A prova oral e a ampla defesa – pertinência e limites

Resumo: Este trabalho investiga e relaciona diversos aspectos inerentes aos institutos que envolvem e que informam o princípio da ampla defesa, com as manifestações, no plano teórico e prático, das provas orais previstas e permitidas em nosso ordenamento jurídico. O estudo se volta aos processos judiciais e aos procedimentos disciplinares, buscando revelar e questionar a ocorrência de afrontas a direitos fundamentais, consistentes no cerceamento ilícito dessas espécies de prova, o que, em última análise, ofende a garantia do devido processo legal.[1]

Palavras-chave: Ampla defesa, Prova oral, Devido Processo Legal.

Abstract: This work investigates and relates various aspects related to institutes that inform and involve the principle of full defense with the demonstrations, at the theoretical and practical, of the oral evidence provided and permitted in our legal system. The study turns to judicial and disciplinary procedures, seeking to reveal and question the occurrence of affronts to fundamental rights, consistent in the illicit retrenchment in these kinds of tests, which ultimately offends the guarantee of due process of law.

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Keywords: Full defense, Oral test, Due Process of law.

Sumário: Introdução. 1. Direito e dignidade de resistência. 2. Processo brasileiro e direito de defesa. 2.1. Processo de conhecimento. 2.2. Processo administrativo disciplinar. 3. Direito à prova e devido processo legal. 3.1. O contraditório e a ampla defesa. 3.2. As provas no direito brasileiro. 4. Prova oral e garantias fundamentais. 4.1. Instrumentos da prova oral. 4.2. Admissão e cerceamento ilícito da prova oral. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa cuida, genericamente, do direito de defesa, com especificidades que serão delineadas e centralizadas em alguns instrumentos de prova processual, com destaque para o material probatório fabricado com esteio na oralidade. Porém, este objeto de análise, como qualquer outro, deve encontrar fundamento na razão maior de sua existência – e essa busca, em grande parte, é função de todo esboço introdutório.

No caso que se propõe, falar de instrumentos defensivos, do direito à prova e do devido processo legal, é ter em mente o objetivo maior da dignidade humana, mas como reflexo de um principal atributo, considerado o indivíduo em sua singularidade. Esta condição é, sem sombra de dúvida, a liberdade, que não pode ser abalada senão pelos obstáculos próprios da natureza e pela organização necessária da sociedade, estruturada no ordenamento jurídico.

Liberdade que pode denotar a ausência de submissão ou de servidão, qualificando a independência, e que também é representada pela autonomia e espontaneidade de um sujeito racional, sendo, igualmente, elemento qualificador e constitutivo dos comportamentos voluntários.

Num contexto mais amplo, não é só a liberdade física nem a liberdade política, mas também a que se constituiu como um ideal, um emblema, de todas as lutas contra a opressão e a tirania; é a liberdade de pensamento, que livra o ser humano dessas amarras, para que possa se projetar em todas as dimensões. É a que se confunde, enfim, com um estado de consciência, que irá desembocar em aspectos culturais, sociais, religiosos e espirituais – é o bem maior do Homem, depois da vida.

Por isso este trabalho terá início com algumas considerações sobre o direito de resistência e sobre a grandeza moral que lhe é inerente, porque esta prerrogativa nasce do privilégio da independência e da personalidade, sendo licitamente utilizada, da forma mais ampla possível, contra ações prepotentes e ilegítimas do Estado ou do particular, principalmente se estas condutas se revestem de pretensa legalidade, como quando estão no bojo de procedimentos judiciais ou administrativos.

Adentrará, logo após, na realidade processual brasileira, para examinar tais prerrogativas no âmbito desses expedientes oficiais. Antes, explanará acerca de seus mecanismos (espécies e principais características) – oriundos da legislação adjetiva pátria e do regime disciplinar de servidores públicos –, para se chegar às teorias relacionadas com o devido processo legal e com o direito à prova.

A faculdade que todos possuem de produzir um conjunto probatório é dimensão da ampla defesa, que, por sua vez, será verificada no mesmo plano do princípio do contraditório, pois os elementos de ambos, segundo Greco Filho (1996, p. 90), são indissociáveis dentro da natureza que identifica os cânones fundamentais do Estado Democrático de Direito.

O direito à prova é, portanto, preceito de elevada ordem, insculpido implicitamente na Constituição Federal de 1988, resultado da garantia do due process of law e da recepção, em nosso complexo de normas, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), incorporado pelo Decreto nº 678/69 (Artigo 8º) e, depois, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, inserido pelo Decreto nº 592/92 (Artigo 14.1, Alínea “e”).

Finalmente, duas espécies de prova, produzidas oralmente – o depoimento pessoal e a prova testemunhal –, serão pormenorizadas e verificadas quanto à sua admissão e ao seu indeferimento, o que várias vezes ocorre, neste caso, com o emprego de métodos arbitrários, em detrimento da segurança jurídica que deveria sobrevir da atuação dos órgãos estatais.

Isso ganha relevo diante do caráter instrumental do direito à prova, pois seu objetivo é a consecução de uma prestação jurisdicional do Estado e a realização de procedimentos legítimos pela Administração Pública, tudo revestido de efetividade e justiça, conquanto esse direito não seja irrestrito, merecendo, por isso mesmo, a motivação de toda e qualquer sentença que interfira no seu mais amplo exercício.

1. DIREITO E DIGNIDADE DE RESISTÊNCIA

Pressupostos de muitos avanços e conquistas, a raça humana tem sobre seus ombros o enorme fardo da insurgência, o inarredável atributo de seus levantes – capacidade de indignação frente ao injusto e ao ilícito –, e, ao seu lado, necessária oposição, um estado de paz, de satisfação, de ordem.

O Homem, porque resiste contra qualquer fator que ameace sua sobrevivência ou que represente hostilidade aos valores éticos ou morais, vai marcando o mundo com frutos de seu inconformismo – e isto, em apertada síntese, traduz-se no genuíno e amplo direito de defesa, que sempre justificou as inúmeras rebeliões e revoluções históricas.

No Leviatã (Capítulo XXI), Thomas Hobbes de Malmesbury reconhece uma forma de liberdade civil, “a verdadeira liberdade dos súditos” – que se opõe ao conceito geral de liberdade inerte, concebida como “ausência de impedimentos” –, pela qual é possível recusar obediência ao soberano e à própria lei, rompendo-se as promessas do contrato social, sem que isso se traduza em injustiça, mas desde que alguém se ache ameaçado em sua integridade pela própria ação do Estado – pretenso possuidor do “irresistível” poder soberano.

Esse direito à resistência hobbesiano justifica-se no próprio contrato social e no direito natural, eis que, além dessa garantia ser imanente ao súdito (mesmo após a instituição do Estado Civil), é também uma resposta possível a toda sorte de desmandos oficiais, já que o aludido pacto se traduziria em obstáculo ao gene (talvez indelével) da autotutela. Noutras palavras, há sempre um embate entre a liberdade ampla e a ordem constituída – fundamento do jus puniendi estatal –, a reivindicar o soberano e popular mecanismo da ampla defesa.

Instituir o Direito (e a Defesa em suas múltiplas faces) é um impulso natural do ser gregário, como também o é a sua condição de “animal político”, conceito aristotélico que, ao lado da ideia de vida em sociedade, também denota o ímpeto humano (por necessidade vital) de criar a base legislativa para o convívio de todos, bem como a irrefreável vontade de transgredir – sempre por motivos que, numa das traduções da POLÍTICA, faz o homem parecer “um bruto ou uma divindade”.

Mas o ser humano, em que pese uma ideia especialmente teológica, não possui natureza divina, ao menos até onde vê o raciocínio da ciência. Suas violações de caráter, então, adviriam, filosoficamente, da própria miséria que o escraviza, da besta que o liga à terra e ao instinto traiçoeiro. Tais fraquezas estão em seu coração ávido e insaciável, são a desgraça de aspirar a mais alto que a si mesmo, a desonra de se permitir inúmeras trocas pela luxúria do poder – esta felicidade fugidia, fonte de angústia e de sofrimento para os mais fracos.

No outro extremo, há a trincheira de oponentes – a grande massa histórica, a plebe aviltada e dilapidada por seus próprios mandatários. Existe, sim, sempre existiu, uma guerra eloquente sendo travada entre opressores e oprimidos, em todos os setores sociais que se possa imaginar. E, diante dos conflitos, tem o Direito a tarefa de eliminá-los ou de evitá-los, como se lê em todo manual introdutório de ciência jurídica.

O Estado, já aqui consideradas todas as fases evolutivas, é o grande ator nesse processo, representante dos anseios gerais e instrumento principal para se atingir o bem comum. Ele o faz por meio das suas funções básicas, organizadas nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, sendo tal separação crucial para se estabelecer as relações de comando e se evitar, ao menos idealmente, as situações de arbitrariedade. Para Montesquieu, “só o poder freia o poder. Ainda:

“Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o Poder Legislativo é reunido com o Poder Executivo, não existe liberdade (…) tão pouco existe liberdade se o poder de julgar não fosse separado do Executivo e do Legislativo (…) tudo estaria perdido se o mesmo homem (…) exercesse os três poderes”.

Toda essa preocupação com a independência funcional, para, em última análise, combater-se os desmandos que objetivam a manutenção do status quo, advém do próprio e primitivo direito à resistência. Mas é possível antever um estado, uma ideia, que inicia a trilha de toda construção doutrinária acerca dos direitos fundamentais (como o citado exercício da ampla defesa). Consideremos, aqui, o marco da dignidade.

É que o conceito construído historicamente para esse vocábulo (proveniente do latim dignus – aquele que merece honra e estima, aquele que é importante) foi muito além de toda e qualquer acepção que o refira. Representa hoje o epicentro da ordem jurídica, pois concebe a valorização humana como razão fundamental de estrutura e de organização do Estado Democrático de Direito. Qualquer pesquisa, portanto, que tenha como objeto as outras normas de direito fundamental, não pode prescindir de tal anterior abordagem.

Os princípios são o núcleo dos ordenamentos legais, vigas mestras de um sistema de normas, que sobre estas se irradiam a fim de compor-lhes o espírito, são preceitos que orientam os agentes públicos no âmbito das funções acima citadas. A dignidade da pessoa humana foi elevada à categoria de princípio fundamental e adquiriu contornos universalistas desde quando inscrita no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo primeiro artigo também afirmou: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Já na organização do Estado Brasileiro, ocupou o seleto espaço do Artigo 1º da Constituição de 1988, tornando-se uma imposição ao próprio Estado para que o respeite, proteja-o e promova condições reais para viabilização da vida com dignidade.

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Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 109), para ampliar essa ideia, afirma que, além da vinculação do Estado (em sua dimensão positiva e negativa),

“também a ordem comunitária e, portanto, todas as entidades privadas e os particulares encontram-se diretamente vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana”.

E, mesmo ante a dúvida sobre ser ou não absoluto o seu caráter (no tocante à imunidade a quaisquer restrições e à necessidade de relativização), é uníssono que todos os direitos fundamentais a ele se reportam, em maior ou menor grau, direta ou indiretamente. Serve, é certo, como critério vetor para a identificação dos típicos direitos fundamentais, os que intrinsecamente atendem à vida, à liberdade e à igualdade, sendo os mesmos considerados concretizações da exigência, primeira, de respeito à dignidade do ser humano.

Mas, partindo-se da premissa de que a dignidade – inerente que é à essência do ser humano – constitui-se num bem jurídico absoluto, ela também se torna irrenunciável, inalienável e intangível. O que talvez seja necessário é conhecer qual a significação da dignidade que encontramos nos direitos fundamentais, já que todos eles carregam em si um conteúdo da mesma, ainda que pouco aparente, podendo ou não coincidir com a partícula nuclear de uma dada norma-princípio.

Sarlet (2001, p. 126) arremata:

“Parece-nos irrefutável que, na esfera das relações sociais, nos encontramos diuturnamente diante de situações nas quais a dignidade de uma determinada pessoa (e até mesmo de grupos de indivíduos) esteja sendo objeto de violação por parte de terceiros, de tal sorte que sempre se põe o problema – teórico e prático – de saber se é possível, com o escopo de proteger a dignidade de alguém, afetar a dignidade do ofensor, que, pela sua condição humana, é igualmente digno, mas que, ao mesmo tempo naquela circunstância, age de modo indigno e viola a dignidade dos seus semelhantes, ainda que tal comportamento não resulte – como já anunciado alhures – na perda da dignidade”.

Assim, é imperiosa a análise da relativização da dignidade diante do exame de um caso concreto, o que torna factível a dissecação de cada um dos mandamentos fundamentais, objetiva e subjetivamente, por conta de um agravo imputado de forma ilícita e nos exatos termos deste.

Porém, pelas considerações já traçadas, no que se refere ao cerceamento de defesa, constata-se, logo de plano, uma ofensa grave ao princípio da dignidade humana, no exato instante da inobservância ao dispositivo constitucional específico – o inciso LV, do Artigo 5º constitucional. Se fosse possível mensurar o conteúdo da dignidade, dir-se-ia que ele envolve toda a essência do princípio da ampla defesa e que, em relação simbiótica, este também ocupa parcela da estrutura vital daquele, proporcionando-lhe viabilidade para existir. Não se cogitaria nem mesmo acerca da dignidade do ofensor – como arguído em Sarlet –, a ser sopesada com a do ofendido, embora a esta também se proteja.

Restringir o amparo legítimo aos mecanismos postos à disposição dos litigantes, como ocorre, por exemplo, no indeferimento de uma prova testemunhal, sem plausível justificação, pode ser considerada, talvez, uma das faltas mais graves, um verdadeiro “pecado capital” do aplicador do Direito. Mas isso, infelizmente, tem sido praticado à fartura por um número razoável de julgadores, em todos os níveis funcionais, sempre devido às deficiências de toda sorte e outros escusos motivos, as já citadas violações de caráter, quase sempre voltadas à manutenção da autoridade e da influência – o que muitas vezes requer, de maneira oficial e indiscutível, o silêncio, o castigo e o banimento do opositor infiel.

2. PROCESSO BRASILEIRO E DIREITO DE DEFESA

São ainda incipientes as investigações sobre o fenômeno da ampla defesa, especialmente sobre as variadas formas de exercê-la nos processos judiciais ou administrativos. Essa prerrogativa (e suas manifestações) apenas recentemente foi incluída no rol das matérias fundamentais do direito processual, o qual, tradicionalmente, já continha a jurisdição, a ação e o processo.

O conceito de defesa, então, ficou relegado ao segundo plano, devido a uma forte e arcaica vertente privatista da ciência do processo, segundo a qual a ação era orientada à tutela dos interesses privados e não para uma atuação do Estado que tivesse por fim a pacificação social e a afirmação soberana do direito objetivo.

Entretanto, no afã de suprir, com necessária realidade, a ideia de que o atraso científico, referido acima, deve-se apenas à herança de um modelo processual voltado à mera satisfação de direitos subjetivos, violados no plano material (donde advém maior relevo à posição do autor) – não obstante a moderna concepção de processo como meio de prestação de tutela jurisdicional efetiva, com garantias de isonomia e contraditório e estabilização dos papéis de autor e réu – dir-se-á que tal posição, apenas em parte, é o reflexo da “vida como ela é” ou a imagem efetiva dos meandros forenses e das demais repartições.

Até porque, como se sabe, apesar dessa nova e comum percepção, ela não é amplamente utilizada como premissa básica para compreensão do sistema processual, cuja aplicação vem desdenhando, principalmente, das garantias de ordem constitucional, o que aprofunda as diferenças entre as posições das partes, perpetuando a análise dos respectivos institutos sob o prisma, quase sempre, excludente e imperfeito do autor, mas não apenas deste.

São episódios que, na verdade, persistem em inúmeras decisões oficiais como fruto de uma construção teórica – o legado acima descrito – que se traduz num sistema jurídico-filosófico – repita-se – que serviu (e ainda serve) para legitimar a manutenção de um seleto grupo dominante, compreendido em sua manifestação política e econômica. Em última análise, a predominância de armas ou a mitigação do contraditório e da ampla defesa tenderão ora para o autor (que ataca, mas também se defende), ora para o réu ou acusado, mas tudo a depender da posição que um e outro ocupam no cenário social aludido.

De qualquer sorte, volvamos, por enquanto, às questões muito mais didáticas.

A defesa, juntamente com a demanda, a cognição e a sentença, integram o que tradicionalmente se denominou processo de conhecimento, mas seus atributos se espraiam em toda sorte de expedientes – inclusive os de natureza disciplinar, os quais, dada a natureza de interferência na esfera das liberdades, exigem, com muito mais rigor, o crivo das fundamentações contrárias, sem o que não será possível uma decisão de mérito perfeitamente legítima e justa.

Como já mencionado, a defesa é um direito subjetivo público, previsto no Artigo 5º, Inciso LV, da Constituição Federal, corolário imediato e antagônico ao direito amplo de ação (incluídas as prerrogativas dos entes públicos), mas a este inerente, conforme se vê nas teorias constitucionais, que moldam a ambos em prol do mesmo desiderato de acesso à justiça, com o emprego de métodos eficientes de aplicação do direito material e uma defesa apropriada e sistêmica em respeito aos direitos fundamentais.

Isso porque o direito processual constitucional brasileiro, notadamente com a atual Carta Magna, fortaleceu escopos sociais e políticos, buscando a efetividade do processo por meio dos poderes de instrução do magistrado, da tutela dos interesses coletivos e, em linhas gerais, da instrumentalidade processual com ênfase nos pressupostos ideológicos do due process of law, materializado no inciso LIV, também de seu Artigo 5º. Isso tornou bem definidas e equânimes as faculdades e poderes dos litigantes: o direito de ação e o direito de defesa – síntese das atuações possíveis a eles cometidas, além, é claro, do direito à resposta acerca dos requerimentos e dos outros comandos legais dirigidos ao Estado-Juiz.

A legislação infraconstitucional, especialmente o Código de Processo Civil, tem sido constantemente modificada por obra do esforço (poucas vezes recompensado, diga-se de passagem) de alguns importantes pensadores e articuladores do Direito, no sentido de fazer valer os novos tempos e a nova filosofia trazida com a Constituição-Cidadã, embora já transcorrido tantos anos de sua promulgação. Uma guerra heróica, mas que promete ser vencida após o sucesso em algumas batalhas recentes, apesar do ímpeto contrário e voraz dos poderes constituídos.

2.1. PROCESSO DE CONHECIMENTO

Theodoro Júnior (2002, p. 297), tratando das funções do processo, afirma que

“(…) se a lide é pretensão contestada e há necessidade de definir a vontade concreta da lei para solucioná-la, o processo aplicável é o de conhecimento ou cognição, que deve culminar por uma sentença de mérito que contenha a resposta definitiva ao pedido formulado pelo autor”.

Por ser mais amplo e complexo, o processo de conhecimento – aliado ao rito ordinário –, abrange, além de fases processuais bem delimitadas, uma ampla cognição sobre os fatos, sobre o direito e sobre todas as provas arguidas e cotejadas, enfim, incorpora todas as formas de defesa, cujas hipóteses são numerosas e possuem finalidades as mais variadas. Esta, na verdade, é exercida em todos os momentos da marcha processual, embora algumas hipóteses, bem definidas na lei, podem ser atingidas pela preclusão.

Nesse rito, ao ser exercido o direito de ação (e cumpridas as suas condições e os pressupostos processuais, conforme a teoria eclética), o réu então será chamado a compor a lide. Terá ciência que figura no polo passivo e que poderá defender-se, devendo fazê-lo das seguintes formas prescritas na lei:

a) Contestação

Disciplinada nos Artigos 297 a 303, do Código de Processo Civil, materializa em si o princípio da eventualidade ou da concentração, pelo qual o réu deverá arguir toda a matéria de defesa, inclusive podendo mencioná-las de maneira contraditória, impugnando ponto a ponto as questões suscitadas pelo autor, além de especificar os meios de prova que pretende produzir.

A ausência desta resposta pode ocasionar os efeitos previstos no Artigo 302, do mesmo diploma, quando os fatos impugnados podem ser relativamente presumidos verdadeiros, à exceção das hipóteses também ali relacionadas (incisos I, II e III, e Parágrafo Único), podendo levar ao julgamento antecipado da lide (Artigo 330, Inciso II, CPC), dispensando-se a fase probatória.

A revelia também é mitigada pelo disposto no anterior Artigo 301, que, ao contrário da matéria citada no Artigo 300, pode ser observada e suscitada, inclusive ex officio, a qualquer tempo, presente que está a sua natureza de ordem pública, salvo a exceção do descumprimento de cláusula compromissória.

b) Exceções de Incompetência, de Impedimento ou de Suspeição

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A incompetência absoluta, que acarreta a nulidade de todos os atos decisórios anteriores ao seu reconhecimento, pode ser suscitada em preliminar de contestação – Artigo 301, Inciso II, CPC.

Já a incompetência relativa deve ser impugnada com o instrumento de exceção previsto nos Artigos 307 a 311, CPC, não tratando de matéria de ordem pública e, por tal motivo, passível de prorrogação no caso de inércia da parte contrária.

As exceções de impedimento ou de suspeição são formas de defesa que visam ao princípio da imparcialidade em todos os graus de jurisdição, sendo reguladas, respectivamente, nos Artigos 134 e 135, CPC. Não se limitam apenas ao juiz, aplicam-se também ao órgão do Ministério Público, ao serventuário de justiça, ao perito e ao intérprete, conforme se lê no Artigo 138, CPC.

O Excipiente deverá instruir sua petição com o rol de testemunhas e documentos necessários para fundamentar a causa geradora do impedimento ou da suspeição, especificando o motivo da recusa (Artigo 132, CPC).  Se não ocorrer indeferimento de plano, a exceção poderá ser acatada pelo Juiz da causa, quando este encaminhará o processo para seu substituto legal, ou indeferida, quando o mesmo magistrado exporá suas razões e remeterá a exceção ao tribunal competente, que, por sua vez, poderá arquivá-la ou julgá-la procedente.

c) Reconvenção

O Réu abandona sua posição e passa a ser Autor da ação reconvencional. A doutrina entende não ser propriamente uma forma de defesa, mas uma ação autônoma e interna, cuja falta de proposição não fere qualquer direito material do Requerido, eis que se lhe faculta o uso de uma ação paralela à ação primária. Como afirma o Artigo 315, CPC, é necessária uma ligação entre este instituto com os fundamentos expostos na peça inicial da ação primeira ou mesmo com os argumentos utilizados na Contestação. A competência deve ser a mesma para ambas as ações e seus ritos devem guardar harmonia entre si.

2.2. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Muito mais que a lacuna de investigações sobre o fenômeno da ampla defesa em processos judiciais, percebe-se relativa ausência de pesquisas mais abrangentes, envolvendo-o no contexto dos procedimentos administrativos disciplinares, muito embora o grau de importância que este recebe do ordenamento jurídico seja similar ao daquele, em face do já citado dispositivo constitucional – Inciso LV, do Artigo 5º.

O processo administrativo disciplinar é uma sucessão de atos formais, realizados por agentes da administração pública, conforme determinações da lei e princípios de Direito, com a finalidade de apurar a verdade sobre fatos relacionados com a conduta de seus servidores, julgando-os e sugerindo sanções, se for o caso.

Tomando como base a legislação mais genérica, no tocante aos procedimentos disciplinares, qual seja a prevista nos Artigos 116 a 182, da Lei nº 8.112/1990 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das Autarquias e das Fundações Públicas Federais), mas lembrando a existência de específica regulamentação de certos órgãos da mesma esfera e que uma parcela significativa dos estatutos municipais e estaduais reproduz, quase fielmente, as disposições desse diploma, é possível visualizar, com certa nitidez, um espectro ideológico particular, a se refletir no exercício procedimental ali descrito, especialmente em relação às faculdades e possibilidades defensivas do acusado.

As prescrições legais, divididas nos Títulos IV e V, especificam, inicialmente, os deveres e as proibições relacionadas aos servidores públicos. Estabelecem, após, as punições possíveis e revelam três modelos de apuração:

a) o processo administrativo disciplinar stricto sensu ou de rito ordinário (Artigos 148 a 182, da Lei 8112/90), que se desenvolve nas seguintes fases (Artigo 151, do mesmo diploma):

“I- instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão;
II- inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório;

III- julgamento.”

b) o rito sumário, na hipótese de “acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas” (Artigo 133, caput, Lei 8112/90) e de “abandono de cargo ou inassiduidade habitual” (Artigo 140, caput, Lei 8112/90), composto de (incisos I a III, Artigo 133, Lei 8112/90):

“I – instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão, a ser composta por dois servidores estáveis, e simultaneamente indicar a autoria e a materialidade da transgressão objeto da apuração;

II – instrução sumária, que compreende indiciação, defesa e relatório;

III – julgamento.”

c) A sindicância acusatória (ou punitiva) – Artigos 143 e 145, da Lei 8112/90 –, para a qual o estatuto em questão não especificou um rito determinado, mas que pode ser conduzida com as mesmas fases do processo administrativo disciplinar stricto sensu, tendo em vista que, podendo redundar em punição, é necessário observar-se o devido processo legal e, por óbvio, os princípios dele decorrentes: da ampla defesa e do contraditório. A sindicância investigativa (ou inquisitorial ou preparatória) não tem previsão na Lei 8112/90 e, por exclusão, só pode ser instaurada para a matéria correcional, sendo, neste caso, também possível adotar, por ausência de rito definido e por extensão, as regras da sindicância contraditória, no que for cabível.

No âmbito do processo disciplinar, depara-se, não raro, com a mitigação da garantia de ampla defesa – fenômeno que infelizmente tem sido tolerado em nome da hierarquia e da disciplina (cingidas na discricionariedade e ampliadas, bem a propósito, em suas cargas de significação). Tudo isso pelas mesmas razões ideológicas já declinadas e que se traduzem num corpo de regras muitas vezes destoante do espírito inovador e libertário da Carta Magna brasileira, parecendo mesmo um estado eternizado de exceção, como se vê em todas as “revoluções” ditatoriais.

Por isso a pouca doutrina existente costuma definir a transgressão disciplinar como “um proceder anômalo” do servidor público, que põe em risco “a credibilidade da administração” (COSTA, 2008, p. 02), ou como (CRETELLA, 1966, p. 170) “a violação, pelo funcionário, de qualquer dever próprio de sua condição, embora não esteja especialmente prevista ou definida” (grifo nosso).

Nestas referências à ausência de previsão e definição, é como se se pudesse ler, nas entrelinhas, a aceitação de um regime próprio, diferenciado, excepcional, a ser aplicado tão somente ao funcionário público, como se esta sua condição fosse o bastante para merecer, caso seus superiores assim entendam, uma punição rigorosa (como a demissão, por exemplo) sem critérios lógicos e objetivos.

Diz-se, desta forma, da não prevalência do princípio da tipicidade no direito disciplinar, ou seja, da indefinição jurídica de suas figuras ilícitas em favor da discricionariedade da Administração Pública, que, nos dizeres de Costa (2008, p. 02), por vezes “se inebria e finda por enveredar no campo da licença, da ilegalidade”.

Mas, se esta ilegalidade ocorre comumente, então apenas o princípio da reserva legal deveria coexistir com a natureza sancionadora do regime disciplinar público (assim como no Direito Penal), mesmo quando se trate de punições mais brandas, pois é inconcebível que se macule a honra do servidor (ainda que sob o título de mera advertência) com inobservância do devido processo legal e sob pretextos escusos.

Por que conferir tais prerrogativas (de índole fundamental no sistema jurídico pátrio) somente ao processo penal? Que política é essa (com eixos e vertentes nos três poderes), que tolera, ainda nos dias de hoje, esse ranço de autoritarismo impregnado nas legislações disciplinares?

São evidentes, portanto, as diferenças entre o ilícito penal e o disciplinar, apesar de alguns autores sustentarem afinidades entre os estudos jurídicos respectivos, não se exigindo, deste modo, que a conduta do funcionário público se enquadre, precisamente, num tipo definido com antecedência pelo legislador, tornando impossível a conceituação de muitos delitos disciplinares em acepção formal, mas tão somente no aspecto ontológico.

E, como afirmado acima, a ausência de adequação típica ocorre, por vezes, até mesmo para delitos com punições mais severas, como é o caso, por exemplo, da “insubordinação grave em serviço” (Artigo 132, Inciso VI, da Lei 8112/90), punível com a pena de demissão.

Apesar disso, o direito disciplinar e o direito penal pertencem ao gênero jurídico do direito punitivo (assim como as garantias constitucionais e do direito processual civil informam a ambos), que, por constituir matéria de reserva de lei, sujeita-se às exigências do devido processo legal, não admite interpretação extensiva, não comporta analogia (a não ser em prol do acusado) e deve obedecer aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

A garantia à ampla defesa, então, é maculada em grande parte dos procedimentos disciplinares, uma vez que (diversamente do que ocorre no processo penal), além de ausente a estrita definição para muitos de seus ilícitos (nem mesmo para os que preveem punições mais severas), para que se configure a transgressão basta que haja, apenas, entre a hipótese descrita na norma e a conduta do acusado uma relativa aproximação (quando deveria existir absoluta correspondência).

Ainda, a apuração das faltas disciplinares é bem menos complexa e formal que a dos ilícitos previstos no Código Penal e noutras normas incriminadoras. Finalmente, ao contrário da infração penal, que é apreciada e decidida pelo Poder Judiciário, cujos membros têm as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimento, a infração disciplinar é apurada e sancionada por agentes da administração pública, sem os citados direitos, sem independência funcional, vulneráveis, portanto, a toda sorte de execráveis influências.

3. DIREITO À PROVA E DEVIDO PROCESSO LEGAL

Existem poucas notícias, na época da Pré-História, sobre o instituto da Prova Judicial e, por isso, as pesquisas quase sempre remetem ao sistema probatório da Idade Antiga. Nos dizeres de THEODORO JÚNIOR (2007, p. 14):

“Após a queda do Império Romano, houve, além da dominação militar e política dos povos germânicos, a imposição de seus costumes e de seu direito. Aconteceu, porém, que os germânicos, também chamados bárbaros, possuíam noções jurídicas muito rudimentares e, com isso, o direito processual sofreu enorme retrocesso na marcha ascensorial encetada pela cultura romana. (…) Numa segunda etapa, houve enorme exacerbação do fanatismo religioso, levando os juízes a adotar absurdas práticas na administração da justiça, como os “juízos de Deus”, os “duelos judiciais” e as “ordálias”. Acreditava-se, então, que a divindade participava dos julgamentos e revelava sua vontade por meio de métodos cabalísticos.”

Após as sucessivas fases de evolução das espécies de prova, desde a ausência absoluta de critérios técnicos ou racionais, com forte influência religiosa (as “ordálias” e os “juramentos”), passando pelo Código de Hamurabi (com a existência da prova testemunhal, o juramento de Deus para se obter a inocência e o proceder do magistrado ante a calúnia e o falso testemunho) e o reaparecimento do Direito Romano, verificou-se, então, sensível mudança com a Revolução Francesa, que adotou princípios até hoje atuais, como o do livre convencimento do juiz, suprimindo resquícios da tarifa legal das provas.

Não há qualquer dúvida sobre a indispensabilidade da fórmula do due process of law, como o grande coração de toda espécie de procedimento. Cada célula e cada órgão dele dependem e integram o significado mais amplo do jus puniendi do Estado, alimentam-se dessa garantia vital, que é inseparável da condição humana.

O direito à prova é, certamente, uma de suas mais expressivas manifestações, pois, em última análise, é instrumento primordial dos princípios do contraditório e da ampla defesa – considerados como corolários do devido processo legal.

De fato, ao acusado ou aos litigantes, de modo geral, devem ser proporcionados todos os meios e recursos, para a defesa ou para a acusação, admitidos em direito, o que formará o conjunto probatório necessário à sentença.

A nossa Corte máxima, por óbvio, como guardiã das normas constitucionais, tem afirmado o caráter instrumental da prova e sua necessária proteção, de maneira especial, pelos aparelhos de Estado – os mesmos que, historicamente, tem-na repelido em seu aspecto jurídico-fundamental e priorizado muito mais a sua utilidade política.

“EMENTA: TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. PROCEDIMENTO DE CARÁTER ADMINISTRATIVO. SITUAÇÃO DE CONFLITUOSIDADE EXISTENTE ENTRE OS INTERESSES DO ESTADO E OS DO PARTICULAR. NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, PELO PODER PÚBLICO, DA FÓRMULA CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW”. PRERROGATIVAS QUE COMPÕEM A GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO. O DIREITO À PROVA COMO UMA DAS PROJEÇÕES CONCRETIZADORAS DESSA GARANTIA CONSTITUCIONAL. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

– A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade do princípio que consagra o “due process of law”, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina.

– Assiste, ao interessado, mesmo em procedimentos de índole administrativa, como direta emanação da própria garantia constitucional do “due process of law” (CF, art. 5º, LIV) – independentemente, portanto, de haver previsão normativa nos estatutos que regem a atuação dos órgãos do Estado -, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (CF, art. 5º, LV), inclusive o direito à prova.

– Abrangência da cláusula constitucional do “due process of law”.” MS 26358. Relator: Min. Celso de Mello. Data do julgamento: DJ Nr. 42 – 02/03/2007.”

A natureza principiológica ou a imprescindibilidade da prova, como instrumento do devido processo legal, encontra esteio, segundo lições de Marinoni (2004, p. 02), nas acepções de direito fundamental em sentido formal e na valoração de ordem objetiva, presente nas normas de mesma natureza, as quais sempre afirmam valores “que incidem sobre a totalidade do ordenamento jurídico e servem para iluminar as tarefas dos órgãos judiciários, legislativos e executivos” e se difundem (“eficácia irradiante”) “necessariamente sobre a compreensão e a atuação do ordenamento jurídico”.

Marinoni (2004, p. 03) também se refere à dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, mas considera que as normas garantidoras destes não se relacionam apenas ao sujeito, mas, citando Andrade (1976, p. 144-145), a todos os membros do corpo social. Isso porque a extensão objetiva impõe ao Estado o dever de proteção a essas regras elementares, um dever que relativiza “a separação entre a ordem constitucional e a ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos efeitos desses direitos (Austrahlungswirkung) sobre toda a ordem jurídica”, como afirma Mendes (2002, p. 209). E obriga-o a fazê-lo mediante os mecanismos existentes em suas precípuas funções, como, por exemplo, a elaboração de normas cogentes para proibição ou fixação de comportamentos que visem à segurança de um bem jurídico coletivo.

Mas o Estado também deve instituir mecanismos legais para proteção não somente do particular em relação aos três Poderes, bem como do particular em face de outros particulares, de onde sobrevém a garantia de ação, que pode ser exercida amplamente, assim como também ocorre com o direito à defesa e, no tocante a ambos, o direito de provar e contradizer toda e qualquer alegação.

Entretanto, para que isso ocorra, é necessário que as funções do Estado levem em conta os princípios informadores (e específicos) da prova no âmbito processual, que se configuram, em toda organização jurídico-democrática, como normas fundamentais (e genéricas) do devido processo legal, além das garantias inerentes ao contraditório e à ampla defesa.

Também é o caso do princípio da livre convicção motivada, que será analisado mais à frente como um dos critérios de avaliação da prova (adotado, inclusive, em nosso sistema processual).

Nesse sentido, a função legislativa embebera-se na Carta Política e faz surgir todo um sistema jurídico – cujos institutos legais são sua mais nobre (e escorreita) acepção – que tem o fim de regular as relações entre os particulares e garantir que haja um equilíbrio de forças entre os possíveis litigantes.

Porém, o que se institui é uma suposta paridade de armas, que pode não se verificar no plano prático, seja porque a estabilidade – marca ideal do sistema – não foi observada por “erro técnico” do julgador, seja porque alguma legislação passou a ofender uma norma-princípio ou um conjunto delas.

O que hoje se busca, da forma menos utópica possível, deixou de ser, apenas, a via de procedimentos que remete à sentença de mérito, pura e simples. Isso não mais interessa à sociedade contemporânea, que agora está preocupada (no sentido de inevitabilidade urgente) com efetividade processual, com proteção à materialidade dos direitos fundamentais e com a realidade social.

Que, neste contexto, o processo não seja paralisado, mas se torne dinâmico e capaz de refletir a demanda atual de situações de conflito – o que somente se conseguirá com severa mudança de mentalidade no corpo político-institucional.

3.1. O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA

Não é difícil verificar que os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, analisados sempre em comum por suas similaridades, são ao mesmo tempo fundamentos e mecanismos que movem a engrenagem do Devido Processo Legal e que, em marcha mais abrangente, dizem respeito à Igualdade Substancial, a mesma que veda aos organismos estatais (e a qualquer pessoa, pública ou privada) o desenho de procedimentos – judiciais ou administrativos – que constituam privilégios.

É a “paridade de armas” e, em última análise, a perspectiva – de verve sagrada e humana – de exercer com plenitude a liberdade existencial e de construir o mundo que nos cerca. Sem essa possibilidade – originária do direito de resistir a tudo que oprime – não se pode falar em legitimidade e efetividade processuais. Ainda conforme lição de MARINONI (2004, p. 17), citando CASTRO (1989, p. 31),

“(…) o procedimento que não está de acordo com o princípio da igualdade não é due process of law. A cláusula do devido processo legal não é mais mera garantia processual, tendo se transformado, ao lado do princípio da igualdade, “no mais importante instrumento jurídico protetor das liberdades públicas, com destaque para a sua novel função de controle do arbítrio legislativo e da discricionariedade governamental, notadamente da ‘razoabilidade’ (reasonableness) e da ‘racionalidade’ (rationality) das normas jurídicas e dos atos em geral do Poder Público”.”

Os Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa são contemporâneos ao surgimento do Devido Processo Legal e, segundo Nery Júnior (2004, p. 134), o primeiro nada mais é do que um sucedâneo deste último. Vieram substituir os estados absolutistas, os quais não aceitavam quase nenhum direito individual.

A delimitação de atribuições dos poderes estatais resultou de ordenamentos como a Magna Carta – documento de 1215, que limitou o poder dos monarcas ingleses –, a Constituição Estadunidense, ratificada pela Convenção da Filadélfia de 1787, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Juntamente com a ideia da citação e da defesa, a influência do Direito Inglês, de notável cunho litigioso, trouxe a noção de que o processado tinha a prerrogativa de ser tratado com lealdade e boa-fé e que o provimento jurisdicional justo deveria advir de um processo regular e equânime.

A doutrina majoritária considera o contraditório e a ampla defesa princípios-garantia, com status constitucional, positivados que estão em nossa Lei Maior, porém outros autores estabelecem-nos como a manifestação de valores democráticos inatos ao processo.

Já o Supremo Tribunal Federal compreende os mesmos como princípios aplicáveis a todos as espécies de procedimento – judiciais ou administrativos –, não adstritos à manifestação ou à comunicação dos atos do processo. São direitos conferidos aos litigantes para que tenham os seus argumentos devidamente considerados no momento da prolação da sentença, no sentido de nesta influírem. Leia-se, nesse sentido, a seguinte ementa:

“1. Mandado de Segurança. 2. Cancelamento de pensão especial pelo Tribunal de Contas da União. Ausência de comprovação da doação por instrumento jurídico adequado. Pensão concedida há vinte anos. 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. 4. Direito Constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os provimentos administrativos. 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito dos fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subprincípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de atos administrativos que não se pode estender indefinidamente. Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 8. Distinção entre atuação administrativa que independe da audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela decisão anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. 9. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV).” (STF, MS 24268/MG, Relatora Ministra Ellen Gracie Nothfleet, DJU 17.09.2004).

Assim, aos litigantes é deferida a possibilidade de propor ações e também de as contradizerem, de exercerem plenamente suas resistências – a ausência, aliás, de quaisquer restrições, é o espírito do que se entende por ampla defesa –, de produzirem toda uma gama de provas tendentes à demonstração de seus direitos, de serem ouvidos em pé de igualdade perante o órgão julgador, independente da força ou do peso político de qualquer deles.

O contraditório pode, também, ser resumido no direito à informação e à participação, quando, no primeiro caso, serão respeitados os institutos da citação, da intimação e da notificação, e, no segundo, cuja necessidade se traduz na prerrogativa da ampla defesa, há de ser preservada a autoridade da prova lato sensu.

São princípios norteadores do próprio conceito de função jurisdicional. Todavia, como já mencionado, a Constituição foi clara ao expressar o alcance deles também para fora do âmbito processual civil, o que torna a bilateralidade uma característica fundamental para qualquer tipo de processo ou procedimento, judicial ou administrativo, de vínculo trabalhista, comercial ou associativo, sendo garantia a qualquer parte que possa ser atingida por uma decisão superior.

TOURINHO FILHO (2005, p. 58) argumenta, em torno da máxima audiatur et altera pars:

“(…) a parte contrária deve ser ouvida. Traduz a idéia de que se a defesa tem o direito de se pronunciar sobre tudo quanto for produzido por uma das partes, caberá igual direito da outra parte de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou, ainda, de dar uma interpretação jurídica diversa daquela apresentada pela parte ex adversa. Assim, se o acusador requer a juntada de um documento, a parte contrária tem o direito de se manifestar a respeito. E vice-versa. Se o defensor tem o direito de produzir provas, a acusação também o tem. O texto constitucional quis apenas deixar claro que a defesa não pode sofrer restrições que não sejam extensivas à acusação.”

A verdade que a Justiça Pública busca alcançar, em juízo ou não, só é possível mediante o crivo do contraditório e da ampla defesa, que não podem ser mais concebidos de maneira puramente formal, como um mero requisito técnico, mas como imprescindíveis à realização de um processo efetivo e justo. O diálogo deve ser amplamente deferido, como lugar de destaque na formação do decisum, tornando relevante a colaboração e a cooperação entre as partes e o aparelho estatal.

Como afirmam Cintra, Grinover e Dinamarco (2008, p. 61), o mandamento nuclear que daí se extrai é fundamental à justiça e é “tão intimamente ligado ao exercício do poder, sempre influente sobre a esfera jurídica das pessoas, que a doutrina moderna (…) o considera inerente à própria noção de processo”.

As garantias do contraditório e da ampla defesa sublevam-se contra as mesmas lesivas ações que impedem a preponderância das liberdades, no âmbito do Estado Democrático de Direito. Devem ser construídos na realidade de cada litígio, de cada ação ou representação, e, repita-se, com base no princípio da igualdade substancial entre autor e réu ou entre acusador e acusado, principalmente. Assim também é a explicação de OLIVEIRA (2008, p. 28):

“O contraditório, portanto, junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental de todo processo e, particularmente, do processo penal. E assim é porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e eqüitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal”.

No tocante aos procedimentos administrativos de natureza inquisitiva, uma parte da doutrina não aceita a aplicação do contraditório e da ampla defesa, como é o caso de Alexandre de Moraes e Ada Pellegrini, pois, segundo eles, nessa fase ainda não existe a figura do réu e, sim, do indiciado, não se tratando de um procedimento acusatório.

Outros, como Flávio Böechat Albernaz, Scaranse Fernandes e Evandro Fernandes de Pontes, apresentam uma posição híbrida, ou seja, admitem, em certos casos, o contraditório e a ampla defesa na fase administrativa, quando, por exemplo, em relação aos fatos alegados pela perícia. Para essa divisão da doutrina, a possibilidade de contradizer os elementos que podem subsidiar uma prova faz-se necessária em tais momentos, ainda que a lei não o permita.

Mas, ainda que não se admita a aplicação de tais princípios na inteireza de procedimentos inquisitórios, deve-se observar que a defesa (principalmente técnica) deveria ter mais participação em todo procedimento administrativo, não apenas nos de natureza acusatória e punitiva, com a oportunidade de conhecer os rumos da investigação (exceto as de caráter absolutamente sigiloso) e o direito de nela ser ouvido, a fim de contribuir com os dados que sejam favoráveis a uma posterior defesa, em juízo ou não, e, em última análise, para o bom andamento da investigação.

Aliás, é um equívoco a afirmação de que não há o contraditório ou a defesa na fase inquisitiva, uma vez que ao indiciado é possível expor a sua versão dos fatos ou usar de seu direito ao silêncio, o que se configura numa forma de salvaguarda. Igualmente, o acompanhamento de advogado ou de defensor público, que podem intervir no interrogatório, requerer novas diligências, juntar documentos, além de poderem impetrar mandado de segurança ou habeas corpus no interesse do indiciado.

Isso porque o procedimento de investigação, ainda que inquisitivo, não pode afrontar os princípios e garantias constitucionais, sujeitando o indiciado a diversas ilegalidades com o fim de obtenção de uma prova, por exemplo.

3.2. AS PROVAS NO DIREITO BRASILEIRO

O ser humano, ao pensar sobre os caminhos que se lhe apresentam durante a vida, confronta (ou deveria confrontar) as variáveis existentes, para se convencer do resultado mais razoável, diante da apreciação das circunstâncias possíveis. Faz isso (ou deveria fazê-lo) por meio dos princípios e do caráter que nele se formou, buscando aproximar-se, ao máximo, das inúmeras verdades – ou respostas – para tudo que o desperta ou o que tenta dissuadi-lo.

Acontece o mesmo nos diversos processos oficiais. As partes oferecem ao órgão, judiciário ou administrativo, as suas versões para os fatos, geralmente antagônicas, enquanto o julgador tem a missão de buscar o sentimento da verdade e convencer-se de que uma das versões é a que mais se aproxima dos fatos efetivamente ocorridos antes de se iniciar a lide e mesmo a ela concomitantes.

Esta é a importância das provas, pois ao juiz não importam meras afirmações de acontecimentos, mas a sua certificação de existência ou inexistência, mediante os meios de prova permitidos pelo Direito. No exame das provas, trazidas ao processo, é que se chegará ou se aproximará da “verdade” dos fatos. Por isso, como disse Bentahn (1971, p. 10), “a arte do processo não é essencialmente outra coisa senão a arte de administrar as provas”.

Parcela considerável da doutrina defende que a ideia de se encontrar a verdade absoluta de fatos pretéritos não passa de utopia, não sendo um conjunto probatório capaz de reconstruí-los pelos meios de prova convencionais – documentos, testemunhas, perícias, etc. Sobre o assunto, discorrem MARINONI e ARENHART (2001, p. 281):

“Deveras, a reconstrução de um fato ocorrido no passado sempre vem influenciada por aspectos subjetivos das pessoas que assistiram ao mesmo, ou ainda, daquele que (como o juiz) há de receber e valorar a evidência concreta. Sempre, o sujeito que percebe uma informação (seja presenciando diretamente o fato, ou conhecendo-o através de outro meio) altera o seu real conteúdo, absorve-o à sua maneira, acrescentando-lhe um toque pessoal que distorce (se é que essa palavra pode ser aqui utilizada) a realidade”.

Há, portanto, na tentativa de se restaurar o passado, visando à aplicação justa do Direito a um fato sob litígio, a necessidade de avaliar e relativizar a intensa carga subjetiva que o perpassa, como nos ensina Farias (2005, p. 202):

“É que não se pode olvidar que a reconstrução dos fatos ocorridos – e demonstrados juridicamente através da prova – sofrerá, seguramente, a influência das pessoas que o apresentam (a testemunha, o perito etc) ou daqueles que o elaboram (no caso de documentos), bem assim como se submete à confluência de fatores subjetivos no espírito do juiz, para quem se dirige, podendo o resultado do julgamento não corresponder à exata forma como se passaram os acontecimentos. Logo, são incontroversas interferências de ordem cultural, psicológica, social, religiosa, sexual (…) na demonstração de fatos ocorridos e, via de conseqüência, impossível afirmar a verdadeira dimensão dos fatos pretéritos.”

É importante que se diga, então, que a utilização dos meios de prova nos procedimentos judiciais ou administrativos não tem por finalidade a reconstrução fidedigna dos fatos, mas formar no árbitro um juízo de verossimilhança, ou seja, “um juízo de valor sobre os fatos demonstrados e não necessariamente sobre os fatos concretamente ocorridos” (FARIAS, op. cit., p. 202). Busca, assim, em tal reconstrução, o maior reflexo possível da realidade dos acontecimentos.

Sobre a natureza jurídica da Prova, o ordenamento brasileiro demonstra acolher uma tendência mais moderna, ao considerar que as disposições legais sobre a prova possuem cunho processual, eis que se encontram inseridas principalmente no Código de Processo Civil. Marcato, et al. (2005, p. 1.033), comentam esse assunto:

“Dado ser a Prova, como dito, tema de interesse tanto do direito substancial quanto do processual, põe-se a difícil tarefa de delimitar qual, exatamente, o campo de regramento próprio de cada um deles. Sobre a matéria não há consenso na doutrina. (…) Sendo o processo, por seu turno, atividade meramente instrumental, voltada à afirmação e implementação da vontade do direito material, ao direito processual cabe disciplinar, sobretudo, os aspectos que digam respeito diretamente à própria atividade judicial, vale dizer, à produção da prova em juízo, respeitando no mais os critérios de prova já fixados pelo direito substancial. Estabelecida essa separação inicial, percebe-se que o direito material, em sua esfera própria, busca por vezes estabelecer determinada forma como necessária à constituição válida de certos atos jurídicos.”

O ato ou o direito de provar também possui uma finalidade, que é a solução dos conflitos em juízo ou a apuração e resolução de questões no âmbito administrativo, tudo com fundamento na verdade real. Para Theodoro Júnior (2007, op. cit. p. 468), a verdade real – ou a prova dos autos – é almejada no processo moderno, porém a obrigação de se prestar a tutela jurisdicional, ou seja, de se propor uma solução jurídica para a questão, faz com que, muitas vezes, tal verdade não sobrevenha.

Se qualquer dos litigantes “não cuida de usar das faculdades processuais e a verdade real não transparece no processo, culpa não cabe ao juiz de não ter feito a justiça pura, que, sem dúvida, é a aspiração das partes e do próprio Estado”.

Para o processo civil, mas também – por via dos mandamentos constitucionais referentes à espécie – para todos os procedimentos de índole acusatória e punitiva, a prova é da essência do devido processo legal e diz respeito à atividade das partes envolvidas com o propósito de demonstrar a veracidade das suas alegações. Temos aqui uma definição restrita à ideia de meios de prova.

A doutrina, por óbvio, amplia essa reduzida acepção. Marinoni e Arenhart (op, cit., p. 289-290), por exemplo, afirmam que a prova pode ser vista de quatro maneiras diversas: como instrumento, procedimento, atividade lógica e resultado da atividade lógica. Verbis:

“Assim é que, tradicionalmente, pode significar, inicialmente, os instrumentos de que se serve o magistrado, para o conhecimento dos fatos submetidos à sua análise, sendo possível aqui falar-se em prova documental, prova pericial, etc. Também pode essa palavra representar o procedimento através do qual aqueles instrumentos de cognição se formam e são recepcionados pelo juízo; este é o espaço em que se alude à produção da prova. De outra parte, prova também pode dar a ideia da atividade lógica celebrada pelo juiz, para conhecimentos dos fatos (percepção e dedução, na mente de Proto Pisani). E, finalmente, tem-se como prova ainda o resultado da atividade lógica do conhecimento”.

De outro lado, como em Carnelutti (1947, p. 268), citado por Rodrigo Leonardo (2004, p. 15), a conceituação jurídica da prova é ressaltada sob duas dimensões: numa ótica objetiva, seria um aparelho controlador das afirmações de todos os envolvidos; sob o prisma subjetivo, seria a reunião de elementos apresentados ao “sentido do juiz”, que ligam “a espécie conhecida (alegação presente) ao conhecimento geral (fatos passados)”.

A prova, modernamente, é compreendida não apenas pela visão da instrumentalidade do processo, mas tem cada vez mais assumido uma função dialética e dialógica, o que podemos localizar na obra de Bonavides (2005, p. 123-127). São conceitos filosóficos e sociológicos que se espraiam em todas as áreas do conhecimento.

A dialética processual diz respeito exatamente à garantia do contraditório na pretensão do autor (tese), na defesa do réu (antítese), culminando com a sentença (síntese). Já na percepção dialógica, a solução é buscada em processo retórico de convencimento dos sujeitos da lide, não utilizando as técnicas para reconstrução de acontecimentos pretéritos.

O objeto da prova é constituído pelos fatos que, por óbvio, não são reconhecidamente notórios, pois aqueles que não admitem negação sine tergiversatione independem de demonstração para a verdade. O Código de Processo Civil relaciona as situações fáticas que independem de prova:

“Art. 334.  Não dependem de prova os fatos:

I – notórios;

II – afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária;

III – admitidos, no processo, como incontroversos;

IV – em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.”

Há, no entanto, divergência doutrinária sobre o que deve ser provado – se os fatos ou as afirmações que são aduzidas sobre os mesmos. Para Dinamarco (2005, p. 58):

“Provar é demonstrar que uma alegação é boa, correta e, portanto, condizente com a verdade. O fato existe ou inexiste, aconteceu ou não aconteceu, sendo, portanto, insuscetível dessas adjetivações ou qualificações. As alegações, sim, é que podem ser verazes ou mentirosas – e daí a pertinência de prová-las, ou seja, demonstrar que são boas e verazes”.

Na mesma linha, Marinoni e Arenhart (op. cit., p. 293), afirmando da impossibilidade de um fato ser qualificado de verdadeiro ou falso, uma vez que o mesmo existe ou não existe. Quando ele é alegado por qualquer das partes, pode se tornar ou não relevante no aspecto jurídico-processual, quando, então, terá importância a demonstração de veracidade desse argumento. Não são todos os fatos trazidos pelos sujeitos processuais que necessariamente precisam ser provados.

No tocante ao procedimento probatório, parte da doutrina admite três fases: postulatória, quando a parte requer a produção da prova; de admissão, momento em que o juiz a aceita ou admite que seja realizada; de produção, quando ela é efetivamente elaborada. Mas é necessário que uma quarta fase seja inserida, considerando-se o ângulo do resultado da atividade probatória: a de valoração, instante em que o juiz irá apreciar a prova já produzida, emitindo sobre ela um juízo de valor, tornando-a legítima e idônea a figurar no processo.

De forma genérica, diz-se que o momento de se requerer a prova é, para o Autor, na petição inicial, e, para o Réu, na contestação, uma vez que, se não o fizerem nessas fases, não mais poderão produzi-las. Mas tal entendimento não é mais predominante, permitindo-se que as partes requeiram antes ou após o despacho saneador, salvo se versarem sobre documentos essenciais, que devem acompanhar as peças mencionadas.

Exceções à regra também podem ocorrer quando é trazido fato novo na contestação, o que possibilita ao autor requerer provas na réplica, ou se surgem fatos supervenientes no transcorrer dos procedimentos.

No âmbito de avaliação da prova, a doutrina enumera três critérios:

a) O da livre apreciação (ou do livre convencimento)

Muito usado nas civilizações primitivas, onde os julgadores eram deuses infalíveis, não precisando, assim, justificar suas decisões. Permite que o juiz avalie a prova da maneira que lhe parecer mais conveniente, ainda que isso não decorra logicamente dos fatos e constatações do processo. Não há qualquer limitação quanto aos meios de prova a serem usados.

Burnier Júnior (2001, p. 243) aduz que, com esse parâmetro, “a prova dos autos é mero subsídio informativo, que será utilizado pelo julgador como lhe parecer”. Obviamente, não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, pois o juiz se entrega ao poder arbitrário do julgamento secundum conscientiam, como o que realiza o corpo de jurados no sistema processual penal.

b) O da prova legal ou tarifada

Considera um valor, que se atribui com antecedência, via legislativa, para cada prova, não sendo possível apreciá-la conforme impressões de cunho íntimo. O julgador deve observar os exatos termos da lei, quando da avaliação do conjunto argumentativo e probatório, sendo-lhe defeso o uso de fatores racionais na formação de seu convencimento, conquanto a prova produzida no processo nem de longe seja reflexo da verdade.

Esse sistema foi muito utilizado no Direito Medieval, onde havia previsão em lei para valoração da prova testemunhal e isso vinculava o magistrado. O depoimento de um servo, por exemplo, não tinha o mesmo peso que o de um nobre, mas a declaração realizada por dez servos correspondia a de um nobre ou a de um senhor feudal, muito embora o juiz tivesse certeza que o testemunho de um único servo era de todo verdadeiro.

Lopes (apud Burnier Júnior, op. cit., p. 249) registra tratar-se de um “critério historicamente superado que atribui a cada prova um valor fixo e imutável, não deixando qualquer margem de liberdade para a apreciação do juiz”.

c) O do livre convencimento motivado ou da persuasão racional

É um modelo misto, com as características dos dois primeiros, adotado pelo direito processual pátrio, como se depreende do Artigo 131, CPC:

“O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento”.

 O julgador brasileiro, portanto, não está adstrito à lei no que se refere à valoração da prova, assim como não tem liberdade total para apreciá-la, porque precisa observar os elementos probatórios pertencentes ao processo. Ademais, o Artigo 93, Inciso IX, da Constituição, exige decisão fundamentada do magistrado, verbis:

“todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.

O STJ, em inúmeros julgamentos, decidiu pela vigência do (critério-princípio) livre convencimento motivado ou da persuasão racional em nosso sistema, como no seguinte julgado:

“PROCESSO CIVIL. SENTENÇA. MOTIVAÇÃO. LAUDO PERICIAL. NÃO-ADSTRIÇÃO. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. CULPA E NEXO CAUSAL. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICA. ENUNCIADO N.7 DA SÚMULA/STJ. RECURSO ESPECIAL. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. RECURSO NÃO-CONHECIDO. I – Inadmissível em nosso sistema jurídico se apresenta a determinação ao julgador para que dê realce a esta ou aquela prova em detrimento de outra. O princípio do livre convencimento motivado apenas reclama do juiz que fundamente sua decisão, em face dos elementos dos autos e do ordenamento jurídico. II – Nos termos do artigo 436, CPC, "o juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos", sendo certo, ademais, que o princípio do livre convencimento motivado apenas reclama do juiz que fundamente sua decisão, em face dos elementos dos autos e do ordenamento jurídico. III – Para fins de pré-questionamento, é indispensável que a matéria seja debatida e efetivamente decidida pelo acórdão impugnado, não bastando que o Colegiado "mantenha" a sentença por seus próprios fundamentos. IV – O recurso especial não é a via apropriada para reexame de fatos e provas dos autos, a teor do enunciado n. 7 da súmula/STJ.” (RESP nº 400977/PE, STJ, 4ª T, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, D.J. 03.06.02, não conhecido, por maioria).

Esse critério é corroborado pelo Artigo 335, CPC, que afirma:

“Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial.”

É a importância dada ao juiz, diante de relações jurídicas marcadas por qualquer lacuna, de exercer seu poder de cognição, expressando os motivos de seu convencimento com informações exteriores à instrução (as regras de experiência comum e experiência técnica), traduzindo-se num papel essencial para se evitar danosas e socialmente indesejáveis consequências em certos casos particulares.

Convém, ainda, neste tópico, mencionar a existência de graus de convencimento, quando da valoração do conjunto probatório produzido, quais sejam: a verossimilhança – aceitação, pelo juiz, dos fatos alegados pelas partes, conforme as regras de experiência; a probabilidade – resultante da relação entre um fato, já provado, e outro que ainda se quer provar; a verdade no processo, que advém de uma correlação com a realidade; e a certeza, proveniente da dilação probatória e mais diretamente ligada à subjetividade do julgador.

As provas em espécie estão distribuídas no Código de Processo Civil, em seus Artigos 342 a 443: o depoimento pessoal, a confissão, a exibição de documento ou coisa, a prova documental, a prova testemunhal, a prova pericial e a inspeção judicial.

Interessam para esta pesquisa apenas o depoimento pessoal e a prova testemunhal.

4. PROVA ORAL E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Até aqui se encontra perfeitamente assentada a ideia de que a prova (e a garantia de seu amplo exercício) só é devidamente compreendida à luz dos institutos fundamentais do direito processual, que se transmudam num plexo de direitos e deveres, que podem ser reclamados e que devem ser atendidos pelo Estado, não apenas por meio da atividade legislativa ou fático-administrativa, mas também pelo exercício de jurisdição.

À Prova Oral, como espécie do gênero Prova, devem também ser reconhecidas tais afirmações e tal complexo de direitos, decorrentes dessa posição jurídica de proteção, pois não seria lídimo falar em adequada tutela a um direito fundamental ou a um direito qualquer, se não são assegurados às partes os meios úteis para demonstração da verdade, como o são as provas orais previstas em nosso sistema.

A plena e responsável utilização da prova oral, muitas vezes mitigada pelos preconceitos e pela rude (talvez elementar) visão jurídica de certos agentes públicos, também decorre da ideia de tutela dos direitos que derivam das posições jurídicas, já que o processo é o instrumento que deve necessariamente realizar o exercício desse direito. Igualmente, é garantia do acesso à Justiça, que não se esgota no direito de provocar o exercício da função jurisdicional, mas também engloba o direito ao contraditório e à ampla defesa, que abrangem o direito de ser ouvido e de influenciar o órgão julgador.

Portanto, as partes ou os interessados têm o direito de apresentar todas as alegações, propor e produzir todas as provas, possíveis e permitidas, que, a seu juízo, possam favorecer o acolhimento da sua pretensão ou o indeferimento da postulação da parte adversa. E isso envolve o direito à autodefesa e à defesa técnica por advogado, além de não ser prejudicado pela dificuldade de acesso às situações que possam comprovar o que alegam.

A prova oral, por isso mesmo, é um componente do direito de defesa, o direito de se defender provando, e o requerimento para sua produção é apenas o passo inicial, que se perfaz com a possibilidade – concreta e não ardilosa – de produção de toda e qualquer prova que tenha, potencialmente, algum significado para o sucesso do que se está postulando ou da defesa que se está construindo – adequação esta que advém dos princípios fundamentais já declinados.

Há também, nesse contexto de oralidade e como instrumento de autodefesa, a garantia de um amplo diálogo com o órgão judiciário, o direito a uma conversação, humana e pública, com o juiz da causa, podendo as partes exigi-lo antes do julgamento, mesmo que as circunstâncias da causa e o tipo de procedimento evidenciem a irrelevância das provas orais.

Esse direito à audiência oral se origina dos princípios do contraditório (participativo) e da ampla defesa, compondo a prerrogativa de influir, persuasivamente, na decisão da causa. E se o mesmo ainda não é exercido em sua plenitude, sendo praxe a tomada de decisões não precedidas das audiências orais, isto somente significa que a oralidade é renunciável.

4.1. INSTRUMENTOS DA PROVA ORAL

Aqui verificaremos duas espécies de prova, produzidas oralmente: o Depoimento Pessoal e a Prova Testemunhal.

a) Depoimento Pessoal

O interrogatório e o depoimento pessoal não se confundem, pois aquele é sempre ordenado de ofício pelo juiz, enquanto este deve ocorrer a requerimento da parte; o primeiro pode ocorrer em qualquer fase processual, mas o segundo verifica-se por ocasião do despacho saneador, na audiência de instrução e julgamento, como se lê no Artigo 331, § 2º, CPC.

O interrogatório, é certo, pode servir como meio de prova, mas, precipuamente, é instrumento utilizado pelo juiz para elucidar ou esclarecer situações que se lhe apresentam no processo e que ele repute importantes para a decisão da causa.  Como lecionam Nery Júnior e Nery (2003, p. 731), durante o interrogatório, pode sobrevir confissão da parte, mas isso não é de sua estrutura, ao contrário do depoimento pessoal, que busca obter a confissão. Por causa disto, nada obsta que as partes, indistintamente, façam reperguntas aos interrogados.

Assim, é o Depoimento Pessoal “(…) meio de prova destinado a realizar o interrogatório da parte, no curso do processo. Aplica-se tanto ao autor como ao réu, pois ambos se submetem ao ônus de comparecer em juízo (…)” (THEODORO JÚNIOR, 1999, p. 429). É nesse momento que a parte irá ratificar os argumentos apresentados na peça inicial, na contestação ou na réplica, e confirmar ou não todos os fatos alegados no decorrer da fase processual postulatória, devendo, no entanto, limitar-se aos pontos controvertidos.

Para SANTOS (1977, p. 385-386):

“Consiste o depoimento pessoal no testemunho da parte em juízo. Por meio do interrogatório, a que é submetida, sobre os fatos alegados pela parte contrária, e mesmo sobre os fatos por ela própria aduzidos em seus articulados, visa-se, por um lado, aclará-los, e, por outro, provocar a sua confissão. Esta segunda parte é a que caracteriza o depoimento pessoal que, em verdade, é instituto destinado a provocar a confissão de parte, ou mesmo a proporcionar-lhe a ocasião para fazê-la”.

O depoimento pessoal, como regra, dá-se na audiência de instrução e julgamento, mas é possível ao juiz, ex officio, determinar o comparecimento pessoal das partes em qualquer fase do processo, antes da sentença terminativa, para interrogá-las sobre os fatos que achar pertinentes, a teor do Artigo 342, CPC. Há que se observar, em tais ocasiões, os princípios da ampla defesa e do contraditório. O depoente deverá ser questionado na forma estabelecida para a inquirição de testemunhas (Artigo 344, CPC).

Há, também, casos previstos na lei processual de oitiva das partes em momentos diversos da fase instrutória, como no Artigo 847, incisos I e II:

“Far-se-á o interrogatório da parte ou a inquirição das testemunhas antes da propositura da ação, ou na pendência desta, mas antes da audiência de instrução se tiver de ausentar-se e/ou se por motivo de idade ou de moléstia grave, houver justo receio de que ao tempo da prova já não exista, ou esteja impossibilitada de depor.”

THEODORO JÚNIOR (1999, op. cit., p. 429) aduz que “a finalidade desse meio de prova é dupla: provocar a confissão da parte e esclarecer fatos discutidos na causa”. Diz-se que, por se tratar de meio de prova, sua finalidade essencial é o esclarecimento dos fatos alegados, sendo a confissão uma possibilidade desse ato, podendo ocorrer espontaneamente ou de forma provocada.

Às partes ou aos interessados competem requerer o depoimento pessoal, preferencialmente na inicial ou na contestação (mas o juiz pode determiná-lo de ofício), a fim de interrogar a parte adversa na audiência de instrução e julgamento (Artigo 343, caput, CPC). Também podem fazê-lo antes do despacho saneador ou mesmo após, conforme o desenrolar da instrução. Existe, pois, a obrigação de requerimento expresso para que se proceda ao depoimento pessoal da parte contrária, uma vez que, não tendo havido essa demanda, o juiz da causa pode entender pela sua desnecessidade e, então, o depoimento pessoal não ocorrerá.

Em face do princípio da oralidade (que pressupõe imediatidade, ou seja, o contato direto do julgador com as partes, a fim de que ele retire conclusões de sua experiência pessoal e desta em conjunto com a fala do depoente), a intimação para o comparecimento da parte há de ser pessoal e no mandado deve constar que é possível a presunção de veracidade dos fatos alegados contra ela, além de lhe ser imposta, por esse motivo, a pena de confissão, caso a mesma não compareça à audiência ou, comparecendo, não queira depor (Artigo 343, §§ 1º e 2º, CPC), visando a proteger os princípios da oralidade e da lealdade processual, pois a parte não pode se beneficiar desta recusa.

Este ônus não é apenas o dever de depor em audiência, mas o de responder, com clareza e lealdade, a todas as perguntas formuladas pelo juiz, porque ao magistrado é possível considerar que o depoimento prestado com omissões ou subterfúgios equivale à verdadeira recusa de prestar depoimento.

Acerca do procedimento utilizado para o depoimento pessoal, deve-se lembrar a ordem das oitivas – primeiro o autor e depois o réu, ambos em momento anterior à audição das testemunhas (Artigo 452, Incisos II e III, CPC) –, a vedação de ficar na sala de audiências à parte que ainda não depôs e a redução a termo obrigatória de todos os depoimentos, devendo ser assinado pela parte depoente, pelos advogados e pelo juiz da causa.

Também cabíveis alguns esclarecimentos sobre o Artigo 346, CPC, o qual prescreve: “O depoimento é pessoal da parte, não podendo a mesma se servir de escritos anteriormente preparados, lhe sendo, contudo, permitida a consulta a notas breves que apenas objetivem completar esclarecimentos”. Sobre a pessoalidade do depoimento, SANTOS (op. cit., p. 390) ensina:

“Sujeito do depoimento pessoal, ou depoimento de parte, não pode ser senão quem for parte no processo. Como por ele se visa, especialmente, à provocação da confissão, não se compreende possa depor quem não se ache em condições de confessar. Donde, somente quem for parte no feito e tenha capacidade jurídica pode ser constrangido a prestar depoimento.”

Por isso o depoimento pessoal não pode ser feito por procurador, pois, em relação à capacidade da parte, somente pode depor quem pode confessar, por ser este  um dos objetivos desse instrumento de prova.

Esse mesmo dispositivo trata, ainda, do impedimento à consulta de escritos previamente preparados, o que tem por finalidade impedir o depoimento forjado, induzido, que oculte ou distorça a verdade dos fatos. Assim, o “poder de persuasão do depoimento, no espírito do julgador, deve ter como única linguagem a expressão comunicada diretamente pela parte, oralmente, por escrito (…) ou por intermédio de intérprete (…)” (NERY JÚNIOR e NERY, op. cit, p. 734). Quando absolutamente necessária, a consulta a breves notas é permitida, em verificação à essência e às circunstâncias do fato que fez originar a pergunta.

Ainda sobre a legitimidade para o depoimento:

“CPC. Art. 405.  Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas.

§ 1o  São incapazes:

I – o interdito por demência;

II – o que, acometido por enfermidade, ou debilidade mental, ao tempo em que ocorreram os fatos, não podia discerni-los; ou, ao tempo em que deve depor, não está habilitado a transmitir as percepções;

III – o menor de 16 (dezesseis) anos;

IV – o cego e o surdo, quando a ciência do fato depender dos sentidos que Ihes faltam.

§ 2o  São impedidos:

I – o cônjuge, bem como o ascendente e o descendente em qualquer grau, ou colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consangüinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público, ou, tratando-se de causa relativa ao estado da     pessoa, não se puder obter de outro modo a prova, que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito;

II – o que é parte na causa;

III – o que intervém em nome de uma parte, como o tutor na causa do menor, o representante legal da pessoa jurídica, o juiz, o advogado e outros, que assistam ou tenham assistido as partes.

§ 3o  São suspeitos:

I – o condenado por crime de falso testemunho, havendo transitado em julgado a sentença;

II – o que, por seus costumes, não for digno de fé;

III – o inimigo capital da parte, ou o seu amigo íntimo;

IV – o que tiver interesse no litígio.

§ 4o  Sendo estritamente necessário, o juiz ouvirá testemunhas impedidas ou suspeitas; mas os seus depoimentos serão prestados independentemente de compromisso (art. 415) e o juiz Ihes atribuirá o valor que possam merecer”.

Pelo Artigo 347, CPC, que possui ligação direta com o Direito Penal, não se pode obrigar a parte a responder, no depoimento, sobre fatos criminosos ou torpes que lhe sejam imputados (ligação direta com o crime), nem sobre fatos que ela tenha que guardar sigilo, por estado ou profissão (o que também é previsto no Artigo 154, CP, como norma incriminadora). Nesses casos, a parte tem a faculdade de não depor, mas deve comparecer em Juízo para manifestar sua vontade e expor suas razões, o que será valorado pelo juiz, que decidirá se as mesmas são adequadas a essa regra.

São inúmeros os dispositivos legais, além do CPC, que trazem vedações relacionadas com o sigilo obrigatório. O Código Civil, por exemplo, informa que ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo; a que não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge, parente em grau sucessível, ou amigo íntimo; ou que o exponha, ou às pessoas referidas no inciso antecedente, a perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato (Artigo 299).

b) Prova Testemunhal

Dentre as provas em espécie existentes, merece destaque a testemunhal, muito embora muitas ressalvas sejam levantadas, em razão das limitações de assimilação e memória, naturais e inerentes à testemunha enquanto ser humano.

Apesar disso, é recurso eficiente de persecução da verdade dos fatos, sendo, seguramente, um dos métodos mais antigos de que se tem notícia: os povos primitivos, certamente, já utilizavam os elementos sensoriais para comprovar a veracidade dos fatos.

Com o transcorrer dos períodos, a influência da religião tornou-se cada vez mais forte, o que fez prevalecer, como dito antes, as ordálias ou os juízos divinos, os juramentos e os duelos. Nesta época, conquanto a prova testemunhal fosse também utilizada, estava relegada a um segundo plano.

É possível verificar, na Bíblia – Capítulo 13, Versículo 45 –, a inquirição testemunhal no processo de acusação de adultério contra a judia Susana.

Apenas no séc. XIV é que a prova testemunhal recuperou seu antigo prestígio e passou a ser largamente admitida e utilizada nos diversos procedimentos.

. Conceito

A prova testemunhal é a obtida por meio da inquirição de pessoas, que não são partes da relação processual, sobre fatos ou atos que as mesmas conhecem, que possam interessar à solução da demanda. Para Wambier et al. (1999, p. 521), a prova testemunhal consiste “em uma reprodução oral do que se encontra guardado na memória daqueles que, não sendo parte, presenciaram ou tiveram notícia dos fatos da demanda”.

A prova testemunhal é produzida em juízo, sob compromisso previamente assumido, e deve estar cercada das garantias processuais correspondentes ao procedimento probatório.

Como leciona Oliveira (2001, p. 18), o processo testemunhal compreende a percepção, a retenção, a recordação e a narração dos fatos, fases estas sujeitas a imperfeições, inerentes aos sentidos humanos. Além disso, a testemunha quase sempre presta um depoimento suspeito, embora não o confesse, porque busca auxiliar a parte que a arrola.

Mesmo assim, possui a prova testemunhal um lugar significativo no deslinde da questão processual, mesmo porque, em muitas situações, apenas a inquirição de testemunhas pode esclarecer a realidade dos fatos.

É necessária, assim, especial habilidade do julgador e dos advogados para se conseguir a comprovação dos fatos duvidosos, embora, cabe relembrar, o convencimento do juiz será alcançado pelo conjunto probatório, por meio de um cotejo entre as várias provas trazidas ao processo.

A polêmica quanto à utilização da prova testemunhal, também é analisada por Theodoro Júnior (1994, p. 73):

“Deplorada por muitos, dada à notória falibilidade humana, e pelo mau uso que não poucos inescrupulosos fazem do testemunho, a verdade é que o processo não pode prescindir do concurso das testemunhas para solucionar a grande maioria dos litígios que são deduzidos em juízo.”

. A Testemunha

Pode ser conceituada como a pessoa física, diversa das partes, que tem conhecimento dos fatos do litígio, dotada de capacidade e desinteressada no deslinde da causa (insuspeita e desimpedida).

Não se confunde com o perito, que deve se limitar a utilizar seus conhecimentos técnicos para explicar ao juiz sobre determinados fatos relacionados à demanda.

São dois, essencialmente, os pontos de distinção entre o perito e a testemunha:

. a natureza do conhecimento;

. o momento do conhecimento.

A ciência que tem a testemunha sobre um fato determinado é sensorial, enquanto a natureza do conhecimento apresentada pelo perito é sempre técnica. A testemunha obtém o conhecimento sobre os fatos antes do processo; o perito os recebe após a instauração processual.

É possível que o perito tenha presenciado o fato antes de iniciada a marcha processual, porém sua função não será a de relatá-lo, mas de realizar um juízo pautado em seus conhecimentos técnicos. Assim, portanto, também se distingue a prova testemunhal da pericial: enquanto a primeira pode interferir no processo por meio de uma narração representativa, a segunda destina-se a imprimir um juízo técnico e especializado sobre os fatos relevantes para a causa. A par disso, existe nas duas a comum peculiaridade de não servirem à exposição de juízos de valor.

. Classificação da Testemunha

No tocante ao acesso que tiveram aos fatos, a doutrina apresenta a seguinte classificação:

Presencial – a que teve contato direto com o fato que se pretende provar, havendo maior credibilidade e riqueza de detalhes;

De referência – tem notícia dos fatos por meio de terceiros, não tendo àqueles presenciado;

Referida – foi mencionada no depoimento de outras testemunhas, embora não arrolada pelas partes, podendo ser ouvida de ofício ou a requerimento destas;

. Deveres da Testemunha:

– comparecer em juízo, sempre que intimada, sob pena de condução coercitiva e responsabilização pelas despesas decorrentes;

– colaborar com a Justiça, por meio de seu depoimento, devendo responder o que lhe for perguntado, exceto se (Artigo 406, CPC) os fatos indagados representem dano de ordem moral, para si ou para sua família, ou se sobre os mesmos deva guardar sigilo, por estado ou profissão. Da mesma forma, mesmo sem previsão legal nesse sentido, fica desobrigada de prestar testemunho se disso possa resultar processo penal;

– não mentir para favorecer  quem quer que seja: seu testemunho apenas serve para auxiliar o juiz na busca da verdade dos fatos.

. Direitos da Testemunha:

– ter o depoimento tomado pelo juiz da causa;

– ser tratada com respeito e urbanidade, não podendo ser objeto de escárnio ou de embaraços, com vedação às perguntas capciosas e/ou vexatórias;

– recusar-se a responder as perguntas, caso destas possa lhe resultar processo criminal;

– ressarcimento das despesas efetivamente sofridas em face da obrigação de comparecer em juízo, que serão suportadas pela parte que a arrolou;

– não sofrer perda salarial, nem desconto no tempo de serviço, pois o ato de testemunhar é considerado serviço público.

Não se confundem a capacidade para ser testemunha e a capacidade civil, uma vez que o cego, o surdo e o enfermo, conquanto não sejam incapazes civilmente, possuem relativa incapacidade para testemunhar, quando a patologia deles tornar impossível a percepção sensorial do fato a ser narrado. O surdo-mudo, no entanto, se for capaz de se comunicar por sinais, pode servir de testemunha sobre os fatos que tenha presenciado.

O maior de dezesseis e menor de dezoito anos pode testemunhar, embora não lhe seja possível a imputação pelo crime de falso testemunho, por evidente a sua inimputabilidade criminal. É comum, entretanto, na esfera do direito de família, o menor ser ouvido como informante, mas o valor probatório que daí decorre é menor do que o produzido pela prova testemunhal.

Aliás, entende-se que os informantes não prestam compromisso de falar a verdade, estando livres de responder por eventual responsabilização penal, mas isso não é pacífico na doutrina, já que o Artigo 339, CPC, estabelece que “ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”.

São considerados suspeitos para testemunhar:

– Quem possui sentença transitada em julgado por crime de falso testemunho, restrição que desaparece com a reabilitação ou a extinção da punibilidade;

– Quem não for digno de fé, conforme os “costumes” que apresenta. Este norma é considerada de cunho discriminatório, pois tal critério diz respeito à vida particular da pessoa, o que não deveria ser relevante para a capacidade de testemunhar;

– O inimigo capital ou amigo íntimo de uma das partes;

– Quem possui interesse no litígio, já que a testemunha deve ser neutra em relação ao processo, sem qualquer envolvimento com a demanda.

São impedidos de testemunhar:

– o cônjuge e os parentes – ascendentes e descendentes, em qualquer grau, e colaterais até o terceiro grau. Porém, excepcionam-se as causas em que há interesse público, ou as que sejam relacionadas ao estado da pessoa, mas desde que não exista outro meio de provar os fatos. Igualmente, é possível o testemunho de impedido nas causas de filiação, pois, neste caso, dificilmente se obtém testemunho de pessoa não impedida;

– quem for parte no processo. Claro que esta hipótese aplica-se ao litisconsorte, que não pode servir de testemunha para outro litisconsorte;

– o que intervém em nome da parte, como tutor, na causa do menor, como representante legal da pessoa jurídica, o juiz (da causa), o advogado, além de outros, que assistam ou que tenham assistido às partes.

Ao contrário das causas de impedimento, as causas de suspeição são mais subjetivas. As pessoas suspeitas são aquelas que, por motivos diversos dos que caracterizam o impedimento, têm a credibilidade comprometida para servir como testemunha isenta. A diferença, pois, entre impedimento e suspeição não é de essência, mas de gradação.

Note-se que o rol de incapazes, impedidos e suspeitos, acima (Artigo 405, CPC), é mais abrangente que o do Artigo 228, CC, verbis:

“Art. 228. Não podem ser admitidos como testemunhas:

I – os menores de dezesseis anos;

II – aqueles que, por enfermidade ou retardamento mental, não tiverem discernimento para a prática dos atos da vida civil;

III – os cegos e surdos, quando a ciência do fato que se quer provar dependa dos sentidos que lhes faltam;

IV – o interessado no litígio, o amigo íntimo ou o inimigo capital das partes;

V – os cônjuges, os ascendentes, os descendentes e os colaterais, até o terceiro grau de alguma das partes, por consangüinidade, ou afinidade.

Parágrafo único. Para a prova de fatos que só elas conheçam, pode o juiz admitir o depoimento das pessoas a que se refere este artigo.”

Neste diploma, não há separação entre as causas de incapacidade, de impedimento e de suspeição. E apesar da redação do § 4º do Artigo 405, CPC, ter excluído os incapazes da possibilidade de prestarem depoimento como informantes, o Código Civil de 2002, em regra ulterior (Artigo 228, Parágrafo Único), permitiu o depoimento dos mesmos.

Mas este dispositivo há de ser interpretado razoavelmente, segundo a lógica processual, pois não se pode admitir que o incapaz deponha a respeito de fatos cuja ciência dependa dos sentidos que lhe são deficientes, como, por exemplo, um cego depor sobre um acontecimento que, por óbvio, ele não viu. O Código Civil, portanto, inovou, em relação ao CPC, ao permitir a possibilidade do menor de 16 anos ser ouvido como informante.

A doutrina entende que a lei deve acolher a realidade. Sabe-se, por exemplo, que a mãe tende a proteger o filho em quaisquer circunstâncias e, por tal motivo, o juramento – elemento formal – cede espaço à consagração da equidade. Assim, como se tem reconhecido, a solenidade do compromisso não é, de fato, o requisito para que o crime se verifique, mas a relação que vincula a testemunha à parte.

Também é possível visualizar a pouca atenção que o Poder Judiciário atribui ao sentido humanístico da norma, não conseguindo transpor certos embaraços da lógica formal, pois, no caso em debate, ao contrário da valoração que muitas vezes é atribuída, o que realmente interessa para o Direito é o teor do depoimento e não a promessa formal de dizer a verdade.

4.2. ADMISSÃO E CERCEAMENTO ILÍCITO DA PROVA ORAL

Diante do caráter dispositivo do processo civil brasileiro, à luz do adágio iudex secundum allegata et probata partium iudicare debet, em convivência (nem sempre salutar) com os poderes de condução – especialmente instrutórios – do julgador, não são incomuns os questionamentos acerca do indeferimento das provas e, particularmente, da prova testemunhal.

Ao recusar a produção de matéria oral e probatória – às vezes repelindo o arrolamento de determinadas testemunhas, às vezes não assentindo sobre alguma formulação de questionamento, levada a efeito pelos advogados – o juiz deve investigar, com o máximo rigor, se o princípio que o impele ao livre convencimento – de análise das provas produzidas ou requeridas – está ou não a ferir a norma, bem mais relevante, da ampla defesa, insculpida no Artigo 5º, LV, da Constituição Federal.

Como assevera o Artigo 332, CPC, “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”, o que remete a algumas considerações sobre a prova ilegítima – obtida de forma ilegal ou não revestida dos princípios da moralidade e da lealdade –, que não deve, em princípio, ser aproveitada no julgamento do mérito da ação.

Segundo Cabiale e Morales (2001, p. 25), a prova ilícita é a que foi obtida por meio do insulto a um direito assegurado em nível constitucional, mais por ofender a integridade física, a liberdade de locomoção, a intimidade, o direito à imagem e à inviolabilidade do domicílio, o sigilo da correspondência ou das comunicações.

O processo repudia essa espécie de prova, exceto na medida em que a sua utilização seja imprescindível à preservação de um direito, cujo sacrifício não seja lícito exigir quando em cotejo com o direito que a ilicitude da prova violou.

. Proibição da prova ilícita e cerceamento ilícito da prova

O óbice do emprego de uma prova ilícita é muito mais amplo no processo penal, eis que a presunção de inocência e a indisponibilidade do direito fundamental que se ameaça – a liberdade – vedam de maneira absoluta a utilização das provas ilícitas, mas apenas as que prejudicam o acusado, embora algumas delas, objetivamente ilícitas, por violação de privacidade – a interceptação telefônica, por exemplo –, podem se tornar admissíveis pela prévia autorização judicial, ocorrendo, no mais das vezes, rigorosa ponderação da necessidade de tais provas em face de bem jurídico tão valioso ou mais do que o direito fundamental violado ou do que a liberdade do acusado colocada em risco.

Também se considere que será possível a admissão das provas ilícitas em favor do acusado, por aplicação do princípio da proporcionalidade, como afirma Gomes (2000, p. 231), mas, sob qualquer hipótese, será admitida a prova que se obteve mediante ofensa à integridade física ou psicológica do mesmo.

Mas, se o processo repudia as provas ilícitas, é porque, em primeiro lugar, o Estado tem o dever de garantir os direitos fundamentais a todos os interessados no deslinde da causa, inclusive não cerceando a exibição ou a realização da prova, de maneira indevida ou sem a necessária e lógica fundamentação. Não pode impor tratamento humilhante, ofensivo à honra, à liberdade, à intimidade e à propriedade, fora dos limites legais. Tudo isso deve ser verificado no momento em que se vai definir se alguma prova é lícita ou não e, ainda, diante da certeza da sua ilicitude, se o seu uso não será muito mais relevante para o Direito que a sua mera impugnação.

O que se nota, com grande frequência em relação às provas testemunhais, é a ausência de razoabilidade e proporcionalidade quando do seu indeferimento e, até mesmo, não raras vezes, percebe-se o emprego indiscriminado (o copia e cola) da fundamentação sem esclarecimento, uma estrutura que muito se assemelha com uma decisão motivada (um esmero para dar-lhe ares de licitude), porém destituída de qualquer base de argumentação – o que, também, deveria ser considerado (pressuposto que é) para a legitimidade das decisões judiciais e administrativas.

Todo julgamento que indefira uma prova deve ser devidamente justificado, evidenciando o integral conteúdo desta e o respeito ao contraditório participativo, por meio do exame e da consideração de todas as alegações pertinentes apresentadas pelas partes. Tal motivação advém de uma dupla exigência: em primeiro lugar, é um direito das partes (e de todo interessado) conhecer as razões do que foi decidido e analisar se tais fundamentos são lógicos e consistentes, a ponto de ser a decisão mais justa possível; depois, é obrigação do julgador a demonstração de que estudou com critério todas as provas relevantes levadas ao processo e que, portanto, considerou todo o esforço e a presteza das partes no sentido de inspirar a sua decisão.

Os fundamentos dessa análise devem permitir que se entenda o modo como as provas produzidas foram avaliadas e a valoração de cada uma delas. E uma simples explicação racional não basta à exigência de motivação. Também é necessário evidenciar que todos os argumentos, fatos e provas, relevantes em potencial, foram examinados. E, finalmente, especificar, ponto a ponto, os motivos da decisão, porém de maneira essencialmente lógica.

Talvez, o ponto crucial esteja exatamente aqui: a essencialidade da lógica! A ordem jurídico-constitucional não mais permite, por exemplo, a seguinte construção, hipotética, utilizando exemplo do processo administrativo disciplinar:

“Reinquirição de Testemunha. Indeferimento. Cerceamento de Defesa. Não ocorrência. Segurança denegada. É facultado à Comissão Disciplinar, consoante dispõe o art. 156, 1º, da Lei n. 8.112/90, indeferir motivadamente a produção de provas, principalmente quando se mostrarem dispensáveis diante do conjunto probatório, não caracterizando cerceamento de defesa. Precedentes.”

Neste exemplo, entretanto, quando os autos (também hipotéticos, que embasaram a citada ementa) são compulsados, percebe-se uma “lógica” cruel e ilícita, mas amplamente usada e corroborada, infelizmente, em alguns tribunais:

1º) o tal requerimento para reinquirição da testemunha (mesmo com a devida exposição dos motivos e do modo como essa prova interferiria no decisum) foi negada com o singelo (e genérico) argumento de ser protelatório e/ou impertinente, pois já havia nos autos suficientes provas para a condenação;

2º) nenhum dos pontos levantados pela defesa, no sentido de motivar suficientemente o pedido de reinquirição, foi enfrentado pela comissão disciplinar, que decidiu, ao final, opinar pela culpa do servidor e sugerir a gravíssima pena de demissão;

3º) a reinquirição daquela testemunha, eis que uma nova tipificação fora imputada ao acusado, era, sim, decisiva e poderia, pelo que ficou deveras evidente nos autos, ter fornecido o único elemento que realmente faltava ao conjunto probatório, seja para a absolvição, seja para a própria condenação.

Mas essa oportunidade foi negada ao acusado, a começar na instância administrativa, pela comissão de disciplina, depois em todos os demais órgãos da corregedoria e, finalmente, no próprio Poder Judiciário, em sede de mandado de segurança, onde apenas se “copiou e colou” a mesma ementa – tantas vezes usada, trocando-se apenas os nomes das partes –, possivelmente “confiando” na veracidade do relatório final disciplinar, sem o cuidado, não de cotejar as provas em face do mérito, eis que em sede de writ of mandamus, mas de manusear os autos para conferi-las e verificar se, de fato, aquela testemunha era ou não essencial.

A evidência de uma “falha” tão grave remete, sem dúvida, a uma série de questionamentos, relacionados à valoração da prova e envoltos, quem sabe, numa nuvem negra de interesses escusos, onde os acusadores dessa trama (hipotética) nem cogitam sobre alguma espécie de respeito à dignidade humana, esta (agora debilitada) garantia constitucional que, como já mencionado, ocupa toda a essência do princípio da ampla defesa.

Sobre os vícios acima exemplificados, mencione-se que o Tribunal Constitucional da Espanha, ao denunciar violações ao princípio da congruência, que é elemento da garantia ao devido processo legal, afirmou que essa espécie de violação ocorre sempre que inexistir uma resposta motivada do Poder Judiciário, em qualquer de suas instâncias, a uma arguição acerca de um fato que constitua fundamento do pedido.

Esse estilo sintético (e mecânico) das decisões é muito utilizado no Direito Francês, mas tem se tornado muito comum no Brasil, dado o imenso volume de processos, o que, de todo modo, não é uma justificativa nem minimamente aceitável, pois toda decisão construída com “frases feitas” e vazias de conteúdo fragilizam o respeito efetivo às citadas garantias fundamentais. São expressões do tipo “falta de amparo legal” ou “ausência de omissão, obscuridade ou contradição”, mas que não examinam, concreta e logicamente, a prova produzida e suscitada ou indeferem a sua produção.

Abaixo, algumas manifestações da jurisprudência sobre o cerceamento ilícito da prova oral:

“Processo: RO 715201100323007 MT 00715.2011.003 .23.00-7. Relator(a): Desembargador EDSON BUENO. Julgamento: 07/08/2012. Órgão Julgador: 1ª Turma. Publicação: 08/08/2012. Ementa: INDEFERIMENTO DA PRODUÇÃO DE PROVA ORAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. CONFIGURAÇÃO. O cerceio do direito de defesa ocorre quando o julgador obsta a produção de prova relevante e imprescindível para o deslinde dos fatos controvertidos no feito, o que implica nítida violação ao disposto no inciso LV do art. 5º da Carta Magna e acarreta manifesto prejuízo à parte. No caso concreto, o autor pretendia produzir prova testemunhal quanto às condições aviltantes a que entendia submetido enquanto trabalhava para as requeridas, o que fundamentava seu pedido de indenização por dano moral. O juiz de origem indeferiu tal pretensão sob o fundamento de que não havia ficado demonstrado que o trabalhador era exposto a situação degradante. Ora, se a pretensão indenizatória tinha por fundamento as condições degradantes às quais o autor entendia-se submetido, o que, aliás, o levou a concluir que estava preso a um regime análogo ao de escravidão, jamais poder-se-ia indeferir-lhe prova oral supostamente capaz de comprovar tal situação e, na sentença, rejeitar-lhe o pedido de indenização exatamente por ausência de prova. Dessa forma, está evidenciado o erro de procedimento judicial fundado em cerceamento de defesa, em afronta ao inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal, razão porque dou provimento ao recurso para declarar a nulidade da sentença, por cerceamento de defesa, e determinar o retorno dos autos do processo à Vara do Trabalho de origem para reabertura da instrução e prolação de novo decisum.”

“Processo:AgRg no REsp 1276184 RJ 2011/0148635-9. Relator(a):Ministra NANCY ANDRIGHI.Julgamento: 19/06/2012. Órgão Julgador: T3 – TERCEIRA TURMA. Publicação: DJe 27/06/2012. Ementa: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO NO RECURSO ESPECIAL. PRODUÇÃO DE PROVASESSENCIAIS AO EXAME DA CONTROVÉRSIA. INDEFERIMENTO LIMINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA. Cerceia o direito do autor o indeferimento liminar de petição inicial com fundamento na ausência de provas suficientes, sem que tenha sido oportunizada a produção de prova tida como essencial para a ação.- Agravo no recurso especial não provido.”

“Processo: AG 72498420108070000 DF 0007249-84.2010.807.0000. Relator(a): FLAVIO ROSTIROLA. Julgamento: 30/06/2010. Órgão Julgador: 1ª Turma Cível. Publicação: 13/07/2010, DJ-e Pág. 51. Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL E DEPOIMENTO PESSOAL. ALEGAÇÃO ACORDO VERBAL. PROVA INDEFERIDA. CERCEAMENTO DE DEFESA CONFIGURADO. 1. É LÍCITO À PARTE SUPOSTAMENTE INOCENTE COMPROVAR SEU ALEGADO DIREITO POR MEIO DE PROVA TESTEMUNHAL QUANDO AFIRMA TER OCORRIDO ACORDO VERBAL ENTRE AS PARTES E SENDO ESTA O ÚNICO MEIO DE PROVA. 2. NO CASO VERTENTE, O INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE PRODUÇÃO DE PROVA ORAL, COM O POSTERIOR INTUITO DE JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE, CONFIGURA-SE TEMERÁRIO AO DIREITO DE DEFESA. 3. AGRAVO PROVIDO PARA DETERMINAR A PRODUÇÃO DE PROVA ORAL”.

. O Princípio da Livre Admissibilidade (e Investigação) da Prova

Diz respeito à admissão no processo de toda prova que seja imprescindível a se delimitar a verdade dos fatos e formar o convencimento do julgador, nisso mantendo uma estreita afinidade com o princípio inquisitivo e o da verdade real, preocupação maior da moderna teoria da prova.

Encontra esteio no Artigo 130, CPC, verbis:

“Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.”

Infelizmente, como já descrito acima, é a parte final desse dispositivo – carregada que é de subjetividade – que vem sendo utilizada de maneira corrompida, pela deterioração pura nos mecanismos da lógica e em prol de objetivos não menos depravados.

Já na primeira fração do mesmo Artigo, verifica-se a imposição de uma conduta obrigatória (“caberá ao juiz”), seja “de ofício” ou por “requerimento da parte”, sem fixar condição alguma de tempo processual e sem qualquer restrição quanto aos meios lícitos de prova.

O Princípio da Livre Admissibilidade pode ser verificado no tocante aos momentos de proposição, de admissão e de produção dos diversos meios de prova, que encontram uma base de disciplina em nosso estatuto processual civil, o que pode redundar, como ocorre certamente, numa mentalidade formalista, que não admita liberdade temporal para a admissão da prova no processo. Conquanto, obviamente, possa ocorrer preclusão, essa formalidade só tem sentido se relacionada com a lealdade processual, bem como respaldada no princípio do contraditório.

Por isso, como leciona ECHANDIA (1973, p. 19), não é outro o interesse preclusivo em relação à prova, senão o de evitar que a parte adversa se surpreenda “com pruebas de último momento, que no alcance a controvertilas, o que se propongan cuestiones sobre las cuales no puede ejercer su defensa”, devendo, assim, ser afastada do Artigo 130, CPC, qualquer interpretação excessivamente formalista.

SANTOS (1990, p. 276), igualmente, acompanha essa ideia, confirmando a necessidade de se alcançar a verdade real, não importando em qual momento do processo:

“Se no decorrer do processo, antes ou depois do despacho saneador, e mesmo já na audiência de instrução e julgamento, qualquer das partes, à vista de circunstâncias surgidas na causa, requer prova testemunhal, ou depoimento da parte contrária, ou perícia, a sua proposta poderá ser acolhida.”

Não há, deste modo, a ocorrência de preclusão quanto ao exame da necessidade e da pertinência da prova, pois isto afrontaria diversos princípios informadores do devido processo legal. É também a posição do STJ (1ª T., REsp. 896.072, Rel. Min. Francisco Falcão, AC. 15.4.2008, DJe 5.5.2008):

“Ainda que tenha havido o anterior indeferimento da produção de prova pericial, pelo juízo de primeiro grau, ainda assim pode o Tribunal de apelação, de ofício, determinar tal produção, se entender pela sua indispensabilidade.”

À vista disso, ao juiz é vedado o indeferimento da prova requerida e imprescindível à elucidação dos fatos, sob o fundamento da oportunidade temporal, pois esta seria uma decisão ilícita, por afronta direta ao Artigo 130, CPC. Ao contrário, o objetivo do julgador deve sempre ser a busca pela verdade real. Aliás, por imposição do mesmo dispositivo e também dos princípios do contraditório e da ampla defesa, a produção da prova pertinente e adequada é um direito das partes e um dever do julgador, não havendo margem para juízo de conveniência e oportunidade, o que também deve ser aplicado aos procedimentos administrativos de caráter disciplinar, em que pese a ocorrência de atos discricionários no âmbito da Administração Pública.

Daí decorre, para THEODORO JÚNIOR (artigo disponível no site www.amlj.com.br, p. 20), o duplo-dever que envolve a função do juiz:

“a) dever de promover as provas que, nas circunstâncias da causa, se revelem necessárias ao esclarecimento dos fatos relevantes para a revelação da verdade em torno dos dados sobre os quais assentam as alegações e defesas dos litigantes;

b) dever de indeferir as pretensões de provas sobre fatos irrelevantes ou que não sejam necessárias para a revelação de fatos relevantes, quando tecnicamente não reclamam prova alguma, conforme as normas aplicáveis ao caso concreto.”

Cumpre verificar como o STJ tem afirmado a vinculação legal do juiz ao deferimento ou ao indeferimento do pleito probatório:

“Se a pretensão do autor depende da produção da prova requerida, esta não lhe pode ser negada, nem reduzido o âmbito de seu pedido com um julgamento antecipado, sob pena de configurar-se uma situação de autêntica denegação de justiça (STJ – 3ª T., Resp. 5.037-SP, Rel. Min. Cláudio Santos, ac. 4.12.1990, RSTJ 21/416-417).

O indeferimento de realização de provas, possibilidade oferecida pelo art. 130 do CPC, não está ao livre arbítrio do juiz, devendo ocorrer apenas, e de forma motivada, quando forem dispensáveis e de caráter meramente protelatório” (1ª T., Resp. 637.547, Rel. Min. José Delgado, ac. 10.8.2004, DJU 13.9.2004, p.173).

Por outro lado, cabe ao Poder Judiciário o controle externo dos atos administrativos, principalmente o exame da legalidade (Artigo 5º, Inciso XXXVI, CF). Nessa linha, decidiu o pretório Excelso que

“a legalidade do ato administrativo, cujo controle cabe ao Poder Judiciário, compreende não só a competência para a prática do ato e de suas formalidades extrínsecas, como também os seus requisitos substanciais, os seus motivos, os seus pressupostos de direito e de fato, desde que tais elementos sejam definidos em lei como vinculadores do ato administrativo” (STF, RDA nº 42/227)

O que lhe é proibido, pelo princípio da separação de poderes, no ato discricionário, é desconstituir o mérito do ato, substituindo o critério do Administrador. Vejamos o que Sebastião (2005, p. 77) diz a respeito:

“Mas é preciso deixar claro que a intangibilidade só é própria daquele ato que traga em si uma correspondência absoluta entre sua motivação e os elementos fáticos e jurídicos, ou seja, que esteja blindado por uma capa de sinceridade, sem nenhum disfarce ou artifício.

Fora de tal conjuntura, e já tangenciando pelo campo da ilegalidade, o ato deixa de merecer tal privilégio, ficando assim ao crivo do exame de legalidade.

Com efeito, constatada, a mais não poder, a carência de robustez ideológica do ato, ou seja, falta de consonância entre a questão fática e a motivação que deu suporte ao ato punitivo, a conseqüência será a anulação da reprimenda, não por desmerecimento do mérito, mas por vício de legalidade.”

CONCLUSÃO

A norma fundamental da dignidade humana representa importante vetor de interpretação, valor que deve inspirar e conformar todo ordenamento jurídico, assim como a sua mais lídima aplicação nos procedimentos judiciais e administrativos, pois estes não se formam para a imposição autoritária e caprichosa de ideias ou para proclamação de teses acadêmicas de direito.

A existência deles só se justifica para tutelar os interesses concretos – nascidos, em nossa existência, dos percalços e das misérias – e as relações jurídicas da vida em sociedade. Porém, com uma finalidade maior, um ideal que suplanta qualquer desânimo e inspira o já narrado atributo da indignação, aliado ao exercício da ampla defesa: é a ideia de justiça e de paz social!

Essa aspiração não é uma irresponsável quimera, mas a sua aproximação é possível, desde que toda a sociedade passe a respeitar os direitos fundamentais, principalmente informadores da dignidade do ser humano. No que se refere ao tema do cerceamento ilícito da prova oral, o Estado não deve restringir o amparo legítimo aos mecanismos que se encontram à disposição de todos, para preservação das garantias do devido processo legal.

Como demonstrado, a manutenção da influência e da autoridade leva à mitigação dos princípios do contraditório e da ampla defesa, por ser, talvez, o meio mais eficaz – sem a necessidade de imposição da força física – de silenciar a manifestação dos opositores, sem esquecer, é claro, que esse menoscabo às instituições democráticas também se deve, embora esta não seja a regra, ao despreparo e à desídia dos órgãos administrativos e de jurisdição.

Alguns instrumentos – de verve autoritária – têm servido a essas infâmias, como, por exemplo, no caso dos processos administrativos disciplinares – talvez a seara mais propícia aos jogos de repressão –, a absurda e oficial tolerância à atipicidade de alguns delitos, relacionados nas leis estatutárias dos servidores públicos, que, em análise final, dificultam ao extremo o exercício do direito de defesa, mormente se determinada instrução se originou com propósitos escusos e dissimulados. Igualmente, proporcionam ao julgador hostil a possibilidade de indeferimento de provas, sob o manto formado pelo afastamento do princípio da reserva legal.

O “animal político”, que para Aristóteles repousa em cada ser humano, precisa ser exercitado, não apenas nos períodos eleitorais. Um projeto maior deve se firmar na mentalidade de todos: cada um a refletir e a assumir sua quota de responsabilidade, para efetiva construção de uma sociedade eticamente mais evoluída, para concretização da principal razão de existir do ser humano, como alertado nas linhas introdutórias.

O verdadeiro estado de independência, como razão e inspiração na vida e no Direito, não pode ser considerado uma utopia inatingível. O amor incondicional à liberdade torna os homens indomáveis e os povos invencíveis, pois não há força que segure esta ânsia individual e coletiva.

Mas, para que o homem seja efetivamente livre, é preciso lutar sem descanso, libertar-se das amarras da servidão, seja física, política, religiosa, cultural, ou da consciência, já que a autonomia do indivíduo não se destrói pela coerção, nem a restrição ou a cassação de direitos fundamentais consegue tolher uma nação em sua liberdade soberana.

 

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Nota:
[1] Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência para aprovação no Curso de Pós-Graduação, em nível de Especialização, de Direito Processual Civil, da Universidade Anhanguera-Uniderp. Orientadora: Prof. MSc. Tatiana Fernandes Santos Bazenga


Informações Sobre o Autor

José Carmênio Barroso Júnior

Advogado Pós-Graduando em Direito Processual Civil – Universidade Anhanguera/Uniderp


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