A questão constitucional da sucessão dos companheiros no novo código civil

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Resumo: A entrada em vigor do Novo Código Civil, em 11 de janeiro de 2003, revogou as disposições até então vigente que regulamentavam o Instituto da União Estável, contidos na lei 8.971/94 e Lei 9.218/96. A nova lei diminuiu os direitos patrimoniais resultantes da sucessão do companheiro, tornando-os menos amplos que os concedidos aos cônjuges. Tal situação esquentou acirradas discussões sobre o tema, versando a sua maioria sobre a constitucionalidade ou não do novo regramento, bem como a injustiça ou não do tratamento díspare em questões sucessórias. Através de pesquisa bibliográfica, o presente artigo repassa os argumentos expendidos em relação ao tema, apontando ao final considerações sobre a solução jurídica concernente a essa relevante questão jurídica.


Palavras-chave: União Estável; Sucessão; Constitucionalidade.


Abstract: The New Civil Code, since January, 11th, 2003, ruled over the laws that used to discipline the Stable Union, Federal Laws 8.971/94 and 9.218. The New Civil Code shortened rights witch were before granted to the partners, when one of them died, and those rights have became less wide then those given to the married ones. Such situation fired up discussions over the subject, most of them about how constitutional are these new rights, and haw fair was to treat differently both cases. Through bibliographic research, the present article goes over the arguments about the theme, pointing out, at the end, considerations about juridical solutions concern to such relevant juridical issue.


Keywords: Stable Union; Succession; Constitutionality.


Sumário: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento; 2.1. Histórico do Instituto Familiar no Brasil; 2.2. Unão Estável: Regulamentação do artigo 226, §3º da Constituição de 1988; 2.3. A União Estável e Direito Sucessório no Novo Código Civil; 2.4. A Questão da Constitucionalidade; 3. Conclusão; Referências bibliográficas.


1. Introdução


A família é instituto basilar da espécie humana. Independentemente do ordenamento jurídico vigente, a união de pessoas com o intuito de perpetuar a espécie data desde o surgimento do Homem.


O fenômeno em questão se dá sob aspectos sociológicos, fáticos, e trazem consigo o verdadeiro núcleo social, a forma primordial de onde irradiam as demais organizações grupais espécie humana. Logicamente, a lei não poderia deixar de dar especial atenção ao tema.


Sob a égide do ordenamento jurídico, várias foram as formas legais das quais se revestiu o instituto familiar ao longo da História. Na era moderna e contemporânea, consolidou-se como forma mais tradicional a família concebida sob as regras e solenidades do casamento civil ou religioso.


No entanto, não há como ignorar que outros meios de forjar um vínculo familiar, que não aquele erigido sob a égide da Lei, existiram e continuam a existir .


O Direito não poderia se furtar de acompanhar o desenvolvimento do regramento de uniões que se formam de forma livre, sem que sejam seguidas a formalidades legais.


Dessas uniões, que durante algum tempo ocorreram à margem do regramento jurídico, surgem complexos conjuntos de direitos e deveres recíprocos, bem como reflexos patrimoniais de grande repercussão na esfera dos sujeitos envolvidos na relação fática.


A partir da Constituição de 1988, a famílias no Brasil passam a ter regramento mais abrangente, disciplinado pelo artigo 226 e seus parágrafos. Especialmente em relação à união estável surgiu, então, uma demanda por regramento infraconstitucional mais minucioso, o que veio a realizar-se pelo advento das Leis  8.971/94 e 9.278/96.


Os referidos diplomas legais cuidaram de dar os parâmetros para o reconhecimento do que seria uma união estável, e os direitos e deveres dela decorrentes. Entre estes, despontou como de sumo interesse o direito sucessório estabelecido entre os companheiros. Vale lembrar que essas leis conviveram no ordenamento jurídico pátrio, pois a mais recente não revogou inteiramente a anterior.


Entendeu-se que, por razões a serem exploradas no presente artigo, as então novas leis desigualavam a situação do cônjuge e do companheiro, sendo que este passara a possuir direitos sucessórios mais amplos que os concedidos às pessoas que optavam pelo casamento civil. Interpretando-se que a Constituição Federal de 1998 equiparara a situação decorrente do casamento com a que surge da união estável, estava-se diante de flagrante inconstitucionalidade.


Eis que entra em vigor, em 11 de janeiro de 2003, o Novo Código Civil Brasileiro, que ao trata de forma ampla os temas antes contidos nas referidas leis sobre união estável, revogando as disposições anteriores.


Novamente então volta ao centro das atenções dos meios jurídicos  o direito sucessório entre cônjuges e conviventes. O diferencial é que agora é a situação do companheiro que se apresenta desigualmente inferior à posição do cônjuge, o que leva a comunidade jurídica a debater sobre o problema de constitucionalidade do regramento aplicável.


O presente estudo tem como objetivo analisar a evolução do instituto da união estável no Brasil, bem como apresentar o assunto sob a ótica constitucional, apontando então os pontos nevrálgicos da atual discussão.


Dessa foram, espera-se apresentar os argumentos pró e contra a base constitucional do direito sucessório do companheiro no Novo Código Civil, buscando as bases teóricas e jurisprudenciais para o uma possível tomada de posição sobre um tema que certamente se apresenta oportuno, haja vista a corriqueira existência de uniões que se formam sem a solenidade incita ao casamento institucionalizado.


È válido o aprofundamento da questão, já que a sucessão tem efeitos de monta na vida das pessoas em geral, mas de forma ainda mais intensa nas daqueles que se uniram para a formação de um núcleo familiar, que resulta, quase sempre, na reunião ou criação de um patrimônio comum aos conviventes. O destino de que tais bens terão com o falecimento de um dos pólos do casal traz conseqüências indiscutivelmente graves na esfera patrimonial do sobrevivente.


No decorrer do artigo, espera-se ressaltar a trajetória do pensamento jurídico e social no tocante ao instituto da união estável, bem como demonstrar a polemica surgida com edição da lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Buscar-se-á, também, apontar as possíveis saídas para a delicada situação dos companheiros na sucessão, de maneira a respeitar o disposto na Constituição Brasileira.


2.   Desenvolvimento


2.1  Histórico do Instituto Familiar no Brasil


A família, como forma de agrupamento humano, preexiste à própria organização jurídica de um Estado, e é considerada célula mater de qualquer nação. Como sua formação decorre do instinto de perpetuação da espécie, comum a toda forma de vida na Terra, podemos afirmar que seu regramento decorre do Direito Natural. Segundo a Professora Giselda Maria Fernandez Novaes Hironaka: “Não se inicia qualquer locução a respeito de família se não se lembrar, a priori, que ela é uma entidade histórica, ancestral como a história, interligada com os rumos e desvios da história ela mesma, mutável na exata medida em que mudam as estruturas e a arquitetura da própria história através dos tempos.” Ainda segundo a ilustre autora, há apenas uma verdade que permanece imutável, qual seja “a atávica necessidade de cada um de nós de saber que, em algum lugar, encontra-se o seu ponto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família”.


Sua origem como instituição grupal, no entanto, mostra-se deveras controvertida. Acredita-se que outros tenham sido os grupos formados por humanos que não apenas aqueles levados pelo instinto sexual e de preservação. Como bem ressalta Caio Mário da Silva Pereira: “Quem rastreia a família em investigação sociológica, encontra referências várias a estados primitivos em que mais atua a força da imaginação do que a comprovação fática; mais prevalece a generalização de ocorrências particulares do que a indução dos fenômenos sociais e políticos de franca aceitabilidade”.


Assim, não é possível ignorar a situação dos que optam por não se unirem de forma informal, sem as solenidades que envolvem a instituição do casamento. Essas formas outras que não o matrimônio institucionalizado são e sempre foram realidades sociais, ainda que não tenham sido sempre jurídicas. Mesmo na informalidade, com a formação de um núcleo familiar, surge um complexo de direitos e deveres que independem de oficialidade para gerarem efeitos no mundo do ser.


Nossos colonizadores, os portugueses, tinham na formação no seu Direito de Família grande influência dos Direito Canônico, Romano e Bárbaro. Assim, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, tendo como fonte estudos de San Diego Dantas, relaciona as três modalidades lusas de casamento existentes na capital da Colônia de então: a) casamento como instituição canônica, segundo os preceitos estabelecidos na Igreja; b) a união nominada “marido conhecido” ou “conuzudo”, no qual o consenso era declarado diante de testemunhas, mas não perante alguma autoridade eclesiástica, ou seja, sem intervenção da Igreja; c) a união denominada “marido desconhecido” ou “casamento à morganheira”, em que existia o consentimento, a vida em comum de marido e mulher, mas não havia testemunhas do estabelecimento do vínculo. As Ordenações Filipinas consideram como casamento as duas primeiras, contrariando em parte o Concílio de Tentro, que considerava inválidos os casamentos que não se realizassem sob as normas canônicas.


Como o Brasil considerou as Ordenações Filipinas como seu ordenamento jurídico, só passou a viger regramento pátrio a partir do Código Civil de 1916. Contudo, a disciplina normativa do Direito de Família sofreu modificações esparsas durante este interregno, como, por exemplo, o decreto de 03 de novembro de1827, que tornou o casamento religioso juridicamente válido, e a Consolidação das Leis Civis, em 1857, elaborada por Teixeira de Freitas, que consolidou todas as disposições sobre Direito de família, e finalmente o Decreto 181 de janeiro de 1890, que introduziu no Brasil o casamento civil, como conseqüência da separação entre Estado e Igreja.


O Código de 1916 não definia o que era família, mas delimitava seu conceito como de uma união entre homem e mulher, instituída pelo casamento e os efeitos jurídicos daí decorrentes, causas de invalidade, direitos e deveres recíprocos entre os cônjuges, regime de bens, relações de parentesco, e as relações entre o casal formado e sua prole. Também trazia disposições sobre o desquite, sendo que a separação e o divórcio vieram a ser regulamentados posteriormente, na Lei 6.015 de 26.12.1977.


Em relação à família formada sem o aval estatal, o vetusto Código trazia considerações sobre o concubinato, união informal entre homem e mulher, com a aparência de casamento (more uxurio), ou formas semelhantes de convivência, para fins de relacionamento sexual, com suposta fidelidade entre as partes, mas sem nenhuma proteção legal.


È lógico que nem sempre ordenamento jurídico e realidade social andam de mãos dadas. Esta era a realidade em nosso país até o advento da Constituição da República de 1988, quando as famílias criadas à margem do sistema jurídico passaram a ter reconhecimento legal. No seu artigo 226, a Carta Magna define a família como base da sociedade, e por isso mesmo merecedora de especial proteção estatal; e, a despeito do destaque dado à figura do casamento, este deixa de ser pressuposto básico para a constituição de um núcleo familiar, pois esta proteção é estendida à união estável mantida entre homem e mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento, bem como a entidade familiar formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4°). Como veremos adiante, a facilitação que deve ser oferecida aos conviventes para a conversão de sua união em casamento serve de argumento para um dos lados na discussão sobre a constitucionalidade a qual este trabalho se dedica.


Conforme bem observa Rainer Czajkowski: “A Constituição Brasileira de 1988, ao caracterizar a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, gerou diversos efeitos. De um lado consagrou uma lúcida orientação jurisprudencial, sedimentada aos longos dos anos, de reconhecer em tais uniões inúmeros reflexos jurídicos, aproximando-as – implícita ou deliberadamente – do direito de família”.


2.2. União Estável: Regulamentação do artigo 226, § 3° da Constituição de 1988


Após a entrada em vigor da então novel Constituição da República, tornou-se claro que havia necessidade de regulamentação para um instituto que, apesar de ser já uma realidade social, não o era juridicamente.


Surge no cenário jurídico a lei 8971/94, seguida pela Lei 9278/96. Esta não revogou inteiramente a lei anterior, e ambas passaram a conviver no cenário legal pátrio. Tal fato sugere uma certa pressa do legislador, que fez necessária maiores adequações em uma segunda lei sobre o assunto.


Ambas as leis se dedicaram a estabelecer e caracterizar o instituto da União Estável. Nesse mister, obviamente foram seguidas limitações constitucionais, como a obrigatoriedade da duplicidade de sexo, a falta de impedimentos matrimonias, e demais pontos relevantes de especificação legal.


A análise das duas leis pode levar a diversas explorações, já que vários aspectos foram por elas regulamentados. Para os fins colimados no presente estudo, interessa mais acentuadamente os efeitos materiais das referidas uniões com o advento da regulamentação infraconstitucional, mormente aqueles relacionados com o direito sucessório.


Os direitos sucessórios entre companheiros, decorrentes de uma união estável, surgiram legalmente com o advento das leis de 1994 e 1996. Não que antes estes não existissem, já poderiam decorrer de disposição testamentária, bem como o Código de Processo Civil previa algumas atribuições ao convivente, como o disposto nos artigos 985, 986 e 987. Mas é a partir da vigência dos referidos diplomas legais que esses direitos tomam feições bem mais amplas.


O artigo 2° da Lei 8971/94 regulamentou a sucessão entre companheiros, limitando, em seu artigo 1°, quem estaria inserido em tal categoria. Dispunha sobre o usufruto, que só subsistia enquanto o companheiro sobrevivente não constituísse nova união, de quarta parte dos bens do morto, se houvesse filhos, deste ou comuns; se não houvesse filhos, o usufruto se estendia à metade dos bens do falecido; caso não houvesse descendentes ou ascendentes, o companheiro sobrevivente herdava a totalidade dos bens.


Por sua vez, a Lei 9278/96 não revogou o dispositivo supra citado, e dispôs no seu artigo 7°, parágrafo único: ”Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”.


Ambos dispositivos legais aproximaram muito a união estável do casamento, pois o companheiro passa a fazer parte da vocação hereditária do companheiro morto, bem como passa a ter direito real de habitação e de usufruto. Ambos os institutos, por serem de Direito de Família, não dependiam de registro para sua constituição. Mas a principal alteração, no âmbito do inventário, é que a pretensão patrimonial do parceiro sobrevivente, sobre parte ou sobre todo o patrimônio do morto, como salienta Rainer Czajkowski, “é conseqüência de uma presunção relativa de condomínio e de uma expectativa de herdar, se faltarem descendentes e ascendentes”.


Apesar que outros institutos tratados pelas respectivas leis já fossem antes aplicados pelos tribunais pátrios, só após os referidos diplomas legais é que  direito sucessório dos companheiros passou a ter aplicação, daí a grande importância de tal ordenamento. Segundo João Roberto Parizzato: “Não se conhecia, ainda, a figura do direito da concubina ou do concubino à sucessão causa mortis, o que veio a ocorrer com os arts. 2° e 3° da Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão”.


Causou certa comoção no meio jurídico pátrio a adoção das referidas medidas, pois a situação do convivivente tornara-se mais vantajosa que a do cônjuge. Assim descreveu a situação Rodrigo da Cunha Pereira: “O que a Lei 8.971/94 quis foi apenas conceder direito sucessório aos concubinos, corrigindo injustiças e equiparando-os nesse sentido aos casados, como já vinha delineando a jurisprudência. Vê-se, entretanto, da conjugação do art. 1.611, § 1°, do CCB, com o art. 2°, I e II da referida lei, que os companheiros têm vantagem em relação aos casados”. Como se vê, o autor não mencionou a questão da inconstitucionalidade de tais disposições legais,


Outros já vislumbraram então a espinhosa questão constitucional que acompanha até então o tema, como se pode depreender de João Baptista Villela: “O único meio de chegar a uma interpretação constitucionalmente conforme é ter como alterada a posição relativa dos casados por modo a que tenham os mesmos direitos dos companheiros entre si”.


A comparação entre os dispositivos da lei 9.278/96 e do Código Civil de 1916 mostra sensível vantagem ao companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite. Essa distinção de tratamento era inconcebível, pois ambos mereciam igual tratamento. Ocorreu que o projeto que deu origem à Lei 9.278/96 tinha a intenção de tão somente atribuir ao companheiro o direito real de habitação. Ma enquanto esse projeto, de 1991, dormitava nas gavetas do Congresso, a Lei 8.971/96, que estabeleceu direitos maiores, de herança e usufruto, acabou sendo aprovada. A somatória de benesses acabou favorecendo em demasia os companheiros, em detrimento da situação dos casados, pois para estes os direitos de usufruto e habitação eram excludentes; tinham direito ao usufruto, se casados em regime que não o da comunhão universal, ou tinham direito de habitação, se o regime era o da comunhão universal de bens.


2.3. A União Estável e Direito Sucessório no Novo Código Civil


No plano do direito sucessório, o Novo Código Civil trata do direito do sobrevivente no art. 1.790, no capítulo das disposições gerais sobre o Direito das Sucessões. Tal colocação merece crítica, pois se encontra fora do rol daqueles considerados sucessores legítimos. O certo era que constasse no título da sucessão legítima, que abrange os descendentes, ascendentes, cônjuges e colaterais, no artigo 1.829. Parece claro que o companheiro também faz jus á legítima, ainda que diferentemente daquela prevista para o cônjuge, mas não é certo que venha a ser excluído como sucessor.


Extrai-se do mencionado artigo que o companheiro sobrevivente somente participará da sucessão do morto quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, nas seguintes condições: a) se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente a que por lei for atribuída ao filho; b) se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; c) se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; d) não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.


A concorrência com ascendentes e descentes representa um acréscimo na condição do companheiro, se compararmos com a legislação anterior. De outra banda, entretanto, há redução na sua participação na herança, pois fica sujeito à concorrência com parentes colaterais. No sistema anterior, o companheiro seria o terceiro na ordem da vocação hereditária, equiparando-se, dessa forma, ao cônjuge, já que receberia a totalidade dos bens na falta de ascendentes e descendentes.


Com a nova disposição legal, desaparecem os direitos sucessórios do convivente ao usufruto sobre parte dos bens atribuídos aos descendentes e ascendentes, o que antes estava disposto na lei 8.971/94, bem como o direito de habitação, que estava garantido na Lei 9.278/96.


Percebe-se que a nova posição ocupada pelo companheiro na ordem de sucessão é mais desvantajosa, em comparação àqueles que optam pelo casamento, pois a estes o novo código reserva o privilégio de ser herdeiro necessário e ainda o direito de habitação no imóvel que servia de residência ao casal.


Dessa forma, se durante a união estável não houver aquisição onerosa de bens, não há possibilidade do companheiro sobrevivente vir a herdar, ainda que o morto tenha sido possuidor de valioso patrimônio, que foi formada anteriormente à constância da união estável.


Conforme bem observa Sílvio Rodrigues: “Não se pode chegar a outra conclusão, diante do imperativo da regra contida no caput 1.790. A ser que o intérprete, a título de dar interpretação construtiva , ingresse no campo da criação normativa, tomando o espaço e o lugar do legislador, o que lhe é vedado; mas, reconheço, às vezes tem sido praticado, para corrigir falhas gritantes e erronias contidas em alguns preceitos”.


2.4  A Questão da Constitucionalidade


A doutrina em geral concorda sobre um ponto: a regra (artigo 1.790) que trata da vocação hereditária dos companheiros, encontra-se inteiramente deslocada, situando-se nas disposições gerais, quando o adequado teria sido tratar desse tema no artigo 1.829, em conjunto com os demais herdeiros. O inconveniente explica-se, é certo, pelo fato de que o regramento da união estável não constava do Projeto de Lei 634/75 – até porque a união estável somente veio a ingressar como tal no mundo jurídico pela Constituição Federal de 1988 – tendo sido acrescentado posteriormente, através de emenda do Senador Nelson Carneiro.


Diferentemente do cônjuge, que com o novo Código passa a desfrutar da condição de herdeiro necessário (artigo 1845), tendo, por isso, assegurada a sua legítima (artigo 1.846), ao companheiro não foi reconhecido igual status quo. Logo, não havendo outros herdeiros necessários (descendentes e ascendentes), o autor da herança poderá testar a integralidade de seu patrimônio, deixando o companheiro ao desamparo, ressalvada, é claro, a possível meação, quando for o caso.


O companheiro, de acordo com o caput do artigo 1.790, passa a herdar somente o conjunto de bens adquiridos na vigência da união estável, enquanto no sistema anterior (Lei 8.971/94), por não existir tal limitação, poderia herdar a integralidade do acervo, inexistindo descendentes ou ascendentes.


Uma possível solução vem da lavra do desembargador Luis Felipe Brasil Leão, que em artigo escrito para o Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM, traz a seguinte proposta: “Para evitar tal situação de flagrante injustiça, creio que a interpretação deverá aproveitar-se de uma antinomia do dispositivo em exame.Ocorre que, enquanto o caput do artigo 1.790 diz que o companheiro terá direito de herdar apenas os bens adquiridos no curso do relacionamento, o seu inciso IV dispõe que, não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. Ora, a expressão totalidade da herança não deixa dúvida de que abrange todos os bens deixados, sem a limitação contida no caput. Evidente a antinomia entre a cabeça do artigo e seu inciso. Entretanto, uma interpretação construtiva, que objetive fazer acima de tudo justiça, pode extrair daí a solução que evite a injustiça e o absurdo de deixar um companheiro, em dadas situações, no total desamparo. Portanto, não havendo outros herdeiros, o companheiro, por força do claro comando do inciso IV, deverá receber não apenas os bens havidos na constância da relação, mas a totalidade da herança”.


Há também tratamento discriminatório em relação ao companheiro no tocante á concorrência com os filhos. É que o cônjuge, quando concorre com filhos comuns, tem assegurada, no mínimo, uma quarta parte da herança (artigo 1.832). Esse direito de quinhão mínimo, entretanto, não é estendido ao companheiro. Não se deve olvidar que a referida concorrência com os filhos apenas se dá em relação aos bens adquiridos durante a união estável. Quanto ao resto dos bens, adquiridos antes da relação de convivência, o companheiro não herda, há não ser que seja herdeiro único, na hipótese do inciso IV do referido artigo.


O artigo 1.830, ao assegurar o direito sucessório ao cônjuge mesmo se já separado de fato, desde que por tempo inferior a dois anos (ou mais, se provado que a ruptura deu-se sem culpa do sobrevivente), cria regra de difícil compatibilização com o direito sucessório do companheiro que venha a concorrer com cônjuge nestas condições.


Outra situação vexatória ao convivente é a hipótese de ser o morto apenas separado de fato. Imagine-se a situação de uma união estável existente há dez anos, vindo a falecer um dos parceiros, que era separado apenas de fato. O cônjuge poderá mesmo assim vir a herdar desde que comprove que a separação ocorreu sem culpa sua. O Novo Código trouxe para dentro do direito sucessório matéria que já era considerada no Direito de Família, o que se reputa um grande retrocesso. Por fim, o novo Código Civil não contempla os companheiros com o direito real de habitação nem com o usufruto, direitos antes previstos nas Leis 8.971/94 e 9.278/96.


Tendo em vista a situação criada, o próprio relator do Código Civil na Câmara Federal, Deputado Ricardo Fiúza, encaminhou proposta de substancial alteração ao artigo 1.790, através do PL 6960/02, que, por não ter sido votado ainda no ano de 2002 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, acabou sendo regimentalmente arquivado. Mas há outro projeto, e o novo regramento deverá ser o seguinte:


“Art. 1.790 – O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte:


I – em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1.641);


II – em concorrência com ascendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes;


III – em falta de descendentes e ascendentes, terá direito à totalidade da herança.


Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento,será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.”


Há posição divergente doutrinária. Há quem entenda, como Miguel Reale, que não inconstitucionalidade no tratamento entre companheiros e cônjuges, no tocante ao direito sucessório. Diz o autor: “Para demonstrar a posição preeminente da sociedade conjugal,  bastará observar que, segundo o § 3º do citado art. 226, deve a lei facilitar a conversão da união estável em casamento. Ora, não teria sentido essa conversão para um ideal a ser atingido, se o vínculo conjugal não figurasse como o da entidade familiar por excelência. Desse mandamento constitucional resulta, implicitamente, que não há igualdade absoluta de direitos e deveres entre cônjuges e companheiros, dependendo do disposto na lei infraconstitucional que é o Código Civil, o qual disciplina a matéria em três artigos distintos, os de nºs 1.724, 1.725 e 1.790”.


  Como se vê, não há unanimidade quanto ao tema em análise, pois dependendo do ponto de vista constitucional, teremos duas posições bem determinadas na doutrina: ou a Constituição de 1988 quis equiparar união estável e casamento, e assim o regramento quanto à sucessão do convivente, de acordo com o Novo Código Civil é inconstitucional; ou não quis o constituinte a equiparação, entendendo que deve haver mais proteção aos casados que aos companheiros, o que3 estaria inferido do art. 226, § 3º, quando diz sobre a facilitação da conversão da união estável em casamento.


3. Conclusão


Mesmo que para alguns pareça certo que o constituinte não desejou equiparar a união estável e o casamento enquanto fontes de direitos e obrigações entre os pares, no entanto, a Carta Magna reconheceu a união estável como núcleo familiar, garantindo-lhe especial proteção do Estado. Por tal razão, as normas que hajam se afastado do afã de conferir aos companheiros meios de garantir a proteção da unidade que constituíram e do patrimônio para que contribuíram, afastaram-se das diretrizes traçadas pela Constituição. Nesse sentido, andou mal o legislador infraconstitucional quando tratou de modo tão díspare a repartição do patrimônio do companheiro e do cônjuge falecido, deixando o companheiro supérstite em situação tão desfavorecida em relação ao cônjuge sobrevivente e tão menos amparado do que se encontrava pelas normas anteriores ao Código Civil. Pudemos observar ao longo da pesquisa que a posição a que foi conduzido o companheiro na ordem instaurada pelo Novo Código equivale àquela que estava posta para o cônjuge pelo Diploma de 1916, e que foi completamente reformada por uma infinidade de normas que perceberam a injustiça com que vinha sendo tratado aquele que constituía um lar ao lado de outrem, dedicando-se muitas vezes a ele por longos anos, contribuindo para o sustento e o progresso do casal e, quando da morte de seu consorte, era preterido em detrimentos de parentes de somenos importância ou era simplesmente afastado por testamento, sem que tivesse direito à nenhuma parcela da herança.


Infelizmente, é necessário reconhecer que, apesar do avanço que representa o reconhecimento pela própria Carta Constitucional da união estável como entidade familiar, o legislador infraconstitucional não acompanhou o mesmo pensamento igualitário e acabou por fazer do Novo Estatuto Civil, em especial quanto ao Direito de Família e das Sucessões, desdobramento que é do primeiro, um instrumento alheio à realidade social, às transformações por que passaram as entidades familiares, negando-lhes um efetivo amparo legal.



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Informações Sobre o Autor

Paulo Roberto Ávila Castro

Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Rio Grande – FURG.