A doutrina e a jurisprudência têm – com algum atraso, convenhamos – feito eco às vozes daqueles que, desde a primeira hora, denunciaram o arbítrio legislativo que culminou na edição do Dec-Lei 911/69 onde a figura do devedor-consumidor é alvo de um conjunto de regras absolutamente restritivas (como a espelhar a supremacia da Junta Militar que o editou).
Waldírio Bulgarelli (Contratos Mercantis, Ed. Atlas) foi um dos que bem cedo lançou um j’accuse lúcido e pleno de pertinentes ironias contra certos dispositivos do referido Dec-Lei, especialmente no que se refere à prisão civil do devedor, milagrosamente equiparado ao depositário, elidindo norma tradicional do nosso Direito Constitucional que acolhia os postulados da vetusta Lex Poetelia Papiria.
O art.170 da Constituição Federal de 1988 traz norma expressa segundo a qual a Ordem Econômica tem por fim assegurar a justiça social observando, entre outros princípios, a defesa do consumidor. Pois é diante deste ponto de vista que se afirma a inconstitucionalidade o § 1o do art.3o do Dec-Lei 911 que proíbe a purga da mora, pelo devedor, se este ainda não tiver quitado ao menos, 40% do preço financiado.
E por que tal dispositivo é inconstitucional? É que estando em evidente desacordo com a norma programática do inciso V, do art.170 da C.F. acha-se, assim, revogado, mesmo porque vai de encontro a todos os princípios insculpidos no regramento do Código de Defesa do Consumidor que lhe é posterior.
Poder-se-ia argumentar que as normas programáticas não invalidam leis ordinárias pré-existentes porque não têm eficácia plena – tal como sustentou parte da Doutrina italiana em grave debate que se acendeu por ocasião da nova ordem instaurada pela Constituição de 1948.
A própria Corte Suprema peninsular acolheu a tese, em alguns julgados, em entendimento que, entretanto, encontra-se superado, estando hoje pacificada a opinião segundo a qual mesmo as normas de eficácia contida ou limitada, inclusive as normas constitucionais programáticas
“… se revelam com eficácia tão plena como qualquer outra. E a lei anterior com ela incompatível deve ser considerada revogada por inconstitucionalidade. Aliás, do ponto de vista da eficácia das normas programáticas em relação às leis precedentes, pouco importa dizer se há inconstitucionalidade pura e simples, se há revogação pura e simples, ou se há revogação por inconstitucionalidade. Relevante mesmo é fixar a tese dessa eficácia invalidadora das normas preexistentes incompatíveis.” (José Afonso da Silva, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 2a ed RT, pág.145/146)
O próprio José Afonso da Silva, se abeberando nas lições dos famosos constitucionalistas Vezio Crisafulli e Ugo Natoli, revela, com sua habitual didática, conclusões em relação à eficácia imediata, direta e vinculante das normas programáticas constitucionais, asseverando que as mesmas
“I – estabelecem um dever para o legislador ordinário;
II – condicionam a legislação futura, com a conseqüência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem;
III – informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum;
IV – constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas;
V – condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário;
VI – criam situações jurídicas subjetivas, de vantagem ou de desvantagem…”(ob.cit., pág.146/147) – sem grifos no original
Ora, o disposto no § 1o do art. 3o do Dec-Lei 911/69 que restringe o exercício do direito à purgação da mora em função do limite de 40% do preço financiado destoa da norma constitucional que impõe, como princípio, a defesa do consumidor que, aqui, é dramaticamente tolhida e, mesmo, desconsiderada.
Além disso, tal norma é intuitivamente dissonante dos princípios e direitos básicos revelados pelo Código de Defesa do Consumidor. Princípios não são normas. Princípios, são mais; são os fundamentos das normas. E qual deve ser a atitude do intérprete diante de tais circunstâncias? José Afonso, incorporando a doutrina do citado Vezio Crisafulli, no seu La Constituzione e le sue Disposizioni di Principio (pág.60) responde:
“Das normas programáticas em geral derivam vínculos para o legislador, para o administrador e para o juiz … Mas não só o legislador está obrigado a agir de acordo com os ditames programáticos. Com eles, “é o Estado mesmo, como sujeito unitário, que se autolimita, obrigando-se, para com a coletividade, a perseguir certos fins e, portanto, a assumir a proteção de certos interesses”.(ob.cit., pág.156)
Pois estas e outras imposições do Dec-Lei 911/69, em todos os Tribunais do País, têm sido derrogadas pelo Direito Pretoriano a exemplo do que vem ocorrendo com a prisão civil do devedor fiduciário, matéria que diuturnamente vem sendo considerada inconstitucional, inclusive no seio do colendo Superior Tribunal de Justiça – STJ
Bem verdade que em relação à restrição da purgação da mora nas ações de busca e apreensão oriundas de contrato de alienação fiduciária, pouco se tem decidido a respeito estando, aliás, a isso, de certa forma alheia a Doutrina. Contudo, aqui e ali percebe-se resistência ao referido dispositivo legal, tal como se vê de acórdão unânime oriundo do 1o Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo que já abordou o presente tema.
“ CÓDIGO DO CONSUMIDOR – Alienação fiduciária – Incabível a restrição ao exercício do direito à purgação da mora em função de percentual de prestações quitadas – O direito à purgação da mora se tornou puro, exercitável sempre que haja inadimplemento, consubstanciando espécie de direito individual que previne dano patrimonial ” (9a Câmara do 1o TA – Civ. SP, Agravo no 593.492-07, j. 14/6/94 – Rel. OSCARLINO MOELLER)
Embora inspirado em fundamentos de ordem não constitucional, mas pertinentes ao direito do consumidor, o acórdão se insurge contra a restrição percentual imposta pelo Dec-Lei 911 deixando expresso que
“A lei no 8.078/90, em síntese, vedando cláusula de perda automática de prestações pagas por motivo de resolução contratual, propicia também a proibição de se interpretar dispositivo de lei anteriormente vigente que possa afrontá-lo, em face de um direito individual criado pelo legislador e que objetive impedir um dano patrimonial, como é o direito à purgação nos contratos de alienação fiduciária. Tal conclusão dimana diretamente do disposto no art.2o, § 1o, do Dec-Lei no 4.657, de 04.09.42 (Lei de Introdução ao Código Civil), posto que o princípio acima exarado, oriundo do art.6o, VI, e 53 da Lei no 8.078/90 é incompatível com a restrição imposta pelo art.3o, § 1o, do Dec-Lei no 911/69, que, como lei anterior, fica revogado nessa parte pela lei posterior.” (sem grifos no original)
Tão logo passou a viger o Código de Defesa do Consumidor – Lei 8078 o Superior Tribunal de Justiça – STJ teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema, interpretando o disposto no art. 54 da lei neste sentido:
“ Também não é despiciendo ponderar que na recente Lei 8.078/90, relativa à proteção do consumidor, nos contratos de adesão, a cláusula resolutória é admitida – art. 54, § 2o – desde que alternativa, cabendo a escolha ao consumidor (salvo nos pactos de consórcio), ou seja, ao consumidor cabe exercer a opção de, ao invés da resolução do contrato em que incorreu em inadimplemento ou mau adimplemento, postular o cumprimento da avença pondo-se em dia com suas obrigações, e efetuando, portanto, a purgação da mora em que incidira”. (Recurso Especial 9.219, 4ª Turma do STJ, de 19.06.1991, Rel. Min. ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, in ADCOAS, 134135/91.)
Muito embora não tenha honrado as prestações, convencionadas, considerar a expressão preço do financiamento como referente, tão somente, ao empréstimo, desconsiderando o valor total do negócio para efeito de restringir o direito à purga da mora, parece, assim, exegese temerária e inconstitucional.
Por outro lado, o art. 7o do CDC dispõe que, em relação aos direitos básicos do consumidor, pode o Magistrado se valer do juízo de eqüidade, daí porque se afigura lícito reconhecer que o devedor em mora tem direito a emendá-la, considerando-se abusiva (e, portanto, não escrita) a cláusula que disponha sobre o vencimento antecipado da dívida em caso de atraso no pagamento, dês que, assim, por via reflexa, estaria sendo obstaculizado o direito de purga da mora.
Com a purga da mora não há nenhum prejuízo para o credor que, além do principal, recebe todos os encargos financeiros, ressarcido, ainda, das custas processuais e honorários de advogado. Entretanto, para o devedor que já pagou grande parte do preço, o impedimento à purgação da mora equivale à perda do bem, restando-lhe a risível garantia de receber o saldo que eventualmente existir após a alienação extrajudicial do veículo.
Além de inconstitucional, o referido dispositivo legal é tão absurdo que implica na virtual perda do bem mesmo para aquele que tenha financiado apenas 1% do seu valor total e – com inadimplência, muitas vezes circunstancial e passageira – tenha deixado de pagar ao menos 40% do preço financiado.
A reparação da mora surgiu como medida de eqüidade para evitar as graves conseqüências sofridas pelo devedor, desde os primórdios do direito creditório entre os romanos.
Lembre-se, finalmente, como sublinha o Ministro Ruy Rosado Aguiar Júnior, que
“a simples mora não é causa de resolução, e isso porque a própria lei somente permite ao credor enjeitar a prestação, ofertada após o vencimento e a constituição da mora, se essa prestação se tornar inútil (art. 126, parágrafo único do C. Civil)”. (“Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor (Resolução)”, Rio de Janeiro, Aide ed., 1991, p. 120).
Em nota de rodapé (236), acrescenta o autor que, apesar de algumas opiniões em contrário, a maioria da doutrina estrangeira concorda com a insuficiência da mora para a resolução,
“exigindo que ela afete de maneira grave o interesse do credor”.
Isto posto, a inconstitucionalidade do § 1o do art.3o do Dec-Lei 911/69, tanto mais se manifesta porque a regra não é razoável. Com efeito, a cláusula do due process of law que, na esteira evolutiva do Direito Constitucional dos EUA, há muito extrapolou os limites exegéticos e conceptuais que a deixavam circunscrita ao âmbito do Processo Penal e Civil (procedural due process), hoje tem reconhecido caráter substantivo com abrangência sobre toda e qualquer norma infra-constitucional as quais, por isso mesmo, têm sua eficácia condicionada não apenas aos critérios formais do processo legislativo, mas, sobretudo, a uma razoabilidade concreta.
O controle incidental da constitucionalidade das leis, afeto aos juízes, inclui, por conseguinte, uma avaliação racional e, repita-se, concreta, de tal pressuposto. Não é de outro sentir a mais abalizada Doutrina nacional, como se verifica na monumental monografia de Carlos Roberto de Siqueira Castro (O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil)
“A cláusula erigiu-se, com isso, num requisito da “razoabilidade” (reasonableness) e de “racionalidade” (rationality) dos atos estatais, o que importa num papel de termômetro axiológico acerca da justiça das regras de direito. Em conseqüência, firmou-se no plano institucional, nos sistemas constitucionais que adotam o mecanismo da judicial review para o controle da constitucionalidade dos atos normativos, a proeminência do Poder Judiciário como órgão constitucionalmente incumbido de declarar de forma conclusiva what the law is, ou seja, de revelar valorativamente o sentido e o alcance das leis para a garantia da supremacia da Constituição rígida.” (pág.383)
Em suma: Nas Ações de Busca e Apreensão de bens adquiridos através de contratos de financiamento com cláusula de alienação fiduciária, deve ser reputada inconstitucional e, portanto, inaplicável a restrição contida no § 1o do art. 3o do Dec-Lei 911/69, cumprindo que seja deferida a purga da mora, ainda que o devedor não tenha quitado quantia equivalente a 40% do valor financiado.
Informações Sobre o Autor
Marco Antonio Ibrahim
Juiz de Direito Titular da 50ª Vara Cível do TJ/RJ