A prova da embriaguez ao volante em face da Lei nº 11.275, de 7 de fevereiro de 2006

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A embriaguez ao volante, sabidamente, é uma das principais causas de acidentes e mortes no trânsito brasileiro. O álcool e as demais substâncias de efeitos embriagantes atuam diretamente sobre o sistema nervoso central, diminuindo sensivelmente a capacidade de reação diante das adversidades surgidas durante as viagens.

Diante deste cenário, o legislador pátrio, ao elaborar a lei nº 9.503, de 21 de setembro de 1997 (CTB), reservou recrudescido tratamento àquele que é surpreendido dirigindo veículo automotor sob efeito de álcool ou de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos, tipificando a sua conduta como infração administrativa[1] e, tendo gerado perigo de dano, também como crime de trânsito[2].

Assim é que, ab initio, é preciso distinguir: 1) se o motorista é surpreendido dirigindo veículo automotor, na via pública, sob efeito de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, mas o fazia de maneira regular, sua conduta subsume-se apenas e tão somente na infração administrativa tipificada no art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB); 2) de outro norte, se sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, conduzia o automotor  de forma a expor a dano potencial a incolumidade de outrem, v.g., de maneira anormal[3], sua conduta, além de caracterizar infração administrativa, também constitui o crime de embriaguez ao volante tipificado no art. 306 do CTB.

Da mesma forma, também na seara da prova do estado de ebriedade do motorista o legislador reservou procedimentos diversos.

Tratando-se de conduta que se amolda ao crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB), a prova da ebriedade deverá seguir os procedimentos determinados no Título VII do Código de Processo Penal (CPP), notadamente em seu Capítulo II, que versa sobre o exame de corpo de delito e as perícias em geral, vez tratar-se de delicta facti permanentis. Aliás, expresso o art. 291 do CTB ao prescrever que aos crimes previstos naquele Codex se aplicam as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso(grifo nosso). Nada diz o Capítulo XIX do CTB sobre a prova da embriaguez ao volante; portanto, aplicáveis à espécie as regras gerais preconizadas no CPP.

Veja-se então que, sendo o motorista surpreendido dirigindo anormalmente veículo automotor na via pública, sob efeito de álcool ou de outra substância de efeitos análogos, deverá ser encaminhado para submissão ao indispensável exame pericial comprobatório do seu estado de ebriedade, nos termos do art. 158 do CPP, e, somente diante do desaparecimento dos vestígios do seu irresponsável estado, v.g., em razão da demora no atendimento, restará a possibilidade do suprimento daquele exame pela prova testemunhal, consoante previsto no art. 167 do Estatuto Processual Penal.

Neste ponto, desde logo, é importante salientar que o motorista não está obrigado a ceder sangue ou soprar no bafômetro[4]; contudo, neste caso, os peritos realizarão o exame clínico.

Questão controvertida é a prova da ebriedade do condutor quando sua conduta caracteriza apenas a infração administrativa de trânsito, descrita no art. 165 do CTB. Este é o objeto do presente ensaio.

A redação original do art. 277 do CTB, que se insere no Capítulo XVII do Código de Trânsito Brasileiro – Das medidas Administrativas, dispunha que todo condutor que se envolvesse em acidente de trânsito ou fosse alvo de fiscalização, sob suspeita de haver excedido os limites previstos no artigo anterior[5], deveria ser submetido aos testes de alcoolemia e outros, in verbis: será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN. (grifo nosso)

O Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) editou então a Resolução nº 81, de 19 de novembro de 1998, especificando os referidos exames: 1) teste em aparelho de ar alveolar (bafômetro); 2) exame clínico com laudo conclusivo firmado pelo médico examinador da Polícia Judiciária; e 3) exames realizados por laboratórios especializados indicados pelo órgão de trânsito competente ou pela Polícia Judiciária.

Saliente-se ainda que, no caso da embriaguez alcoólica, o art. 165 do CTB tipificava apenas a conduta daquele que dirigisse com nível superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue[6]. Como atestar o desrespeito a tal índice através do exame clínico?  Na prática, desprezava-se para aplicação da penalidade, no caso de laudo conclusivo do perito examinador, a informação acerca da precisa quantidade de álcool por litro de sangue do examinado.

Veio então a Lei nº 11.275, de 7 de fevereiro de 2006, e deu nova redação aos artigos 165, 277 e 302 do CTB.

Corrigindo a imperfeição da redação original do art. 165, prescreveu a nova lei que é infração de trânsito Dirigir sob influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.[7]

No art. 302 do CTB, acrescentou o inciso V no seu parágrafo único, transformando a embriaguez ao volante em causa de aumento de pena do crime de homicídio culposo no trânsito e, conseqüentemente, também no de lesão corporal culposa no trânsito. Fez assim cessar a dissidência doutrinária que havia sobre a embriaguez ao volante ser ou não absorvida pelos referidos delitos[8].

Já no art. 277 do CTB, transformou o parágrafo único em primeiro e inseriu o § 2º, determinando, in verbis: no caso de recusa do condutor à realização dos testes, exames e da perícia previstos no caput deste artigo, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas pelo agente de trânsito acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor.

Severas críticas foram formuladas em desfavor do § 2º do art. 277 do CTB, apregoando-o de inconstitucional por violação ao princípio da ampla defesa e taxando-o de instrumento de obtenção de prova ilícita. Na verdade, data máxima vênia, tais ponderações não revelam o melhor entendimento.

Primeiramente, é imprescindível relembrar a dicotomia descrita no início deste trabalho: a embriaguez ao volante tanto pode caracterizar crime de trânsito quanto pode, apenas e tão somente, estreitar-se na esfera da infração administrativa.

No âmbito penal, a prova do estado de ebriedade, como já visto, deve seguir os exatos ditames do Código de Processo Penal. Já na seara administrativa, os do art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro.

Veja-se que o caput e § 1º do art. 277 do CTB estabelecem que o condutor surpreendido sob suspeita de dirigir sob efeito de álcool ou de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos será submetido aos testes respectivos.

Todavia, como corolário do princípio da ampla defesa, é cediço que o condutor não é obrigado a soprar no bafômetro e tão pouco ceder sangue para o exame laboratorial.

Restaria a sua submissão ao exame clínico perante o perito médico-examinador. E se o motorista se recusar a deslocar até o hospital ou outro local para a realização do exame? Poderia ele ser conduzido coercitivamente para tal ato, inclusive com o emprego da força necessária? Caso negativo, deveria então ser liberado para prosseguir viagem, colocando em risco a segurança viária e a vida das pessoas no trânsito?

Neste ponto vale lembrar as lições do Procurador de Estado Paulista Prof. Delton Croce Júnior ao comentar o exame de embriaguez em face da original redação do art. 277 do CTB[9]:

A recusa do indivíduo em submeter-se ao exame clínico pericial a que não está obrigado e para cuja feitura não permite sequer a lei condução coercitiva, sendo, nessa hipótese, inaplicável o art. 201 do Código de Processo Penal, será a negativa consignada em documento próprio e o exame clínico somatopsíquico ou o laboratorial suprido, consoante o art. 167 do mesmo Código, por prova testemunhal coerente, idônea, à qual a jurisprudência tem reconhecido validade para comprovar, ante a publicidade escandalosa da contravenção, o estado de embriaguez do agente.

Justamente para solucionar a questão, foi que o legislador pátrio estabeleceu, no novo § 2º do art. 277 do CTB, que, no caso de recusa do motorista em submeter-se aos testes, exames e perícias previstos, o agente de trânsito poderá se valer de outros meios de prova em direito admitidos para a comprovação dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor.

O CONTRAN, regulamentando tal dispositivo legal, editou a Resolução nº 206, de 20 de outubro de 2006, disciplinando o procedimento dos agentes de trânsito diante de tal situação, inclusive estabelecendo detalhado relatório a ser preenchido e assinado pelo agente e por testemunhas.

Não há que se falar em violação ao princípio da ampla defesa. Não há prova ilícita.

No caso, diante de uma gravíssima infração administrativa de trânsito, que causa sério e iminente risco à segurança viária, não poderia ficar o Poder Público despido de qualquer medida capaz de superar a negativa do condutor de se submeter aos testes em questão. Enfatize-se, é uma escolha livre do motorista. É ele quem decide: se quiser se submeter aos testes, o fará; caso negativo, a sua recusa é suprida por outros meios de prova em direito admitidos. A recusa não constitui confissão[10] e seu estado deve restar comprovado por outros instrumentos probatórios.

Não pode a torpeza do motorista, que sabidamente dirige sob influência de álcool ou outra substância de efeitos análogos, militar a seu favor em desprezo do interesse público da segurança do trânsito. Seria muito simples: me recuso aos testes e nenhuma medida administrativa pode ser adotada em meu desfavor.

Salutares os ensinamentos do eminente Prof. Alexandre de Moraes[11]:

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Os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

Novamente ressalte-se que não se está aqui tratando do caso do cometimento de crime de trânsito de embriaguez ao volante, circunstância em que o exame pericial é obrigatório e que o condutor, indubitavelmente, poderá, se for o caso, ser conduzido coercitivamente para o exame pericial, ainda que não obrigado a soprar no bafômetro ou ceder sangue para exame laboratorial. É o caso de, apenas e tão somente, infração de trânsito.

O interesse público, consubstanciado no direito coletivo ao trânsito em condições seguras, não pode sucumbir em face da negativa do motorista. Como bem salienta a Douta Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais[12].

Ademais, a constatação da embriaguez não é deixada ao puro deleite do agente de trânsito; ao contrário, dar-se-á através dos meios de prova em direito admitidos e, notadamente, nos termos da Resolução nº 206/06 do CONTRAN.

Assim é que, diante da fundada suspeita de que o condutor dirige sob efeito de álcool ou outra substância de efeitos análogos, o agente de trânsito deverá convidá-lo a se submeter aos exames e perícias preconizados no art. 277 do CTB e na Resolução nº 206/06 do CONTRAN. Diante da recusa do motorista, que, ao nosso ver, em face de mera infração administrativa de trânsito não poderá ser conduzido coercitivamente para realização do exame clínico perante o médico da Polícia Judiciária[13], deverá então o agente se valer de outros meios de prova em direito admitidos para a comprovação do seu estado de ebriedade, dentre os quais destaca-se a prova testemunhal.

O ideal é que o agente de trânsito se valha de pessoas idôneas e desinteressadas para a produção da prova testemunhal. Contudo, diante de eventual impossibilidade, nada obsta que o estado de “influência de álcool” seja por ele mesmo aferido, diante dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo de álcool ou entorpecentes, apresentados pelo condutor, a serem perenizados no relatório específico[14].

Acerca da prova testemunhal na constatação do estado de embriaguez, lapidares as lições do Prof. Genival Veloso de França[15]:

A caracterização de um estado de embriaguez é sempre um critério clínico em que se procura evidenciar a capacidade de autodeterminar-se normalmente, revelada pelo agente ao tempo do evento criminoso, competindo ao perito averiguar se as suas condições somatoneuropsíquicas configuram as especificações da lei. Ou um critério de avaliação testemunhal:

“Sendo relativa, para cada indivíduo, a influência do álcool, prevalece a prova testemunhal sobre o laudo positivo de dosagem alcoólica. Impõe-se a solução, eis que aquela informa com maior segurança sobre as condições físicas do agente” (TACrim – AC – Juricrim – Relator Correia das Neves Franceschini, nº 2.008)”  (grifo nosso)

Cumpre destacar que a prova no direito administrativo não se reveste das mesmas exigências e formalidades da esfera penal e, ainda, que milita, a favor da embriaguez regularmente aferida pelo agente de trânsito, a presunção de veracidade própria dos atos da Administração Pública, a qual poderá ser afastada pelo condutor também através dos meios de prova em direito admitidos.

Em conclusão, após constatar o estado de embriaguez alcoólica ou de substância de efeito análogo, quer através dos exames ou perícias determinados no art. 277 do CTB e Resolução nº 206/06 do CONTRAN, quer através de outros meios de prova em direito admitidos, o agente de trânsito deverá adotar as medidas administrativas cabíveis na espécie, ou seja, a retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e em boas condições físicas e psíquicas, além da lavratura da respectiva autuação por infração ao art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro.

 

Referências bibliográficas
JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 1998.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 12ª Ed. São Paulo: Atlas, 2000.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
RIBEIRO, Geraldo de Faria Lemos Pinheiro e Dorival. Código de Trânsito Brasileiro Interpretado. 2ª Ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
JÚNIOR, Delton Croce e Delton Croce. Manual de Medicina Legal. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S.A., 2001.
Notas:
[1] Art. 165 do CTB: Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica. Parágrafo único: A infração também poderá ser apurada na forma do art. 277.   Infração: gravíssima. Penalidade: multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir. Medida Administrativa: retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.
[2] Art. 306 do CTB: Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem. Penas: detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor.
[3] JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p.155.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Anotado. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 369
[5] Art. 276 do CTB: A concentração de seis decigramas de álcool por litro de sangue comprova que o motorista se acha impedido de dirigir veículo automotor.
[6] Art. 165 do CTB (redação original da Lei nº 9.503/97): Dirigir sob a influência de álcool, em nível superior a seis decigramas por litro de sangue, ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica.
[7] Redação dada ao caput do art. 165 do CTB pela Lei nº 11.275/06
[8] JESUS, Damásio Evangelista de. Op.cit., p. 162 e163
[9] JÚNIOR, Delton Croce e Delton Croce. Manual de Medicina Legal. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 103.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 369
[11] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 53.
[12] PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 12ª Ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 69.
[13] Art. 5º, LXI da CF/88
[14] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 317.
[15] FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S.A., 2001, p. 301

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Adriano Aranão

 

1º Tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Instrutor de Legislação de Trânsito em cursos da Polícia Militar Rodoviária e Professor da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO

 


 

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