Reza a Constituição Federal, em seu art. 37, § 6o, que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Nosso ordenamento jurídico constitucional consagrou a adoção da teoria do risco administrativo. Não obstante, há precedentes do Supremo Tribunal Federal, no sentido de adotar a teoria da culpa administrativa para responsabilizar a Administração Pública e seus agentes por suas omissões, ou, mais especificamente, pelas chamadas “faltas do serviço” (RE 172.025/RJ, Relator Ministro Ilmar Galvão, DJ de 19/12/1996; RE 130.764/PR, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 143/270; RE 369820/RS, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ de 27/02/2004).
A consagração constitucional da teoria do risco administrativo, da responsabilidade civil objetiva do Estado ou, em termos mais usuais, da “responsabilidade sem culpa” da Administração Pública e dos seus agentes, conduz, por vezes, a açodadas e absolutamente equivocadas conclusões, atribuindo-se ao Estado e, por extensão, aos delegados a responsabilização indiscriminada por todo e qualquer ato perpetrado no exercício das suas atribuições constitucionais e legais. Esses equívocos são, em grande parte, motivados pelo desconhecimento dos elementos inerentes à responsabilidade civil em gênero, que independem da espécie (responsabilidade dos particulares ou da Administração Pública).
Pode-se afirmar, assim, que, mesmo em se tratando de matéria afeta ao Direito Constitucional e ao Direito Administrativo, a responsabilidade civil da Administração Pública e dos seus agentes não pode prescindir da análise e do correto entendimento dos fundamentos de direito privado aplicáveis.
A exegese obtusa do art. 37, § 6o, da Constituição Federal, especialmente quando o debate circunscreve-se ao âmbito da atuação das concessionárias e permissionárias de serviços públicos constituídas sob a forma de pessoas jurídicas de direito privado, acarreta decisões judiciais, data venia, teratológicas. Em regra, imputa-se, assim, aos concessionários e permissionários a responsabilidade absoluta e indiscriminada por todos e quaisquer atos dos seus prepostos, por vezes sem que sequer se perquira a efetiva ilicitude da conduta. Quando as questões postas em juízo envolvem danos causados aos usuários dos serviços públicos prestados, com a suposta aplicação dos princípios e regras da Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, mais conhecida como “Código de Defesa do Consumidor”, os contornos são ainda mais grotescos.
Aliás, no tocante à aplicação do Código de Defesa do Consumidor a tais relações jurídicas, é válido efetuar algumas ponderações preliminares.
As concessionárias e permissionárias prestadoras de públicos regulam-se pelo disposto no art. 175 da Constituição Federal, estando sujeitas ao cumprimento das normas pertinentes, sejam elas gerais (Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que “dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências”, e Lei n° 9.074, de 7 de julho de 1995, que “estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos e dá outras providências”), ou específicas do serviço público prestado (Lei n° 9.427, de 26 de dezembro de 1996, que “institui a Agência Nacional de Energia Elétrica [ANEEL], disciplina o regime das concessões de serviços públicos e dá outras providências”, Lei n° 9.295, de 19 de julho de 1996, que “dispõe sobre os serviços de telecomunicações e sua organização, sobre o órgão regulador e dá outras providências” etc.).
Se, para melhor fundamentar os argumentos aqui erigidos, tomarmos como exemplo a ANEEL e seu respectivo arcabouço jurídico, temos que, entre outras atribuições, compete àquela agência reguladora implementar as políticas e diretrizes do Governo Federal para a exploração da energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo os atos regulamentares necessários ao cumprimento das normas estabelecidas pela Lei n° 9.074, de 1995 (art. 3o da Lei n° 9.427, de 1996), incumbindo-lhe, ainda, como longa manus do poder concedente, a regulamentação e fiscalização da prestação do serviço público concedido, (art. 29 da Lei nº 8.987, de 1995).
Neste contexto, a ANEEL editou a Resolução nº 456, de 29 de novembro de 2000, que prevê, nos arts. 90 e seguintes, que as concessionárias de energia elétrica poderão suspender o fornecimento do serviço público ao usuário, diante da ocorrência de determinadas situações, como a utilização de procedimentos irregulares, revenda ou fornecimento desautorizado de energia elétrica, atraso no pagamento da fatura relativa a prestação do serviço público de energia elétrica, atraso no pagamento de encargos e serviços vinculados ao fornecimento de energia elétrica, prestados mediante autorização do consumidor, e outras.
Ora, parece evidente que o regulamento baixado pela agência reguladora encontra-se, portanto, em consonância com a Lei nº 8.987, de 1995, que estabelece, em seu art. 6o, § 3o, não caracterizar descontinuidade do serviço público a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando motivada por inadimplemento do usuário (em sentido lato), considerado o interesse da coletividade (inciso II).
Não obstante todos os claros fundamentos jurídicos que embasam a atuação das concessionárias de energia elétrica, sendo-lhes permitido, portanto, suspender o fornecimento de energia aos usuários inadimplentes com sua obrigação basilar, que é pagar a tarifa correspondente, o volume de demandas judiciais que buscam a manutenção do fornecimento do serviço em tal situação é verdadeiramente avassalador, especialmente nos Juizados Especiais Cíveis. Não menos avassalador e assombroso é o volume de decisões que, em antecipação de tutela, ou já como sentença de mérito, acolhem esse tipo de pretensão, usualmente com o pretenso supedâneo do Código de Defesa do Consumidor, em particular do seu art. 22, que, na visão de vários magistrados, vedaria, em qualquer hipótese, a interrupção dos serviços públicos essenciais.
A tese, porém, não se sustenta, já que, em primeiro lugar, a Lei n° 8.987, de 1995 é posterior à Lei 8.078, de 1990, revestindo-se ambas da mesma hierarquia, sem que, sob este viés, seja possível atestar a prevalência de uma sobre a outra.
Ademais, o primeiro diploma regula a concessão de serviços públicos e as relações especiais entre, de um lado, as concessionárias e permissionárias, e, de outro lado, seus usuários, enquanto que o Código de Defesa do Consumidor trata das relações de consumo em geral, o que implica dizer que a Lei das Concessões é de natureza especial, além de ter sido editada posteriormente à Lei n° 8.078, de 1990, como ressaltado.
A análise mais acurada da questão, porém, revela que não existe qualquer conflito entre as aludidas normas, já que o Código de Defesa do Consumidor não garante a inadimplência, nem serve de salvo conduto para que o usuário, impunemente, permaneça usufruindo dos serviços públicos sem o pagamento da respectiva tarifa, ou, ainda, incorrendo em práticas fraudulentas e contrárias à lei e aos regulamentos aplicáveis.
O arcabouço jurídico, a lógica e o bom senso conduzem à necessidade de proteção da coletividade de usuários que observa o ordenamento jurídico e paga regular e pontualmente suas tarifas, já que, em última instância, sobre eles recairá o ônus do aumento dos valores, reflexo inevitável da inadimplência dos demais, valendo o argumento para todo o tipo de serviço público objeto de concessão ou permissão e remunerado mediante tarifa.
Parece que, felizmente, todos estes aspectos passaram a ser considerados pelo Poder Judiciário, que, recentemente, através do Superior Tribunal de Justiça, posicionou-se mais firmemente no sentido de reputar legal a interrupção dos serviços públicos em caso de inadimplência do usuário (RESP 363943/MG, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros).
Entendo, porém, que a questão sequer deveria resvalar na suposta relação de consumo, eis que, conforme já elucidado pela doutrina administrativista, o consumidor de produtos e serviços privados distingue-se do usuário de serviços públicos, o que, ressalto, conjugado à relação de especialidade da Lei das Concessões em relação ao Código de Defesa do Consumidor, torna inaplicáveis os princípios deste último aos serviços públicos prestados aos usuários.
Feitas tais considerações, volto ao cerne deste trabalho, que vem a ser a presunção de legitimidade dos atos praticados pelas concessionárias e permissionárias de serviços públicos.
Sabe-se que, ao delegar um serviço público, o Estado comina o respectivo munus ao particular, qual seja, o titular da delegação, para que este a desempenhe em substituição ao poder delegante, com todas as prerrogativas que são inerentes a este.
Como muito bem ressaltado pelo mestre Hely Lopes Meirelles, ao comentar a delegação mediante concessão, “o serviço, apesar de concedido, continua sendo público”[1], já que, a rigor, “serviço concedido é serviço do Poder Público, apenas executado por particular em razão da concessão”[2]. Tanto é assim que os concessionários de serviço público, equiparados que são às autoridades públicas, estão sujeitos ao controle dos seus atos pela via do mandado de segurança, consoante dispõe a Lei 1.553/51, em seu art., 1o, parágrafo 1o.
Portanto, para que seja concretizado o interesse público que norteia a atuação dentro da esfera da delegação, e também para que a mesma atinja integralmente seu fim eminentemente público, os atos do particular são dotados do atributo da presunção da legitimidade e da legalidade, tal como ocorre com o próprio Estado quando exerce diretamente suas funções constitucionais e legais. O delegado, como parece evidente, não obstante sua eventual natureza jurídica de direito privado, presta serviço público, e, em assim sendo, perpetra atos administrativos, quando estritamente relacionados ao objeto da concessão, permissão ou autorização.
Neste sentido, aliás, o entendimento de Hely Lopes Meirelles:
“Além das autoridades públicas propriamente ditas, podem os dirigentes de autarquias, os administradores de entidade paraestatais e os executores de serviços delegados praticar atos que, por sua afetação pública, se equiparam aos atos administrativos típicos, tornando-se passíveis de controle judicial por mandado de segurança e ação popular, tais sejam as lesões que venham a produzir.” [3]
Ora, se o delegado exerce atos tipicamente administrativos enquanto investido do serviço público objeto da delegação, tais atos gozam de todos os atributos inerentes à sua própria natureza administrativa, pois emanam, indiretamente, do Poder Público concedente, ainda que praticados em nome próprio pelo particular.
Pode-se afirmar, assim, que, na delegação dos serviços públicos, mais que a natureza jurídica do delegado (direito público ou privado), prepondera a natureza pública do bem ou serviço cominado, que conserva todos os caracteres que lhe são próprios, não se transmudando para privado pelo simples fato de ter sido objeto de delegação.
Os atos administrativos, como se sabem, distinguem-se dos atos meramente privados justamente em função desses atributos peculiares, que lhes emprestam características específicas e permitem ao Poder Público, e, conseqüentemente, ao particular delegado, condições peculiares de atuação. Esses atributos são a presunção de legitimidade, a imperatividade e a auto-executoriedade.
Tem-se, portanto, que os atos praticados pelo particular titular de serviço público delegado, no tocante ao objeto da concessão, permissão ou autorização, presumem-se legítimos e legais, para todos os efeitos, já que inerentes ao serviço público cominado, cabendo ao suposto prejudicado a prova em contrário, conforme se depreende da lição de Hely Lopes Meirelles:
“Os atos administrativos, qualquer seja sua categoria ou espécie, nascem com a presunção de legitimidade, independentemente da norma legal que a estabeleça. Essa presunção decorre do princípio da legalidade da Administração, que, nos Estados de Direito, informa toda a atuação governamental. Além disso, a presunção de legitimidade dos atos administrativos responde a exigências de ordem de celeridade e segurança das atividades do Poder Público, que não poderiam ficar na dependência da solução de impugnação dos administrados, quando à legitimidade de seus atos, para, só após, dar-lhes execução.
(…)
Outra conseqüência da presunção de legitimidade é a transferência do ônus da prova da invalidade do ato administrativo para quem o invoca. Cuide-se de argüição de nulidade do ato, por vício formal ou ideológico, a prova do defeito apontado ficará sempre a cargo do impugnante, e até a sua anulação o ato terá plena eficácia.”[4]
Percebe-se que, tendo o particular adquirido, através da delegação, a capacidade de exercer poderes de cunho estatal, e sendo seus atos dotados dessa legitimidade, estes, a princípio, jamais poderão ser inquinados de arbitrários, abusivos ou ilegais sem a demonstração cabal da violação do ordenamento jurídico. Ao contrário, todos os atos são dotados de legitimidade presumida, como é próprio dos atos administrativos, incumbindo àquele que se sentir prejudicado a prova do fato constitutivo do seu pretenso direito, como é regra no direito processual (Código de Processo Civil, art. 333, inciso I).
A questão avulta quando, em decorrência da prática de alguns desses atos tipicamente administrativos, e, portanto, no exercício regular de um direito reconhecido (Código Civil, art. 188, inciso I), o titular de delegação é alvo de demanda judicial proposta pelo usuário dos serviços públicos, tendo por objeto pedido de indenização por perdas e danos morais ou materiais, fato corriqueiro no dia-a-dia do nosso Judiciário.
Não obstante o disposto no art. 37, § 6o, da Constituição Federal, ab initio comentado, que, de fato, afasta a necessidade de prova da culpa da Administração Pública, não me parece que a prova de qualquer dos demais elementos inerentes à responsabilidade civil possa ser dispensada para a caracterização do dever de indenizar da Administração Pública e dos seus delegados, pois essa dispensa não se coaduna com a teoria do risco administrativo adotada pela Carta Magna.
É de razoável sabença que a responsabilidade civil em geral, prevista no art. 186 do vigente Código Civil, não pode prescindir, para fins de geração do dever de indenizar, da existência de todos os seus elementos próprios, quais sejam, o ato ilícito, o dano, a relação de causalidade e a culpa (omissão voluntária, negligência e/ou imprudência) ou o dolo, sendo o último elemento desinfluente na responsabilidade civil do Estado, como já visto.
O elemento subjetivo da conduta do agente, representado pela culpa ou pelo dolo, não tem, necessariamente, relação direta com o ato ilícito, que, a rigor, consiste na desobediência a um regulamento, a uma ordem ou a um princípio moral[5].
Tanto é assim que nosso Código Civil, em seu art. 187, preceitua, em adendo à regra geral do dispositivo que lhe antecede, que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, sem que, em qualquer momento, se cogite de culpa, como faz o art. 186.
Neste contexto, a conduta do agente é tida como ilícita, gerando o dever de indenizar, mesmo que absolutamente desprovida do elemento subjetivo. Há, portanto, ato ilícito sem culpa (ou dolo), o que implica dizer que se tratam de elementos distintos na composição do elenco de requisitos da responsabilidade civil.
Assim, em face da clara distinção feita pela nova lei civil, não vejo como confundir ato ilícito com culpa (ou dolo), ou estabelecer uma relação entre os conceitos, o que era relativamente corriqueiro na vigência do Código Civil de 1916. Mesmo quando a presença do elemento subjetivo puder ser dispensada, como ocorre na responsabilidade civil prevista no art. 37, § 6o, da Constituição Federal, não subsistirá o dever de indenizar se for constatada a ausência de qualquer dos outros elementos necessários à caracterização daquele dever, já que não se está diante da assunção do risco integral pela Administração Pública ou por seus agentes.[6]
Toda a fundamentação acima expendida tem conseqüências práticas evidentes. Isto porque, no exercício das suas atribuições legais ou regulamentares (ou seja, no exercício regular de um direito reconhecido, previsto no art. 188, inciso I, do Código Civil como excludente de ilicitude), a Administração Pública e aqueles que, por delegação, prestam serviços públicos jamais incorrerão na obrigação de provar a legitimidade dos seus atos no desempenho daquele mister, eis que, sendo os atos tipicamente administrativos, revestem-se de legalidade presumida, cabendo à suposta vítima a prova em contrário.
Precisa ser entendido que a prova da ilicitude da conduta não se confunde, em absoluto, com a prova da culpa (ou do dolo), que, na responsabilização da Administração Pública, é dispensada por imperativo constitucional, como visto.
Da mesma forma, não será cabível a inversão do ônus probatório, já que incompatível com a presunção relativa em questão, e também porque o usuário de serviço público não é consumidor comum, tornando inaplicável, via de conseqüência, a regra do art. 6o, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor.
Tomando-se novamente como exemplo a prestação de serviços de energia elétrica pelos concessionários e permissionários, temos que os atos delegados pela Administração Pública e previstos em lei, regulamento ou ato/negócio jurídico, contam com todas as prerrogativas próprias dos atos administrativos. Não se pode, assim, reputar ilícitos, sem prova cabal a cargo do prejudicado, providências como a lavratura de Termos de Ocorrência de Irregularidade, autorizada pelo art. 72, inciso I, da Resolução ANEEL n° 456, de 2000, cujo conteúdo e forma em tudo se assemelha aos autos de infração das autoridades públicas em geral, e que, como expressão do poder de polícia estatal, gozam da presunção de legalidade e legitimidade no que concerne aos fatos ali declinados.
Igualmente, como ato administrativo presumivelmente legítimo e respaldado em dispositivos legais e regulamentares (exercício regular de um direito reconhecido), a suspensão do fornecimento de energia elétrica fundada em atos fraudulentos, revenda ou fornecimento de energia sem autorização federal, ligação clandestina ou religação à revelia, deficiência técnica das instalações e, principalmente, inadimplência do usuário não pode gerar, por si só, o dever de indenizar, cabendo ao prejudicado a demonstração da ilicitude da conduta do agente administrativo, bem como a prova de todos os demais elementos indispensáveis à caracterização da responsabilidade civil, que, embora de natureza objetiva por força da Constituição Federal, não pode ser confundida com a responsabilidade integral da Administração Pública e dos agentes prestadores de serviços públicos.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Silveira Clemente
Procurador Federal lotado na Comissão de Valores Mobiliários