Resumo: Este artigo propõe que o Estado tem sustentação na Teoria Funcionalista do Direito para incentivar a doação de órgãos após a morte cerebral do paciente através de uma norma permissiva que estabeleça uma retribuição, pelos planos de saúde do receptor, aos familiares do doador. A partir de Cesare Beccaria, onde se encontra a raiz do conceito das sanções premiais no direito, aborda a teoria funcionalista (Radcliffe-Brown) e sua repercussão no direito por meio de Norberto Bobbio, com a inserção do modal deôntico de permissão e o desenvolvimento da função promocional do ordenamento jurídico. Demonstra, com Clauss Roxin, que a imoralidade ou a reprovabilidade ética de um comportamento não podem legitimar uma proibição penal, se os pressupostos de convivência pacífica não forem lesionados. E conclui, com Niklas Luhmann e Tercio Sampaio Ferraz Jr., que os novos rumos da ciência jurídica tornam possível a inclusão em nosso ordenamento jurídico da permissão proposta.[1]
Palavras-chave: teoria funcionalista, direito promocional, doação de órgãos, planos de saúde, doador.
Abstract: This article proposes that the State has support in the functionalist theory to encourage organ donation after brain death of the patient by means of a permissive rule to establish a compensation, by the insurance companies of the receptor, to the donor’s family. From Cesare Beccaria, where the root of the concept of positive sanctions is, the article addresses the functionalist theory (Radcliffe-Brown) and its impact on law through Norberto Bobbio, with the insertion of the modal deontic permission and the development of the promotional function of law. It demonstrates, with Clauss Roxin, that immorality or failed ethical behavior can not justify a criminal prohibition, if the conditions for a peaceful coexistence are not injured. It concludes, with the teachings of Niklas Luhmann and Tercio Sampaio Ferraz Jr. that the new directions of legal science make it possible the inclusion in our legal system the permission hereby proposed.
Key words: functionalist theory, promotional law, organ donation, health insurance companies, donor.
Sumário: 1. Introdução. 2. A Teoria Funcionalista e o Direito. 2.1. Beccaria. 2.2. Radcliffe-Brown. 2.3. Norberto Bobbio. 2.3.1. Da estrutura à função. 2.3.2. A estrutura da norma. 2.3.3. As normas permissivas. 2.3.4. Direito promocional. 2.3.5. Enfoque funcionalista. 2.3.6. Novos rumos. 3. A teoria funcionalista no direito penal. 3.1. A ética, a dignidade do ser humano e o comércio de órgãos. 3.1.1. Na legislação. 3.1.2. A posição dos cientistas sociais do direito. 4. Conclusão. 5. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil possui hoje um dos maiores programas públicos de transplantes de órgãos e tecidos humanos do mundo. São 548 estabelecimentos de saúde autorizados a realizar transplantes em 25 Estados do país. Dados divulgados em setembro de 2011 pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT), do Ministério da Saúde, indicam que, em 2010, foram realizados no Brasil 21.040 transplantes de órgãos sólidos, tecidos e células. Um aumento de 65% desde 2003, quando foram feitos 12.722 transplantes no país. No primeiro semestre de 2011, o número de transplantes de órgãos cresceu 10,7% no Brasil em relação ao mesmo período de 2010. O número de doadores efetivos de órgãos também vem crescendo. O Ministério da Saúde projeta que, em 2011, sejam 2.144 – foram 1.896 em 2010 – o que representaria 11,1 doadores por milhão de pessoas (pmp) neste ano, comparados aos 9,9 doadores pmp no ano passado.
Segundo dados da ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), que são os mais recentes oficiais disponíveis, no primeiro semestre de 2011, 983 doadores tiveram seus órgãos transplantados, o que representa 10,3 doadores por milhão de pessoas. Os índices de doações dos Estados de Santa Catarina e de São Paulo são, respectivamente, de 17 pmp e 21 pmp, índices próximos aos de países altamente desenvolvidos no setor, como Espanha e Canadá. A cidade de São Paulo ultrapassou o índice médio de doações de órgão da Espanha, considerado o melhor do mundo. A capital registrou média de 39,4 doadores por milhão de habitantes em outubro de 2010 – o índice espanhol é de 35. Nos Estados Unidos, são 21,8 doadores pmp por ano.
Poderíamos, se este fosse o objetivo deste artigo, aprofundar o estudo da Teoria do Fato Social Total, de Marcel Mauss, em especial de sua obra Ensaio sobre o Dom e, possivelmente, encontraríamos as razões que levam os paulistanos e os catarinenses a exercerem mais o “dom não antagonista”, que é o de doar de forma solidária, conforme a concepção de Mauss. Por ora, no entanto, o nosso foco é o outro lado dos números, o das pessoas que estão nas filas de espera por um órgão, com risco de morte enquanto esperam.
Neste sentido, apesar dos aumentos no número de doadores, os dados do SNT mostravam que no Brasil, no ano de 2009, a fila de espera era de 63.866 pessoas, sendo que, deste total, os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro concentram quase um terço, 12.745 e 7.817 pessoas, respectivamente. Naquele período, os dias de espera por um transplante variavam de acordo com o órgão, podendo ser de 76 dias, em média, por um coração, e 837 dias, por um rim.
Constatamos assim que, embora os números brasileiros venham melhorando ano após ano, a situação dos que esperam nas filas ainda é dramática.
Examinemos o aspecto econômico dos dados. Segundo o Ministério da Saúde, cada transplante tem um valor diferente. Pela tabela publicada em agosto de 2010 no site da instituição, varia de Valor SUS – R$ 863,49 (transplante de córnea) a Valor SUS – R$ 71.602,25 (transplante alogênico de células-tronco hematopoéticas de sangue periférico – não aparentado). O SUS (Sistema Único de Saúde) financia integralmente o procedimento, desde os exames para possibilitar que os candidatos a transplantes estejam aptos a entrar nas listas de espera até a medicação contra a rejeição do órgão, cirurgias, internações e acompanhamento pós-transplante por toda a vida do paciente. Nos Estados Unidos, o paciente arca diretamente com o custo do transplante, ou por meio de planos de saúde ou, no caso dos muito pobres, por meio dos programas governamentais assistenciais, o Medicare e o Medicaid.
Por outro lado, no Brasil, os custos das internações necessárias durante o período em que o receptor espera por um órgão são cobertos pelos planos de saúde, sendo que apenas nos casos de pacientes que não têm convênio com planos particulares são financiados pelo SUS. Este aspecto interessa diretamente ao objetivo deste nosso artigo. Voltaremos a ele.
De acordo com o livro The U.S. Organ Procurement System, escrito pelos economistas David Kaserman e A. H. Barnett, existiam, em 2007, 80 mil americanos na lista de espera para o transplante de um órgão. Vinte deles morrem a cada dia como resultado direto da falta de órgãos. Por ano, esse número passa de sete mil.
Sue Rabbitt Roff, cientista social da Universidade de Dundee, na Escócia, em um artigo para a publicação online BMJ, tradicional revista médica britânica, alerta para a dificuldade crescente de conseguir doadores de rins no país. Segundo a pesquisadora, três pessoas morrem a cada dia na Grã-Bretanha, na lista de espera por um transplante de rim – o número de doações não acompanha a demanda por órgãos.
Na Alemanha, segundo Claus Roxin (2006:41), estão disponíveis menos de um quarto dos rins de que se precisa para fins de transplante. A consequência disso é que todo ano morrem milhares de pessoas prematuramente, por não poderem receber um rim.
No Brasil, como vimos, a fila de espera é de cerca de 63 mil pessoas (os números oficiais e divulgados pela mídia são divergentes). Somente no Estado de São Paulo, se considerarmos apenas a fila por órgãos e não por tecidos e células, na lista oficial dos que aguardavam por um coração, 40 pessoas (39,8% do total na fila) morreram em 2010 antes da cirurgia. Mais 357 pacientes (28,5%) morreram à espera de um fígado, 15 deles (16,9%) não resistiram na fila do pulmão e outras 798 pessoas (7,7%) que aguardavam por um rim sofreram até a morte.
O Ministério da Saúde apresentou, em setembro, a meta de chegar a 15 doadores efetivos por milhão de pessoas até 2015. A Espanha, referência no assunto, repetimos, registra 35 doadores por milhão. “Com capacitação e treinamento, a meta do ministério é dobrar o número absoluto de transplantes até o fim de 2015”, afirma uma reportagem no site da ABTO.
É evidente que o investimento em capacitação e treinamento pode aumentar a eficiência técnica e administrativa do sistema de transplantes, resultando na melhora dos números efetivos de transplantes e consequentemente na redução das filas de espera. Mas será que somente com esta medida econômica o número de doadores vai aumentar a ponto de fazer com que o número dos que morrem enquanto aguardam por um órgão se torne pelo menos aceitável? Acreditamos que é preciso mais.
Neste artigo, vamos propor que o Estado tem sustentação na Teoria Funcionalista do Direito para melhorar a situação dos que aguardam por um órgão e muitas vezes morrem nas filas, incentivando a doação de órgãos após a morte cerebral do paciente por meio de uma norma permissiva que estabeleça uma retribuição, pelos planos de saúde do receptor, aos familiares do doador.
A partir da obra de Cesare Beccaria, na qual se encontram as raízes das sanções premiais, as teorias, a doutrina e o ordenamento jurídico desenvolveram e aprimoraram a concepção segundo a qual as sanções postas pelo ordenamento jurídico têm por finalidade obter um dado comportamento que o legislador considera conveniente.
2. A TEORIA FUNCIONALISTA E O DIREITO
2.1. Beccaria
Michel Foucault, em A Verdade e as Formas Jurídicas (páginas 79 a 86 – Conferência IV), discorrendo sobre as transformações dos sistemas penais, cita a reelaboração teórica da lei penal no final do século XVIII e início do século XIX, e nos remete a Beccaria.
Até então, como se sabe, imperava a tese de que as penas constituíam uma espécie de vingança coletiva. Essa concepção havia induzido à aplicação de punições de consequências muito superiores e mais terríveis que os males produzidos pelos delitos, como a prática de torturas, penas de morte, prisões desumanas, banimentos e acusações secretas.
Com sua obra Dos Delitos e das Penas, que se insere no movimento filosófico da segunda metade do século XVIII, Beccaria influencia bastante o mundo jurídico vigente. Além de decisiva para a reformulação da legislação jurídica da época, sua obra estabeleceu conceitos fundamentais para as que se sucederam, tais como: a necessária proporcionalidade das penas em relação aos delitos cometidos; a condenação da tortura como instrumento de obtenção da confissão (prova do crime); e o prêmio como forma de “prevenir-se os crimes recompensando a virtude”. Prescrição, já no século XVIII, das sanções positivas, que nas palavras de Beccaria (1965:201):
“Podem ainda prevenir-se os crimes recompensando a virtude; e pode-se observar que as leis atuais de todas as nações guardam a esse respeito um profundo silêncio. Se os prêmios propostos pelas academias aos autores das descobertas úteis alargaram os conhecimentos e aumentaram o número dos bons livros, imagine-se que recompensas concedidas por um monarca benfeitor não multiplicariam também as ações virtuosas. A moeda da honra, distribuída com sabedoria, jamais se esgota e produz sempre bons frutos”.
Cerca de um século depois, o cientista social britânico Radcliffe-Brown desenvolve a teoria do funcionalismo estrutural e, nessa trilha, Norberto Bobbio promove uma inflexão nova na concepção formalista tradicional do direito, redimensionando a função promocional do ordenamento jurídico. Na segunda metade do século XX, a teoria funcionalista penetra também no direito penal (Claus Roxin, Gunther Jakobs).
2.2. Radcliffe-Brown
Radcliffe-Brown, em sua Estrutura e Função na Sociedade Primitiva, expõe uma teoria funcionalista que se aproxima da orientação teórica de Émile Durkheim.
O professor Olney Queiroz Assis anota (2011:133) que:
“Para Radcliffe-Brown, a função de qualquer atividade, tal como a punição de um crime, ou uma cerimônia fúnebre, é parte que ela desempenha na vida social como um todo e, portanto, a contribuição que faz para a manutenção da continuidade estrutural. O conceito de função implica, pois, a noção de estrutura constituída de uma série de relações entre unidades, sendo mantida a continuidade da estrutura por um processo vital constituído das atividades integrantes. Pela definição dada, função é a contribuição que determinada atividade proporciona à atividade total da qual é parte”.
No que se refere ao direito, segundo Assis (2011:137), Radcliffe-Brown estabelece as sanções sociais, administradas por uma sociedade politicamente organizada, como critério fundamental na definição do conceito de direito. Define sanção social como uma reação por parte de uma sociedade ou de um considerável número de seus membros a um modo de comportamento que é aprovado ou desaprovado.
Dessa forma, o comportamento aprovado implica sanção positiva e enfatiza o que se deve fazer. A sanção positiva pode consistir na concessão de títulos nobiliárquicos, honoríficos, fama, prêmios, etc. O comportamento não aprovado implica sanção negativa e enfatiza o que não se deve fazer.
Para o professor Assis (2011:138):
“Essa análise, combinada com a noção de Malinowski, segundo a qual a abordagem funcionalista consiste numa explicação teleológica da ação como meio à objetivação de fins e metas, é semelhante à análise funcionalista que alguns juristas fazem da ordem jurídica, especialmente Norberto Bobbio em um trabalho intitulado Da Estrutura à Função, onde explicita a função promocional do direito”.
2.3. Norberto Bobbio
2.3.1. Da estrutura à função
A elevação da complexidade social reflete diretamente no direito positivo tornando-o, tal como a sociedade, mais complexo, sujeito a constantes mudanças e ampliação dos seus conteúdos, e imprimindo ao ordenamento jurídico a função de fornecer ao Estado, por meio da legislação, um instrumento eficaz de intervenção na vida social e econômica.
Para Tercio Sampaio Ferraz Jr. (1995: 85), na sociedade contemporânea o Estado cresceu para além de sua função meramente repressiva ou garantidora da ordem pública e, ampliando suas atribuições, passou a ser produtor de mercadorias e prestador de serviços de consumo social. Além disso, assumiu o papel primordial de planejar, regulamentar, controlar e fiscalizar a atividade econômica.
Ferraz Jr (in Bobbio, 1996: 11), anota ainda que Norberto Bobbio percebeu que uma das noções que a teoria estrutural (Hans Kelsen) não conseguiu conceituar sem evitar uma definição funcional foi justamente a de sanção, pois esta é posta pelo ordenamento jurídico para obter um dado comportamento humano que o legislador considera desejável. A partir dessa constatação, Bobbio se dedica ao problema de desvendar a distinção entre sanções negativas e positivas.
2.3.2. A estrutura da norma
Norberto Bobbio (2005: 136-138) aponta que Kelsen acolhe a tese da norma jurídica como juízo hipotético condicional. Para ele, as normas jurídicas, sendo heterônomas (o Estado manda e os súditos a obedecem), têm necessidade de uma garantia de que a vontade dos súditos se ajuste à do Estado, o que pode ser alcançado somente através da sanção. Definida a sanção, o que o Estado deseja não é o comportamento dos súditos, mas o comportamento dos órgãos encarregados de aplicar a sanção.
Para Kelsen, a norma jurídica é entendida não como comandos linguísticos na forma imperativa (faça isto, deixe de fazer aquilo) igual à norma moral, mas como juízo hipotético que exprime a relação específica de um fato condicionante com uma consequência condicionada. Com Kelsen, a norma jurídica não deixa de ser um imperativo, mas um imperativo sancionador condicional, posto que a prescrição da sanção impera sob a condição do comportamento ao qual ela é imputada.
Nessa trilha, a teoria normativa atribui à norma jurídica o caráter de juízo hipotético condicional que estabelece um nexo entre uma condição (o ilícito) e uma consequência (a sanção) na seguinte fórmula: “Se é A (o ilícito), deve ser B (a sanção)”. Nessa estrutura lógico-linguística, o comportamento ilícito (ato ou omissão) não é uma ação contra o direito, mas uma condição prevista pela norma que lhe imputa uma sanção. Não há, pois, ações a favor ou contra o direito, apenas juridicamente lícitas (as que evitam a sanção) e ilícitas (as que provocam a sanção).
Para Kelsen:
“A norma que determina a conduta que evita a coação tem o significado de norma jurídica apenas quando se pressupõe que com ela deve-se expressar, de forma abreviada por comodidade de exposição, o que só a proposição jurídica enuncia de modo correto e completo, isto é, que na condição de conduta contrária deve seguir-se um ato coativo como conseqüência. Esta é a norma jurídica em sua forma primária. A norma que ordena o comportamento que evita a sanção pode valer quando muito como norma jurídica secundária” (in Bobbio, 2005: 122).
2.3.3 As normas permissivas
Norberto Bobbio, na Teoria da Norma Jurídica (2005), esclarece que em todo ordenamento jurídico há normas permissivas ao lado das imperativas. Nesse sentido, cita como exemplo de normas permissivas aquelas que permitem eleger domicílio especial. Contudo, anota que as normas permissivas não podem servir de argumento contra a imperatividade do direito, tendo em vista que a função das normas permissivas é a de eliminar um imperativo em determinadas circunstâncias ou com referência a determinadas pessoas, e, portanto, as normas permissivas pressupõem as normas imperativas. Segundo ele, quando não se pressupõe um sistema normativo imperativo, as ações permitidas são aquelas que não reclamam nenhuma norma para serem reconhecidas, no momento em que vale o postulado: “Tudo aquilo que não é proibido ou obrigatório é permitido”. De outra parte, onde intervêm normas permissivas, é sinal de que existe um sistema normativo imperativo que tolera, em determinados casos, exceções e, portanto, o postulado de que se parte é o oposto do precedente, ou seja: “Tudo é proibido ou obrigatório, exceto o que é expressamente permitido”.
Do mesmo modo que as normas imperativas, as normas permissivas podem ser classificadas em positivas (aquelas que permitem fazer) e negativas (aquelas que permitem não fazer). Vale dizer, as normas permissivas positivas são aquelas que negam um imperativo negativo (ou proibição); as normas permissivas negativas são aquelas que negam um imperativo positivo (ou comando). As ações previstas pelas primeiras chamam-se mais estritamente permitidas (por exemplo: que a caça em certa zona seja permitida significa que não é proibida); as ações previstas pelas segundas chamam-se mais propriamente facultativas (por exemplo: que uma matéria do curriculum dos estudos seja facultativa significa que não é obrigatória).
Para alguns autores, esses são os operadores linguísticos (modais deônticos) da norma jurídica: proibido, obrigatório e permitido, mediante os quais é possível qualificar juridicamente os comportamentos, daí falar-se em normas proibitivas, preceptivas e permissivas. A distinção entre normas proibitivas, preceptivas e permissivas é importante para qualificar a relação meta-complementar da autoridade (órgão com competência normativa). Ou seja, o modal estabelece o modo de vinculação da autoridade: proibindo, obrigando ou permitindo.
Nota-se assim que na Teoria da Norma Jurídica, sem ferir a estrutura Kelseniana da norma, Bobbio introduziu o modal permitido, ao lado dos outros dois (o proibido e o obrigatório). Todavia, é na obra Da Estrutura à Função que ele agrega à sua teoria estrutural do direito a análise funcional da norma jurídica. Nesta obra Bobbio se dedica ao problema de desvendar a distinção entre sanções negativas e positivas e com isso procura apontar os novos rumos que a ciência do direito poderia percorrer a partir do final do século XX.
Para Bobbio, a maneira de enxergar o direito até então obscureceu a existência e a relevância das sanções positivas, ou seja, aquelas sanções que não são punições, mas recompensas ou prêmios. Segundo ele, o relativo desconhecimento das sanções positivas por parte das teorias jurídicas reproduziu uma concepção de sociedade típica do século XIX: sociedade liberal que tem por base o mercado livre, no qual a interferência do Estado deve ser mínima. Na sociedade liberal, o Estado assumia apenas a função de garantidor da ordem pública e o direito se resumia, particularmente, em normas de proibição, com prevalência óbvia das sanções negativas. Na sociedade capitalista contemporânea, a “mão invisível do mercado” (Adam Smith) é substituída pela “mão visível do Estado” (Eros Grau) que, através do ordenamento jurídico, procura influenciar ou conduzir os comportamentos.
Segundo Ferraz Jr. (in Bobbio, 1996: 12), na sociedade capitalista contemporânea uma teoria jurídica da sanção limitada apenas ao papel das sanções negativas e, pois, ignorando o papel assistencial, regulador e empresarial do Estado, estaria destinada a se fechar num limbo, entendendo mal, porque entendendo limitadamente a relação entre o direito, o Estado e a sociedade.
Diante desse novo contexto, Bobbio promove uma inflexão nova na concepção formalista tradicional do direito, redimensionando a função promocional do ordenamento jurídico, na qual o aumento das normas de organização confere às sanções positivas um outro relevo. Normas de organização são aquelas com as quais o Estado regula sua própria atividade: assistencial, fiscalizadora, produtora e incentivadora.
2.3.4 Direito promocional
Norberto Bobbio, em Da Estrutura à Função, investiga novas técnicas de controle social como exigência do Estado social contemporâneo. Essas técnicas não são centradas nos comportamentos repudiados pela sociedade, mediante a aplicação de sanções negativas, de caráter punitivo ou repressivo (multa, execução, penhora, prisão), mas nas formas de estímulos às condutas desejadas, mediante a aplicação de sanções positivas, de caráter promocional.
Nessa trilha, Bobbio sustenta que o ordenamento jurídico contemporâneo é dotado de técnicas de encorajamento e desencorajamento no uso das normas. Ferraz Jr (in Bobbio, 1996: 13) comenta que, quando o ordenamento de função repressiva e protetora procura provocar certas condutas, atua sempre de uma forma negativa e, neste caso, prevalece a técnica do desencorajamento. Já o ordenamento promocional vai muito adiante, uma vez que, neste caso, a técnica consiste no encorajamento de certas condutas que, para se produzirem, necessitam das sanções positivas. No primeiro caso, na visão típica do século XIX, o ordenamento sempre procura tornar certas ações mais penosas, tornando outras vantajosas a contrario sensu. No segundo caso, no ordenamento contemporâneo, observa-se o expediente da “facilitação” (por exemplo, uma subvenção) e até do prêmio (por exemplo, uma isenção fiscal) para promover as ações desejadas.
Sob o enfoque funcional, o direito aparece como instrumento de gestão da sociedade e abrange a concepção segundo a qual as sanções postas pelo ordenamento jurídico têm por finalidade obter um dado comportamento que o legislador considera conveniente. Nessa trajetória, a função promocional do direito implica o aumento de normas de organização com sanções positivas ou premiais. Assim, no ordenamento jurídico, ao lado das técnicas fundadas na função repressiva e nas sanções negativas, há lugar também para medidas de encorajamento ou promocionais fundadas em sanções positivas que visam promover as condutas tidas como desejáveis.
2.3.5 Enfoque funcionalista
A teoria funcionalista e seu aspecto promocional do direito possibilitam um novo enfoque sobre o complexo de normas, que se desloca da análise da sanção negativa e dos conceitos daí decorrentes para a análise da sanção positiva, que passa a ser vista como uma espécie de promessa (isenções, subsídios, redução de impostos, parcelamento de débitos, etc.) cuja finalidade consiste em influenciar o comportamento dos destinatários.
Do ponto de vista da teoria funcionalista, o direito (complexo de normas) é utilizado pela pessoa política (União, Estados-membros, Municípios) como meio para se alcançar determinados fins. O direito, quando utilizado como instrumento de atuação, controle e planejamento, implica em dar maior ênfase às normas de organização e de condicionamentos que antecipam comportamentos desejáveis. Na perspectiva do direito promocional, a adesão dos destinatários das normas a esse tipo de discurso normativo não seria simples submissão, mas decisão, comprometimento e participação. O direito aparece como uma lógica de argumentação, em que o comportamento preferível e desejável toma contornos relevantes.
Um direito desse tipo não pode, evidentemente, restringir-se ao tema da teoria estrutural do direito que se concentra na sistematização formal do ordenamento jurídico conforme a melhor tradição dogmática, mas requer, para uma apropriada consideração do princípio da efetividade, a análise da conduta dos destinatários das normas. Quer dizer, é necessário verificar se determinado conjunto normativo (a lei) produziu os efeitos esperados, se ele se firmou, se obteve sucesso; por isso mesmo, na análise do efetivo cumprimento das normas, tem papel preponderante a análise do seu impacto persuasivo e do trabalho argumentativo que caracteriza a prática do direito.
Bobbio entende que o uso das sanções positivas ou premiais incide sobre comportamentos permitidos e não sobre comportamentos obrigatórios ou proibidos. O destinatário é, portanto, livre para se conduzir ou não em conformidade com a norma. Nesse aspecto, cresce em importância a autonomia da vontade, na medida em que o Estado sancionador restringe sua própria força, posto que não ameaça, mas simplesmente encoraja. Ferraz Jr. observa que, na verdade, não há ampliação da autonomia da vontade. O que existe efetivamente é uma condução sutil da vontade, mediante técnicas de encorajamento. Vale dizer, com as sanções premiais o Estado desenvolve formas de poder mais amplas, substituindo o mercado e a sociedade no modo de controlar o seu desenvolvimento, ao promover comportamentos por meio de sanções premiais (subsídios, incentivos, isenções).
Enfim, Bobbio anota que ao deslocamento produzido na teoria normativa pelo advento do Estado promocional devem ser acrescentados o aumento e o aperfeiçoamento dos meios de socialização e de condicionamentos coletivos nas sociedades tecnocráticas, bem como o aumento de importância das medidas preventivas sobre as repressivas e o da distribuição de recursos por parte do Estado.
2.3.6 Novos rumos
Tercio Sampaio Ferraz Jr. anota que a teoria funcionalista abriu novos rumos para a ciência jurídica. Segundo ele, a percepção da nova situação exige considerar o seguinte: a) na tradição do Estado repressor, o jurista, encarando o direito como um conjunto de regras dadas com função sancionadora e negativa, tende a assumir o papel de conservador daquelas regras que ele, então, sistematiza e interpreta; b) na nova situação do Estado promocional, o jurista, encarando o direito também como um conjunto de regras, mas em vista de uma função implementadora de comportamentos, tende a assumir um papel modificador e criador.
No primeiro caso, prevalece a teoria estrutural do direito e, no segundo, uma teoria funcionalista. Não se trata de duas teorias opostas, mas de enfoques distintos, em que prevalece ora um, ora outro dos aspectos. No enfoque estrutural, preponderam a interpretação do sentido das normas, as questões formais da eliminação de antinomias e as questões da integração de lacunas, numa palavra, de sistematização global dos ordenamentos conforme a melhor tradição dogmática. No enfoque funcionalista, a problemática se volta muito mais para a análise de situação, análise e confronto de avaliações, escolha de avaliação e formulação de regras. No enfoque estrutural, a relação meio-fim no estudo do direito fica limitada a um pressuposto global e abstrato, que quase não interfere na análise, por exemplo: “O direito é uma ordem coativa que visa à obtenção da segurança coletiva”, e isso basta. Já no enfoque funcionalista, a relação meio-fim ganha outros relevos, passa a constituir o cerne da análise, exigindo, do jurista, novas modalizações do fenômeno normativo.
O Estado contemporâneo tornou a tese da essencialidade da sanção (no sentido de um ato de coação) demasiadamente estreita. Hoje se fala cada vez mais em sanções premiais, cuja função é o encorajamento de um ato (sanção prêmio) e não o seu desencorajamento (sanção castigo). Por esses motivos, a dogmática analítica contemporânea tende e excluir a sanção como elemento necessário da estrutura da norma.
Norberto Bobbio admitiu que, quando a sociedade atravessa uma fase de profundas mudanças, a ciência do direito precisa estabelecer novos contatos com as ciências sociais, superando-se a formação jurídica departamentalizada, com sua organização sobre uma base corporativo-disciplinar de compartimentos estanques. Nesse sentido, a teoria funcionalista, como veremos a seguir, penetra também no direito penal, introduzindo a ideia das medidas preventivas como forma de impedir danos sociais.
3. A TEORIA FUNCIONALISTA NO DIREITO PENAL
A teoria funcionalista, formatada com outras concepções, penetrou também no direito penal (Claus Roxin, Winfried Hassemer, Gunther Jakobs) e introduziu novas orientações na teoria do delito e na teoria da pena. Nesse sentido, os juristas falam não somente em sanções repressivas como forma de reforçar o sistema normativo e garantir as expectativas, mas também em programa ou controle preventivo da criminalidade mediante ações estatais que influenciem comportamentos desejáveis. Essas ações vão desde a intensificação da reforma agrária, da distribuição de renda, do acesso à saúde, da instalação de unidades policiais pacificadoras, etc., às reduções das penas pela delação premiada, pelo exercício de atividade produtiva (trabalho, estudo), pelo bom comportamento, etc., inclusive os programas de proteção de testemunhas.
Claus Roxin, em Estudos de Direito Penal (Tradução Luís Greco, Renovar, 2006 – RJ, páginas 32 a 33), ao tratar da legitimação das proibições penais e dos limites à faculdade de punir do Estado, aborda princípios e conceitos importantes, dentre os quais destacamos: a) devem existir limites à faculdade estatal de punir; b) esses limites só podem resultar da finalidade que tem o direito penal, que é a de garantir a convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens; c) os cidadãos transferem ao Estado a faculdade de punir somente na medida em que tal seja indispensável para garantir a convivência livre, igualitária e pacífica; e d) uma vez que a pena é a intervenção mais grave do Estado na liberdade individual, só pode ele culminá-la quando não dispuser de outros meios mais suaves para alcançar a situação desejada, como os contidos no direito civil e por medidas administrativas ou preventivas.
Roxin (p.34) alerta para o fato de que algumas concepções já deveriam estar excluídas do direito penal, passando a ter um tratamento adequado. A primeira é a de que nem todo comportamento eticamente reprovável perturba a convivência entre os homens. Em segundo lugar, muitos princípios éticos são questão de crença e não podem ser impostos ao indivíduo. Da mesma forma, não é permitido querer impor premissas ideológicas ou religiosas com a ajuda do direito penal. Em síntese, a imoralidade ou a reprovabilidade ética de um comportamento não podem legitimar uma proibição penal, se os pressupostos de uma convivência pacífica não forem lesionados.
Um outro aspecto ressaltado por ele, que interessa ao nosso propósito, é o relativo à “dignidade humana”, que, segundo o jurista, “vem sendo recentemente utilizada na Alemanha e também na discussão internacional como um instrumento preferido para legitimar proibições penais”. Roxin defende que tal será correto enquanto se trate da lesão à dignidade humana de outras pessoas individuais. A situação muda, porém, ao se considerar possível a lesão à própria dignidade humana e se ela é tida por suficiente para legitimar uma punição.
A partir do próximo tópico, trataremos da interferência sem fundamentos dessas questões levantadas por Roxin – ética, moral, religiosas e ideológicas – nos debates e no ordenamento jurídico de transplante de órgãos.
3.1. A ética, a dignidade do ser humano e o comércio de órgãos
Segundo Roxin, o argumento da dignidade humana tem desempenhado papel relevante para fundamentar a punibilidade do comércio de órgãos humanos. Da mesma forma, o recurso a princípios éticos estão na base dos argumentos utilizados para justificar uma penalização para o comércio de órgãos.
3.1.1. Na Legislação
Na Europa, a maior parte dos países da região é signatária do “Tratado Internacional para a proteção dos direitos humanos face ao emprego da biologia e da medicina”, que fixa em seu art. 32 um padrão ético mínimo, segundo o qual o corpo humano e suas partes não podem ser utilizados para obter ganhos financeiros. Conforme informa Roxin, a Lei Alemã de Transplantes, de novembro de 1997, deriva deste tratado e considera a violação à ética e à dignidade humana suficiente para fundamentar a punição.
No Brasil, a abordagem é a mesma. O art. 199, § 4º da Constituição Federal de 1988 veda todo tipo de comercialização. Mas estabelece que a lei infraconstitucional disporá sobre as condições e requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, o processamento e a transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.
Segundo Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho (2008, p.158):
“Em nenhuma hipótese será admitida a disposição onerosa de órgãos, partes ou tecidos do corpo humano, sendo a sua prática, inclusive, penalmente reprimida, ex vi do disposto nos arts. 14 e 15 da Lei 9.434/97. Quer-se, com isso, evitar o indesejável mercado de órgãos e tecidos, que movimenta todo ano, espuriamente, milhões de dólares em todo o mundo.”
O Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, ao avaliar a Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 7.737/2004, do Estado do Espírito Santo, que garante meia entrada aos doadores regulares de sangue, julgou a ação improcedente, determinando que:
“(…) o ato normativo estadual não determina recompensa financeira à doação ou estimula a comercialização de sangue. Na composição entre o princípio da livre iniciativa e o direito à vida há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário.” ( ADI 3.512, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-2-2006, Plenário, DJ de 23-6-2006.) – grifo dos autores do trabalho.
3.1.2 A posição dos cientistas sociais do direito
O STF tem, de fato, demonstrado uma posição sensata e até de vanguarda em muitos dos temas que chegam para sua análise e decisão. Mas, no caso da doação de órgãos, é preciso ir além para que a lei possa abranger o tema de forma ampla, genérica e abstrata.
Por outro lado, é fato que, tanto no Brasil quanto na maior parte dos países do mundo, os argumentos da dignidade humana e dos princípios éticos têm desempenhado papel relevante para fundamentar a punibilidade do comércio de órgãos humanos. Roxin defende de maneira incisiva (p.41) que isto não basta. “Deve-se, isso sim, perguntar qual a pessoa lesionada se alguém decide que, em caso de morte, seus órgãos estarão disponíveis para fins de transplantes desde que seja paga uma soma a seus herdeiros.”
Para Roxin, o único dano poderia estar numa exploração financeira do destinatário do órgão, perigo este que pode ser facilmente evitado. Se o plano de saúde assumir esse pagamento aos herdeiros do falecido, não há mais espaço para o risco de que o potencial destinatário do órgão seja explorado financeiramente ou prejudicado, por ser pobre, em relação a doentes mais abastados, afirma Roxin. E, para os planos de saúde, este pagamento também seria economicamente favorável. Os tratamentos e despesas hospitalares dos doentes enquanto aguardam por um órgão e geralmente assumidos pelos planos de saúde são mais elevados.
Lloyd Cohen, professor de direito da Universidade George Mason, também defende que as pessoas possam fazer um contrato em vida expressando sua vontade quanto à venda de seus órgãos após a morte. O dinheiro ganho com a transação se tornaria parte do espólio.
Alguns críticos simplesmente classificam a retribuição financeira pelo órgão do morto como imoral devido à “coisificação” (tornar “coisa”, “mercadoria”) das partes do corpo. O professor Cohen responde a essa crítica com a afirmação de que ela é incoerente pois existe mercado para sangue humano, sêmen e cabelo. Quantas coisas vitais dependem do altruísmo ou de doações voluntárias? Alimentação é vital, água é vital, assim como roupas e moradia. Não dependemos do altruísmo nem de doações voluntárias para o provimento desses bens. (Se fosse assim, existiria uma grande carência).
Outra preocupação é que, se houver um mercado de órgãos, a população pobre venderá seus órgãos e adoecerá. Até agora, as propostas feitas preveem pagamentos monetários apenas para órgãos de cadáveres. Mas, de um ponto de vista estritamente ético, as pessoas devem poder dispor de seus órgãos por qualquer motivo que lhes parecer razoável. Estamos com Roxin, que defende as proibições penais apenas quando se trate da lesão à dignidade humana de outras pessoas individuais.
Enfim, a ética, a moral, as crenças religiosas ou as ideologias não devem nortear e não podem legitimar uma proibição penal, se os pressupostos de uma convivência pacífica não forem lesionados.
4. Conclusão
Os dados são contundentes. Como vimos, podem existir cerca de 80 mil americanos na lista de espera para o transplante de um órgão. Vinte deles morrem a cada dia como resultado direto da falta de órgãos. Sue Rabbitt Roff alerta que três pessoas morrem a cada dia na Grã-Bretanha na lista de espera por um transplante de rim. Na Alemanha, segundo Claus Roxin (41), estão disponíveis menos de um quarto dos rins de que se precisa para fins de transplante. A consequência disso é que todo ano morrem milhares de pessoas prematuramente, por não poderem receber o órgão. No Brasil, como vimos, milhares de pessoas estão na fila à espera por um coração, fígado, rim, pâncreas, pulmão ou córnea. Segundo a ABTO e o SNT, dentre os principais problemas enfrentados está a dificuldade na captação dos órgãos, seja pela demora em comunicar a morte encefálica, ou pela dificuldade em conseguir a autorização das famílias para a retirada do órgão.
O Estado moderno possui instrumentos jurídicos para mudar este quadro.
Nas sociedades contemporâneas, há uso em larga escala de sanções positivas que, por meio de prêmios (como uma isenção fiscal), ou de “facilitações”, busca promover um dado comportamento humano que o legislador considera desejável. Assim, a sanção deixa de ser vista como punição, ameaça, e passa a ser uma sanção positiva, uma promessa. O “Estado promocional” nos trouxe uma série de mudanças na forma de se comportar perante a sociedade, sendo que os meios de socialização vêm sofrendo gradativamente um aumento significativo e um aperfeiçoamento, conforme a evolução da sociedade demanda, devido à enorme importância dada às medidas preventivas sobre as repressivas.
Niklas Luhmann (1985: 7-12) afirma que o direito moderno se caracteriza pelo contínuo processo de mudança em seus conteúdos. Dessa forma, o “bom direito” parece residir não mais no passado, mas em um futuro em aberto, motivo pelo qual pode ser visto como instrumento de mudança planificada de uma realidade cada vez mais complexa. Segundo Luhmann, para que um tema possa integrar materialmente o direito, não é mais necessário comprovar que ele sempre tenha feito parte do direito. Isso torna possível a regulamentação de muitas formas novas de comportamento. Pode-se fixar juridicamente, por exemplo, o direito a prêmios pela destruição da superprodução das laranjas, pelo aumento das exportações de determinados produtos, pela contratação de pessoas portadoras de deficiência, pela não utilização de agrotóxicos em plantações de verduras, pela utilização de energia eólica ou solar na indústria, a obrigação de uso de determinado tipo de equipamento de segurança em automóveis, a proibição de instalação de indústrias em determinadas cidades ou a limitação da altura dos prédios na orla marítima, etc. Assim, o direito torna-se cada vez mais um instrumento de mudança da realidade. Nenhuma das culturas jurídicas anteriores à era moderna tinha essa pretensão.
Concluímos este artigo reforçando que há inúmeras iniciativas inspiradas na concepção da Teoria Funcionalista do Direito, em seus vários enfoques. Isto nos assegura de que a aplicação deste conceito é viável também para incentivar a doação de órgãos após a morte cerebral do paciente, por meio de uma norma permissiva que estabeleça uma retribuição, em forma de prêmio ou desconto em parcelas, pelos planos de saúde, aos familiares do doador. Propomos, portanto, ao Estado brasileiro, o encaminhamento de proposta ao Legislativo para que o nosso ordenamento jurídico contemple essa permissão.
Informações Sobre os Autores
Olney Queiroz Assis
Advogado. Mestre e Doutor em Direito Pela PUC/SP. Professor da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ) e da Escola Paulista de Direito (EPD).
Francisco Pilade Bolognini e Silva
Acadêmico de Direito e Engenheiro
José Vicente Guimarães Júnior
Acadêmico de Direito e Cirurgião Dentista
Miriam Silva Freitas Tavares
Acadêmica de Direito e de Economia
Daíla Landim de Azevedo
Acadêmica de Direito
Edson Saldiva Jordão Junior
Acadêmico de Direito
Larissa Martins Torhacs Barros dos Santos
Acadêmica de Direito