutrina nacional, à exceção de Maria Sylvia Zanella DI PIETRO,[11] que, mesmo em apartado capítulo (Restrições do Estado sobre a propriedade privada), reconhece não apenas as limitações administrativas, mas também as obrigações de fazer e de deixar de fazer ligadas à propriedade (ocupação temporária, requisição, servidão, tombamento, desapropriação e dever de utilização de imóvel), como conexas e integradas a mais ampla concepção de poder de polícia.
Ou seja, não há como se comparar (e bem compreender) o conteúdo versado por cada jurista sobre o assunto, lançando-se mão do simplório cotejo entre o que foi – e é dito – acerca de cada qual dos referidos termos.[12]
Por conseguinte, neste ensaio e para os fins pretendidos, desconectaremos o tema do dito “poder de polícia” e aproveitaremos para tratar das Modalidades de Restrição do Estado sobre a propriedade privada – como propostas por Maria Sylvia Zanella Di Pietro e por Marçal Justen Filho – buscando identificar como e quando se propõe a indenização (em cada caso).
Por enquanto, enumeremo-las – sem quaisquer distinções entre si:
a) limitações (administrativas);
b) parcelamento, edificação e ocupação compulsórios;
c) servidões administrativas;
d) tombamento;
e) ocupação temporária;
f) requisição de bens e serviços e
g) desapropriação.
Primeira Questão de Ordem – As Limitações
A primeira óbvia e “aparente” modalidade de atuação estatal com implicação na propriedade é a que lhe confere o constitucional e/ou legal contorno, isto é, aquela que MAIS BEM DELIMITA a propriedade dentro de sua função social.
Tal categoria compreende as ingerências genéricas e abstratas (as leis, bem como os regulamentos nelas calçados e para sua fiel execução)[13] que atingem uma classe indeterminada de destinatários (leia-se proprietários) e visam o interesse coletivo.
Como bem diria Lúcia Valle FIGUEIREDO,[14] as limitações correspondem ao perfil do direito; são a própria conformação do direito. Daí porque são gerais (como necessariamente a lei o é), abstratas (como a lei o é) e atingem ou podem atingir a todos, ou a determinadas categorias.
Logo, e nisto a doutrina é mansa, não se cogita de indenização face às limitações administrativas, como se dá nos casos de necessária conformação da edificação ao zoneamento, de proibição de explorar certa atividade numa dada região etc. – tudo conforme a lei e mesmo a edição de um prévio regulamento (ato administrativo normativo), quando necessário. No entanto, não nos parece acertado classificá-las como sendo uma das hipóteses de restrição, especialmente porque as limitações nada restringem. Ao revés, são elas que definem a propriedade enquanto tal, determinando, por exemplo, em que consiste a coletivizada função num pitoresco quinhão geográfico.
Tais limitações, contudo e por evidente, não podem desnaturar a substância do bem a ponto de lhe retirar a econômica valia. Se tal se der, a própria limitação desbordará da sua legítima finalidade, transmudar-se-á em restrição e o tema da indenização certamente virá, com êxito, e à baila. Confira-se:
Ementa: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. PARQUE ESTADUAL DA SERRA DO MAR (DECRETO ESTADUAL 10.251/77). LIMITAÇÕES ADMINISTRATIVAS DE CARÁTER GERAL. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. IMPOSSIBILIDADE DE INDENIZAÇÃO. PRECEDENTES DO STJ. 1. A criação do “Parque Estadual da Serra do Mar”, por intermédio do Decreto 10.251/77, do Estado de São Paulo, não acrescentou qualquer limitação àquelas preexistentes, engendradas em outros atos normativos (Código Florestal, Lei do Parcelamento do Solo Urbano), que já vedavam a utilização indiscriminada da propriedade. Precedentes jurisprudenciais do STJ: RESP 257.970/SP, Relator Ministro Francisco Falcão, DJ de 13.03.2006; AgRg no RESP 610158/SP, Relatora Ministra Denise Arruda, DJ de 10.04.2006 e RESP 442.774/SP, Relator Ministro Teori Zavascki, DJ de 20.06.2005.
2. Consectariamente, à luz do entendimento predominante desta Corte, revela-se indevida indenização em favor dos proprietários dos terrenos atingidos pelo ato administrativo sub examine – Decreto 10.251/77, do Estado de São Paulo, que criou o Parque Estadual da Serra do Mar – salvo comprovação pelo proprietário, mediante o ajuizamento de ação própria em face do Estado de São Paulo, que o mencionado decreto acarretou limitação administrativa mais extensa do que aquelas já existentes à época da sua edição. 3. É inadmissível a propositura de ação indenizatória na hipótese em que a aquisição do imóvel objeto da demanda tiver ocorrido após a edição dos atos normativos que lhe impuseram as limitações supostamente indenizáveis, como ocorrera, in casu, com os decretos estaduais n. 10.251/1977 e n. 19.448/1982 de preservação da Serra do Mar (Precedentes: EREsp n.º 254.246-SP, Relatora originária Ministra ELIANA CALMON, Relator para acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO NORONHA, Primeira Seção, DJ de 12 de março de 2.007 e EREsp n.º 209.297 – SP, desta relatoria, Primeira Seção, julgado em 13 de junho de 2.007). (…) (STJ, 1ª Turma, REsp 849.310/SP. Rel. Ministro LUIZ FUX, julgado em 18/11/2008, DJe 19/02/2009 – destaques nossos.)
Segunda Questão de Ordem – Os Compulsórios Parcelamento, Edificação e Utilização
Por sua vez, o compulsório parcelamento, edificação e/ou utilização da propriedade visam a – da mesma forma que as limitações – garantir àquela o cumprimento de sua social função, como constitucional e legalmente anunciadas.
A tais obrigações Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO[15] faz expressa remissão, indicando tratar-se de peculiares manifestações do “poder de polícia”, que, diversamente das limitações administrativas, importam numa obrigação de fazer (e não de não-fazer), conforme discrimina o Art. 182, da Constituição Federal de 1988:
“§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais”. (…)
São, pois, atos administrativos unilaterais e municipais, editados com base na função social da propriedade urbana e tendo em conta cada Plano Diretor que urge ser observado. Embora referidos atos sejam presumidamente legítimos, usualmente não gozam da auto-executoriedade que lhes seria imanente, impondo-se a cada Município buscar a tutela jurisdicional quando desatendido o conseqüente comando.
Contudo, o Estatuto da Cidade (a Lei nº 10.257/2001)[16] vem em socorro da coletividade, permite a cobrança de IPTU progressivo – como forma de econômica coerção – e, após cinco anos de inércia, ainda a possibilidade de desapropriação mediante pagamento com títulos da dívida pública. Verbis:
“Art. 1º. Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.
Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. (…)
Art. 8º. Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública. (negritos nossos.)
Apenas por isto já é possível afirmar que não se cogita de indenização de despesas do proprietário para fazer frente às aludidas determinações, de material cumprimento da função social da propriedade, nos limites da competência que a Constituição outorgou aos Municípios e na feição que cada Plano Diretor efetivamente adotar.
Portanto, referidas estatuições de fazer não constituem restrições à propriedade privada e nada mais são do que as providências necessárias para material concreção do interesse público no âmbito urbano-municipal, tanto no que concerne à segurança e ao bem-estar, como em relação ao meio ambiente. Em Curitiba – Capital do Estado do Paraná – eis as possibilidades:
“Art. 51. Nos termos fixados em lei específica, o Município poderá exigir que o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, promova seu adequado aproveitamento, sob pena de aplicar os mecanismos previstos na Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade, de:
I – parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;
II – imposto predial e territorial progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública.
§ 1º. A aplicação dos mecanismos previstos no “caput” deste artigo, incisos I a III, se dará em áreas em que haja predominância de condições favoráveis de infra-estrutura, topografia e qualidade ambiental para o adensamento.
§ 2º. Independentemente do imposto predial e territorial progressivo no tempo, o Município poderá aplicar alíquotas progressivas ao IPTU em razão do valor, localização e uso do imóvel, conforme o art. 156, § 1º, da Constituição Federal.
Art. 52. São áreas passíveis de parcelamento e edificação compulsórios, e de aplicação dos demais mecanismos previstos no “caput” do artigo anterior, incisos II e III, mediante notificação do Poder Executivo e nos termos dos arts. 5º à 8º da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001, os imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados, situados na área urbana, excetuando-se:
I – imóveis integrantes das Áreas de Proteção Ambiental;
II – áreas de Parques de Conservação, de Lazer e Lineares, de Bosques de Lazer e de Conservação, de Reservas Biológicas e as Unidades de Conservação Específicas;
III – imóveis com Bosques Nativos Relevantes, onde o índice de cobertura florestal seja igual ou superior a 50% (cinqüenta por cento) da área do imóvel;
IV – imóveis com Áreas de Preservação Permanente, conforme o estabelecido no Código Florestal Brasileiro, onde o índice de comprometimento dessas áreas seja igual ou superior a 50% (cinqüenta por cento) da área do imóvel.
§ 1º. Considera-se não edificado o lote ou gleba onde o coeficiente de aproveitamento é igual a zero.
§ 2º. Considera-se subutilizado, o lote ou gleba edificados, nas seguintes condições:
a) situados em eixos estruturais e de adensamento, áreas com predominância de ocupação residencial e áreas de ocupação mista que contenham edificação cuja área construída represente um coeficiente de aproveitamento inferior a 5,0% (cinco por cento) do coeficiente de aproveitamento previsto na legislação de uso e ocupação do solo;
b) situados em áreas com destinação específica e que contenham edificação de uso não residencial, cuja área destinada ao desenvolvimento da atividade seja inferior a 1/3 (um terço) da área do terreno, aí compreendidas áreas edificadas e não edificadas necessárias à complementação da atividade;
c) imóveis com edificações paralisadas ou em ruínas situados em qualquer área.
§ 3º. Conforme determinado em legislação específica, são exceções ao indicado no parágrafo anterior: os imóveis que necessitem de áreas construídas menores para o desenvolvimento de atividades econômicas e os imóveis com exploração de produtos hortifrutigranjeiros vinculados a programas municipais de abastecimento alimentar, devidamente registrados nos órgãos competentes.
§ 4º. Imóveis com Bosques Nativos Relevantes ou Áreas de Preservação Permanente estabelecidas no Código Florestal Brasileiro, onde o índice de comprometimento dessas áreas seja inferior a 50% (cinqüenta por cento), mas que incidam outras limitações administrativas que prejudiquem sua adequada ocupação, nos termos da Lei de Zoneamento e Uso do Solo, também poderão ser excetuados no previsto no “caput” deste artigo.
§ 5º. Para efeito desta lei, considera-se coeficiente de aproveitamento a relação entre a área computável e a área do terreno.
Art. 53. A instituição de critérios para as edificações não utilizadas, para as quais os respectivos proprietários serão notificados a dar melhor aproveitamento, sob pena de sujeitar-se ao imposto predial progressivo no tempo e desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública, será objeto de lei específica.
Parágrafo único. A lei específica que trata este artigo poderá determinar a aplicação dos critérios diferenciados por zonas, ou partes de zonas de uso, conforme o interesse público de dinamizar a ocupação de determinados trechos da Cidade.
Art. 54. O Poder Executivo promoverá a notificação dos proprietários dos imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados, intimando-os a dar o aproveitamento adequado para os respectivos imóveis, de acordo com lei específica, que determinará as condições e prazos para implementação da referida obrigação, atendido o disposto nos arts. 51 e 52”. [17]
Modalidades de Estatal Restrição à Propriedade Privada
Feitas tais ressalvas – alusivas às estatais limitações e obrigações (impostas no âmbito municipal: de compulsórios parcelamento, edificação e/ou utilização da propriedade) – podemos tratar daquelas hipóteses em que, a pretexto de proteção do interesse público, se expurgam alguns dos direitos inerentes à propriedade, assim concebida na sua constitucional e legal formatação.
Por conta disto, não mais existe a possibilidade de se, aprioristicamente falando, deixar de lado o tema da (eventual) indenização devida ao proprietário (por conta da exceção da medida) e que culmina, não pouca vez, num sensível gravame ao patrimônio deste.
Neste ponto, é de se invocar a própria Teoria da Responsabilidade do Estado por Ato Legislativo Lícito[18] e, pois, da condicionante para a indenização: o fato de o gravame atingir um número (significativamente) reduzido de destinatários e se mostrar extraordinário, afastando a incidência do pressuposto ônus social.
Ou seja, é a própria Constituição Federal de 1988 – através do § 6º do seu Artigo 37 – que vai mais bem explicitar quando e como se propõe a eventual indenização: por ato lícito ou ilícito; administrativo, legislativo ou jurisdicional.
Então, a regra na hipótese de restrições administrativas há de ser a da necessária indenização, a fim de garantir aplicação à “teoria da distribuição equânime dos encargos públicos”, salvo naquelas hipóteses em que o gravame muito pouco ou quase nada influir no uso, gozo e fruição do bem pelo seu particular proprietário. Justamente por isto Marçal JUSTEN FILHO[19] faz ressalva, até mesmo, em relação a limitações indenizáveis.
I – A Servidão Administrativa
A primeira e típica estatal restrição à propriedade é a servidão administrativa, ou seja, a instituição, por lei[20] ou por ato administrativo singular e específico, de um direito real de natureza pública, por entidade pública ou por seus delegados, impondo ao titular do bem (exclusivamente) imóvel a obrigação de suportar um ônus parcial (apenas um pati para Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO e também uma obrigação de não fazer, para Marçal JUSTEN FILHO), restringindo seu uso e gozo, por conta de uma utilidade pública (serviço, bem etc.).
É o caso que se propõe, e.g., face à passagem de fios elétricos sobre imóveis particulares, aquedutos sob eles, o trânsito através deles. Em tais situações, a indenização é presumida e necessária; a exceção somente se dá quando o ônus for de tal monta que nada venha a influir em sua econômica avaliação.
Apenas como exemplo, no caso de posteamento de energia elétrica, a indenização tem variado entre 20 e 30% do valor da terra nua, sem prejuízo da investigação do gravame em cada caso. Eis outros precedentes do nosso E. Superior Tribunal de Justiça:
“Ementa: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. SERVIDÃO ADMINISTRATIVA. PASSAGEM DE LINHA DE TRANSMISSÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. INDENIZAÇÃO. ELEVAÇÃO DE ÍNDICE. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. JUROS COMPENSATÓRIOS. INCIDÊNCIA. DISSÍDIO NOTÓRIO. SÚMULAS 07 E 56 STJ. A fixação do índice incidente (20%) sobre o valor das terras desapropriadas, para passagem da linha de transmissão de energia elétrica, obedeceu a critérios técnicos, envolvendo questões objetivas que forneceram os subsídios necessários à formação da convicção do julgador. (…) Recurso conhecido e provido parcialmente.” (STJ, 2ª Turma, REsp 77522 / SP – RECURSO ESPECIAL 1995/0054800-3. Relator Ministro Francisco Peçanha Martins, julgado em 25/05/1999 e publicado aos 23/08/1999 – destacamos.)
“Ementa: ADMINISTRATIVO – SERVIDÃO ADMINISTRATIVA – LINHAS DE TRANSMISSÃO DE ENERGIA ELÉTRICA – DECRETO DO PODER EXECUTIVO DE DECLARAÇÃO DE CONSTITUIÇÃO DA SERVIDÃO – AUSÊNCIA. 1. Segundo a doutrina, as servidões administrativas, em regra, decorrem diretamente da lei (independente de qualquer ato jurídico, unilateral ou bilateral) ou constituem-se por acordo (precedido de ato declaratório de utilidade pública) ou por sentença judicial (quando não haja acordo ou quando adquiridas por usucapião). 2. Não observadas as formalidades necessárias à implementação da servidão administrativa (decreto de declaração de utilidade pública), em atenção ao princípio da eficiência e da continuidade do serviço público, deve ser mantida a servidão, com a indenização correspondente à justa reparação dos prejuízos e das restrições ao uso do imóvel, como ocorre com a desapropriação indireta. 3. Recurso especial não provido.” (STJ, 2ª Turma, REsp 857.596/RN. Relatora Ministra ELIANA CALMON, julgado em 06/05/2008, DJe 19/05/2008 – negritamos.)
Ademais, dado que com tal instituto não se visa proteger qualquer situação de urgência e/ou emergência, entendemos que o PRÉVIO devido processo legal e é condição de validade (conforme o Art. 5º, inciso LIV da CF/88: ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal), restando adotar processo equivalente ao da desapropriação para a justa e prévia indenização e, não havendo acordo, posterior condenação em juros de mora, correção monetária, honorários de advogado, de perito etc., tudo conforme o art. 40 do Decreto-Lei nº 3365/41.[21]
Outrossim, se a tomada de posse do trecho ocorrer antes da indenização, dever-se-á somar, também, juros compensatórios, a contar de tanto.
II – O Tombamento
Para Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO,[22] tombamento é um tipo de servidão administrativa, na exata medida em que o titular do imóvel tem restritos seus poderes de uso ou gozo, porque não mais pode alterar o bem. Na mesma esteira é o magistério de JUSTEN FILHO,[23] o qual, entretanto, justifica um apartado tratamento por conta de suas particularidades.
A mais evidente é aquela que consiste na própria essência do tombamento, manter o móvel/imóvel no estado em que se encontra – EM BOA CONSERVAÇÃO –, haja vista sua prévia qualificação administrativa, como de inestimável valor histórico e artístico etc, tudo nos termos da Constituição:
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (…)
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” (destaques nossos.)
É dizer: o grame é especialíssimo, gera obrigações de não fazer e de fazer (especialmente a de manter a identidade do imóvel) e, conforme o caso, piormente inviabiliza por completo a exploração que dele se esperava.
Exatamente de tal circunstância irrompe a obrigação de indenizar e na exata proporção do “dano” causado. Se total, converter-se-ia o tombamento em “desapropriação indireta”, dada a evidente impossibilidade de fruição do bem pelo proprietário. Se parcial, o quantum indenizatório deveria, com exatidão e a priori, reintegrar o patrimônio violado, e, por evidente, com oportunização de prévio contraditório e ampla defesa. Na hipótese de não sobrevir qualquer embaraço à sua ordinária utilização, não se cogita de indenização, porque ausente o dano.
Caso contrário:
“Ementa: ADMINISTRATIVO. TOMBAMENTO. INDENIZAÇÃO. BEM GRAVADO EM CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE, IMPENHORABILIDADE, USU-FRUTO E FIDEICOMISSO. 1. O proprietário de imóvel gravado com cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade, impenhorabilidade, usufruto e fideicomisso tem interesse processual para ingressar com ação de desapropriação indireta quando o referido bem é tombado. 2. O pedido só é considerado juridicamente impossível quando contém pretensão proibida por lei, ex: cobrança de dívida de jogo. 3. O ato administrativo de tombamento de bem imóvel, com o fim de preservar a sua expressão cultural e ambiental, esvaziar-se, economicamente, de modo total, transforma-se, por si só, de simples servidão administrativa em desapropriação, pelo que a indenização deve corresponder ao valor que o imóvel tem no mercado. Em tal caso, o Poder Público adquire o domínio sobre o bem. Imóvel situado na Av. Paulista, São Paulo. 4. Em sede de ação de desapropriação indireta não cabe solucionar-se sobre a permanência ou não dos efeitos de gravames (inalienabilidade, incomunicabilidade, impenhora-bilidade, usufruto e fideicomisso) incidentes sobre o imóvel. As partes devem procurar afastar os efeitos de tais gravames em ação própria. 5. Reconhecido o direito de indenização, há, por força de lei (art. 31, do DL 3.365, de 21.6.41), ficarem sub-rogados no preço quaisquer ônus ou direitos que recaiam sobre o bem expropriado. 6. Em razão de tal dispositivo, ocorrendo o pagamento da indenização, deve o valor ficar depositado, em conta judicial, até solução da lide sobre a extensão dos gravames. 7. Recurso improvido.” (STJ, 1ª. Turma, REsp 220983 / SP; RECURSO ESPECIAL 1999/0057694-2. Relator Ministro José Delgado, julgado em 15/08/2000 e publicado aos 25/09/2000.)
Contudo, o ônus de manutenção não pode ser imputado a quem não detiver condições econômicas para tanto, como bem se extrai do Decreto-Lei nº 25/1937 – já destacado:
“Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 (Promulgação em 30/11/1937)
Art. 19. O proprietário de coisa tombada, que não dispuzer de recursos para proceder às obras de conservação e reparação que a mesma requerer, levará ao conhecimento do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a necessidade das mencionadas obras, sob pena de multa correspondente ao dobro da importância em que fôr avaliado o dano sofrido pela mesma coisa.
§ 1º Recebida a comunicação, e consideradas necessárias as obras, o diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional mandará executá-las, a expensas da União, devendo as mesmas ser iniciadas dentro do prazo de seis mezes, ou providenciará para que seja feita a desapropriação da coisa.
§ 2º À falta de qualquer das providências previstas no parágrafo anterior, poderá o proprietário requerer que seja cancelado o tombamento da coisa.
§ 3º Uma vez que verifique haver urgência na realização de obras e conservação ou reparação em qualquer coisa tombada, poderá o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tomar a iniciativa de projetá-las e executá-las, a expensas da União, independentemente da comunicação a que alude êste artigo, por parte do proprietário.”
Apenas uma ressalva: Antonio A. Queiroz TELLES[24] ofereceu diversa solução já na década de noventa, propugnando não por uma indenização em dinheiro, mas pela concessão de privilégios (quiçá tributários) em favor do proprietário prejudicado com o gravame. Contudo – pelas esposadas razões, data venia – ratificamos a solução em pecúnia como a (única) acertada, ainda mais porquanto tal seja a constitucional indicação para as desapropriações de bens que estão a cumprir sua função social.
III – A Ocupação Temporária
Esta é a mais simplória e comezinha situação de restrição à propriedade, e que, por isto mesmo, quase nunca gera direito à indenização.
Assim prescreve a Carta da República em seu Artigo 5º:
“XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano.”
Ora! Se por um lado os Constituintes merecem loas pela previsão, por outra nada mais fizeram que descrever o óbvio: a vida em sociedade exige sacrifícios recíprocos, de cada ser social para com os demais, impondo a uns e a outros, indistintamente, concorrer para a solidária satisfação dos interesses da coletividade.
Neste contexto, nem parece crível cogitar de proibição de ingresso de Bombeiros em terreno lindeiro a casa em chamas, nem – muito menos – de prévia instauração do due process of law. Na urgência e emergência da situação, a transitoriedade do embaraço e a falta de vontade na sua perpetuação (ao reverso do que se dá em sede de servidões, que se presumem perenes), a tomada da posse, do bem móvel ou imóvel, urge e como condição sine qua non para material concretização do interesse público que se visa proteger (segurança coletiva e/ou do patrimônio, no caso).
Portanto, só haverá indenização – e a posteriori – desde que comprovado e na extensão do dano, competindo ao poder público, sempre que possível, devolver o bem nas mesmas condições em que “tomado por empréstimo”.
IV – Requisição de Bens (e serviços)
De forma muito similar à ocupação temporária, a requisição de bens e serviços se propõe apenas em situações especialíssimas, de iminente perigo público, nas quais quem competente expede ato unilateral não formal, ordem verbal (por exemplo), exigindo do proprietário que forneça bens e/ou serviços aptos a urgentemente auxiliarem na desconstituição da situação de perigo.
Referidos bens e serviços (e.g. auxiliar em queda de aeronave), entretanto, são consumíveis por natureza, impondo-se ao agente requisitante, assim que possível, instaurar processo administrativo visando apurar o real gravame causado ao particular para pronto ressarcimento.
Imagine-se o mesmo exemplo anterior: de bombeiros que ingressam em imóvel particular para debelar incêndio em edificação vizinha, mas que, com o passar do tempo, verificam que a água estocada nos carros-tanque não terá condições de fazer frente às necessidades do heróico serviço. Em tal caso e havendo no imóvel temporariamente ocupado uma piscina, poderá o comandante da operação requisitar a água ali depositada, a qual só se cogita de utilidade se efetivamente empregada e consumida no combate ao incêndio.
Portanto, na hipótese, duas seriam as providências para fins de ressarcimento: a) verificar se o ingresso ou mesmo a ocupação do imóvel causou dano para posterior pagamento de indenização e, ao mesmo tempo, b) desde logo encher novamente a piscina e às expensas do Poder Público ou, eventualmente, pagar-lhe o preço equivalente aos metros cúbicos consumidos d’água.
V – Desapropriação
Enfim, para ultimarmos nosso estudo acerca das estatais ingerências junto à propriedade privada (ou mesmo pública, nos limites da Constituição Brasileira),[25] basta analisar a desapropriação, como assim concebida por Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO:
“Procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de certo bem, normalmente adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estarem em desacordo com a função social legalmente caracterizadas para eles, a indenização far-se-á em títulos da dívida pública, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservados seu valor real.”[26]
Desde logo é muitíssimo fácil constatar haver duas ordens constitucionais de desapropriação bem distintas: uma a exigir prévia e justa indenização em dinheiro (Art. 5º, inciso XXIV); outra autorizando que se dê o ressarcimento ao longo do tempo, mediante resgate anual e sucessivo de títulos públicos[27] [Art. 182, § 4º inciso III (em nome da política urbana e, pois, apenas no âmbito municipal) e Art. 184 (e seguintes, para fins de Reforma Agrária)].[28]
De fato, nosso objetivo não visa o aprofundamento desse instituto, o qual por si só ensejaria um apartado estudo.[29] Nada obstante, vale referir alguns dos elementos mais distintivos da desapropriação (especialmente de bens que cumprem sua função social) em cotejo com os principais caracteres das outras estatais e já referidas manifestações.
O primeiro se revela pela própria natureza da desapropriação – de procedimento – ou seja, de uma sucessão concatenada e preordenada de atos do Poder Público destinados a um específico fim. O procedimento abarca uma fase dita declaratória, na qual se anuncia a “afetação pública” do bem, e outra executória – que contempla providências concretas para efetivar a manifestação de vontade da declaração. Esta última pode ser, ainda, extrajudicial (quando há consenso entre as partes e relativo ao preço) e judicial (quando não há acordo, incumbindo ao expropriante ingressar em juízo com “ação expropriatória”, visando judicial arbitramento do “preço justo”). Nos demais assim não se dá, conforme visto.
O segundo elemento marca a desapropriação como forma originária e compulsória de aquisição de propriedade, que não provém de título anterior qualquer e não exige autorização judicial (apenas legislativa) para sua implementação. Nas outras hipóteses (de limitações, tombamento, ocupação, requisição etc.) jamais se cogitou de aquisição da propriedade, até mesmo porque isto a Administração Pública nunca voluntariamente pretendeu.
Uma terceira e não menos relevante característica se extrai dos objetos patrimoniais passíveis de afetação (pela desapropriação), muito mais amplos: propriedade imóvel ou móvel; bem corpóreo ou incorpóreo, à exceção dos de natureza personalíssima (imagem, liberdade…) e a moeda corrente do país – pela sua evidente fungibilidade com o próprio meio de pagamento do justo[30] preço. Por tais razões, a desapropriação não se confunde com as demais intervenções estatais.
O quarto é o necessário deferimento do prévio contraditório e da ampla defesa como condição de validade da estatal pretensão, posto que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (Art. 5º. Inciso LIV da Constituição da República). Todavia, a esmagadora maioria da doutrina brasileira de outrora e contemporânea sugere que o referido e constitucional direito encontraria barreiras na própria declaração pública, desautorizando sua investigação e, em especial, sua objeção pelo proprietário do bem (em regra, o particular).[31]
Não nos parece que seja assim, na exata medida em que a limitação imposta à judicial investigação do mérito da desapropriação (se lastreada em juízo de oportunidade e conveniência) não pode elidir sua fulminação em hipóteses de desvio de finalidade, por exemplo. Eis uma já operada exceção no E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
“Ementa: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. MUNICÍPIO DE SINIMBU. PARQUE MUNICIPAL DE LAZER E CULTURA. DECRETO EXPROPRIATÓRIO QUE REVOGA O ANTERIOR. AÇÃO DE ANULAÇÃO POR ALEGADO DESVIO DE FINALIDADE. IMPROCEDÊNCIA DA DESAPROPRIAÇÃO E PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DE ANULAÇÃO NA ORIGEM. DESVIO DE FINALIDADE QUE SE CARACTERIZA. IMPROVIMENTO. SENTENÇA QUE SE MANTÉM. APELAÇÃO NÃO PROVIDA. SENTENÇA CONFIRMADA EM REEXAME NECESSÁRIO.” (tjrs, 4ª cÂMARA Cível, Apelação e Reexame Necessário Nº 70002016103. relator Desembargador WELLINGTON PACHECO BARROS, julgado em 07/03/2001 – destacamos)
Enfim, o último e evidente marco da desapropriação é a necessária indenização e que se exige ainda prévia, justa e em dinheiro em relação aos imóveis que cumprem sua função social. Para os outros (que não a cumprem), ainda assim a indenização é o pressuposto de válida desapropriação, sob pena de se reconhecer, de fato e de direito, a ocorrência de esbulho possessório. Nem mais, nem menos.
De outra banda, merece referência o seu fundamento político, qual seja, a supremacia do interesse público sobre o individual[32] quando incompatíveis, e a partir da própria noção de interesse público primário (que não se confunde com o secundário – dito interesse da Administração Pública – e de índole nitidamente patrimonial e personalizada).
Vale comentar, ainda, que os fundamentos infraconstitucionais da desapropriação continuam os mesmos das décadas de quarenta (Decreto-Lei nº. 3.365/41 – que versa sobre a Desapropriação por Utilidade Pública, nas modalidades Necessidade e Utilidade), sessenta (Lei nº. 4.132/62 – que trata da Desapropriação por Interesse Social) e setenta (Decreto-Lei nº. 1.075/70 que regula a imissão na posse pelo poder público), de sorte que nunca houve significativas mudanças no seu trato desde então.
Outrossim, apresentam-se como requisitos para válida desapropriação tanto a sua idônea causa (declarada em decreto pelo Poder Executivo como o Poder Legislativo: necessidade pública ou a utilidade pública ou o interesse social – assim)[33] como o pagamento de justa indenização.
No entanto, diferem os prazos de caducidade por conta do que o bem fica afetado – “gravado pelo interesse, público (necessidade ou utilidade pública) ou social” – até a promoção da etapa executória da desapropriação, sendo de cinco anos na primeira hipótese e de dois anos na segunda, a contar da data da publicação do decreto expropriatório (da declaração, pois) de sorte que tal não impede seu uso, gozo ou mesmo a fruição pelo proprietário, exceto no que diz para com novéis benfeitorias voluptuárias, que não mais serão objeto de indenização (se levado a cabo o processo), e as úteis, desde que com prévia autorização.[34]
Referida declaração presta-se, portanto, para: a) submeter o bem à força expropriatória do Estado; b) fixar o estado do bem, isto é, precisar-lhe as condições e melhorias e c) conferir ao Poder Público o direito de penetrar no bem a fim de fazer verificações e mediações (com moderação e sem excesso de poder).
Por sua vez, caracteriza-se como justa indenização aquela que corresponde real e efetivamente ao valor do bem expropriado, quer dizer, aquela cuja importância deixe o antigo proprietário absolutamente indene, sem prejuízo algum de seu patrimônio. É a que se consubstancia em importância que possibilita adquirir outro bem perfeitamente equivalente e se vê acrescida, portanto, dos juros moratórios, juros compensatórios, correção monetária, honorários advocatícios e demais despesas decorrentes:
“Ementa: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. DESAPROPRIAÇÃO. INDENIZAÇÃO. COBERTURA VEGETAL. SÚMULA 7/STJ. JUROS MORATÓRIOS E COMPENSATÓRIOS.
SÚMULA 12/STJ. INDENIZAÇÃO DEVIDA. JUROS COMPENSATÓRIOS. 12 %. SÚMULA 618/STF. 1. A jurisprudência tem oscilado no entendimento quanto à indenização das matas nativas, mas pacificou-se no sentido de indenizar a cobertura vegetal, não configurando bis in idem, conforme pleiteado pelo agravante. 2. Ademais, os critérios de aferimento no tocante ao quantum indenizatório estão adstritos às instâncias ordinárias, ante a necessária análise do conjunto fático-probatório atraindo a incidência da Súmula 07/STJ. 3. São devidos juros compensatórios pela perda da propriedade, independentemente de se tratar de imóvel improdutivo, segundo a jurisprudência do STJ. 4. A cumulação dos juros compensatórios e moratórios, na hipótese de desapropriação, está em perfeita consonância legal, conforme verifica-se no enunciado Sumular nº 12/STJ. 5. É assente na jurisprudência a fixação dos juros compensatórios na alíquota de 12% (doze por cento) ao ano, adotando o entendimento preconizado na Súmula 618/STF para os casos de desapropriação direta ou indireta. 6. Nos casos de desapropriação, os juros compensatórios são cabíveis desde a imissão na posse nos casos de desapropriação direta e, na indireta, desde a efetiva ocupação. Se a imissão ou ocupação se deu na vigência da MP 1.577/97 e antes da suspensão pelo STF da expressão “até seis por cento”, os juros compensatórios deverão incidir no percentual de 6% (seis por cento) ao ano, caso contrário o percentual será o de 12% (doze por cento). (…) 7. Agravo regimental não-provido.” (STJ, 1ª. Turma, AgRg no Ag 721959/AC; AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2005/0191207-0. Relator Ministro José Delgado, julgado em 15/03/2007 e publicado aos 12/04/2007).
Por sua vez, eis o sumulado entendimento de nosso Excelso Supremo Tribunal Federal acerca dos aspectos relevantes para a fixação do quantum indenizatório:
Súmula 652: NÃO CONTRARIA A CONSTITUIÇÃO O ART. 15, § 1º, DO DECRETO-LEI 3365/1941” (LEI DA DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA – Aprovada em 24/09/2003) [35]
“Súmula 618: NA DESAPROPRIAÇÃO, DIRETA OU INDIRETA, A TAXA DOS JUROS COMPENSATÓRIOS É DE 12% (DOZE POR CENTO) AO ANO” (Aprovada em 17/10/1984).
“Súmula 617: A BASE DE CÁLCULO DOS HONORÁRIOS DE ADVOGADO EM DESAPROPRIAÇÃO É A DIFERENÇA ENTRE A OFERTA E A INDENIZAÇÃO, CORRIGIDAS AMBAS MONETARIAMENTE” (Aprovada em 17/10/1984).
“Súmula 561: EM DESAPROPRIAÇÃO, É DEVIDA A CORREÇÃO MONETÁRIA ATÉ A DATA DO EFETIVO PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO, DEVENDO PROCEDER-SE À ATUALIZAÇÃO DO CÁLCULO, AINDA QUE POR MAIS DE UMA VEZ” (Aprovada em 15/12/1976).
“Súmula 378: NA INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INCLUEM-SE HONORÁRIOS DO ADVOGADO DO EXPROPRIADO” (Aprovada em 03/04/1964).
“Súmula 23: VERIFICADOS OS PRESSUPOSTOS LEGAIS PARA O LICENCIAMENTO DA OBRA, NÃO O IMPEDE A DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA PARA DESAPROPRIAÇÃO DO IMÓVEL, MAS O VALOR DA OBRA NÃO SE INCLUIRÁ NA INDENIZAÇÃO, QUANDO A DESAPROPRIAÇÃO FOR EFETIVADA” (Aprovada em 13/12/1963).
Enfim, esse um reduzidíssimo perfil da desapropriação[36] – a mais gravosa e estatal ingerência do Poder Público junto à propriedade privada (ou mesmo pública, nas referidas situações), que permite tomá-la para si (quando por utilidade pública) ou mesmo em prol e para terceiros (sempre que calçada no descumprimento da função social), desde que (em regra – sic) mediante prévia e justa indenização em dinheiro (no primeiro caso) ou em títulos da dívida pública, resgatáveis anual e sucessivamente em até dez ou vinte anos (no segundo; sendo em relação a imóvel urbano ou rural, respectivamente).
Logo, restam sinteticamente apresentadas não apenas a propriedade (privada) em sua feição constitucional – e que exige a material realização da função social exigida, em cada caso, para viabilizar seu reconhecimento como tal – mas também os pressupostos e os limites à indenização devida ao seu titular, por conta das ingerências do Poder Público Brasileiro nessa seara.
Informações Sobre o Autor
Daniel Ferreira.
Doutor e Mestre em Direito do Estado (Direito Administrativo) pela PUC/SP e Professor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito de Curitiba, bem como Professor (do Corpo Docente Permanente) e Coordenador do Programa de Mestrado em Direito do UNICURITIBA. É, ainda, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA), Membro Efetivo do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e Membro Eleito do Conselho de Pesquisadores (e Efetivo) do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado (IIEDE), além de Advogado Militante e Parecerista em Curitiba