Resumo: O presente artigo constitui o trabalho final de conclusão de curso apresentado como requisito para obtenção do certificado de Pós-graduação em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. O foco deste trabalho repousa sobre a análise da doutrina e do posicionamento adotado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF no Caso Marcopolo, através dos quais se buscou delinear alguns elementos de suma importância para caracterização da substância e do propósito negocial e, consequentemente, para configuração de um planejamento tributário lícito e legítimo. O caso gerador objeto do presente estudo foi baseado no famoso “Caso Marcopolo”, julgado no final de 2011 pelo CARF, tendo como principal tema a identificação de elementos legitimadores do planejamento fiscal internacional, notadamente em casos de vinculação intragrupo ou entre partes relacionadas[1].
Palavras-chave: planejamento, tributário, internacional, intragrupo, Marcopolo
Abstract: This article is the final work presented as a requirement for obtaining the Post Graduation certificate in Tax Law at Fundação Getúlio Vargas – FGV. The focus of this work rests on the analysis of the doctrine and the position adopted by “Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF” in the leading case Marcopolo, aiming at seeking and understanding some elements of particular relevance for the characterization of the substance and business purpose and consequently to the configuration of a lawful and legitimate tax planning. The main study object was based on the famous leading case named "Marcopolo ", judged in late 2011 by CARF. The primary goal of this work is to identify legitimazing elements of international tax planning, especially in cases of intragroup or linking between related parties.
Keywords: tax planning, tax, internacional, intragroup, Marcopolo
Sumário: Introdução. 1. Caso gerador. 2. A questão da substância e do propósito negocial no planejamento fiscal. 2.1. Visão geral: a prevalência da substância sobre a forma. 2.2. O propósito negocial no contexto do direito tributário constitucionalizado. 2.3. Breves aspectos sobre a elisão fiscal internacional. 3. A substância e o propósito negocial na jurisprudência administrativa especializada. 3.1. Breves aspectos sobre a elisão fiscal internacional. 3.2. Julgamento do Caso Marcopolo pelo CARF. Conclusão. Bibliografia.
Introdução
Com base em pesquisas doutrinárias e jurisprudenciais no âmbito do CARF, foram delineados elementos necessários à caracterização da substância e do propósito negocial e, consequentemente, à configuração de um planejamento tributário lícito e legítimo, notadamente em casos de vinculação intragrupo ou entre partes relacionadas.
Para tanto, buscou-se analisar e contrastar os argumentos utilizados nos Acórdãos n° 105-11.084 proferido pelo Primeiro Conselho de Contribuintes e nº 1402-00.752, proferido no bojo do processo nº 11020.004863/200719, pela 4ª Câmara da Primeira Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.
1. CASO GERADOR
O dois casos geradores utilizados no presente trabalho referem-se adois casos reais, conhecidos pelo termo “Caso Marcopolo”. O primeiro deles foi julgado em 2008 pelo antigo Conselho de Contribuintes. O segundo foi julgado em 2011 pelo atual Conselho Administrativo de Recusros Fiscais, que o sucedeu.
Ambos os casos dizem respeito a operações realizadas por trading companies no âmbito do cenário internacioal, e possuem o mesmo cenário fático: uma empresa brasileira “A”, fabricante de um determinado produto industrial (carrocerias de ônibus), realizava vendas desses produtos para as sociedades “B” e “C” (trading companies), por ela controladas e domiciliadas estrategicamente em países de tributação favorecida.
As empresas controladas “B” e “C” eram domiciliadas, respectivamente, nas Ilhas Virgens Britânicas e no Uruguai. Por sua vez, ambas as empresas intermediavam negociações e revendiam os produtos industriais adquiridos da empresa brasileira “A” para clientes no exterior, os quais eram os importadores finais do bem[2].
Nesta operação, a mercadoria (carroceria) não chegava a ser fisicamente transferida às controladas. De fato, a empresa brasileira “A”, por conta e ordem das suas controladas – que, em tese, adquiriram os produtos industriais –, os remetia diretamente aos importadores finais, mediante exportação por conta e ordem.
Contudo, os custos de venda e de assistência técnica eram suportados pelas tradings “B” e “C”, as quais detinham legitimidade, inclusive, para realizar a cobrança em caso de inadimplemento.
A operação pode ser sintetizada pelo seguinte quadro esquemático, elaborado pelo Conselheiro Moisés Giacomelli Nunes da Silva, utilizando os nomes reais das empresas envolvidas[3]:
De um lado, o Fisco alega que, na verdade, o importador final negociava diretamente com a empresa brasileira Marcopolo S.A., de modo que a utilização das tradings MIC e ILMOT pela Marcopolo como intermediadoras da operação ocorria apenas após a efetiva concretização da negociação.
Vale dizer: na visão do Fisco, as empresas MIC e ILMOT funcionavam como verdadeiras Centrais de Refaturamento[4], que só eram utilizadas pela Marcopolo com o intuito de subfaturar os preços praticados e mascarar formalmente negócios que, na essência, correspondiam a operações diretas entre a Marcopolo S.A. e seus importadores finais. Ou seja, simulava-se a participação das Centrais de Refaturamento na operação de exportação, de forma que as tradings MIC e ILMOT aparentassem estar adquirindo um produto da Marcopolo para revendê-lo para importador final.
Assim, segundo a Receita, o contribuinte teria incorrido em omissão de receita a partir da realização de um planejamento tributário ilícito, através de simulação por interposta pessoa.
De outro lado, o contribuinte se defende, alegando que a simples domiciliação de tradings em países de tributação favorecida não revela, por si só, indicativo de simulação ou de planejamento tributário ilícito. Tal opção teria sido adotada desde a década de 1990 como estratégia de expansão comercial e internacionalização do Grupo.
Ademais, segundo a Marcopolo, teria havido a efetiva participação e intermediação das tradings MIC e ILMOT nas operações de exportação, o que desqualificaria a alegação do Fisco de simulação. Da mesma forma, descaracterizada restaria a alegação de omissão de receita, haja vista que os valores constantes das notas fiscais emitidas nas operações de exportação para as tradings correspondiam aos preços efetivamente praticados, tendo sido observadas tanto a sistemática do preço de transferência quanto o método da equivalência patrimonial.
Feito este breve sumário do caso gerador, a proposta do presente trabalho é de analisar os posicionamentos adotados em ambos os julgamentos, ajudando a evidenciar e a realçar, na prática, como a temática da substância e do propósito negocial tem sido tradada pelo principal tribunal administrativo especializado em direito tributário do país.
2. A QUESTÃO DA SUBSTÂNCIA E DO PROPÓSITO NEGOCIAL NO PLANEJAMENTO FISCAL
2.1 Visão geral: a prevalência da substância sobre a forma
Apesar de não encontrar guarida expressa no direito positivo e na jurisprudência nacionais, a expressão “substância da pessoa jurídica” consagrou-se na prática internacional, notadamente como uma manifestação da doutrina da prevalência da substância sobre a forma – tradicionalmente conhecida nos países anglo-saxônicos como substance over form doctrine[5].
Na lição de Alberto Xavier[6], “substância é conceito que exprime a relação de adequação da estrutura da empresa às funções que constituem seu objeto social”, devendo ser analisada caso a caso, e não de forma genérica. Sobre o assunto, o professor ensina:
“É evidente que os meios humanos e materiais adequados ao exercício, por uma pessoa jurídica, de uma função de pura holding não são comparáveis aos necessários ao exercício de uma atividade industrial: enquanto a holding é um puro centro abstrato de imputação de direitos, a atividade industrial requer um estabelecimento, isto é, um complexo de pessoas e bens organizado para o exercício da empresa (art. 1142 do Código Civil), que é a atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços (art. 966 do Código Civil).”
Nesse sentido, o Fisco tem se mostrado bastante eficiente na verificação in casu de utilização, pelos contribuintes, de uma estrutura jurídica – forma – efetivamente atrelada a uma realidade concreta – substância.
Do contrário, caso seja constatada na estrutura jurídica utilizada pelo contribuinte um falseamento da realidade, com prevalência da forma em detrimento da substância, restará caracterizada simulação relativa por interposição fictícia de pessoa, cuja prova constitui ônus do Fisco. Assim, uma vez comprovada a ausência de substância, poderá o Fisco – representando o Estado como terceiro prejudicado pelos reflexos externos produzidos pelas relações jurídicas privadas[7] – promover a desconsideração da entidade interposta, utilizando como fundamento o inciso I, do § 1º do artigo 167 do Código Civil[8].
A doutrina costuma citar o caso Cadbury Schweppes como paradigma moderno da substance over form doctrine. Na ocasião, o Tribunal de Justiça da União Europeia garantiu ao Grupo Caldbury que duas de suas subsidiárias instaladas na Irlanda se beneficiassem de regime fiscal mais favorável lá existente, sob pena de se violar o princípio da isonomia e a liberdade de estabelecimento[9].
Para o Tribunal, tal liberdade só cessaria onde houvesse a ocorrência de wholly artificial arrangement, expressão que tem sido desenvolvida em vários países membros da União Europeia como significado de genuína existência de atividade econômica exercida através de um estabelecimento que efetivamente utilize recursos materiais e humanos[10].
Desta forma, a liberdade do contribuinte passa a ser condicionada e limitada pelo Direito Civil e Tributário constitucionalizados, notadamente em razão do princípio da boa-fé e da função social da propriedade. Assim, passa o contribuinte a ter que se utilizar dos institutos de direito privado de forma transparente e realística perante o Fisco – de acordo com os parâmetros impostos pela vedação expressa do abuso de direito e do abuso de formas previstos no Código Civil[11].
Com o intuito de desconsiderar planejamentos tributários que envolvam atos e negócios jurídicos adotados com exclusivo propósito de evitar a incidência tributária, o Fisco tem se utilizado – em conjugação com a doutrina da substância econômica – de outra doutrina igualmente salutar, qual seja, a doutrina do propósito negocial.
Esta última doutrina, conhecida como business purpose doctrine, é oriunda do direito norte-americano como resposta do Estado frente a um contexto de frequentes reestruturações societárias ocorridas nos Estados Unidos. Em suma, a doutrina do propósito negocial assevera que a mera concordância dos atos e negócios jurídicos com a letra fria da lei tributária é inapta a embasar uma economia tributária válida[12].
O seu principal fundamento também reside na necessidade de equivalência entre a formalidade e a realidade dos atos e negócios jurídicos, mas com um plus: a simples economia de tributos não legitima nem justifica, de per se, o planejamento tributário. Na verdade, o planejamento tributário, para ser válido e legítimo, deve encontrar suporte em razões fático-negociais oriundas da atividade econômica da empresa e do seu objeto social, que resultem em uma otimização ou aperfeiçoamento da prática empresarial.
Ambas as doutrinas tiveram como berço o leading case “Gregory v. Helvering”[13], julgado pela Suprema Corte norte-americana, decidido em 07.01.1935. Sobre o tema, Marcus Abraham, citando ensinamentos do doutrinador João Dácio Rolim[14], comenta que as doutrinas da substance over form e do business purpose foram “estendidas à Alemanha, Inglaterra, França e Itália, dentre outros países, em cada qual, com bases distintas, utilizando noções de abuso de direito e de formas, simulação e fraude à lei”.
Destarte, diante da conjugação de ambas as doutrinas, chega-se à conclusão de que a forma adotada pelo contribuinte em determinada operação não pode ser utilizada como camuflagem para ocultar o real objetivo, qual seja, a simples economia do tributo. Nesse caso, legitima-se a atuação do Fisco, que terá o ônus de provar a ausência de substância e/ou de propósito negocial, e buscará aplicar a lei elidida ao fato que efetivamente ocorreu (ocultado).
2.2 O propósito negocial no contexto do direito tributário constitucionalizado
A Constituição não se limita mais a organizar o Estado e a delimitar os direitos individuais – característica marcante do Estado Liberal. Antes, passa a ocupar o centro do ordenamento jurídico, expandindo com força normativa seus valores por todo o sistema jurídico. Essa eficácia expansiva dos postulados constitucionais ocasiona uma reformulação e uma reinterpretação dos institutos de todos os demais ramos infraconstitucionais do direito.
Assim, toda a ordem jurídica deve ser apreendida, compreendida e reinterpretada sob a lente da Constituição, realizando os valores nela consagrados. A esse fenômeno se dá o nome de filtragem constitucional ou, como é mais usual, constitucionalização do direito[15].
De acordo com o professor Luís Roberto Barroso[16], a ideia de constitucionalização do Direito “está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico […], passando a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional”.
Por esse prisma, não apenas a atividade tributária do Estado Fiscal é limitada pelos direitos fundamentais do contribuinte – eficácia vertical dos direitos fundamentais –, mas também a atividade de planejamento dos contribuintes passa a ser limitada pelos valores constitucionais irradiados por todo o sistema – eficácia horizontal dos direitos fundamentais[17].
Isto porque, com o fenômeno da constitucionalização, os direitos fundamentais passam a ser comandos destinados não apenas ao Estado, mas também a atores não-estatais envolvidos em relações privadas. Nesse sentido, Ingo Sarlet[18] ensina que “para além de vincularem todos os poderes públicos, os direitos fundamentais exercem sua eficácia vinculante também na esfera jurídico-privada, isto é, no âmbito das relações jurídicas entre particulares”.
Desta feita, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais ganha especial relevo sobre as relações jurídicas travadas entre particulares para elaboração dos planejamentos tributários dos contribuintes, os quais deverão observar entre si deveres fundamentais e legitimadores do planejamento realizado.
Nesse contexto, para ser oponível ao Fisco, não basta que o conjunto dos atos e negócios jurídicos perpetrados pelos particulares com o intuito de proporcionar economia de tributos seja lícito ou respeite as possibilidades e formas legais. É preciso o plus da legitimidade, a qual será alcançada principalmente com a efetiva adequação entre a estrutura jurídica utilizada – forma – e a realidade concreta – substância, bem como pela observância de princípios como a função social do contrato, a probidade e a boa-fé[19].
Vale dizer, as doutrinas da prevalência da substância sobre a forma bem como do propósito negocial possuem importante função legitimadora do planejamento tributário, o qual deve conformar-se às razões fático-negociais oriundas da atividade econômica da empresa e do seu objeto social.
Assim, da mesma forma que uma sociedade empresária não pode ter como seu objeto social a única e exclusiva função de economizar tributos, eventuais operações societárias fundamentadas nesse único objetivo carecem de substância e, como tal, poderão ser desconsideradas pelo Fisco em razão do descumprimento de princípios norteadores do sistema, tais como função social do contrato, probidade e boa-fé.
Sob esse prisma, o doutrinador Marcus Abraham[20] afirma que toda a estrutura do direito privado já revela, por si só, mecanismos antielisivos que funcionam tanto como uma norma geral antielisiva autônoma – se isoladamente considerados – quanto como uma norma geral antielisão sistematizada – se conjuntamente.
O ápice dessa sistemática de normas gerais antielisivas encontra-se no parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional – CTN, que autoriza a autoridade administrativa a desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária[21].
Dessa forma, o artigo 116, parágrafo único do CTN, bem como os princípios e institutos do Código Civil de 2002 – dentre os quais se incluem a função social da propriedade e dos contratos, a boa-fé objetiva, o abuso de direito e de formas, a fraude à lei, a simulação e a ausência de motivos negociais – passam a exercer típica função de norma geral antielisiva. Tal arcabouço civil-constitucional dota de fundamentos sólidos as teorias da falta de propósito negocial e da prevalência da substância sobre as formas.
2.3 Breves aspectos sobre a elisão fiscal internacional
A elisão fiscal internacional envolve um duplo pressuposto: (i) a existência de dois ou mais ordenamentos tributários, dos quais um ou mais se apresentam como mais favoráveis que o outro em uma dada situação concreta; e (ii) a faculdade de eleição pelo contribuinte da ordem tributária aplicável, de modo que sua escolha influencie no elemento de conexão traduzido num fato jurídico que arraste a aplicação do ordenamento mais favorável[22].
A elisão, no direito internacional, admite duas modalidades: subjetiva, através da utilização de um elemento de conexão subjetivo, como a residência ou o domicílio do contribuinte; ou objetiva, através da utilização de um elemento de conexão objetivo, como o local onde se situa a fonte de produção ou de pagamento de um rendimento (local de exercício da atividade)[23].
Importa observar, também, que a elisão fiscal internacional – na visão de Alberto Xavier[24] – não se confunde com as figuras da simulação, da fraude e do abuso de direito, verbis:
“Com a simulação, porque nesta há sempre uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada, enquanto na figura em causa os efeitos dos atos jurídicos correspondem precisamente à vontade real de quem os praticou; com a fraude, porque nesta há uma violação direta e frontal das normas jurídicas (falsas declarações, falso balanço, operações fictícias etc.); com o abuso de direito, por não estar em causa um direito subjetivo cujo exercício seja antissocial ou danoso, mas uma esfera de liberdade do particular na escolha dos meios oferecidos pelo direito para a realização dos seus interesses. Pode, porém, suceder que, para obtenção dos seus fins, as partes celebrem negócios jurídicos indiretos, ou seja, utilizem estruturas negociais típicas de direito interno ou estrangeiro para atingir fins que lhe são típicos.”
Especificamente sobre a simulação, adverte o autor que, nos comportamentos elisivos internacionais, não ocorre, como regra, a figura da simulação, uma vez que não costuma existir qualquer divergência entre a vontade real e a vontade declarada. Vale dizer, o que as partes pretendem é exatamente aquilo que ostensivamente realizam. Contudo, “o resultado que realmente pretendem redunda numa economia de imposto obtida por atos ou conjuntos de atos (step by step transactions), em si mesmo válidos, mas reputados ardilosos, engenhosos, oblíquos, indiretos ou abusivos”[25].
Nesse particular, o Fisco internacional costuma se valer da step transaction doctrine, não avaliando isoladamente os atos em si, mas os analisando como uma fase ou mera etapa de um negócio jurídico único, mais abrangente e complexo, cuja unidade de propósito seria exclusivamente a economia de tributos. Desta forma, ainda que os atos e negócios jurídicos individualmente considerados possam receber um tratamento tributário menos oneroso, o Fisco se atém ao seu resultado final, considerando-os em conjunto e a eles atribuindo a mesma carga tributária que seria aplicável caso fossem praticados como um único negócio jurídico – uma vez que todos eles visam o mesmo objetivo finalístico[26].
É exatamente no tema da elisão fiscal internacional que se insere a questão da manipulação artificial dos elementos de conexão pelos contribuintes e, em contrapartida, a reação dos países que seriam competentes para tributar uma dada situação caso o planejamento tributário não houvesse se utilizado do artifício de manipular os elementos de conexão. Essa reação se dá, em regra, de duas formas: pela intensa cooperação entre os Estados e sua recíproca assistência administrativa internacional em matéria tributária[27]; e pela utilização das chamadas cláusulas especiais antielisivas, em que a conduta que se pretende evitar é tipificada de modo expresso, tanto nas leis internas, quanto nos tratados internacionais[28].
No que toca às cláusulas especiais antielisivas presentes no direito interno, Alberto Xavier[29] aduz, verbis:
“São exemplos, no Direito interno, as que, pela técnica das presunções ou ficções, consideram alguém como sendo ainda residente num país quando já transferiu o seu domicílio para um território de baixa tributação (“responsabilidade fiscal alargada” para combater um “abuso de domicílio”); as que determinam a inversão do ônus da prova quanto à existência e razoabilidade de despesas feitas em favor de residentes em paraísos fiscais; as que determinam a desconsideração da personalidade jurídica ou a transparência fiscal internacional de sociedades-base domiciliadas em paraísos fiscais, como forma de prevenir o diferimento da tributação; as que consagram presunções legais em matéria de subcapitalização ou de preços de transferência, a fim de evitar a criação artificial de despesas financeiras ou a manipulação também artificial de preços entre pessoas que entre si mantêm relações especiais de influência.”
Em relação às cláusulas especiais antielisivas presentes nos tratados internacionais, o autor[30] prossegue:
“Também nos dedicamos ao estudo de normas convencionais que têm marcado caráter antielisivo, destinadas a prevenir o chamado “abuso” ou “uso impróprio dos tratados”, de que constituem exemplos as cláusulas tendentes a cercear a prática do treaty shopping, restringindo os requisitos de aplicação dos tratados apenas a certas categorias de residentes num certo país (cláusulas do beneficiário efetivo, cláusulas de exclusão, cláusulas de limitação de benefícios etc.) ou contrariando as práticas do chamado rule shopping, pela recusa de aplicação do tratado a certos tipos de rendimentos quando a criação ou transmissão dos direitos a eles relativos obedeça ao propósito exclusivo de se beneficiar do regime convencional mais favorável.”
Outra questão igualmente importante é a que diz respeito ao aparente conflito que pode existir entre as normas gerais antielisivas internas e os tratados internacionais contra a dupla tributação.
Para Xavier[31], a norma antielisiva envolve uma questão prévia de direito interno, qual seja, aferir se o ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte é ou não eficaz perante a Administração Tributária. Tal aferição é logicamente antecedente à subsunção do ato ou negócio ao tratado. Assim, se determinado ato – antes qualificado e subsumido em disposição do tratado – vier a ser declarado inoponível ao Fisco, este deverá requalificá-lo diante do tratado. Nesse caso, a inaplicação do tratado não ocorrerá de modo direto, mas consequencial. Portanto, por esse prisma, as normas gerais antielisivas internas não afetariam os tratados, tendo em vista que a aplicação ou inaplicação destes pressupõe, respectivamente, a caracterização ou descaracterização de existência, validade e eficácia dos atos e negócios jurídicos.
Tema correlato diz respeito à possibilidade de os tratados contra a dupla tributação estabelecerem cláusula geral que autorize os Estados contratantes a recusar a sua aplicação quando houver manipulação artificial dos elementos de conexão pelos contribuintes – especialmente nos casos em que a conduta não esteja expressamente tipificada em cláusula convencional nem venha a ser declarada ineficaz por norma interna antielisiva.
Nesses casos, para alguns autores[32], haveria abuso do próprio tratado e não da lei interna, e o principal fundamento que legitimaria a desconsideração das operações artificiais – cujo objetivo é atrair o regime mais favorável do tratado – residiria, segundo esses autores, no próprio objeto e propósito dos tratados, bem como na obrigação de interpretá-los de boa-fé, conforme determinam os arts. 26 e 31 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados[33]. Especificamente nesses casos, a inaplicabilidade dos tratados ocorreria de modo direto e imediato.
Não obstante, Xavier[34] discorda desse entendimento doutrinário, e não admite a existência, na atual fase do Direito Internacional Público, de cláusulas gerais antielisivas implícitas nos tratados contra a dupla tributação. O autor questiona, inclusive, a utilização da cláusula de boa-fé prevista na Convenção de Viena como cláusula geral antielisiva, taxando-a de inconstitucional, verbis:
“Cremos, porém, que é ir longe demais pretender a existência de uma cláusula geral antielisiva embutida implicitamente em todos os tratados contra a dupla tributação e que pudesse conduzir à recusa da sua aplicação por um Estado, mesmo na ausência de normas especiais antielisivas, pela invocação de um motivo exclusivo ou preponderante de economia de imposto pelos particulares, motivo esse – note-se – que não conduziu à aplicação de cláusula geral antiabuso de Direito interno, seja em razão de sua inexistência, seja em razão da ausência de pressupostos de sua aplicação.
Invoca-se, por vezes, a cláusula de boa-fé consagrada na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, seja no art. 26 – pacta sunt servanda – segundo a qual “cada tratado em vigor vincula ambas as partes e deve ser cumprido por eles de boa-fé” – seja ainda no art. 31 – “um tratado deve ser interpretado de boa-fé, de acordo com o sentido usual que deve ser dado aos termos do tratado no seu contexto e à luz do seu objeto e propósito”.
A cláusula de boa-fé desempenha, pois, uma dupla função no Direito dos Tratados: uma, relativa ao modo de cumprimento do acordo pelas partes – os Estados contratantes; outra, relativa à interpretação dos próprios acordos.
Ora, a boa-fé na primeira das aludidas funções – pacta sunt servanda – nada tem a ver com o problema da elisão fiscal, que respeita às relações dos particulares com os Estados […] e não às relações dos Estados entre si. […] É que a boa-fé é um standard de comportamento entre pessoas vinculadas por obrigações recíprocas, padrão esse que decorre da celebração de um ato jurídico (o tratado) de que os cidadãos particulares não são partes, mas meros destinatários. A elisão respeita a um comportamento do particular perante o Estado, o qual é regido, em primeira linha, pelo Direito Constitucional desse Estado.
Também como regra de hermenêutica não vemos como seja possível invocar a boa-fé para efeitos de combate à elisão, pois este não é, definitivamente, nem o objeto nem o propósito dos tratados. O objeto e o propósito dos tratados é, isso sim, evitar a dupla tributação e também prevenir a evasão fiscal. […]
Seja, porém, como for, uma cláusula deste tipo, explícita ou implícita, é inconstitucional em face do ordenamento jurídico brasileiro.”
Como se pode perceber, Xavier homenageia os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação como fundamento para defender que a liberdade dos particulares remanesce protegida para manejarem, modelarem, localizarem ou deslocarem as conexões relevantes para efeitos tributários.
Contudo, deve-se ressaltar que essa liberdade dos contribuintes deve sempre estar atrelada à substância e à conveniência negocial, em respeito às doutrinas da prevalência da substância sobre a forma e do propósito negocial – que constituem testes legitimadores do planejamento fiscal lícito, para que determinados atos, negócios ou entidades não sejam constituídos para uso impróprio dos tratados.
3. A SUBSTÂNCIA E O PROPÓSITO NEGOCIAL NA JURISPRUDÊNCIA ADMINISTRATIVA ESPECIALIZADA
Dois casos reais – o primeiro julgado pelo antigo Conselho de Contribuintes e o segundo julgado pelo atual Conselho Administrativo de Recusros Fiscais, que o sucedeu – evidenciam e realçam, na prática, como a temática da substância e do propósito negocial tem sido tradada pelo principal tribunal administrativo especializado em direito tributário do país. Passamos, agora, à análise de ambos.
3.1 Julgamento do Caso Marcopolo pelo Conselho de Contribuintes
O primeiro caso concreto – que deu origem ao famoso e conhecido termo “Caso Marcopolo” – foi analisado pela 5ª Câmara do então Primeiro Conselho de Contribuintes, em junho de 2008, tendo como pano de fundo operações realizadas nos anos de 1999 e 2000 por tradings no âmbito do comércio internacional[35].
O cenário era o seguinte: uma empresa brasileira “A”, fabricante de um determinado produto industrial (carrocerias de ônibus), realizava vendas desses produtos para as sociedades “B” e “C” (trading companies), por ela controladas e domiciliadas estrategicamente em países de tributação favorecida. As empresas controladas “B” e “C” eram domiciliadas, respectivamente, nas Ilhas Virgens Britânicas e no Uruguai. Por sua vez, ambas as empresas intermediavam negociações e revendiam os produtos industriais adquiridos da empresa brasileira “A” para clientes no exterior, os quais eram os importadores finais do bem[36].
Importante frisar que, na operação, a mercadoria (carroceria) não chegava a ser fisicamente transferida às controladas. Na verdade, a empresa brasileira “A”, por conta e ordem das suas controladas – que, em tese, adquiriram os produtos industriais –, os remetia diretamente aos importadores finais, mediante exportação por conta e ordem.
Atento à operação, o Fisco alegou simulação por interposição fictícia de terceiras pessoas, ou seja, a defesa da Receita Federal baseou-se no argumento de que as vendas realizadas no exterior pelas empresas controladas “B” e “C” eram operações de fachada – dotadas de forma, mas sem qualquer substância – que visavam unicamente encobrir vendas diretas da empresa brasileira “A” aos importadores finais no exterior.
Essas vendas simuladas, na alegação do Fisco, teriam sido realizadas com subfaturamento, o que caracterizaria flagrante omissão de receitas e consequente redução da carga tributária perante o Fisco brasileiro.
A alegada redução de carga tributária pode ser ilustrada pelo seguinte exemplo: suponha-se que a mercadoria seja exportada pela empresa “A” para a controlada no exterior “B” por R$ 100 mil. Esta, posteriormente, revende o mesmo produto ao importador final por R$ 115 mil. Tal operação impede que a diferença – no caso, R$ 15 mil – seja tributada no Brasil. De acordo com a Receita Federal, o contribuinte teria se utilizado de um artifício formal cujo único objetivo era reduzir o valor de exportações feitas, na realidade, diretamente do Brasil. Vejamos a ilustração utilizada pelo Fisco[37]:
A alegação do Fisco de simulação por interposta pessoa foi pautada por indícios materiais, muito bem sintetizados por Alberto Xavier[38], a quem citamos:
“(i) O fato de as empresas intermediárias serem sociedades off-shore localizadas em paraísos fiscais, onde é corrente a prática das “centrais de refaturamento” (reinvoicing centers);
(ii) Tais sociedades intermediárias não terem instalações próprias, corpo operacional efetivo, funcionando em escritórios de prestadores de serviços;
(iii) Os serviços de assistência técnica aos clientes serem efetivamente fornecidos pela empresa controladora brasileira;
(iv) Inexistência de contratos escritos de venda formalizados entre a empresa brasileira e as empresas estrangeiras;
(v) As mercadorias serem objeto de remessa física direta para os importadores finais, sem transitar pelas intermediárias;
(vi) Os documentos das empresas controladas serem emitidos no Brasil e oriundos de funcionários da empresa brasileira, mandatários das “intermediárias”, que não teriam recebido remunerações destas, mas somente da empresa brasileira.”
Diante da constatação de indícios de ausência de substância e propósito negocial, a 5ª Câmara do então Primeiro Conselho de Contribuintes proferiu o Acórdão n° 105-11.084, cuja ementa se reproduz:
“EXPORTAÇÕES PARA PESSOAS VINCULADAS – INEXISTÊNCIA. SIMULAÇÃO – As declarações de vontade de mera aparência, reveladoras da prática de ato simulado, uma vez afastadas, fazem emergir os atos que se buscou dissimular. No caso vertente, em que a contribuinte construiu de forma artificiosa operações de exportação para empresas sediadas em países que adotam tratamento fiscal favorecido, o abandono da intermediação inexistente impõe a tributação das receitas omitidas, resultante da diferença entre o montante efetivamente pago pelo destinatário final e o apropriado contabilmente pela fornecedora do produto.”
Como se pode perceber, na ocasião, o então Conselho de Contribuintes encampou a tese da Fazenda, mantendo a autuação perpetrada sob a conclusão de que a empresa brasileira Marcopolo S.A. (no exemplo, denominada empresa “A”) não conseguiu comprovar a substância e o propósito negocial na participação das tradings “B” e “C” nas operações de compra e venda de carrocerias.
Na visão do Tribunal, não teria ocorrido no caso uma efetiva adequação e correspondência entre a estrutura jurídica utilizada – forma – e a realidade concreta – substância. Assim, na ocasião, o Conselho de Contribuintes concluiu ter havido simulação por interposição fictícia de terceiras empresas, com prevalência da forma em detrimento da substância e consequente falseamento da realidade, consistente no acobertamento da venda direta da empresa brasileira para os seus clientes no exterior.
3.2 Julgamento do Caso Marcopolo pelo CARF
O segundo caso concreto – que constitui um desdobramento do primeiro “Caso Marcopolo” acima estudado – foi analisado recentemente pela 4ª Câmara da Primeira Seção do atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, em setembro de 2011, tendo como pano de fundo operações análogas às citadas no caso anterior, contudo realizadas em exercícios fiscais diversos, entre os anos de 2000 e 2008[39].
O cenário era o mesmo descrito anteriormente: a empresa brasileira Marcopolo S.A. efetuava exportações de carrocerias de ônibus para trading companies sediadas nas Ilhas Virgens Britânicas (Marcopolo International Corporation – MIC) e no Uruguai (Ilmot International Corporation – ILMOT), as quais, por sua vez, revendiam os produtos industriais adquiridos da empresa brasileira para clientes no exterior – os quais eram os importadores finais do bem. Relembre-se que as carrocerias não eram transferidas fisicamente às controladas, mas a própria Marcopolo S.A., por conta e ordem das suas controladas, as exportava e remetia diretamente aos importadores finais.
O Fisco, em novas autuações, continuou entendendo que a empresa Marcopolo S.A. utilizava as empresas controladas MIC e ILMOT para realizar vendas simuladas que, na realidade, corresponderiam a operações diretas entre a Marcopolo S/A e seus importadores finais. Segundo a Receita, essas operações eram realizadas com subfaturamento, caracterizando omissão de receitas e consequente redução da carga tributária do IRPJ, CSLL e IRRF devidos perante o Fisco brasileiro.
A defesa do contribuinte buscou desqualificar cada um dos argumentos da Receita, podendo ser sintetizada da seguinte forma[40]:
(i) Ao domiciliar as empresas MIC e ILMOT em países com tributação favorecida, o grupo Marcopolo fez uso legítimo do seu direito de escolher as localidades mais interessantes para a consecução de seus objetivos do ponto de vista da economia fiscal. Tal escolha, por si só, não revela indicativo de irregularidade ou simulação de operações de revenda;
(ii) Inocorrência de simulação, haja vista não haver desconformidade entre a intenção e a prática, coisa que não ocorreu no caso da recorrente, cuja intenção era operar por meio de suas subsidiárias e assim o fez, não sendo lícito ao Fisco fazer ingerência na forma de atuação das empresas;
(iii) Demonstração de que a constituição de MIC e ILMOT não teve como propósito gerar redução fiscal, mas sim implementar a expansão internacional do grupo Marcopolo desde a década de 90, garantindo condições favoráveis de logística, mecanismos financeiros ágeis e suportes técnicos e operacionais para as operações no exterior – o que comprova a existência de propósito negocial no modelo operacional adotado pelo grupo Marcopolo;
(iv) Comprovação da efetiva participação e intermediação das tradings na realização das operações, através de atividades de gestão comercial que prescindem de uma estrutura física complexa ou de utilização intensiva de mão-de-obra – o que comprova a existência de substância;
(v) Não se trata de planejamento tributário ilícito, visto que decorrem do modelo de internacionalização e exportação adotado, submetendo-se a todos os efeitos jurídicos e de fato decorrentes do modelo operacional, tais como preço de transferência de equivalência patrimonial;
(vi) Inocorrência de omissão de receita, pois os valores constantes das notas fiscais emitidas nas operações de exportação para as tradings correspondiam aos preços efetivamente praticados pelas partes, tendo o contribuinte observado as normas legais de controle de preços nas exportações (preços de transferências);
(vii) O Fisco, ao alegar omissão de receita, desconsiderou o fato de que os lucros das atividades das empresas MIC e ILMOT no exterior foram contabilizados no Brasil pela Marcopolo S.A. pelo método da equivalência patrimonial.
O CARF, em decisão minuciosa e paradigmática, entendeu, por unanimidade, que houve planejamento tributário lícito e legítimo, sem infringência à lei e sem a caracterização de simulação na operação. A decisão é considerada precedente importantíssimo para diversas empresas que atuam no comércio exterior, uma vez o Conselho deu uma guinada em sentido diametralmente oposto ao posicionamento do antigo Conselho de Contribuintes para caso análogo, em face da mesma empresa Marcopolo S.A..
De acordo com o conteúdo dos votos dos Conselheiros que examinaram a questão, pode se concluir que o CARF entendeu restarem comprovados a substância e o propósito negocial da operação, por ter envolvido efetivamente a existência de negócios reais e a necessidade estratégica de expansão internacional do grupo – o que caracteriza uma efetiva adequação entre a estrutura jurídica utilizada – forma – e a realidade concreta – substância.
Sobre o tema, essencial atentar para as razões de fato e de direito que fundamentaram os votos proferidos pelos Conselheiros e, consequentemente, acarretaram a mudança paradigmática de entendimento do especializado Tribunal.
O Conselheiro-Relator Antonio José Praga de Souza[41] convenceu-se de que a Marcopolo realizou um minucioso planejamento fiscal, tendo comprovado a existência formal e material de MIC e ILMOT, bem como a sua atuação concreta na intermediação das operações com os importadores finais.
O Conselheiro-Relator entendeu também que, ainda que tivesse ocorrido efetivo subfaturamento nos preços praticados pelas tradings – o que admitiu apenas para fins de raciocínio em tese –, a postura do Fisco de tratar tais valores como omissão de receita constitiu prática equivocada.
Segundo o relator, não haveria que se falar em omissão de receitas no caso, isto porque o que se questiona não é o preço de venda efetivamente praticado na operação por MIC e ILMOT. Na verdade, tendo em vista a tributação em bases mundiais, o que a lei brasileira impõe à Marcopolo, como controladora, é, isto sim: (i) a utilização do método da equivalência patrimonial para reconhecer e tributar os resultados positivos apurados pelas suas controladas, com base em demonstrativos contemporâneos ao encerramento do período-base da empresa nacional, com as adições, inclusões e compensações permitidas na lei; (ii) a observância da legislação de preços de transferência, notadamente a Lei nº. 9.430/96, que impõe a verificação se o preço praticado encontra respaldo nos critérios definidos pelos seus artigos 18 a 22.
De forma magistral, o tema é explicado pelo Conselheiro Alexandre Antonio Alkmim Teixeira[42], em sua declaração de voto-vencido quando do julgamento de caso análogo anterior pelo então Conselho de Contribuintes:
“As empresas MIC e ILMOT tiveram, ainda que parcialmente, seu lucro tributado no Brasil por força da residência da empresa controladora, ora Recorrente. De fato, sendo estas empresas subsidiárias integrais da empresa brasileira, a tributação de seus rendimentos se faz quando da disponibilização do lucro ou por meio da equivalência patrimonial. Assim, não pode a fiscalização, ao promover a desconsideração dos negócios realizados pelo contribuinte, deixar de considerar o reflexo que referidos rendimentos provocaram na contabilidade da empresa no curso dos anos. Isso porque essa desconsideração acaba provocando a dupla incidência do imposto de renda sobre o mesmo rendimento, situação absolutamente contrária à lei e à sistemática de funcionamento do tributo em questão.”
Desta forma, o Conselheiro-Relator conclui que – uma vez constatadas irrgularidades na apuração dos resultados das controladas MIC e ILMOT no exterior – a postura correta a ser adotada pelo Fisco não seria a de tratar os valores praticados pelas tradings como omissão de receita, mas sim ajustar o valor para fins de tributação na Marcopolo, observando o artigo 394 do RIR/99[43].
No mesmo sentido do relator, o Conselheiro Leonardo Henrique Magalhães de Oliveira[44] também entendeu que, independentemente de restar ou não configurado o subfaturamento, o correto seria apurar eventuais diferenças tributáveis em face da pratica abusiva de preços de transferências, à luz dos artigos 18, 19 e 24 da Lei nº 9.430/1996.
O Conselheiro Moisés Giacomelli Nunes da Silva[45], por sua vez, também entendeu não restar caracterizada omissão de receita, tendo em vista ter sido demonstrado que os valores constantes das notas fiscais emitidas nas operações de exportação para as empresas MIC e ILMOT refletiram preços efetivamente praticados pelas partes envolvidas. Assim, como não houve pagamento “por fora”, não há que se falar em omissão de receita, pois inexiste diferença de preço recebido e não contabilizado.
Ademais, Giacomelli assentiu que a operação foi praticada por meio de atos lícitos e devidamente registrados, constituindo prática normal de mercado, adotada por diversas empresas do setor de comércio exterior. Por essa razão, deve a operação ser tratada como planejamento tributário regular – notadamente porque o Fisco não logrou êxito em provar, ainda que de maneira mínima, a alegação de conluio, fraude ou simulação na operação entre as empresas Marcopolo, MIC e ILMOT.
O Conselheiro deixou claro, ainda, que a domiciliação das tradings MIC e ILMOT em países com tributação favorecida não constitui, por si só, planejamento tributário ilícito ou ilegítimo, desde que sejam observadas as regras que disciplinam a apuração dos tributos em transações internacionais, verbis[46]:
“No caso dos autos não estamos diante dos conhecidos “contratos relâmpagos” que se esvaem dias após a celebração, divorciando-se do negócio efetivamente praticado pelas partes. A situação está a revelar comportamento de contribuinte que ingressa no mercado externo optando por uma empresa, subsidiária ou não, para por meio desta, atingir o consumidor final.
Antes de analisar se as empresas situadas em países com tributação favorecida tinham ou não estrutura operacional para desempenharem o papel proposto, diante das inúmeras vezes repetidas nestes autos de que as empresas MIC e Ilmot estavam localizadas em paraísos fiscais, destaco que à luz do direito vigente não há nada de errado nisto, desde que se observem as regras que disciplinam a apuração dos tributos em transações realizadas com empresas situadas em países com tributação favorecida, denominados pela Fiscalização de “paraísos fiscais”.
O Direito, como ciência do razoável, não pode se prestar a interpretações ingênuas ou inconcebíveis. Uma empresa, cujo objetivo final é o lucro, se tiver condições de, por meio de subsidiárias ou não, operar a partir de país cuja tributação seja favorecida, ganhando maior competitividade e, consequentemente, maiores lucros, por evidente que não irá operar por meio de estabelecimento situado em local de maior tributação. Isso seria atentar contra a própria finalidade da empresa, qual seja, o lucro. […]
Em relação a este tema não é necessário ultrapassar as fronteiras dos nossos Estados para constatarmos que os contribuintes prestadores de serviços procuram fixar suas sedes em locais cuja alíquota do Imposto Sobre Serviços, de competência dos Municípios, seja menor. O mesmo raciocínio se aplica ao ICMS e ao IRPJ, só que em relação a este último estamos falando em bases universais da tributação.”
Pode-se concluir, por fim, que a comprovação da substância econômica e do propósito negocial nas operações realizadas entre a empresa Marcopolo S.A. e suas trading companies MIC e ILMOT representou aspecto decisivo para que o CARF entendesse pela caracterização de planejamento tributário lícito e legítimo, sem infringência à lei e sem a ocorrência de simulação.
Portanto, pode-se dizer que houve uma efetiva adequação entre a estrutura jurídica utilizada – forma – e a realidade concreta – substância, confirmada pela comprovação de que o Caso Marcopolo envolveu a existência e a prática de negócios materialmente reais, bem como refletiu a necessidade estratégica de expansão internacional do grupo.
CONCLUSÃO
Diante da análise da doutrina e do posicionamento adotado pelo CARF no Caso Marcopolo, pode-se delinear alguns elementos de suma importância para caracterização da substância e do propósito negocial e, consequentemente, para configuração de um planejamento tributário lícito e legítimo.
O primeiro desses elementos é o fator tempo. Sobre o assunto, Marco Aurélio Greco[47] aduz que o tempo que medeia cada uma das etapas em sequência de uma operação é considerada uma “operação preocupante”, que chama a atenção tanto do Fisco quanto do CARF.
O próprio voto do Conselheiro Moisés Giacomelli Nunes da Silva[48] – ao chamar a atenção para o fato de que o Caso Marcopolo não envolvia a prática de “contratos relâmpagos que se esvaem dias após a celebração, divorciando-se do negócio efetivamente praticado pelas partes” – ressalta como importante elemento aferidor da legitimidade do planejamento tributário a existência um lapso temporal razoável entre a prática dos negócios jurídicos, que devem estar sempre atrelados à realidade concreta.
Não obstante, deve-se atentar para o fato de que o tempo, por si só, não é indicativo de planejamento tributário ilícito ou ilegítimo. É, na verdade, um alerta, que deve ser analisado de acordo com as especificidades de cada caso concreto.
Isto porque um lapso temporal curto pode indicar não apenas unicidade de operação com intuito exclusivo de economizar tributo, mas pode também revelar uma oportunidade empresarial que exige agilidade e dinamicidade na realização do negócio jurídico, sendo o curso espaço de tempo justificado em função da relevância do negócio para o empreendimento. Por outro lado, um lapso temporal mais elástico pode refletir apenas uma aparência de legitimidade, escondendo o real propósito de apenas promover economia fiscal[49].
Outro elemento considerado como “operação preocupante” são as operações realizadas entre partes relacionadas ou coligadas, pois a existência de interdependência entre as partes envolvidas revela uma facilidade maior que a causa da operação seja unicamente a obtenção de um efeito tributário intragrupo, e não uma razão efetiva de mercado[50].
Como, num regime de liberdade contratual e de economia de mercado, não é fácil identificar se a vinculação intragrupo está sendo exercida de forma abusiva ou não, um importante método aferidor está em se perquirir se as cláusulas das operações entre partes relacionadas são as mesmas praticadas com terceiros. Isto porque, caso reste evidenciado favorecimento da parte relacionada, haverá um indicativo de ausência de neutralidade e, por via reflexa, maior probabilidade de haver abuso fiscal na operação[51].
Essa é exatamente uma das tensões que teve de ser superada pelo CARF no julgamento do Caso Marcopolo, uma vez que a empresa brasileira Marcopolo S.A. se utilizava das controladas MIC e ILMOT para intermediar operações de exportação.
Ademais, um terceiro elemento que chama a atenção do Fisco e pode influir significativamente nas decisões do CARF é o deslocamento da base tributável, vale dizer, a mudança da base tributária para outra pessoa jurídica que se encontra em regime tributário comparativamente mais vantajoso e benéfico – o que, dependendo das circunstâncias do caso concreto, pode vir a configurar fraude à lei tributária[52].
A questão é complexa, pois, em bases internacionais, o deslocamento da base tributável acarreta a erosão da arrecadação fiscal interna de um país em detrimento de outro, gerando conflitos que perpassam pela discussão da defesa da soberania nacional e do direito arrecadatório do país de origem[53].
Essa, aliás, foi outra tensão que teve de ser resolvida pelo CARF no julgamento do Caso Marcopolo, haja vista que as tradings MIC e ILMOT – controladas da Marcopolo S.A. – eram domiciliadas em países de tributação favorecida, respectivamente, nas Ilhas Virgens Britânicas e Uruguai.
Tal domiciliação, na visão do Fisco, revelava uma operação simulada, que deslocava parte da base tributável no Brasil para jurisdições internacionais, minorando a arrecadação fiscal interna. Contudo, como visto, o CARF rejeitou a tese fiscal, descaracterizando a ocorrência de omissão de receitas no caso concreto.
Assim, de acordo com os parâmetros utilizados pelo CARF no Caso Marcopolo, pode-se concluir, doutrinariamente que o planejamento tributário deve necessariamente observar critérios de ordem negativa e positiva, para que seja considerado lícito e legítimo.
Quanto aos critérios negativos, o planejamento deve preencher dois crivos: (i) o da legalidade e da licitude, de modo que a operação não venha a ferir norma jurídica nem cometer ilícito; (ii) o das patologias ou vícios dos negócios jurídicos, de modo que não configure simulação, abuso de direito, abuso de forma ou fraude à lei[54].
Quanto aos critérios positivos, que constituem a justificativa para a operação, o planejamento deve apresentar duas características: (i) a primeira, interna ao negócio jurídico, impõe que a operação possua motivo e finalidade predominantemente de outra natureza que não a tributária, de modo que a busca à economia fiscal seja legitimada pela existência prévia de substância e propósito negocial; (ii) o segundo, externo ao negócio jurídico, impõe que haja sintonia e adequação entre a operação e o planejamento estratégico da empresa, ligado ao seu objeto e atividade econômica que desempenha[55].
Portanto, uma vez alcançados esses parâmetros mínimos, há de ser respeitado o planejamento tributário realizado pelo contribuinte, não podendo o Fisco – a partir de um juízo preconcebido – reinterpretar e desconsiderar os fatos e negócios jurídicos sob a ótica arrecadatória.
Informações Sobre o Autor
Fernando Khoury Francisco Junior
Advogado de Centrais Elétricas Brasileiras S/A – ELETROBRAS, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV