A responsabilidade civil do transportador na jurisprudência do STF

Sumário: 1. Introdução – 2. A responsabilidade civil do transportador aéreo e o Código de Defesa do Consumidor – 3. Vítimas do serviço de transporte e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor – 4. Conclusão.

1. Introdução


Em estudo anterior reconheceu-se o acerto da jurisprudência do STJ e demonstrou-se certa preocupação com o entendimento adotado em julgados, então recentes, do STF.[1] Com o presente texto, passa-se à análise de outros dois julgados do mesmo STF, ambos do ano de 2009, que escrevem mais um capítulo no inesgotável tema relativo à incidência do Código de Defesa do Consumidor na responsabilidade civil do transportador.


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2. A responsabilidade civil do transportador aéreo e o Código de Defesa do Consumidor


A primeira controvérsia estudada diz respeito à prevalência do Código de Defesa do Consumidor em relação ao Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/1986) e à Convenção de Varsóvia, – posteriormente modificada pelos Protocolos da Haia e de Montreal (Dec. 5.910/2006) –, quando se analisa, respectivamente, a responsabilidade civil do transportador aéreo nacional e internacional.[2] Objeto de comentário é o RE 351.750-3/RJ, julgado pela 1.ª Turma em 17.03.2009 e publicado no DJe em 25.09.2009, tendo como relator originário o Min. Marco Aurélio e como redator para o acórdão o Min. Carlos Ayres Britto.[3]


O caso é relativo a uma consumidora que alegou ter sofrido danos morais em decorrência de atraso no voo internacional que contratara com transportadora aérea brasileira. A sentença, favorável à autora, foi confirmada pela 1.ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio de Janeiro, em decisão assim ementada:


“Os transtornos decorrentes de prestação de serviço de transporte por parte de empresa aérea que negligencia o atendimento de seus passageiros, causando-lhes desconforto, configuram evidente defeito na prestação do serviço, cabendo indenização. Dano moral fixado em 40 salários mínimos, valor razoável diante das circunstâncias do caso concreto. Sentença mantida.”


A ré, após ter interposto embargos de declaração, que foram desprovidos, interpôs o referido recurso extraordinário com fulcro nas alíneas a e b do inc. III do art. 102 da CF/1988.[4] O primeiro fundamento seria o fato de a decisão ter violado os arts. 5.º, XXXV, 93, IX, 22, I, 84, VIII e 178, da CF/1988.[5] A interposição pela alínea b decorreria da possível declaração de inconstitucionalidade da Convenção de Varsóvia, dos Protocolos da Haia e de Montreal, e da Lei 7.565/1986. A recorrida, por sua vez, simplesmente afirmou que a questão deveria ser dirimida à luz do Código de Defesa do Consumidor, em especial pelo afirmado em seu art. 14.[6]


Tendo chegado ao STF, o recurso recebeu, originariamente, a relatoria do Min. Marco Aurélio. Seu voto, no entanto, prende-se a questões processuais, em especial à necessidade da efetiva manifestação da Turma Recursal acerca dos argumentos expendidos pela ré nos embargos declaratórios. Caso fosse vencido neste entendimento, defendeu o não conhecimento do recurso extraordinário, uma vez que “o decidido repousa em interpretação do Código de Defesa do Consumidor”.


Este voto é seguido por longo debate entre o referido Ministro relator e o então Ministro do STF, Sepúlveda Pertence. O debate centra-se na forma pela qual é possível prequestionar a matéria constitucional objeto do apelo extremo, restando vencido, no ponto, o Min. Marco Aurélio, uma vez que os demais Ministros da 1.ª Turma consideram possível passar à análise do mérito recursal.


Após pedido de vista, o primeiro a votar é o Min. Eros Grau. Seu erudito voto está focado na distinção entre lei geral e lei especial, apoiando-se para tanto especialmente na doutrina de Norberto Bobbio e nos expressos termos do art. 2.º, §§ 1.º e 2.º, da LICC (Dec. 4.657/1942).[7] Em sua análise, “o Código do Consumidor não revogou expressamente, nem é incompatível com ela [Convenção de Varsóvia], nem regulou inteiramente a matéria de que tratam os preceitos considerados do Código Brasileiro de Aeronáutica e a que respeita a Convenção de Varsóvia”. Afirma ainda, verbis:


“Não há incompatibilidade entre os textos normativos considerados, porque um é geral em relação ao outro: a primeira trata da defesa do consumidor [compreensão menor e extensão maior]; as segundas, da relação entre os agentes econômicos e seus clientes em determinado mercado [setor da economia], disciplinando, inclusive, aspectos atinentes a sua defesa enquanto consumidores. Assim, temos: uma lei geral, sobre a defesa dos consumidores e textos normativos específicos que encerram, entre outras, disposições sobre a defesa do consumidor em determinado mercado [setor da economia]” (original grifado).


Admitindo, contudo, que apenas uma norma deverá regular o caso concreto, conhece do recurso extraordinário e lhe dá provimento para “afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor à espécie, devendo prevalecer a Convenção de Varsóvia, os protocolos da Haia e de Montreal e a Lei 7.565/1986”.


Esse voto é seguido por curto debate e pelo pedido de vista do Min. Carlos Ayres Britto. Retomado o julgamento, este Ministro inicia seu voto fundamentando-se na doutrina de J. J. Gomes Canotilho – o qual defende a “proibição do retrocesso social” –, levando Ayres Britto a afirmar que o “consumidor não pode ser atingido por normas que lhe restrinjam conquistas asseguradas. É dizer: tendo o direito do consumidor status de princípio constitucional, não é dado a outras disposições legais restringir indenizações por mau uso do serviço”.


Considera, a seguir, que o inc. V do art. 170 da CF/1988, que dispõe sobre a defesa do consumidor, “além de direito fundamental, é princípio geral de toda a atividade econômica”.[8] Da mesma forma, entende que o disposto no art. 175, parágrafo único, II, da CF/1988 que se refere a “direitos dos usuários”, – dispositivo também contido no Título da Ordem Econômica –, termina por conferir um “plus protecional” aos consumidores.[9] E conclui seu voto no sentido de que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ou da legislação internacional ou ainda do Código Brasileiro de Aeronáutica deva ser feita caso a caso, desde que não sejam violados “os direitos do consumidor”, mas afirma que não compete ao STF analisar a possível “má interpretação, aplicação” ou até “inobservância” da legislação infraconstitucional. Defende, desta forma, o não conhecimento do recurso.


Esse voto é seguido por um longo debate entre os Ministros Eros Grau e Ayres Britto, sendo que aquele sustenta, basicamente, que “o usuário de serviço público não é consumidor, é cidadão”, ao passo que este afirma ser o usuário de serviço público um “consumidor especial. É o nome que o consumidor toma quando recebe um serviço público”. Este último Ministro salienta ainda que o art. 178 da CF/1988 refere-se à ordenação do transporte internacional, a qual deve ser entendida como “providências alusivas à higiene, à salubridade, à segurança, à manutenção das aeronaves, ao tempo de uso, à duração de voo… Não para negar direitos do consumidor, que têm matriz constitucional”. Este debate passa a contar, a seguir, com a participação do Min. Cezar Peluso, o qual pede vista dos autos para uma análise mais aprofundada da questão.


Certo é que, com o pedido posterior de adiamento do julgamento, este só vem a ser retomado já no ano de 2009, ou seja, quatro anos após a colheita dos primeiros votos. E o voto do Min. Cezar Peluso também é pelo não conhecimento do recurso extraordinário, pois o “acórdão recorrido não tratou de nenhum tema constitucional, senão que apenas aplicou o disposto no art. 14 do CDC ao serviço prestado pela ora recorrente”. Este entendimento, contudo, não impede que o mesmo Ministro prossiga em sua análise, levando-o a afirmar, inicialmente, que, se fosse aplicável o critério da lei especial (lex specialis), teria primazia o Código de Defesa do Consumidor, uma vez que este “tem por escopo, não regrar determinada matéria, mas proteger certa categoria de sujeito, ainda que também protegido por outros regimes jurídicos (art. 7.º).[10] Daí, seu caráter especialíssimo” (original grifado).


Passa, a seguir, ao próprio tema da indenização, o qual, como visto, não chegou a ser detidamente abordado pelos demais Ministros. Afirma, neste sentido, estar na Constituição Federal a “resposta direta à questão”, uma vez que este diploma adota, nos incs. V e X do art. 5.º, o “princípio da indenizabilidade irrestrita, segundo o qual as indenizações por dano material e moral devem ser a estes proporcionais” (grifos no original).[11] E é fulcrado neste entendimento que afirma terem os arts. 246, 257, 260, 262, 269 e 277, da Lei 7.565/1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica) e os arts. 21 e 22 do Dec. 5.910/2006 (Protocolo de Montreal) “perdido seus fundamentos de validez”, uma vez que “incompatíveis com o alcance das regras estatuídas no art. 5.º, V e X, da atual Constituição da República”.[12]


Prossegue em sua argumentação afirmando que a norma constitucional não admite, nem de modo expresso, nem de modo implícito, qualquer forma de restrição, pois, ao contrário, a “norma garantidora, que nasce da conjugação dos textos constitucionais (art. 5.º, V e X), é, antes, nesse aspecto, de cunho irrestrito”. Nega, em consequência, a possibilidade de restrição da reparação por força de lei ordinária, entendendo, com fundamento na doutrina de Humberto Ávila, que os citados dispositivos estão em contraste com o “postulado da proporcionalidade, o qual impõe à lei restritiva que seja necessária, adequada e proporcional”.


De forma derradeira ainda afirma, em palavras que merecem transcrição:


“A defesa do consumidor, além de objeto de norma constitucional, é direito fundamental (art. 5.º, XXXII), de modo que não pode ser restringida por regra subalterna, nem sequer por Emenda Constitucional, enquanto inserta em cláusula pétrea (art. 60, § 4.º, IV). Donde, conquanto o art. 178 da CF/1988 determine a ordenação do transporte aéreo mediante lei, não pode esta limitar nem tampouco aniquilar, na prática, o princípio da defesa do consumidor, como o fazem os dispositivos do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/1986) e da Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional (‘Convenção de Varsóvia’), com as modificações dos Protocolos da Haia e de Montreal (Dec. 5.910, de 27.09.2006), ao reduzirem, de maneira direta ou indireta, o âmbito de proteção do consumidor, com ofensa conseqüente ao art. 5.º, XXXII, da CF/1988.”[13]


Inegável o acerto dos dois últimos votos, os quais corroboram os argumentos e afastam, por completo, o temor manifestado no estudo anterior. É sabido, contudo, que a solução final adotada, – qual seja, a de não conhecer o recurso extraordinário por força de uma ofensa somente “indireta” à Constituição –, não afasta a possibilidade de decisões divergentes por parte de juízos e tribunais. De fato, por razões processuais, estes continuam com toda a liberdade para insistir na aplicação das normas limitadoras da indenização devida pelo transportador.


Por essa razão, louva-se a recente decisão prolatada pelo STF no sentido de que tal tema tem “repercussão geral”.[14] Espera-se, igualmente, que, no julgamento a ser empreendido pelo Plenário, termine por prevalecer o entendimento da perda dos “fundamentos de validez” das normas limitadoras da reparação, afirmando-se, de forma definitiva, o “princípio da indenizabilidade irrestrita”. Ou, – caso não se avance a este ponto –, que pelo menos se reconheça a prevalência do Código de Defesa do Consumidor, o que decorre do status constitucional que deve ser reconhecido a este diploma.[15]


Outro tema que foi recentemente revisto pelo STF diz respeito ao conceito de terceiro para fins de indenização pelos danos causados pelo transportador. É o que se passa a analisar.


3. Vítimas do serviço de transporte e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor


No mesmo estudo anteriormente publicado manifestou-se a preocupação com a linha de pensamento adotada, por maioria, pelo STF, no que se refere ao conceito de terceiro expresso no art. 37, § 6.º, da CF/1988 e que levava à distinção entre usuário e não usuário do serviço.[16] De fato, referida distinção estava em claro contraste com a jurisprudência dos demais tribunais e ofendia o disposto na legislação ordinária, em especial, o art. 17 do CDC e o art. 25 da Lei 8.987/1995.[17]


Tal forma de pensar vem de ser superada pela decisão proferida no RE 591.874-2/MS, julgado pelo Plenário em 26.08.2009, publicado em 18.12.2009, e tendo como Relator o Min. Ricardo Lewandowski.[18] Cumpre destacar, desde logo, que a referido julgado foi conferida a sistemática da “repercussão geral”, com as importantes consequências processuais daí advindas.[19]


O caso refere-se à morte de um ciclista por força de colisão com ônibus de propriedade da ré em rua não pavimentada de Campo Grande (MS). A prova colhida afirma que o ciclista empurrava sua bicicleta quando, no momento da passagem do ônibus, caiu no chão e teve a cabeça esmagada pela roda traseira direita do veículo.


A ação foi proposta pela companheira e pela filha do falecido, tendo o pedido sido julgado improcedente pelo juiz de primeira instância, uma vez que se reputou inexistente o nexo causal. O TJMS, contudo, reformou o julgado, em acórdão assim ementado:


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“Apelação Cível. Ação de reparação de danos. Acidente envolvendo ciclista e ônibus de empresa de transporte coletivo. Responsabilidade objetiva. Obrigação de indenizar. Dano material não comprovado. Dano moral independente de prova. Recurso provido para julgar procedentes em parte os pedidos iniciais. 1. À míngua de prova de que o acidente envolvendo ciclista e ônibus de empresa de transporte coletivo, com morte de ciclista, deu-se por caso fortuito, força maior ou por culpa exclusiva da vítima, a empresa responderá objetivamente pelo dano, seja por se tratar de concessionária de serviço público, seja em virtude do risco inerente à sua atividade. 2. Inexistindo prova de que a vítima fatal de acidente de trânsito desenvolvia atividade remunerada, tem-se por improcedente o pedido de pensão alimentícia formulado pela companheira e pela filha. 3. O sofrimento decorrente do sinistro que acarretou a morte do companheiro e pai independe de qualquer atividade probatória e permite condenar a empresa de transporte a indenizar a família pela dor causada”.


Desse acórdão foi interposto recurso extraordinário com fulcro no art. 102, III, a, da CF/1988, sustentando-se ofensa aos seus arts. 37, § 6.º e 93, IX. A recorrente alegou que a responsabilidade civil objetiva não se aplicaria ao caso, uma vez que a vítima não era usuária do serviço de transporte coletivo. Em suas contrarrazões, as recorridas alegam ser aplicável a responsabilidade objetiva e que não foi comprovada nenhuma hipótese excludente do nexo de causalidade. O Procurador-Geral da República manifestou-se, oralmente, pelo desprovimento do recurso.


Em seu voto, o Ministro Relator traça uma breve evolução histórica da responsabilidade civil e afirma que, desde a Constituição de 1946, o Brasil adotou uma “postura mais publicista com relação à responsabilidade do Estado, desenvolvendo-se aqui a ‘teoria do risco administrativo’”. Recorda, a seguir, que no precedente julgado pelo STF (RE 262.651/SP) fez-se distinção entre usuário e não usuário do serviço, aplicando-se o regime da responsabilidade civil objetiva somente em relação aos primeiros. Por fim, forte na doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, afirma que:


“(…) não se pode interpretar restritivamente o alcance do referido art. 37, § 6.º, sobretudo porque o texto magno, interpretado à luz do princípio da isonomia, não permite que se faça qualquer distinção entre os chamados ‘terceiros’, isto é, entre usuários e não usuários do serviço público, uma vez que todos eles, de igual modo, podem sofrer dano em razão da ação administrativa do Estado, seja ela realizada diretamente, seja por meio de pessoa jurídica de direito privado” (original grifado).


Nega, assim, provimento ao recurso, uma vez que as instâncias ordinárias não teriam afastado o nexo de causalidade, “condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado”.


A próxima a votar é a Min. Cármen Lúcia, a qual afirma que a sentença reconhecera a culpa exclusiva da vítima, mas que esta excludente foi afastada pelo acórdão recorrido. Sua argumentação é interrompida pelo Min. Marco Aurélio, que insiste no fato de não haver nexo causal entre o serviço prestado e a morte verificada. A Min. Cármen Lúcia, contudo, segue o entendimento afirmado no acórdão – sobre o qual não se poderia discutir mais –, e também acompanha o voto do Relator, não distinguindo entre usuário e não usuário do serviço, uma vez que a própria Constituição da República “não distinguiu”.


Também o Min. Eros Grau, de forma muito sucinta, acompanha o Min. Relator por entender presente o nexo de causalidade.


O Min. Carlos Ayres Britto, por sua vez, afirma que “a Constituição não falou de terceiros à toa, ou por acidente, ou por acaso, ela o fez intencionalmente”. Para comprovar seu argumento, lista alguns dispositivos constitucionais que utilizam o vocábulo usuário e outros que utilizam o termo terceiro e conclui que “no § 6.º, portanto, o uso do termo ‘terceiros’ me parece que foi realmente intencional para extrapolar, ultrapassar as dimensões do simplesmente usuário”. Desta forma, entende que a “Constituição imprime à prestação do serviço público um cuidado ainda maior, ou seja, exige que o princípio da eficiência se aplique em plenitude na prestação dos serviços públicos para que essa prestação não lesione nem usuários em particular, nem terceiros em geral”.


O Min. Cezar Peluso é o próximo a votar e observa que a novidade do disposto no art. 37, § 6.º, da CF/1988, consiste na inclusão das concessionárias e permissionárias de serviços, o que resultou da necessidade de se evitar uma espécie de “fraude em dano das vítimas, porque, se o Estado prestasse o serviço e ocasionasse o dano, responderia. E, quando transfere a prestação a terceiro, as vítimas não teriam remédio jurídico adequado”. Afirma, ainda, que:


“(…) o termo ‘terceiro’ não é posto para distinguir entre usuário e não usuário; ‘terceiro’, na norma, diz respeito a quem não seja o próprio Estado ou o concessionário do serviço público. Isto é, o dano causado por agente do concessionário a si mesmo não tem relevância, mas o causado a terceiro a tem”.


Assim, por entender que não foi comprovada nenhuma causa excludente do nexo causal, acompanha o Min. Relator e vota pelo não provimento do recurso.


Iniciando seu voto, o Min. Marco Aurélio recorda a decisão proferida no RE 262.651/SP, salientando ser um “acórdão que precisa ser realmente perquirido na essência, no que ele encerra”. Analisando, a seguir, o acórdão impugnado, entende que o mesmo “potencializou, a mais não poder, a responsabilidade objetiva, existente o nexo de causalidade”. E, justamente por entender ausente a prova deste nexo, defende o provimento do recurso.


Vota, por fim, o Min. Gilmar Mendes, o qual, além da doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, busca fundamentar seu entendimento na doutrina de Lucas Rocha Furtado, “nosso colega da UnB”. O Ministro, revendo seu posicionamento anterior, exarado no julgamento do RE 262.651/SP, afirma que “de fato, a natureza do serviço – serviço público – não se altera em razão de o concessionário ser o responsável pela execução da atividade”. Faz, no entanto, uma ressalva, nos seguintes termos:


“Evidente, portanto, que a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos limita-se ao exercício de tal atividade; em outras palavras, caso a empresa cause dano a terceiros em razão de conduta não relacionada à prestação de serviço público, descaberá qualquer menção à responsabilidade objetiva”.


A seguir, repete os termos do acórdão recorrido para afirmar que não foi comprovada a ausência do nexo de causalidade, o que ocorreria nas hipóteses de culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior. Desta forma, conhece do recurso, mas lhe nega provimento.


Deve ser realmente louvado este novo entendimento do STF, o qual estabelece o verdadeiro sentido do termo “terceiros” previsto pelo constituinte. Esta visão já havia sido acolhida pela doutrina administrativista, o que foi reconhecido pelo próprio julgado, e encontra eco na legislação ordinária, a qual, no entanto, escapa à análise do STF no âmbito do recurso extraordinário.[20] De qualquer forma, é importante observar que a distinção engendrada pelo Min. Gilmar Mendes ao final de seu voto não parece subsistir quando são considerados os termos do art. 17 do CDC ou mesmo o disposto no art. 927, parágrafo único, do CC/2002.[21] Em verdade, com fundamento nestes dispositivos, tem-se como possível a afirmação da responsabilidade civil objetiva do transportador, ainda que não se observe uma verdadeira prestação de serviço público, bastando que exista uma relação jurídica de consumo, – contempladas aqui “todas as vítimas do evento” –, ou considerando-se presente um “risco da atividade”.[22]


4. Conclusão


Essas breves considerações podem ser concluídas com um elogio aos dois recentes julgados do STF em relação ao tema da responsabilidade civil do transportador. Verifica-se, de fato, um avanço em face do posicionamento anterior, sendo certo que esta nova perspectiva já havia sido anteriormente defendida e encontra plena acolhida na jurisprudência e na doutrina mais atentas e comprometidas com os valores e garantias constitucionais.


 


Referências

CALIXTO, Marcelo Junqueira. “Ainda o conceito de consumidor: breves considerações a partir de dois julgados recentes do Supremo Tribunal Federal” in Temas de Direito do Consumidor, coordenado por Guilherme Magalhães Martins, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010.

_____. “O Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor”, in Princípios do Direito Civil Contemporâneo, coordenado por Maria Celina Bodin de Moraes, Rio de Janeiro, Renovar, 2006.

_____. A Culpa na Responsabilidade Civil: estrutura e função. Rio de Janeiro, Renovar, 2008. 

_____. A Responsabilidade Civil do Fornecedor de Produtos pelos Riscos do Desenvolvimento. Rio de Janeiro, Renovar, 2004.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo, Atlas, 2008.

GOMES, Rogério Zuel. “A Responsabilidade Civil do Estado e o atual posicionamento do STF. Alternativa viável: incidência do art. 17 do CDC”, in Revista de Direito do Consumidor, n. 72, São Paulo, Revista dos Tribunais, out./dez. de 2009.

MARQUES, Cláudia Lima, BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos e MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 2ª edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005.

MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade Civil por Acidentes de Consumo na Internet, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008.

MIRAGEM, Bruno. Direito do Consumidor. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008.

MORAES, Maria Celina Bodin de. “Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva”, in Revista dos Tribunais, n. 854, São Paulo, Revista dos Tribunais, dezembro de 2006.

_____, BARBOZA, Heloísa Helena, TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, vol. II, Rio de Janeiro, Renovar, 2006.

 

Notas:

[1] Seja consentido remeter a Calixto, Marcelo Junqueira. Ainda o conceito de consumidor: breves considerações a partir de dois julgados recentes do Supremo Tribunal Federal. In: Martins, Guilherme Magalhães (coord.). Temas de direito do consumidor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 365-378.

[2] Recorde-se que a chamada “Convenção de Varsóvia” é, na verdade, a “Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional”, tendo sido assinada na capital polonesa em 12.10.1929. Foi posteriormente emendada pelo Protocolo da Haia, celebrado em 28.09.1955, e pelos Protocolos Adicionais números 1 e 2, assinados em Montreal em 25.09.1975. Finalmente, em 28.05.1999, na cidade de Montreal, é assinada uma nova “Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional”. Esta última Convenção, entre outras finalidades, busca “modernizar e refundir a Convenção de Varsóvia e os instrumentos conexos”, entendendo-se que a “ação coletiva dos Estados para uma maior harmonização e codificação de certas regras que regulam o transporte aéreo internacional” é o “meio mais apropriado para lograr um equilíbrio de interesses equitativo”. Esta “Convenção de Montreal” entrou em vigor internacional em 04.11.2003 e, para o Brasil, em 18.07.2006, nos termos de seu art. 53. Observe-se, contudo, que o Dec. 5.910, datado de 27.09.2006, foi publicado no DOU no dia seguinte.

[3] A ementa do acórdão é vazada nos seguintes termos: “Recurso extraordinário. Danos morais decorrentes de atraso ocorrido em voo internacional. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Matéria infraconstitucional. Não conhecimento. 1. O princípio da defesa do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da atividade econômica. 2. Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor. 3. Não cabe discutir, na instância extraordinária, sobre a correta aplicação do Código de Defesa do Consumidor ou sobre a incidência, no caso concreto, de específicas normas de consumo veiculadas em legislação especial sobre o transporte aéreo internacional. Ofensa indireta à Constituição da República. 4. Recurso não conhecido”.

[4] Afirmam as alíneas a e b do inc. III do art. 102 da CF/1988: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (…); III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.

[5] É o seguinte o teor dos dispositivos constitucionais citados: “Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…); XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”; “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”; “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (…); VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”; “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (…); IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”; “Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras”.

[6] Recorde-se o disposto no art. 14 do CDC: “Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos”.

[7] É o seguinte o teor do art. 2.º, caput, e §§ 1.º e 2.º, da LICC: “Art. 2.º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1.º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2.º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”.

[8] Afirma, de fato, o inc. V do art. 170 da CF/1988: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…); V – defesa do consumidor”.

[9] Dispõe o art. 175 da CF/1988: “Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: (…); II – os direitos dos usuários”.

[10] Reza o art. 7.º do CDC: “Art. 7.º Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo”.

[11] Consta dos incs. V e X do art. 5° da CF/1988: “Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…); V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (…) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

[12] É o seguinte o teor dos dispositivos citados: (a) Lei 7.565/1986: “Art. 246. A responsabilidade do transportador (artigos 123, 124 e 222, parágrafo único), por danos ocorridos durante a execução do contrato de transporte (art. 233, 234, § 1.º, 245), está sujeita aos limites estabelecidos neste Título (arts. 257, 260, 262, 269 e 277)”; “Art. 257. A responsabilidade do transportador, em relação a cada passageiro e tripulante, limita-se, no caso de morte ou lesão, ao valor correspondente, na data do pagamento, a 3.500 (três mil e quinhentas) Obrigações do Tesouro Nacional – OTN, e, no caso de atraso do transporte, a 150 (cento e cinquenta) Obrigações do Tesouro Nacional – OTN”; “Art. 260. A responsabilidade do transportador por dano, consequente da destruição, perda ou avaria da bagagem despachada ou conservada em mãos do passageiro, ocorrida durante a execução do contrato de transporte aéreo, limita-se ao valor correspondente a 150 (cento e cinquenta) Obrigações do Tesouro Nacional – OTN, por ocasião do pagamento, em relação a cada passageiro”; “Art. 262. No caso de atraso, perda, destruição ou avaria de carga, ocorrida durante a execução do contrato de transporte aéreo, a responsabilidade do transportador limita-se ao valor correspondente a 3 (três) Obrigações do Tesouro Nacional – OTN por quilo, salvo declaração especial de valor feita pelo expedidor e mediante o pagamento de taxa suplementar, se for o caso (artigos 239, 241 e 244)”; “Art. 269. A responsabilidade do explorador estará limitada: I – para aeronaves com o peso máximo de 1.000kg (mil quilogramas), à importância correspondente a 3.500 (três mil e quinhentas) OTN – Obrigações do Tesouro Nacional; II – para aeronaves com peso superior a 1.000kg (mil quilogramas), à quantia correspondente a 3.500 (três mil e quinhentas) OTN – Obrigações do Tesouro Nacional, acrescida de 1/10 (um décimo) do valor de cada OTN – Obrigação do Tesouro Nacional por quilograma que exceder a 1.000 (mil). Parágrafo único. Entende-se por peso da aeronave o autorizado para decolagem pelo certificado de aeronavegabilidade ou documento equivalente”; “Art. 277. A indenização pelos danos causados em consequência do abalroamento não excederá: I – aos limites fixados nos artigos 257, 260 e 262, relativos a pessoas e coisas a bordo, elevados ao dobro; II – aos limites fixados no artigo 269, referentes a terceiros na superfície, elevados ao dobro; III – ao valor dos reparos e substituições de peças da aeronave abalroada, se recuperável, ou de seu valor real imediatamente anterior ao evento, se inconveniente ou impossível a recuperação; IV – ao décimo do valor real da aeronave abalroada imediatamente anterior ao evento, em virtude da privação de seu uso normal”; (b) Decreto 5.910/2006: “Art. 21 – Indenização em Caso de Morte ou Lesões dos Passageiros: 1. O transportador não poderá excluir nem limitar sua responsabilidade, com relação aos danos previstos no número 1 do artigo 17, que não exceda de 100.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro. 2. O transportador não será responsável pelos danos previstos no número 1 do artigo 17, na medida em que exceda de 100.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, se prova que: a) o dano não se deveu a negligência ou a outra ação ou omissão do transportador ou de seus prepostos; ou b) o dano se deveu unicamente a negligência ou a outra ação ou omissão indevida de um terceiro”; “Art. 22 – Limites de Responsabilidade Relativos ao Atraso da Bagagem e da Carga: 1. Em caso de dano causado por atraso no transporte de pessoas, como se especifica no artigo 19, a responsabilidade do transportador se limita a 4.150 Direitos Especiais de Saque por passageiro. 2. No transporte de bagagem, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino. 3. No transporte de carga, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma, a menos que o expedidor haja feito ao transportador, ao entregar-lhe o volume, uma declaração especial de valor de sua entrega no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma quantia que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino. 4. Em caso de destruição, perda, avaria ou atraso de uma parte da carga ou de qualquer objeto que ela contenha, para determinar a quantia que constitui o limite de responsabilidade do transportador, somente se levará em conta o peso total do volume ou volumes afetados. Não obstante, quando a destruição, perda, avaria ou atraso de uma parte da carga ou de um objeto que ela contenha afete o valor de outros volumes compreendidos no mesmo conhecimento aéreo, ou no mesmo recibo ou, se não houver sido expedido nenhum desses documentos, nos registros conservados por outros meios, mencionados no número 2 do artigo 4, para determinar o limite de responsabilidade também se levará em conta o peso total de tais volumes. 5. As disposições dos números 1 e 2 deste artigo não se aplicarão se for provado que o dano é resultado de uma ação ou omissão do transportador ou de seus prepostos, com intenção de causar dano, ou de forma temerária e sabendo que provavelmente causaria dano, sempre que, no caso de uma ação ou omissão de um preposto, se prove também que este atuava no exercício de suas funções; 6. Os limites prescritos no artigo 21 e neste artigo não constituem obstáculo para que o tribunal conceda, de acordo com sua lei nacional, uma quantia que corresponda a todo ou parte dos custos e outros gastos que o processo haja acarretado ao autor, inclusive juros. A disposição anterior não vigorará, quando o valor da indenização acordada, excluídos os custos e outros gastos do processo, não exceder a quantia que o transportador haja oferecido por escrito ao autor, dentro de um período de 6 (seis) meses contados a partir do fato que causou o dano, ou antes de iniciar a ação, se a segunda data é posterior”.

[13] Recorde-se o disposto no art. 5.º, XXXII, da CF/1988: “Art. 5.° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.

[14] Trata-se da repercussão geral no AgIn 762.184/RJ (Tribunal Pleno, j. 22.10.2009, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 18.12.2009). O caso versa sobre extravio de bagagem em voo internacional contratado por consumidora brasileira com transportadora francesa. O TJRJ aplicou o Código de Defesa do Consumidor e condenou a ré a reparar os danos materiais e morais pleiteados. Esta, por sua vez, interpôs recurso extraordinário (art. 102, III, a, CF/1988) alegando ofensa ao art. 178 da CF/1988 e requerendo a observância dos limites constantes do Código Brasileiro de Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia. Este recurso teve seu processamento denegado na origem, razão pela qual foi interposto o agravo de instrumento. Na decisão que reconhece a repercussão geral no agravo interposto, o Min. Relator afirma: “Tal questão não tem sido enfrentada de maneira uniforme pelas instâncias inferiores, principalmente nos juizados especiais. Além do alcance que a causa guarda em relação ao universo dos usuários da aviação civil, a incerteza a respeito traz reflexo gravoso à segurança jurídica que cumpre remediar, e, como tal, sua decisão definitiva transcenderá os limites subjetivos da causa, revestindo-se de repercussão geral, sobretudo porque ainda não a definiu a jurisprudência da Corte”. Esclareça-se que há um único voto vencido quanto à existência da repercussão geral. Trata-se do voto do Min. Marco Aurélio, o qual entendeu ser inadequado tratar do instituto da repercussão geral no âmbito do agravo de instrumento.

[15] É válido observar que a reparação integral, prevista pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 6.º, VI), encontra plena justificativa quando se trata de consumidor pessoa física, pois confirma, no plano infraconstitucional, a proteção constitucionalmente devotada à dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF/1988). Admite-se, contudo, que também a pessoa jurídica possa ser consumidora do serviço de transporte (cf. Calixto, Marcelo Junqueira. O princípio da vulnerabilidade do consumidor. In: Moraes, Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 315-356). Neste caso, parece perfeitamente possível a limitação da indenização, o que, aliás, encontra previsão no próprio Código de Defesa do Consumidor, art. 51, I, verbis: “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis”. Sobre o tema das cláusulas exonerativas ou limitativas da indenização, seja consentido remeter a Calixto, Marcelo Junqueira. A culpa na responsabilidade civil: estrutura e função. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, em especial p. 327-358.

[16] Naquela ocasião foi afirmado: “Deve, pois, ser reconhecida como plenamente aplicável, ao menos em relação ao usuário do serviço, toda a sistemática da responsabilidade civil por fato do serviço prevista no Código de Defesa do Consumidor. Mas não só em relação a este. Em verdade, também em relação ao não usuário poderá ser invocada a sistemática traçada pelo Código de Defesa do Consumidor, e isto por mais de uma razão. A primeira tem sede constitucional e poderia ter sido admitida pelo próprio STF no julgado que ora se analisa [RE 262.651/SP]. De fato, basta observar os termos empregados pelo legislador constituinte ao prever, especificamente, a concessão e permissão de serviços públicos (art. 175) e ao disciplinar a responsabilidade civil que eventualmente deverá recair sobre os concessionários e permissionários deste mesmo serviço (art. 37, § 6.º). Se naquele dispositivo adotou-se a expressão usuários, neste, ao contrário, preferiu-se o termo terceiros, sem dúvida, de alcance mais amplo. Assim, razão assiste àqueles que afirmam a impossibilidade de o intérprete fazer a distinção que o próprio legislador não fez” (Calixto, Marcelo Junqueira. Ainda o conceito de consumidor… cit., p. 375; original grifado).

Recorde-se o disposto no art. 37, § 6.º, da CF/1988: “Art. 37. (…) § 6.º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

[17] Afirma o art. 17 do CDC: “Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento”. A seção referida é a relativa à “responsabilidade pelo fato do produto e do serviço”.

Já o art. 25 da Lei 8.987/1995, que “dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no artigo 175 da Constituição Federal”, afirma: “Art. 25. Incumbe à concessionária a execução do serviço concedido, cabendo-lhe responder por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros, sem que a fiscalização exercida pelo órgão competente exclua ou atenue essa responsabilidade”.

Entre os julgados pode ser destacada a decisão proferida pelo STJ no REsp 540.235/SP (3.ª T., j. 07.02.2006, rel. Min. Castro Filho, DJ 06.03.2006). Na ocasião, entendeu-se configurar uma relação de consumo aquela mantida entre uma empresa de táxi aéreo e uma instituição financeira que contrata o serviço de transporte de malotes. Ocorre que um avião da primeira, quando prestava referido serviço, caiu sobre uma residência, destruindo-a parcialmente e causando danos físicos e psicológicos ao morador, autor da ação. Afirmou-se que este é um consumidor equiparado, na forma do art. 17 do CDC, e admitiu-se a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6.º, VIII, do mesmo diploma.

[18] Eis a ementa do julgado: “Constitucional. Responsabilidade do Estado. Art. 37, § 6.º, da CF/1988. Pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público. Concessionário ou permissionário do serviço de transporte coletivo. Responsabilidade objetiva em relação a terceiros não usuários do serviço. Recurso desprovido. I – A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6.º, da CF/1988. II – A inequívoca presença do nexo de causalidade entre o ato administrativo e o dano causado a terceiro não usuário do serviço público, é condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado. III – Recurso extraordinário desprovido”.

[19] A repercussão geral foi reconhecida nos seguintes termos: “Constitucional. Responsabilidade objetiva. Art. 37, § 6.º, da CF/1988. Pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público em relação a terceiros não usuários do serviço. Repercussão geral reconhecida”. Esta decisão foi proferida pelo Tribunal Pleno em 23.10.2008 e publicada no DJ em 21.11.2008. Ao defender a existência de repercussão geral, o Min. Relator afirmou: “Entendo que a questão oferece repercussão geral quanto ao aspecto jurídico e econômico, porquanto o seu julgamento definirá se a responsabilidade objetiva, prevista no art. 37, § 6.º, da Constituição, também é aplicável aos casos de responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público em relação aos terceiros não usuários do serviço. Essa definição é de grande relevância tanto para as empresas quanto para os Tribunais do país, pois, a depender do resultado, pode alterar sobremaneira, em casos semelhantes, a ótica sob a qual o conjunto probatório deverá ser analisado, inclusive quanto ao ônus da prova”.

[20] Esta impossibilidade é corretamente apontada por Gomes, Rogério Zuel. A responsabilidade civil do Estado e o atual posicionamento do STF. Alternativa viável: incidência do art. 17 do CDC. RDC 72/161-194. São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2009.

[21] Afirma o art. 927 do CC/2002: “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

[22] Sobre o alcance do disposto no art. 927, parágrafo único, do CC/2002, pode ser consultado o estudo de Moraes, Maria Celina Bodin de. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. RT 854/11-37. São Paulo: Ed. RT, dez. 2006.

Sobre as possibilidades interpretativas do art. 17 do CDC seja consentido remeter a Calixto, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, em especial p. 44-55.


Informações Sobre o Autor

Marcelo Junqueira Calixto

Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto do Departamento de Direito da PUC-Rio. Professor dos cursos de Pós-Graduação da PUC-Rio, FGV, UERJ e UCAM. Advogado. Conferencista da EMERJ e da ESAP. Advogado.


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