A prestação jurisdicional de
conteúdo criminal é uma modalidade de atuação da Administração Pública, mais
precisamente, ligada à administração da Justiça, em que não se admite a
supressão da eficiência, pois alçada essa qualidade à condição de princípio para
todos os atos administrativos, como estampado no art. 37, caput, Constituição Federal, dicção advinda com a Emenda
Constitucional n. 19 de 04/06/1998. Lógico que o ato administrativo da ‘entrega da jurisdição criminal’ implica em
uma dualidade singular, contrapondo-se dois legítimos interesses: a defesa
social exteriorizada pela perspectiva da punição dos culpados com respeito aos
cânones garantistas e o direito individual de todo cidadão à liberdade.
Nesse contexto, o fator temporal na
elaboração da imputação penal materializada no processo é elemento de
exponencial relevância tanto para se chegar à eficiência, como mecanismo hábil
ao equilíbrio entre as duas proposições da dicotomia inerente às decisões de
caráter penal. Esse desenho adquire impressionante tonicidade na hipótese do
processo penal ser conduzido com o acusado preso, em decorrência da antecipação
de um dos efeitos da tutela jurisdicional penal pela constrição da liberdade do
cidadão, posto na condição de réu ainda não reconhecido de modo definitivo como
culpado.
A discussão em torno da duração do
processo penal que transcorre com o acusado preso, não só na seara prática
desperta maior visibilidade e interesse, como também no plano teórico, já que
aquela condição de restrição à liberdade, parafraseando o repórter Álvaro
Damião “mexe, remexe, estremece” [1]
com princípios dotados de hipersensibilidade na cena das garantias
constitucionais processuais penais, como a presunção de inocência.
E a definição de qual prazo é o
adequado, proporcional e razoável para a duração do processo é tarefa das mais
árduas, não se podendo contar com absoluta discricionariedade judicial, nem
tampouco com a abstratividade da norma jurídica, pois incapazes de englobar com
plausibilidade todas as situações concretas. Cesare Beccaria na sua luminosa
obra fez essa advertência: “As leis, porém, devem fixar certo prazo de tempo,
tanto para a defesa do réu como para as provas dos delitos, e o juiz se
tornaria legislador se acaso decidisse sobre o tempo necessário para a prova do
delito”. [2]
A percepção que cuida de proclamar a
razoabilidade do tempo utilizado para o trâmite processual sempre foi implícito
enunciado de garantia fundamental, atualmente ostentada de maneira expressa
pela Carta Constitucional – art. 5º, LXXVIII, redação conferida pela Emenda
Constitucional n. 45 de 08/12/2004. Em épocas anteriores a tal advento, já se
reconhecia de maneira pacificada e linear que o excesso de prazo para a
formação da culpa do réu preso, implicava em constrangimento ilegal, tornando
necessário o relaxamento da respectiva prisão, em prestígio a todo o aparato de
garantias penais do cidadão, assimiláveis pelo devido processo legal, consoante
magistério de Alexandre de Moraes: “A EC nº 45/04 (Reforma do Judiciário)
assegurou a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Essas previsões – razoável duração do processo e celeridade
processual –, em nosso entender, já estavam contempladas no texto constitucional,
seja na consagração do princípio do devido
processo legal, seja na previsão do princípio
da eficiência aplicável à Administração Pública (CF, art. 37, caput). Conforme lembrou o Ministro
Celso de Mello, “cumpre registrar, finalmente, que já existem, em nosso sistema
de direito positivo, ainda que de forma difusa, diversos mecanismos legais
destinados a acelerar a prestação jurisdicional (CPC, art. 133, II e art. 198;
LOMAN, art. 35, incisos II, III e VI, art. 39, art. 44 e art. 49, II), de modo
a neutralizar, por parte de magistrados e Tribunais, retardamentos abusivos ou
dilações indevidas na resolução dos litígios”…”. [3]
Inconcebível que o retardamento na
condução do processo penal, sobretudo com a posição de recolhimento ao cárcere
do réu seja performance usual e não excepcional, mesmo que tais circunstâncias
venham a se desenvolver no âmbito da acusação pelo protótipo do crime de
tráfico de drogas (art. 33, Lei 11.343/2006) e demais delitos previstos na Lei
de Drogas. A verificação do indevido retardamento ou ausência de razoabilidade
para tal situação é ofensa primária à dignidade da pessoa humana, pelo
desrespeito à garantia fundamental acima destacada.
As situações violadoras desse
atributo foram assim precisadas por Jussara Maria Moreno Jacintho:
“Dada a sua bifuncionalidade,
deontológica e axiológica, a dignidade humana pode ser violada sob dois
aspectos: através da interpretação violadora do seu postulado de promover a
existência digna da pessoa humana”. E nesse aspecto há violação também quando
os diversos sistemas constitucionais são interpretados cada um segundo uma
lógica diversa dessa assinalada, maculando a função de prover a coesão do
conteúdo de todos os sistemas constitucionais. Há violação também quando há
inobservância de qualquer dos direitos especificados a ela remetidos e ainda
pelo desrespeito a qualquer um dos direitos fundamentais que compõem o seu
núcleo essencial, haja vista que a dignidade se alcança pelo respeito a tais
direitos.
É de se notar que nas duas últimas situações,
a dignidade atua como posição subjetiva, enquanto que na primeira, sua função é
a de nortear a atividade hermenêutica. E tal violação tanto pode ser perpetrada
pelo Estado, como, por particular. Considerando a atuação estatal, a dignidade
vai funcionar não apenas como limite à dita atuação, como também vai obrigar o
Estado a agir no sentido de remoer todo e qualquer empecilho a que esta seja
concretizada.
A violação da dignidade em qualquer
das suas feições axiológica ou deontológica gera um estado de incerteza e
deslegitima o Estado em que ela é perpetrada. Ao afirmarmos que o Estado
democrático brasileiro é um Estado organizado a partir da realização dos
direitos fundamentais, a violação sistemática deles repercute não apenas em seu
âmbito de atuação – como direito material que é, estruturado a partir de outros
direitos, ou na atividade criadora, renovadora e transformadora de antigas em
novíssimas acepções, mas sobretudo, na crença nas próprias instituições
estatais, na capacidade superadora de obstáculos e na aptidão que a coesão
cultural tem na fomentação de uma auto-estima coletiva apta e absolutamente
imprescindível à construção de um Estado igualitário fundado na democracia e na
liberdade de seus nacionais”. [4]
Com a existência da prisão cautelar
é gigantesca a obrigação estatal em resguardar e cumprir a solução célere do
impasse penal, pois em jogo a liberdade pública, eixo que conecta cada pessoa
com o poderio do ius puniendi,
apanágio do Estado. E não há por mais drástica que seja a posição do acusado
como a gravidade ou severidade do fato a
ele imputado, modo de se eliminar tal garantia do seu acervo de prerrogativas,
como se fosse ele o inimigo público número 01 ou que o direito penal do autor
pudesse ser aplicado excepcionalmente.
Nos ilícitos criminais previstos na
Lei 11.343/2006 não é de ser diferente o tratamento penal, sob a ótica da
legenda da equiparação a hediondos ou outras implicações, sob pena de se alijar
de parte do contingente humano o direito ao contraponto da liberdade pública
face ao poder do Estado.
É essa a visão de Adauto Suannes ao
enfocar a liberdade pública como mecanismo pertencente a todo ser humano: “
Entre os direitos humanos fundamentais sobressai aquele concernente à liberdade
física. Não se ignora que o conceito filosófico de liberdade é sempre relativo.
Como ilustramos alhures, imagine-se um macaco que, tendo estado dentro de uma
gaiola, dali foge. Aparentemente, conquistou ele sua liberdade. Ocorre que tal
gaiola se encontra dentro de um quarto, cuja porta está fechada. Livre, mas não
muito. Ao ser aberta a porta, ele se escafede, passando a circular livremente
por toda a causa, cuja porta, no entanto, estando trancada, o impede de sair à
rua. Novamente, livre, mas não muito. E assim a hipótese pode-se ir desdobrando
até o momento em que nosso personagem, encastelado no alto de uma árvore,
contempla a lua e a impossibilidade de voar até ela. Livre, mas não muito.
A liberdade, ainda que focada apenas
sob a ótica jurídica, será sempre um vir a ser. É um processo contínuo de metas
alcançadas e metas a alcançar, donde dizer a doutrina que os direitos
fundamentais, dentre os quais a liberdade, podem ser denominados “liberdades
públicas” no sentido de significarem a relação de cada ser humano com o Estado
e seu poder”. [5]
A perseguição ao denominador comum
do que seja a razoável duração do processo no caso do procedimento criminal
previsto na Lei de Drogas, estando o réu preso cautelarmente tem sido objeto de
enfoque divergente no plano jurisprudencial, consoante a construção que já foi
angariada a partir da vigência da Lei 11.343/2006. No julgamento do HC n.
280250, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás entendeu que o prazo global
para a formação da culpa sob a égide do novo Diploma Legal é de 95 dias. [6]
Em outra interpretação, o Tribunal
de Justiça do Estado do Paraná proclamou que no regime da Lei 11.343/2006, o
prazo para a formação da culpa será no todo em 198 dias, contadas todas as
hipóteses do art. 50, usque 59 e mais
12 dias para cumprimento pelo escrivão dos atos a seu cargo, considerando que
nos termos do art. 799, CPP, tem 02 dias para cada um deles. [7]
A Corte Mineira tem se posicionado
de modo recorrente pela sedimentação do prazo de 180 dias. [8]
Ao que é perceptível, a nova
sistemática introduzida para o procedimento da Lei de Drogas, dificulta em
muito a criação de uma regra para a cogitação daquele que seria o prazo padrão
para a formação de culpa, em decorrência das vicissitudes processuais que podem
ocorrer, inclusive em fase anterior e, ainda, considerando que no seio dos
Tribunais Superiores, a extrapolação parcial em etapas, com recuperação na (s)
subseqüente (s) não implica em constrangimento ilegal, fenômeno que só ocorre a
partir do cômputo global ultrapassado.
No entanto, em um prisma que mais se
aproxima da linearidade, compreende-se que o prazo global para a formação da
culpa é de 111 dias, regra geral, que conta com o seguinte esboço para sua
composição: a) 30 dias do inquérito (art. 51); b) 01 dia para o despacho de
abertura de vista ao Ministério Público (art. 54 c/c art. 800, III, CPP); c) 10
dias para vista ao Ministério Público (art. 54); d) 01 dia para o despacho
judicial que ordena a notificação (art. 55, caput
c/c art. 800, III, CPP); e) 10 dias para a defesa prévia (art. 55, caput); f) 05 dias para a decisão
judicial sobre o recebimento da denúncia (art. 55, § 4º); g) 30 dias para a
realização da audiência de instrução e julgamento (art. 65, § 2º); h) 10 dias
para a sentença (art. 58, caput); i)
14 dias para os atos do escrivão (art. 799, CPP); conclusão ao juiz quando do
recebimento dos autos da autoridade policial; vista ao Ministério Público; nova
conclusão para o despacho de notificação; cumprimento da notificação; conclusão
ao juiz após a defesa prévia; expediente para a audiência de instrução e
julgamento; publicação da sentença.
Se houver a duplicação do prazo para
conclusão do inquérito previsto no art. 51, Lei de Drogas, somam-se mais 30
dias para a diligência, 02 dias referentes a dois despachos judiciais e mais 04
dias referentes ao prazo de cumprimento pelo escrivão. Se for a hipótese da
ausência de defesa constituída, agregam-se mais 20 dias do art. 55, § 3º para a
atuação do defensor público ou dativo, fazendo-se o cômputo em dobro do prazo
previsto no art. 5º, § 5º, Lei 1.060/50 e mais 01 dia para o despacho judicial
de nomeação e 02 dias para cumprimento pelo escrivão.
Ocorrendo a hipótese do exame de
dependência de drogas previsto no art. 56, § 2º projetam-se mais 60 dias ao
prazo total (o intervalo entre o recebimento da denúncia e a instrução deve ser
de 90 dias), por isso, no prazo anterior aumentam-se apenas 60 dias, pois, na
1ª situação foi computado o interregno de 30 dias, mais 05 dias para a decisão
interlocutória mista que a admitir (art. 800, II, CPP) e mais, 02 dias para a
providência da serventia judicial visando ao cumprimento pelo escrivão.
Esse formato deve ser obedecido sem
contar o prazo de 10 dias previsto no art. 55, § 5º da Lei de Drogas, porquanto
há visível inconstitucionalidade no dispositivo, já que promove uma indevida
interseção do órgão julgador que deveria ser isento, independente e
eqüidistante das partes, com o órgão acusador e mesmo o aparato policial. Sendo
o caso de se admitir a hipótese das diligências, o somatório desse prazo deve
também ser conferido.
Em virtude das diferenças
estruturais das ações penais, umas contando com atos processuais que em outras
não serão realizados, a disciplina para a razoável duração do processo do réu
preso nos casos da Lei de Drogas conta com uma intensa vastidão, o que remete o
intérprete à estrita observação de cada caso concreto, para a partir da
verificação da extrapolação do prazo se cogitar da incidência do
constrangimento ilegal, apto ao relaxamento da prisão, questionando-se com
vigor se há ou não justificativa para a soltura do acusado antes do provimento
final.
A doutrina se inclina para o
parâmetro de aproximadamente 100 dias para a formação da culpa, com a
ponderação de que a exorbitância do excesso de prazo implica no relaxamento da
prisão, como enfatizam o Prof. Luiz Flávio Gomes, Alice Bianchini, Rogério
Sanches Cunha e William Terra de Oliveira: “De um modo geral, contando-se os
prazos mais comuns (trinta dias para encerrar o inquérito quando se trata de
agente preso, dez dias para o MP denunciar, dez dias para a defesa preliminar,
cinco dias para o juiz decidir, trinta dias para realizar a audiência de
instrução e julgamento), chega-se a um total de mais ou menos cem dias
(recorde-se que cada vez que os autos passam pelas mãos do escrivão ele conta com
dois dias para autuação e remessa a quem de direito; mas normalmente esse prazo
acaba não sendo cumprido; tratando-se de réu preso, caso haja excesso
injustificado, é possível pedir o relaxamento da prisão). Sintetizando:
qualquer excesso não justificado dará ensejo ao relaxamento da prisão. Aliás,
mesmo que justificado, sendo exorbitante (ultrapassando a razoabilidade),
também gerará o relaxamento da prisão”. [9]
Nenhuma crítica é de ser feita ao
legislador pela adoção de prazos como plus
para os compartimentados atos processuais possíveis de ocorrer na ação penal
envolvendo os crimes relacionados às drogas, pois buscou se condicionar com o
domínio de si própria, para possibilitar o respeito à garantia fundamental da
razoável duração do processo, sem descobrir o legítimo interesse público na
punição. E é somente com a contrapartida do acréscimo de prazo para as
diligências extras que se conjuga com sabedoria o verbo “razonar” no módulo
processual penal, responsável e democrático.
Notas:
[1] Jargão utilizado pelo
repórter Álvaro Damião, em transmissões esportivas no momento do gol – Rádio
Itatiaia, Belo Horizonte/MG.
[2] Dos Delitos e das Penas, Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, p.
84. Tradução J. Cretella Jr. e Agnes Cretella.
[3] Direito Constitucional, 18ª edição, Editora
Atlas S/A, p. 94 – Referência – STF – Mandado de Injunção n. 715/DF – Rel. Min.
Celso de Mello.
[4] Dignidade Humana – Princípio Constitucional,
2006, Juruá Editora, p. 151/2.
[5] Os Fundamentos Éticos do
Devido Processo Penal, 2ª edição, Editora Revista dos Tribunais, p. 146.
[6] HC 280250, 1ª Câmara
Criminal, TJGO, j. 16/01/2007, Rel. Des. Antônio Fernandes de Oliveira, in DJ GO, 14933, 02/02/2007.
[7] HC 04002248, 5ª Câmara
Criminal, Rel. Des. Marcus Vinícius de Lacerda Costa, j. 15/03/2007, in www.tj.pr.gov.br
[8] HC n. 10000084687714 – 1ª
Câmara Criminal, Rel. Des. Judimar Biber, j. 26/02/2008, in www.tjmg.gov.br/jurisprudencia
[9] Lei de Drogas Comentada, 2ª
edição, Editora Revista dos Tribunais, p. 277.
Informações Sobre o Autor
Amaury Silva
Juiz de Direito
Professor de Direito Penal
Faculdade de Direito do Vale do Rio Doce
Governador Valadares/MG
Autor do livro: Lei de Drogas Anotada
Editora JH Mizuno