A Responsabilidade Civil das agências de turismo – a solução da nova Lei portuguesa

As agências de turismo, como se sabe, são empresas que exercem “a atividade econômica de intermediação remunerada entre fornecedores e consumidores de serviços turísticos ou os fornece diretamente”[1]. Embora a Lei inclua nessa classificação empresas que prestam serviços diretamente ao consumidor final (turista), na quase totalidade dos casos atuam como meras intermediárias, isto é, desenvolvem uma atividade de intermediação entre os fornecedores efetivos dos serviços turísticos e os consumidores, recebendo uma comissão (do fornecedor) ou cobrando uma taxa (do consumidor) como preço pela intermediação. Nessa condição de intermediários da cadeia de serviços turísticos, realizam a oferta, a reserva ou a venda de passagens, acomodações em meios de hospedagens, ingressos para espetáculos e shows, bem como providenciam transporte turístico, locação de veículos e desembaraço de bagagens. Quando muito, atuam como “operadoras”, organizando e executando programas, roteiros e itinerários de viagens, excursões e passeios turísticos, incluindo a recepção, transferência e assistência ao turista.


Mesmo atuando essencialmente como intermediárias entre os turistas e os prestadores efetivos dos serviços turísticos, as agências de turismo estão sujeitas a um regime jurídico bastante ampliado (porque não dizer “ilimitado”) de responsabilização. Em outras palavras, respondem diretamente por qualquer dano que o turista (consumidor) venha a sofrer em qualquer momento da cadeia de prestação de serviços. A responsabilidade delas engloba todos os serviços que o consumidor adquire por seu intermédio, mesmo sendo prestado por outra empresa, como, p. ex., serviço de transporte, hotel e outros. Assim, se ocorre uma má-prestação de serviço durante a estada no hotel ou um acidente qualquer durante o transporte, o turista pode reclamar os danos sofridos (materiais ou morais) diretamente contra a agência que lhe vendeu o “pacote” turístico. 


Isso se explica porque as agências de turismo estão submetidas ao Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), que regula as relações entre fornecedores e consumidores. Nos termos do CDC, fornecedor é toda pessoa física ou jurídica que distribui ou comercializa produtos ou presta serviços no mercado de consumo, mediante remuneração (art. 3º.). Assim, ao realizarem a venda dos chamados “pacotes turísticos”, as agências de turismo assumem, aos olhos da Lei, uma clara posição de fornecedores de serviços[2], com todas as conseqüências jurídicas desse enquadramento, especialmente a de responder solidariamente pela falha ou defeito do serviço, em qualquer parte do programa turístico. A solidariedade implica que todos os intermediários da cadeia de fornecimento de um produto ou serviço respondam por dano causado por apenas um deles[3], podendo o lesado escolher contra quem quer demandar. Se a empresa aérea não embarca o passageiro (em razão de overbooking) ou dá causa ao extravio sua mala, se o hotel não honra a reserva ou se o espetáculo não acontece tal como previsto, tanto quem vendeu (intermediou) esses serviços ou organizou (operou) a excursão é responsável pela reparação dos danos causados ao turista (consumidor).  A relação entre as agências de turismo e os turistas/consumidores é uma típica relação de consumo, e, conforme as normas do CDC, elas possuem o dever de ressarcir eventuais danos ocasionados, ainda que decorram da conduta de outro fornecedor que faça parte da cadeia de prestação de serviços envolvida no “pacote turístico”, em razão do princípio da solidariedade[4] que permeia o fornecimento de serviços no mercado de consumo. Mesmo havendo um responsável pelo dano perfeitamente identificável, todos os integrantes da cadeia de fornecimento respondem solidariamente pela reparação dos prejuízos; apenas lhes fica assegurado o direito de regresso, isto é, o exercício posterior da ação regressiva contra o causador direto do dano[5]. Por exemplo, se a agência de turismo é condenada a pagar por um prejuízo sofrido pelo consumidor durante a estadia num hotel, tem o direito de procurar reaver o que pagou em ação movida posteriormente contra o estabelecimento hoteleiro.   


Além de terem uma responsabilidade solidária por todos os atos praticados pelos prestadores de serviços incluídos no programa (“pacote”) turístico, as agências de viagens também respondem perante os consumidores (turistas) de forma objetiva, isto é, sem que tenham agido com qualquer grau de culpa[6]. Mesmo que não atuem com negligência ou imperícia ou de qualquer forma contribuam para o cometimento do dano, respondem pela sua reparação. Não importa se agem de forma cautelosa e conforme os padrões de excelência, ocorrendo um “acidente de consumo” estão obrigadas a indenizar o consumidor. Como explica Priscilla de Oliveira Remor, “com isso, o sistema protetivo instaurou uma série de mecanismos com o fim de garantir o efetivo amparo ao consumidor, como a responsabilidade civil objetiva, que exige apenas prova do dano e do nexo causal, facilitando os meios de os consumidores comprovarem a violação de seus direitos em juízo”[7].


A responsabilidade objetiva e solidária pelos acidentes e vícios dos serviços que intermedeia com a venda dos chamados pacotes turísticos é vista por alguns segmentos como um excessivo ônus para as agências de turismo. Um pacote turístico abrange uma cadeia de fornecedores, na qual um número indeterminado de agentes está vinculado a uma parte específica da prestação. Se a responsabilidade envolve a garantia de qualidade de todos os serviços integrantes do programa turístico, pode comprometer a própria viabilidade da atividade, argumenta-se. A classe dos prestadores de serviços turísticos que atuam intermediando a venda de “pacotes” ou organizando excursões geralmente é formada por pequenas e micro-empresas (com capital reduzido) e que, portanto, não suportam indenizar o consumidor lesado por falha de serviço executado por outro prestador da cadeia de serviços. Nesse sentido, a responsabilização deve ser imputada somente àquele fornecedor que introduz e presta o serviço no mercado, e não à agência de turismo, que somente faz a representação/intermediação do negócio[8].


Essa concepção tem influenciado algumas tentativas, por via legislativa, de se atribuir um limite à responsabilidade civil das agências de turismo e viagens. Uma delas ocorreu por ocasião da elaboração do projeto que veio a se tornar na atual Lei Geral do Turismo (Lei 11.771/08). A redação original do § 6o. do art. 27 do Projeto[9] previa que a agência do turismo só seria responsabilizada solidariamente quando o fornecedor direto ou prestador do serviço intermediado não pudesse ser identificado ou, se estrangeiro, não possuísse representante no Brasil, nesses termos:


“Art. 27. ………………………………


(…)


§ 6o A agência de turismo é responsável objetivamente pela intermediação ou execução direta dos serviços ofertados e solidariamente pelos serviços de fornecedores que não puderem ser identificados, ou, se estrangeiros, não possuírem representantes no País.”


Esse dispositivo foi vetado pelo Presidente da República ao argumento de que poderia enfraquecer o sistema de proteção delineado no CDC e fundado na responsabilidade solidária, criando uma exceção colidente com a política de defesa do consumidor aplicável a todos os setores da atividade econômica[10].


Entre outras tentativas de abrandar ou limitar a responsabilidade das agências de turismo e viagens, existe atualmente em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5.120-C/01, de autoria do deputado Alex Canziani, que contém as seguintes disposições:


“Art. 13. A Agência de Viagens vendedora de serviços turísticos de terceiros, incluindo os comercializados pelas operadoras turísticas, é mera intermediária desses serviços e não responde pela sua prestação e execução.


Art. 14. Ressalvados os casos de comprovada força maior, razão técnica ou expressa responsabilidade legal de outras entidades, a Agência de Viagens e Turismo promotora e organizadora de serviços turísticos será a responsável pela prestação efetiva dos mencionados serviços, por sua liquidação junto aos prestadores dos serviços e pelo reembolso devido aos consumidores por serviços não prestados na forma e extensão contratadas, assegurado o correspondente direito de regresso contra seus contratados.


Art. 15. As Agências de Viagens e Turismo não respondem diretamente por atos e fatos decorrentes da participação de prestadores de serviços específicos cujas atividades estejam sujeitas a legislação especial ou tratados internacionais de que o Brasil seja signatário, ou dependam de autorização, permissão ou concessão”.


O Projeto em comento sofre forte reação das associações de defesa do consumidor que o acusam de subtrair direitos e conquistas já consolidados. Argumentam que, se aprovado, as agências de viagens não mais terão preocupação de escolher hotéis, transportadoras, restaurantes e outros prestadores de serviços turísticos com padrão de qualidade e excelência, em prejuízo do consumidor que terá garantias suprimidas.


Temos que a limitação (parcial), por via legislativa, da responsabilidade do agente de viagens pode ser uma alternativa quando se trata de buscar maior equidade na distribuição dos deveres decorrentes da prestação de serviços turísticos, mas desde que outras medidas protetivas (aos consumidores) sejam implementadas. Quando escolhe uma determina agência de viagens, o consumidor tem legítima expectativa em relação à qualidade dos serviços que são oferecidos. É com ela com quem firma contrato e com quem estabelece uma relação de confiança. Simplesmente imunizá-la do dever de ressarcir o consumidor lesado pelo não-cumprimento do contrato ou pela má execução dos serviços por ela intermediados, resulta inevitavelmente em desvantagem para o consumidor, o que não parece ser o caminho mais adequado. Para se estabelecer algumas limitações à responsabilização das agências de viagens (especialmente àquelas que são simples “corretoras” de serviços prestados por outrem), é preciso se oferecer, em contrapartida, outras garantias aos consumidores.


Uma solução aparentemente inteligente e que pode ser a saída para os problemas originados dos acidentes ultimamente verificados no mercado brasileiro de serviços turísticos pode ser a encontrada pelo Governo de Portugal, que procedeu recentemente a uma revisão da Lei que regula as agências de turismo e viagens. Ao invés de unicamente limitar a responsabilidade dos fornecedores de serviços turísticos, a idéia foi criar um fundo para garantir o ressarcimento dos consumidores, formado por contribuições de todas as empresas que atuam no mercado intermediando a venda de pacotes e demais serviços turísticos. O Fundo de Garantia de Viagens e Turismo (FGVT), criado através do Decreto-Lei n. 61/2011, de 06 de maio, deve ser utilizado para reembolsar consumidores quando as agências de viagens não cumprem adequadamente com as obrigações assumidas nos contratos. Portanto, a concepção que orientou a revisão legislativa foi diversa do que ocorre hoje no Brasil; não apenas se buscou limitar (em algumas hipóteses) a responsabilidade da agência de turismo e viagens, mas primordialmente reforçar as garantias dos consumidores, por meio da criação de um fundo que servirá para indenizá-los no caso de descumprimento, parcial ou total, dos serviços contratados.   


Na verdade, já existiam no ordenamento português regras que conformavam um regime extra de garantias aos consumidores de serviços turísticos. A partir do Decreto-Lei n.º 263/2007, de 20 de Julho, foi estabelecido o sistema de caução prestada pela agência de turismo. As agências eram obrigadas a prestar caução e efetuar um seguro de responsabilidade civil. Esse regime, no entanto, mostrou-se insuficiente quando ocorreu o polêmico caso “Marsans”, uma agência espanhola que fechou suas lojas em Portugal sem aviso prévio, deixando inúmeros clientes que tinham comprado seus pacotes turísticos sem poder viajar (em época que coincidia com as férias escolares). A caução de 25 mil euros (o mínimo legal) depositada pelo operador espanhol se mostrou insuficiente para fazer face ao elevado número de queixas e valores dos pedidos de reembolso. Só a Comissão Arbitral do Turismo de Portugal expediu mais de 363 condenações contra o grupo Marsans, em valores que, somados, ultrapassavam centenas de vezes o valor da caução. Percebeu-se, então, que o regime de caução era insuficiente para assegurar os consumidores em situações como essa, o que fomentou o processo de revisão da lei do setor, para incluir um novo modelo de garantias, baseado num fundo co-patrocinado por todas as empresas de viagens, em função do volume de negócios que movimentam.


O Fundo de Garantia de Viagens e Turismo (FGVT), agora criado através do Decreto-Lei n. 61/2011, reforça as garantias de efetivo ressarcimento dos consumidores (turistas) pelos prejuízos decorrentes de eventual descumprimento de obrigações contratualmente assumidas por agências de viagens e turismo. A gestão do fundo caberá ao Estado, representado pelo “Turismo de Portugal, I.P.”, um órgão público vinculado ao Ministério da Economia, da Inovação e do Desenvolvimento, que centraliza e executa toda a política de promoção da atividade turística[11]. Esse órgão fará a gestão do fundo com o apoio de um Conselho integrado por representantes das agências de viagens e dos consumidores (art. 31, item 4)[12]. O FGVT responde solidariamente, com as agências de viagens, para satisfazer o reembolso dos valores pagos pelos clientes e de despesas suplementares suportadas em conseqüência da não prestação dos serviços ou de sua prestação defeituosa (art. 31, itens 1 e 2, a e b). O dinheiro do fundo não poderá ser utilizado para o pagamento de valores referentes à compra isolada de bilhetes de avião, quando a não concretização da viagem não seja imputável à agência de turismo (art. 31, item 3). O fundo é financiado por contribuições pagas por todas as agências de viagens e turismo em funcionamento[13], na seguinte proporção: a) € 6000, para “as agências vendedoras”; e b) € 10 000, para as “agências organizadoras” (art. 32, item 1, a e b). Para facilitar o pagamento do valor da contribuição, o Decreto prevê que deve ser paga de forma progressiva, em parcelas anuais, equivalente a 0,1% do volume de negócios da agência no ano imediatamente anterior[14]. Para acionar o FGVT, o consumidor interessado tem que apresentar: a) cópia da sentença judicial ou decisão arbitral, na qual conste o valor do crédito; b) decisão do provedor do cliente da Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo, na qual conste o valor do crédito; ou c) requerimento para intervenção da comissão arbitral, instruído com os documentos comprobatórios dos fatos alegados (art. 33, item 1).  


O Decreto-Lei n. 61/2011 também prevê outro tipo de garantia para ressarcimento dos prejuízos dos consumidores. No seu art. 35, estabelece que todas as agências de viagens e turismo devem fazer seguro de responsabilidade civil que cubra os riscos da atividade, garantindo o ressarcimento de danos patrimoniais e não patrimoniais (danos morais) causados a clientes ou terceiros por suas ações ou omissões ou dos seus representantes (item 1). Esse tipo de seguro obrigatório cobre ainda despesas com repatriamento e assistência[15] dos clientes (item 2, a) e assistência médica e medicamentos necessários em caso de acidente ou doença ocorridos durante a viagem (incluindo aqueles que se revelem necessários após a conclusão da viagem, item 2, b). O montante mínimo coberto pelo seguro é de € 75 000 (item 3). 


Na disciplina da responsabilidade civil, o texto legal português estabeleceu, como regra geral, que “as agências são responsáveis perante os seus clientes pelo pontual cumprimento das obrigações resultantes da venda de viagens turísticas” (art. 29, item 1). Mas faz algumas distinções em relação ao tipo de viagem, estabelecendo que “quando se tratar de viagens organizadas[16], as agências são responsáveis perante os seus clientes, ainda que os serviços devam ser executados por terceiros e sem prejuízo do direito de regresso” (item 2). Estabelece ainda que, “no caso de viagens organizadas, as agências organizadoras respondem solidariamente com as agências vendedoras” (item 3). Como se observa, a responsabilidade solidária (em relação aos atos dos outros prestadores de serviços) ficou reservada às “agências organizadoras” (também designadas de “operadores turísticos”)[17]. No caso daquelas que se limitam a vender “pacotes” organizados por outras agências ou intermediar a venda de serviços turísticos avulsos, denominadas de “agências vendedoras”, a regra é de que só respondem por erro (vício) na emissão dos títulos de alojamento e de transporte ou “pela escolha culposa dos prestadores de serviços” (item 5). Mesmo em relação às empresas organizadoras de viagens (operadores turísticos), a solidariedade na responsabilidade não é absoluta, existindo algumas situações em que ela desaparece. Esse abrandamento da solidariedade da empresa de viagens em relação a seus prepostos ou prestadores de serviços específicos está regulado no item 4 do art. 27, o qual enuncia que, em se tratando de viagens organizadas, a agência não pode ser responsabilizada nos seguintes casos:


a) quando o cancelamento se basear no fato de o número de participantes na viagem organizada ser inferior ao mínimo exigido (desde que o cliente seja informado por escrito do cancelamento no prazo previsto no programa);


b) o descumprimento for devido a situações de força maior ou caso fortuito, motivado por circunstâncias anormais e imprevisíveis;


c) a inexecução decorrer de conduta do próprio cliente ou de um terceiro;


d) quando legalmente não puder ser exercido o direito de regresso relativamente aos prestadores dos serviços previstos no contrato;


e) quando o prestador de serviços de alojamento não puder ser responsabilizado pela deterioração, destruição ou subtração de bagagens ou outros artigos.


A Lei portuguesa também prevê limites para os valores das indenizações devidas aos consumidores, dependendo do tipo de defeito (“vício de segurança) ou simples vício (“vício de funcionalidade”) apresentado pelo produto ou serviço e da repercussão sobre o patrimônio (moral ou patrimonial) do cliente. Ou seja, o Decreto criou um regime de indenização “tarifada”, assim entendido o limite legalmente institucionalizado para o valor da indenização reparatória de determinado dano produzido em situação específica. Em se tratando da prestação de serviço de transporte aéreo internacional, esse limite deve corresponder ao montante máximo exigível das prestadoras previsto na Convenção de Montreal, de 28 de Maio de 1999 (art. 30, I)[18]. Em relação ao transporte ferroviário, a responsabilidade da agência tem como limite o valor máximo previsto para as transportadoras na Convenção de Berna, de 1961 (art. 30, I). Já no que diz respeito ao transporte marítimo, a responsabilidade da agência, relativamente aos danos causados aos seus clientes em razão do serviço defeituoso, pode variar de cerca de dez mil euros, em caso de simples perda de bagagem, até um pouco mais de 400 mil euros, em caso de morte ou danos corporais[19].


Muitas críticas foram feitas a esse novo sistema (erigido pelo Decreto-Lei n. 61/2011, de 06 de maio de 2011) de garantias ao consumidor de serviços turísticos, que combina responsabilidade civil com certas limitações (mais atenuada para a agência “retalhista”, aquela que se limita a vender produtos e serviços) com a existência do “fundo garantidor” e do seguro obrigatório de responsabilidade civil. Na verdade, as críticas são endereçadas à criação do Fundo de Garantia de Viagens e Turismo (FGVT), visto como um “sistema de responsabilidade coletiva”, onde as empresas sérias arcam com os erros de gestão de suas congêneres[20]. Para alguns, a simples existência do fundo pode servir de incentivo para que as empresas se tornem pouco cautelosas ou até enseje o comentimento de fraudes, uma vez que pessoas mal intencionadas podem promover a venda de serviços abaixo do preço real (e, portanto, sem condições de cumprir com a execução), sabendo que se algo der errado sempre haverá a possibilidade de o FGVT reembolsar os consumidores[21].


Essas críticas, no entanto, revelam mais um sentimento corporativista (das associações de agências de viagens) do que propriamente a indicação de fatores impeditivos da implantação do fundo ou de sua iniqüidade em relação às micro e pequenas empresas que atuam no setor. É falho o argumento de que sua instituição vai incentivar fraudes ou contribuir para a diminuição do padrão de qualidade na prestação dos serviços turísticos. Primeiro porque a própria Lei prevê que, havendo pagamento por parte do FGVT, a agência de turismo responsável pelo dano deve repor o montante utilizado, no prazo máximo de 60 dias (art. 33, item 3). Em segundo lugar, porque empresas que prestam serviço de má qualidade já existem independentemente da implantação do fundo e acabam, mais cedo ou mais tarde, sendo excluídas do mercado em razão da própria propagação de seus erros.


O fato é que a nova Lei portuguesa que regula a atividade das agências de viagens e turismo parece ter criado um sistema balanceado, que vai facilitar o acesso ao mercado a novas empresas. Uma melhor definição das responsabilidades dos agentes pelas atividades que desenvolvem torna o mercado de serviços mais equânime e competitivo, contribuindo para o crescimento econômico e para a criação de emprego, num ambiente mais favorável à realização de negócios. O Brasil não precisa adotar integralmente os institutos que foram erigidos pelo Decreto-Lei n. 61/2011, mas a evolução do mercado para o setor do turismo passa necessariamente por uma redefinição dos papéis e responsabilidades das agências de viagens e instituição de novas garantias aos consumidores (turistas) e, nesse aspecto, a lei portuguesa pode servir como um bom modelo.        


 


Notas:

[1] Conceito extraído do art. 27 da Lei n. 11.771, de 17.09.08 (Lei Geral do Turismo).

[2] A própria Lei n. 11.771, de 17.09.08 (Lei Geral do Turismo), considera como “prestadores de serviços turísticos” as sociedades e os empresários individuais que exerçam atividades como agências de turismo (art. 21, II).

[3] O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) está permeado por regras que indicam a responsabilidade solidária dos fornecedores de produtos ou serviços na cadeia de consumo, sendo de destacar os seguintes:

“Art. 7° […] Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo.

Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.

§ 1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores.

Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos.”

[4] A jurisprudência do STJ tem afirmado a responsabilidade solidária das agências de turismo. No Recurso Especial nº 435.830-RJ (DOU 10/03/03), o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito salientou, em seu voto, a responsabilidade solidária da agência de turismo, com relação à falta de entrega de ingressos para um jogo de futebol. No julgamento do Recurso Especial nº 278.893-DF, interposto por operadora de turismo que queria ver-se livre de responsabilidade perante o fornecedor, a Ministra Nancy Andrighi afirmou que “responde a operadora de turismo pelo dano moral causado ao cliente que adquiriu pacote turístico visando assistir a abertura da Copa do mundo, na França, e se viu impedido de assistir ao jogo porque a ré não disponibilizou os ingressos”. No Recurso Especial nº 291.384 – RJ, julgando uma ação de danos morais e materiais para o ressarcimento de prejuízos ocasionados por naufrágio de embarcação, programada na viagem de turismo, o Ministro Ruy Rosado de Aguiar inseriu na ementa do acórdão que “ A operadora de viagens que organiza pacote turístico responde pelo dano decorrente do incêndio que consumiu a embarcação por ela contratada”. Em outro caso, envolvendo um acidente na piscina de um hotel, ficou consignado na ementa do acórdão que “A agência de viagens responde pelo dano pessoal que decorreu do mau serviço do hotel contratado por ela para a hospedagem durante o pacote de turismo” (Recurso Especial nº 287.849-SP).

[5] O direito de regresso é uma consequência natural da solidariedade entre os fornecedores e está disposto no artigo 13, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, in verbis: “Art. 13. […] Parágrafo único. Aquele que efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o direito de regresso contra os demais responsáveis, segundo sua participação na causação do evento danoso”. Ainda sobre o direito de regresso, reza o Código no art. 88: “Na hipótese do art. 13, parágrafo único, deste Código, a ação de regresso poderá ser ajuizada em processo autônomo, facultada a possibilidade de prosseguir-se nos mesmos autos, vedada a denunciação da lide”.

[6] A responsabilidade objetiva dos fornecedores de produtos e serviços está prevista nos  artigos 12 a 25 do Código de Defesa do Consumidor.

[7] A responsabilidade civil das agências de turismo nas relações de consumo. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 599, 27 fev. 2005. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/6355. Acesso em: 16 maio 2011.

[8] É que defende, p. ex., Paulo R. Roque Khouri, para quem a agência deve responder apenas pelo fato de seu serviço e não pelo de outrem. Contratos e responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 180-181.

[9] Projeto de Lei no 3.118, de 2008 (no 114/08 no Senado Federal).

[10] As razões do Veto foram expostas nos seguintes termos:

“A medida proposta fundava-se na busca por maior eqüidade na distribuição de responsabilidades nas relações travadas entre as agências de viagens e os fornecedores de serviços de turismo.

Entretanto, o dispositivo poderá conduzir a interpretações que enfraqueceriam a posição do consumidor frente à cadeia de fornecedores, com a possível quebra da rede de responsabilidade solidária tecnicamente regulada pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC, aplicável a todos os setores da atividade econômica.

Dessa forma, seria possível o uso do dispositivo como embasamento para a mitigação da responsabilidade de determinados fornecedores, a partir da exceção criada ao sistema consumerista, o que colidiria com a política de defesa do consumidor consolidada durante toda a última década.”

[11] O endereço do site na Internet é: http://www.turismodeportugal.pt/

[12] O Decreto ainda prevê que o “Turismo de Portugal” pode delegar a gestão do fundo, ouvido o Conselho, a uma sociedade financeira (art. 31, item 5), o que talvez termine por acontecer, tendo em vista o caráter técnico da gestão, mais compatível com empresas do setor financeiro. 

[13] Toda agência de viagem e turismo para poder funcionar regularmente em Portugal necessita estar inscrita no RNAVT, que é um cadastro mantido pelo “Turismo de Portugal, I.P.” e que contém informação sobre todas as agências estabelecidas no território nacional, ficando disponível para acesso ao púbico (art. 8º., item 1, do Decreto-Lei n. 61/2011). A inscrição nesse cadastro é um requisito de acesso à atividade, previsto no art. 6º., item 1, do Dec. Lei n. 61/2011.  

[14] Os montantes referentes à contribuição, de acordo com o art. 32, item 2, devem ser pagos da seguinte forma: a) uma contribuição inicial, a prestar no momento da inscrição da agência no RNAVT, no valor de € 2500 para as agências vendedoras e de € 5000 para as agências organizadoras ou vendedoras e organizadoras; b) contribuições posteriores anuais, de valor equivalente a 0,1 % do volume de negócios da agência no ano imediatamente anterior.

[15] Quando, por razões que não lhe forem imputáveis, o cliente não possa terminar a viagem organizada, a agência é obrigada a dar -lhe assistência até ao ponto de partida ou de chegada (art. 28).

[16] O art. 15, item 2, conceitua as viagens organizadas como sendo as viagens turísticas que combinam a prestação de dois ou mais serviços (transporte, alojamento ou serviços relacionados com eventos desportivos, religiosos e culturais) e são vendidas ou propostas para venda a um preço com tudo incluído.   

[17] O art. 2o. classifica as agências de viagens e turismo em dois tipos. O primeiro tipo corresponde às “agências vendedoras”, aquelas que vendem ou propõem à venda viagens organizadas e elaboradas por outras agências (organizadoras). O segundo tipo é o das “agências organizadoras”, também designados de “operadores turísticos”, que são as empresas que elaboram viagens organizadas e as vendem ou propõem à venda diretamente ou através de uma agência vendedora (itens 2 e 3). 

[18] A Convenção de Montreal, de 28 de maio de 1999, atualiza e consolida as regra do “Sistema de Varsóvia”. Fruto da Conferência Internacional de Direito Aeronáutico, realizada em Montreal, de 10 a 28 de maio de 1999, realizada sob o patrocínio da Organização Internacional de Aviação Civil (OACI), com a participação de 118 Estados, inclusive do Brasil, proporcionou a unificação das regras sobre o transporte aéreo internacional. Assim, ao entrar em vigor, prevaleceu sobre a “Convenção de Varsóvia”, de 12 de outubro de 1929, e as outras convenções e protocolos subseqüentes relativas ao transporte aéreo internacional. Um dos seus capítulos é dedicado à responsabilidade civil do transportador e aos limites de indenização por danos causados (arts. 17 a 38). Prevê indenização, até o limite de 100.000 direitos especiais de saque por passageiro, no caso de morte ou lesão corporal (art. 21). No caso de destruição, perda avaria ou atraso de bagagem, limita-se a responsabilidade a 1.000 direitos especiais de saque por passageiro (art. 22, alínea 2). Em se tratando de dano por atraso no transporte de pessoas, a responsabilidade do transportador limita-se a 4.150 direitos especiais de saque por passageiro (art. 22, alínea l). 

[19] Os limites indenizatórios previstos em situações de danos causados aos consumidores, em razão de vícios nos serviços das agências (quando prestados diretamente por elas ou através de outros prestadores), estão dispostos nos itens 1 a 3 do art. 30 do Dec. , adiante reproduzidos:

1 — A responsabilidade da agência tem como limite o montante máximo exigível às entidades prestadoras dos serviços, nos termos da Convenção de Montreal, sobre transporte aéreo internacional, e da Convenção de Berna, de 1961, sobre transporte ferroviário.

2 — No que concerne aos transportes marítimos, a responsabilidade das agências de viagens, relativamente aos seus clientes, pela prestação de serviços de transporte, ou alojamento, quando for caso disso, por empresas de transportes marítimos, no caso de danos resultantes de dolo ou negligência destas, tem como limites os seguintes montantes:

a) € 441 436, em caso de morte ou danos corporais;

b) € 7881, em caso de perda total ou parcial de bagagem ou da sua danificação;

c) € 31 424, em caso de perda de veículo automóvel, incluindo a bagagem nele contida;

d) € 10 375, em caso de perda de bagagem, acompanhada ou não, contida em veículo automóvel;

e) € 1097, por danos na bagagem, em resultado da danificação do veículo automóvel.

3 — Quando exista, a responsabilidade das agências de viagens e turismo pela deterioração, destruição e subtracção de bagagens ou outros artigos, em estabelecimentos de alojamento turístico, enquanto o cliente aí se encontrar alojado, tem como limites:

a) € 1397, globalmente;

b) € 449 por artigo;

c) O valor declarado pelo cliente, quanto aos artigos depositados à guarda do estabelecimento de alojamento turístico.”

[20] Essa é uma das críticas feita pela APAVT – Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo, que no dia 11 de maio do corrente ano publicou em seu site o seguinte comentário: o Governo português “criou um regime em que toda e qualquer uma das empresas que actuam no mercado seja responsável pela actuação de toda e qualquer uma das suas congéneres, ou seja, criou um regime obrigatório de solidariedade que é inaudito, ao arrepio do mercado e dos princípios que regem a livre iniciativa privada”.

[21] A APAVT parece endossar esse ponto de vista, quando diz:

 “Está pois aberta a porta, através deste regime da solidariedade obrigatória, para que uma empresa possa ludibriar os seus clientes, recebendo verbas, que podem ser avultadas (veja‐se o caso Marsans, onde chegámos a valores a rondar o meio milhão de euros) sabendo que todas as outras empresas do sector irão pagar os prejuízos causados. Não existe na ordem jurídica portuguesa semelhante fundo, que penaliza empresas cumpridoras em detrimento de empresas menos escrupulosas, e que afecta a livre concorrência de modo directo como este modelo agora instituído o faz.”

   


Informações Sobre o Autor

Demócrito Reinaldo Filho

Magistrado em Pernambuco.


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