Resumo: O presente artigo visa questionar se a dependência de drogas produz efeitos no processo penal brasileiro e, especialmente, se dessas substâncias no organismo durante a prática de algum crime pode gerar a aplicação de medida de segurança. Ao final, o autor propõe um modelo de quesitos a serem usados em eventuais questionamentos feitos aos peritos técnicos para indagar a real extensão dos efeitos das drogas
Palavras chave: drogas, insanidade, penal, medida de segurança, dependência, liberdade.
Abstract: This article aims to question whether drug dependence has an effect on Brazilian criminal proceedings, and especially if the effects of these substances on the body during the practice of a crime can generate the application of a safety measure. In the end, the author proposes a model of questions to be used in eventual questions to be asked for technical experts to investigate the real extent of the effects of drugs
Key words: drugs, insanity, penal, security measure, dependency, freedom.
Sumário: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento do tema; 3. Proposta de quesitos acerca da toxicomania ou drogadição; 4. Posição da jurisprudência sobre o tema; 5. Conclusão; 6. Referências.
1. Introdução
Com o artigo que segue se questionará se dependência de drogas[i], conhecida na medicina legal sob o nome de toxicomania ou drogadição, pode implicar em exclusão da culpabilidade do agente por gerar incapacidade de entender o caráter ilícito da conduta. Em específico, também é objetivo do artigo questionar se tal dependência de substâncias ilícitas pode ser debatida no processo penal mediante produção de prova técnica, especificamente, incidente de insanidade mental.
O estudo das perturbações mentais e seus reflexos processuais penais é assunto da mais alta importância técnica e não se restringe apenas ao direito, sendo tema também debatido nos foros acadêmicos da medicina legal. Especificamente, ainda se sabe muito pouco sobre a borda precisa entre a sanidade e a loucura, sendo tal recorte temático de suma importância.
Ao final, e como forma de melhor orientar a atuação de todos os profissionais do direito, se propõe um modelo de quesitos sobre a insanidade mental causada por substâncias que causam dependência e que podem gerar exclusão ou diminuição da responsabilidade penal em juízo.
2. Desenvolvimento do tema
A compreensão exata das doenças mentais incapacitantes e seus efeitos no processo penal é assunto de alta relevância jurídica com expressivos efeitos na relação processual. Especialmente, se ficar comprovado mediante exame de insanidade mental que o acusado, ao momento da ação ou omissão, era incapaz de entender e querer o caráter ilícito do fato será ele absolvido com aplicação de medida de segurança com especial finalidade terapêutica. Esta é a previsão expressa do artigo 26 em combinação com o artigo 96 e incisos do Código Penal (Brasil, 2012)
O estudo das doenças mentais é assunto alta relevância e que corriqueiramente assola os juristas do Brasil em face a sua complexidade na medicina legal. Da mesma forma, os limites dos efeitos da dependência química, seja ela qual for, devem ser estudados com precisão a fim de se ter a melhor resposta penal possível.
O vício ou drogadição[ii] tem sido causa de grandes estudos e a medicina legal tem se dedicado ferozmente a pontuar os problemas sociais e jurídicos causados pelo uso indiscriminado de substâncias psicoativas. Esta questão toma um contorno mais profundo quando avaliada para a caracterização da responsabilidade penal.
A presença de tais substâncias o organismo pode ter reflexos sobre a culpabilidade do agente, a saber:
“O princípio da culpabilidade deve ser entendido, em primeiro lugar, como repúdio a qualquer espécie de responsabilidade pelo resultado, ou responsabilidade objetiva. Mas deve igualmente ser entendido como exigência de que a pena não seja infligida senão quando a conduta do sujeito, mesmo associada causalmente a um resultado, lhe seja reprovável. … Para além de simples laços subjetivos entre o autor e o resultado objetivo de sua conduta, assinala-se a reprovabilidade da conduta como núcleo da ideia de culpabilidade, que passa a funcionar como fundamento e limite da pena. As relações entre culpabilidade e pena constituem matéria polêmica, que integra a teoria do crime, onde a estrutura e as funções dogmáticas da culpabilidade, seja na economia do crime, seja na fundamentação da pena, são minuciosamente examinadas. Em primeiro lugar, pois, o princípio da culpabilidade impõe a subjetividade da responsabilidade penal. Não cabe, em direito penal, uma responsabilidade objetiva, derivada tão-só de uma associação causal entre a conduta e um resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico. É indispensável a culpabilidade. No nível do processo penal, a exigência de provas quanto a esse aspecto conduz ao aforisma ‘a culpabilidade não se presume’, que, no terreno dos crimes culposos (negligentes), nos quais os riscos de uma consideração puramente causal entre a conduta e o resultado são maiores, figura como constante estribilho em decisões judiciais: ‘a culpa não se presume’. A responsabilidade penal é sempre subjetiva’ (BATISTA,1990)
A embriaguez provocada pelo álcool ou outra substância de efeitos análogos, voluntária ou culposa, não exclui a imputabilidade penal. A respeito, ver inciso II do art. 28 do Código Penal. Todavia, os parágrafos desse artigo fazem duas exceções na apuração da responsabilidade penal. O primeiro diz respeito à embriaguez completa decorrente de caso fortuito ou força maior, que retira totalmente, ao tempo da ação ou da omissão, a capacidade de entendimento do caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento – inteira incapacidade. No segundo momento, a Lei se manifesta sobre a embriaguez proveniente de caso fortuito ou força maior que diminui, mas não extermina, ao tempo da ação ou omissão, a capacidade de entendimento do caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento – não possuir plena capacidade.
Observa-se, portanto, a necessidade premente de se definir com a máxima exatidão possível o que se compreende tecnicamente por embriaguez ou intoxicação aguda provocada por substâncias químicas conhecida como drogadição. Levando em consideração as consequências legais, normalmente se adota o conceito do CID-10, que assim é discriminado:
"Estado consequente ao uso de uma substância psicoativa e compreendendo perturbações da consciência, das faculdades cognitivas, da percepção, do afeto ou do comportamento, ou de outras funções e respostas fisiológicas. As perturbações estão na relação direta dos efeitos farmacológicos agudos da substância consumida e desaparecem com o tempo, com cura completa, salvo nos casos em que surgiram lesões orgânicas ou outras complicações. (on line, 2017)
Neste contexto, podemos dizer que que a drogadição ou toxicomania pode gerar ou a isenção de pena quando total ou a redução facultativa da pena quando parcial e ocorrida no momento conduta.
Júlio Fabrini Mirabete (1985), em abalizada doutrina leciona sobre o assunto que:
“O agente que pratica a conduta quando sujeito à ação dessas substâncias tóxicas é tratado pela lei nos mesmos termos reservados ao ébrio etílico (excetuados os crimes relacionados ao tráfico e porte de drogas, sujeitos a legislação especial.”
Tecnicamente falando, a luta do direito processual penal hodierno é justamente o de tentar chegar o mais próximo possível de uma verdade real ou substancial, tornando inadmissível na esfera penal as constatações baseadas em ficções ou presunções.
A Constituição Federal alerta para a necessidade da utilização do máximo de cautela na busca das provas quando do julgamento de uma determinada conduta. Assim, a prova deve gerar no magistrado a convicção de que necessita para o seu pronunciamento, declarando a existência ou não da responsabilidade criminal.
Dessa feita, se o réu faz uso de substâncias químicas psicoativas capazes de alterar a sua conduta e compreensão dos fatos sociais que o cercam, necessita-se consequentemente de peritos determinem qual o grau de intervenção física que estas substâncias provocam no mesmo. Logo, a constatação de insanidade mental do acusado associada a produção de provas é assunto tecnicamente interligado e que pode gerar reflexos no conteúdo do julgamento.
Para se delimitar melhor a extensão das toxicomanias e segundo as pesquisas de saúde pública, sociais e educacionais da Organização das Nações Unidas, constantes do site do Instituto de Medicina Social e Criminologia de São Paulo, podemos distinguir quatro tipos de usuários:
“Usuário experimental ou experimentador: limita-se a experimentar uma ou várias drogas, por diversos motivos, como curiosidade, desejo de novas experiências, pressão de grupo etc. Via de regra, este contato não ultrapassará as primeiras vezes.
Usuário ocasional: utiliza um ou vários produtos, de vez em quando, se o ambiente for favorável e a droga disponível. Nestes casos, os pesquisadores não identificam o desenvolvimento de dependência, nem corte das relações afetivas, sociais ou profissionais.
Usuário habitual ou "funcional": faz uso frequente de drogas. Em suas relações sociais já é possível se verificar uma certa dissolução. Mesmo assim, ainda tem uma vida social razoável, embora de forma precária e correndo riscos de dependência. É aquele usuário vulgarmente chamado como “viciado”.
Usuário dependente ou "disfuncional" (dependente, toxicômano, drogativo, farmacodependente, dependente químico): estes são os casos mais severos. O indivíduo que alcança esse estágio vive pela droga e para a droga, quase que exclusivamente. Rompe vínculos sociais e afetivos, o que acaba por leva-lo ao isolamento e à marginalização, acompanhados, eventualmente, de decadência física e moral.”
Temos que aceitar, portanto, que a identificação do grau de envolvimento dos autores de delitos com substâncias psicoativas depende de informação fornecida por perito da área após análise clínica e laboratorial e deve ser devidamente considerada pelo juiz de direito de acordo com o seu livre convencimento motivado e se balizando em todas as características acima descritas.
Os artigos 45 até 47 da própria Lei Federal nº 11.343, de 26 de agosto de 2006, dizem expressamente que:
“Art. 45. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado.
Art. 46. As penas podem ser reduzidas de um terço a dois terços se, por força das circunstâncias previstas no art. 45 desta Lei, o agente não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Art. 47. Na sentença condenatória, o juiz, com base em avaliação que ateste a necessidade de encaminhamento do agente para tratamento, realizada por profissional de saúde com competência específica na forma da lei, determinará que a tal se proceda, observado o disposto no art. 26 desta Lei.”
Diante das descrições legais supra ditas, podemos entender que se o corpo probatório contido nos autos indicar que o réu é dependente do uso de substâncias psicoativas, será imprescindível a realização de exame pericial para a averiguação da capacidade plena de entendimento do caráter ilícito do fato e/ou de autodeterminação conforme esse entendimento. Vale ressaltar que a Lei Penal mantém o critério biopsicológico na apuração da responsabilidade penal.
3. Proposta de quesitos acerca da toxicomania ou drogadição.
Havendo, portanto, a possibilidade técnica de que os acusados em processo penal sofram de transtornos de comportamento decorrentes da dependência química, fato que poderá influenciar no livre convencimento motivado do julgador e nos termos do artigo 149[iii] do Código de Processo Penal propõe-se a seguinte forma de quesitos a serem respondidos pelos peritos técnicos:
1ª. SÉRIE
1) Se é possível, através dos exames clínicos ou de laboratório, procedidos na pessoa do Réu, concluir ser ele dependente de substâncias químicas psicoativas capazes de causar distúrbios comportamentais de natureza violenta?
2) Qual é a diagnose?
3) Em caso positivo, que substância pode ter sido usada pelo réu, quando da prática criminosa?
4) Em função do transtorno diagnosticado, qual é o estado da capacidade de entendimento? Normal, abolida, reduzida.
5) Em função do transtorno diagnosticado, qual é o estado da capacidade de determinação? normal, abolida, reduzida.
6) Se o próprio réu afirmou ao perito ser usuário de substância entorpecente?
7) Em caso positivo, se quando fez essa afirmação informou ao perito qual a substância mais consumida por ele?
8) Em caso positivo de sete (7), se dentre essas substâncias possivelmente usadas pelo Réu, pode-se incluir a erva cannabis cativa lineu, vulgarmente conhecida como maconha e∕ou cocaína e∕ou cack?
9) Em caso positivo de sete (7) ou oito (8), pela gravidade e violência do ato criminoso praticado pelo Réu, pode-se afirmar, ou pelo menos supor, com razoável margem de acerto, que o réu estava sob o efeito de uma ou algumas das drogas mencionadas em sete (7) ou oito (8), quando da prática dos atos descritos na Denúncia ?
2ª. SÉRIE
1) Se pelas características fisiológicas-psiquícas apresentadas pelo réu é possível concluir, pelo menos aproximadamente, ser ele portador de distúrbio mental predisponente a atos de violência
2) Se estando o réu sob o efeito de bebida alcoólica, maconha ou cocaina, perdeu a capacidade de entender o caráter criminoso do fato que estava praticando?
3) Em caso negativo de dois (2), mesmo entendendo o caráter criminoso do fato que praticava, estava impossibilitado de determinar-se diante deste entendimento?”
A proposta de quesitos como acima exemplificados atende a necessidade de se questionar dos peritos responsáveis a extensão dos efeitos das substâncias químicas que, se incapacitantes, podem levar a absolvição dos réus com a aplicação de medidas de segurança com especial finalidade terapêutica.
4. Posição da jurisprudência sobre o tema.
A questão da toxicomania ou drogadição tem sido objeto de intensos debates na jurisprudência, havendo vários precedentes sobre o assunto que já reconheceram que a sua incidência ocasiona importantes reflexos na decisão judicial impondo-se medida de segurança com especial finalidade terapêutica.
Em julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já se entendeu que se o réu ao tempo da ação, por doença mental (intoxicação por múltiplas substâncias psicoativas, estado alterado de consciência e distimia) é totalmente incapaz de entender o caráter ilícito de seus atos e, também, totalmente incapaz de determinar-se de forma diversa da que se conduziu deve-se nos termos do artigo 26 do Código Penal impor o reconhecimento da inimputabilidade penal que isenta o agente de pena (Brasil, 2014).
No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais já entendeu que é necessária a internação de dependente químico para tratamento psiquiátrico e de desintoxicação, atestado em relatório médico como meio hábil a reduzir o risco de morte bem como o perigo de dano irreparável à saúde do paciente interessado (Brasil, 2013).
Não menos importante é o entendimento proferido pelo Superior Tribunal Militar que, na mesma esteira do raciocínio exarou a decisão que se o réu no incidente de insanidade mental respondeu positivamente ao quesito relativo à existência de doença mental sofrendo de síndrome de dependência de cocaína e transtorno de personalidade emocionalmente instável impõe-se medida de segurança na modalidade de tratamento ambulatorial (Brasil, 2004).
Por fim, em importante e recente julgado, o Supremo Tribunal Federal no voto proferido pela Excelentíssima Ministra Rosa Weber entendeu que a prisão preventiva não é o instrumento processual penal hábil para enfrentar a situação pessoal do paciente diante dos fortes indícios de que seja portador de enfermidade mental capaz de sujeitá-lo a medida de segurança futura com relatos de internamentos e de tratamento ambulatorial anteriores, de diagnósticos psicóticos, de adição a drogas e de déficit de atenção. No caso julgado a “dúvida sobre a integridade mental do acusado” (artigo 149 do Código de Processo Penal) orientou a Corte Suprema que a prisão fosse substituída por regime de internação provisória compulsória conforme artigo 319, VII do CPP (Brasil, 2015).
Como se pode notar pelos julgados compilados o processo penal não pode desprezar o fato de que a drogadição ou toxicomania pode causar doenças mentais graves e, desde que provada tal situação, é juridicamente possível imposição de medidas de segurança.
5. Conclusão
A luta do processo penal é a busca da verdade real para o alcance da justiça. Se ficar comprovado através de exame técnico, denominado incidente de insanidade mental que réu em razão de dependência de drogas não poderia entender o caráter ilícito a conduta ser-lhe-á aplicada medida de segurança com especial finalidade terapêutica.
Embora a compreensão de limitações mentais incapacitantes em razão de toxicomania seja tecnicamente difícil é notório que determinadas substâncias que geram drogadição causam incapacidade de entender o caráter ilícito de condutas criminosas e de se determinar de acordo com o livre arbítrio e entendimento pessoal.
A lei 11.343 de 2006, conhecida como lei de drogas proíbe em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso (Brasil, 2006).
Delimitar o mecanismo de ação das drogas sob o organismo humano é questão de elevada importância. Se através do incidente de insanidade mental se comprovar que a droga usada foi determinante ou influenciadora na compreensão e entendimento sob a prática do crime impor-se-á, inevitavelmente, a medida de segurança com especial finalidade terapêutica.
Informações Sobre o Autor
Adriano Gouveia Lima
Mestre e Especialista em Direito Penal. Advogado criminalista. Professor de Direito Penal na UniEvangélica de Anápolis