1.Cabimento da Ação Rescisória.
A Ação Rescisória é remédio processual excepcionalíssimo, cabível apenas nas situações expressamente previstas no CPC, que tem por objetivo atacar a coisa julgada material já formada, mas que está eivada de vícios que permitem a sua desconstituição e, em alguns casos, o rejulgamento da lide, em consonância com o ordenamento jurídico.
Dispõe o art. 485 do CPC sobre as hipóteses de cabimento da Ação Rescisória, nos seguintes termos:
“Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I – se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II – proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;
III – resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV – ofender a coisa julgada;
V – violar literal disposição de lei;
Vl – se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;
Vll – depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de Ihe assegurar pronunciamento favorável;
VIII – houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;
IX – fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa”.
No caso em análise, apenas poderia ser intentada a Ação Rescisória com base no inciso V de dito dispositivo legal. Para tanto, considerar-se-á lei por “qualquer norma jurídica (STJ – 2ª Turma, REsp 11.106/SC, Min. Adhemar Maciel, v.u. RSTJ 104:183), constitucional ou infraconstitucional, lei complementar, lei ordinária, lei processual (…)”[1]. Ressalta, neste sentido, Humberto Theodoro Júnior[2] que se é admitida a rescisória em face de um vício menor (a ilegalidade), não há que se cogitar da sua inaplicabilidade nas situações de inconstitucionalidade.
1.1. Interpretação razoável.
Quanto à questão em análise, cabe ressaltar que não se trata da declaração de constitucionalidade/inconstitucionalidade de determinada lei, que fora considerada de modo diverso pela decisão judicial que se pretende rescindir. Trata-se na realidade da mudança de interpretação de uma norma constitucional, qual seja, o art. 153, § 3º, II da CF/88, mais especificamente do sentido da expressão não-cumulatividade, no sentido de que a não concessão do crédito presumido feriria ou não dita regra. Assim, se considerado, como é a tendência atual, que a não concessão do crédito presumido não fere a não-cumulatividade, não implica, necessariamente, em considerar que a sua concessão está em desacordo com dita regra.
Desta forma, argúi-se da pretensa inconstitucionalidade da sentença a ser rescindida e da possibilidade de ajuizamento da ação rescisória. Nesta linha, ressalta Luiz Guilherme Marinoni que “Obviamente, não se admite a utilização da ação rescisória nos casos em que exista divergência sobre a interpretação estabelecida na sentença, sob pena de desestabilizar-se toda a ordem e segurança jurídicas. A ação rescisória constitui remédio extremo, e assim não pode ser confundida com mero recurso. Em outras palavras: a sentença que possui interpretação divergente daquela que é estabelecida pela doutrina e pelos tribunais, exatamente pelo fato de que interpretações diversas são plenamente viáveis e lícitas , não abre enseja para ação rescisória (Súmula n. 343 do STF) (…). Assim,. É irrelevante saber a categoria da regra jurídica em discussão (se constitucional ou infraconstitucional), razão pela qual é incorreto admitir ação rescisória no caso em que o Supremo Tribunal Federal conferiu à regra constitucional interpretação divergente daquela que lhe foi dada pela sentença que se pretende rescindir”[3].
Em sentido contrário, leciona Bruno Noura de Moraes Rego[4], reportando-se a entendimento do Ministro do STJ Sálvio de Figueiredo Teixeira, sobre o cabimento da rescisória, com base no art. 485, V, do CPC, nas hipóteses de interpretação divergente de norma jurídica:
“Desse modo, para ele, violar literal disposição de lei é dar uma interpretação manifestamente errônea, o que não justifica a rescisão de toda interpretação que pareça menos correta. Justifica seu pensamento, argumentando que, se toda interpretação que incorreta justificasse a rescisória, se teria criado no Brasil recurso extraordinário com prazo de 2 anos. Finaliza dizendo: ‘Por outro lado, viola-se a lei não só quando se diz que não está ela em vigor, mas também quando se decide em sentido diretamente oposto ao que nela está expresso e claro. Em outras palavras, há violação não apenas quando há afronta direta ao preceito, mas igualmente quando há interpretação manifestamente errônea”.
Argúi-se, também que ”Pilar de nosso sistema jurídico, o Texto Maior não permite inconstitucionalidade de lei, nem muito menos de sentença que viabiliza confronto com ele próprio, ainda que transitada em julgado, dado que não seria possível um decreto sentencial sobrepor a Constituição Federal”[5].
Aponta ainda o referido autor a lição de Pontes de Miranda neste mesmo sentido:
“Na mesma linha de pensar de Pontes de Miranda, de que a sentença sujeita à rescisão por violação à literal disposição de lei é aquela que envolve contrariedade estridente com dispositivo, não englobando, assim, a interpretação razoável, a jurisprudência pátria tratou de prestigiar interpretações razoáveis, mesmo que divergentes”[6].
1.2. Aplicação da Súmula 343 em matéria constitucional.
Ainda neste enfoque, cabe o exame da aplicação da Súmula 343 do STF que dispõe do seguinte modo:
“Súmula nº 343 – Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei,quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
A aplicação de referida súmula foi excepcionada nos casos que tratariam de controvérsia quanto a questões constitucionais, conforme se depreende dos seguintes acórdãos[7]:
“Uma vez definida a orientação do egrégio STF sobre a interpretação de texto constitucional, é possível ajuizamento de ação rescisória contra sentença que decidiu de modo diverso”. (STJ-4ª T., REsp 287.148-RJ, rel. Min. Ruy Rosado, j. 17.5.01, deram provimento, v.u. DJU 1.10.01, p. 223). No mesmo sentido: RTJ 101/27, 108/1.369,114/361,125/267; RSTJ 96/150;
“Não incide a Súmula 343 do STF se a decisão rescindenda interpretou dispositivo constitucional de modo contrário à interpretação dada, mais tarde, pelo STF”. (STJ – Corte Especial, ED no REsp 155.654-RS, rel. Min. José Arnaldo, j. 16.6.99, não conheceram, v.u., DJU 23.8.99,p. 70).
– Declaração de Constitucionalidade/Inconstitucionalidade de Lei. Efeitos ex tunc/ex nunc.
Entretanto, em análise perfunctória dos precedentes que levaram ao afastamento de dita súmula nos casos de divergência na interpretação constitucional, aponta Ada Pellegrini Grinover[8] as situações específicas que permitem tal procedimento.
Observa a autora que a mudança de posicionamento do STF com relação a constitucionalidade/inconstitucionalidade de uma lei “tem ensejado, por parte da Fazenda Pública, o ajuizamento de diversas ações rescisórias, visando a desconstituir a coisa julgada, com base na sucessiva declaração de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal sob a alegação da ‘violação de literal disposição de lei’ por parte das sentenças rescindendas (art. 485, inc. V CPC)”[9].
Diferencia a autora duas situações: a primeira em que uma lei considerada constitucional é posteriormente declarada inconstitucional; e a segunda em que uma lei considerada inconstitucional é após declarada constitucional.
Em primeiro plano, adverte a doutrinadora que apenas no primeiro caso seria possível o afastamento da súmula e a rescisão do acórdão transitado em julgado. Para tanto, ela afirma que se uma lei é inconstitucional ela não tem validade, é nula desde a sua publicação, não podendo produzir qualquer efeito no plano jurídico. Assim, se uma decisão a considerou válida, sendo que ela nunca o foi, correta seria a sua rescisão. Neste sentido, aduz a autora, são todos os precedentes que basearam o afastamento da súmula em matéria constitucional, sendo isto possível apenas frente a situações que envolvam a declaração posterior de inconstitucionalidade, e não nos casos opostos, pois nestes não se estaria em questão atos nulos.
Entretanto, tal posicionamento já se encontra superado pela jurisprudência, que admite o julgamento de rescisória que tenha por fundo uma lei considerada inconstitucional posteriormente declarada constitucional. Confira-se:
Discute-se, ainda, quanto às questões envolvendo a declaração de constitucionalidade e inconstitucionalidade das leis, a forma como tal se deu; isto é, se a declaração foi incidental, tratando-se de controle de constitucionalidade difuso, ou se foi em sede de ADIN ou ADC, caso em que seria controle de constitucionalidade concentrado. Quanto a este último, destaca-se que por tratar-se de decisão erga omnes, e com efeitos, normalmente, ex tunc, pacífico seria o cabimento da rescisória, pois a decisão retroagiria, atingindo situações anteriores à sua declaração. Entretanto, pode dita decisão, por declaração expressa, ter efeitos ex nunc, caso em que não retroagira e, portanto, não caberia a rescisória, pois não atingiria situações fáticas anteriores à sua prolação.
Quanto ao controle difuso, aponta-se que este teria efeitos exclusivamente inter partes, não podendo atingir a situação jurídica de terceiros, e seria aplicável também como precedente para futuros julgamentos. Ressalta-se, ainda, que o julgamento incidental não retira a vigência da lei declarada inconstitucional, que, portanto, continua vigente e eficaz.
Não obstante, observa-se atualmente a flexibilização da coisa julgada, especificamente no âmbito constitucional, permitindo-se atualmente a rescisória com base em controle difuso de constitucionalidade, e até mesmo a querella nulitatis em casos específicos.
Nota-se, todavia, que tal flexibilização também tem por preocupação a segurança jurídica, asseverando Humberto Theodoro Júnior que “Enfim: para que não sejam alvitadas a segurança jurídica e o princípio do não-confisco – este último no campo tributário -, imperioso é que se adote a técnica que vem sendo aplicada no âmbito das ações de controle de constitucionalidade, qual seja, a atribuição de eficácia ex nunc à deliberação que reconhece a existência de coisa julgada inconstitucional. A decisão invalidante apenas irradiará seus efeitos, neste contexto, para atingir os atos supervenientes, jamais os pretéritos”.
Pela pertinência, vale citar, ainda, os dizeres de Ives Gandra acerca da eficácia do controle de constitucionalidade difuso e concentrado, que também pode-se aplicar ao presente caso:
“(…) não só no controle concentrado, como no controle difuso, é possível a determinação de eficácia “ex nunc” ou prospectiva em situações especiais, tendo em conta não só a irreversibilidade das relações ou situações decorrentes de orientação anterior ou ainda de gravíssima lesão a direitos patrimoniais e/ou fundamentais, como também os princípios da “não-surpresa” ou “da responsabilidade e confiabilidade na orientação oficial”, princípios essenciais para a estabilidade das instituições”[11].
Ora, grande é a preocupação com as conseqüências jurídicas da rescisão da coisa julgada. “Percebe-se, ainda, que admitir o cabimento da ação rescisória significa mais poder para o tribunal que emitiu o último juízo, pois as suas decisões assumem caráter retroativo, a partir do momento em que são usadas para revisar a coisa julgada. Na verdade, essas decisões assumem generalidade semelhante à da lei, pois passam a ser aplicadas a outros processos, com a diferença de que, à lei, não se permite retroagir para atingir a coisa julgada. Em verdade, a depender do sistema as decisões proferidas pelo último órgão judiciário, passas a ter amplitude maior do que à conferida constitucionalmente à lei”[12].
– Opinião da PGFN sobre o cabimento da rescisória quando da declaração de Constitucionalidade/Inconstitucionalidade de lei.
Em face da possibilidade de ajuizamento da ação rescisória por violação à literal disposição de lei nas decisões transitadas em julgado em sentido diverso do posteriormente decidido pelo STF, em matéria tributária, destaca-se o Parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nº 182/93, de lavra do Dr. Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho.
Trata o parecer das ações de empresas que haviam obtido decisão transitada em julgado, assegurando-lhes o direito de não recolher a CSLL tendo em vista a declaração de inconstitucionalidade da lei 7.689/88. Posteriormente, tendo o STF declarado inconstitucional apenas o art. 8º. Manifestou-se o procurador pelo não cabimento da rescisória, nos seguintes termos:
“h) em relação às decisões transitas em julgado, antes da jurisprudência pátria se tornar assente acerca da constitucionalidade da legislação da Contribuição Social sobre o Lucro das empresas, penso que não seria cabível a ação rescisória fundada em ofensa a literal disposição da Lei nº. 7.689/88, tendo em vista os verbetes das Súmulas nº. 343 do S.T.F. e nº. 134 do T.R.F.”[13]
Não obstante dito parecer, nota-se que a Fazenda Nacional ajuizou inúmeras rescisórias, que se multiplicaram conforme a aceitação da tese do seu cabimento pelos tribunais. “As ações rescisórias propostas pela Fazenda Nacional que se destinavam basicamente a rescindir as decisões, que declararam a inconstitucionalidade integral da Lei nº 7.689/88, instituidora da Contribuição Social sobre o Lucro, lograram êxito no TRF da 1ª Região. Prevaleceu a tese do cabimento da ação rescisória sob a argumentação de que a decisão contrária à do STF constitui violação à literal disposição de lei. Tal perspectiva abriu, aos contribuintes, a possibilidade de rever teses tributárias derrotadas no TRF da 1ª Região, mas acolhidas posteriormente no STF”[14].
Posteriormente, foi emitido novo parecer pela PGFN, nº 1.277/94, o qual ratificou a posição anterior de não cabimento da ação rescisória. Confira-se:
“18. Insta ponderar que, em relação às decisões transitadas em julgado, antes da jurisprudência pátria se tornar assente acerca da constitucionalidade da legislação da Contribuição Social sobre o Lucro das empresas, não seria cabível ação rescisória fundada em ofensa a literal disposição da Lei nº 7.689/88, tendo em vista os verbetes das Súmulas nº 343 do STF e nº 134, do Egrégio Tribunal Federal de Recursos”[15].
– Rescisória baseada em interpretação divergente.
No caso concreto, no entanto, questiona-se ainda a própria possibilidade de interposição da rescisória, vez que a possível mudança de posicionamento do STF sobre a questão não acarretará propriamente na declaração de inconstitucionalidade de uma lei. Tratar-se-á meramente da adoção de interpretação diferente de um dispositivo. Neste sentido adverte Bruno Noura de Moraes Rêgo[16]:
“Por fim, impende destacar que o STF continua não admitindo a ação rescisória quando há mudança na interpretação de dispositivo constitucional. Na lição do Ministro Moreira Alves: ‘Ora, é tranqüilo o entendimento desta Corte no sentido de que mudança de orientação jurisprudencial na interpretação de dispositivo legal ou constitucional não caracteriza a ocorrência de violação literal de um ou de outro’.”
– Da boa-fé do contribuinte e da segurança jurídica.
Pretende-se ainda o afastamento da ação rescisória, tendo em vista a segurança jurídica e a boa-fé do contribuinte. Neste sentido se manifestaram vários doutrinadores, conforme se depreende da obra Coisa Julgada – Constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. Entretanto, apesar de considerarem como mais adequada a vedação da rescisória nos casos de mudança de posicionamento do STF, muitos apontam que, não obstante, é cabível a rescisória. Neste sentido, confira-se:
“Para que se preservasse segurança jurídica à decisão no caso concreto a qual se submetera o contribuinte de boa-fé que recorrera ao Judiciário, creio que não se deveria rescindir a coisa julgada individual, mas, apenas, fazer cessar automaticamente sua eficácia, a partir da publicação oficial da decisão, em sentido contrário, do STF, que promovera a alteração no estado de direito na coisa julgada anterior (art. 471, I, CPC)”[17].
Assim, defende Eduardo Fortunato Bim que “O instrumento adequado para exercer a pretensão de revogar (e não anular) a coisa julgada a favor ou contra o contribuinte, fazendo incidir o dever de pagar ou não pagar o tributo declarado constitucional/inconstitucional ou legal/ilegal pelo órgão judiciário competente pela uniformização da questão, é a ação revisional da coisa julgada, prevista no art. 471, I, do CPC.
A ação rescisória não deve ser utilizada nem mesmo nos casos em que se esteja a menos de dois anos do trânsito em julgado da decisão, embora nossa jurisprudência decida pelo cabimento neste interstício”[18].
Assevera Hugo de Brito Machado Segundo, quanto ao ajuizamento de ação rescisória que “Com efeito, caso a Fazenda Pública manejasse dentro do prazo uma rescisória em face de decisão judicial que eximiu um contribuinte do pagamento de determinado tributo. Oito anos depois do trânsito em julgado (suponhamos que a rescisória foi proposta nos últimos dias do prazo de dois anos, e levou seis anos para ser julgada), os pedidos da Fazenda são julgados plenamente procedentes, à luz de uma jurisprudência, sobre o mérito, formada a posteriori no STF. Poderia a Fazenda ‘relançar todos os tributos devidos e não pagos no período? E os prazos de decadência? E os custos da atividade econômica, que não foram acrescentados de tal tributo, metido retroativamente pela alteração jurisprudencial ulterior? Tudo isso mostra o quanto a rescisória pode exacerbar o ‘respeito’ (?!) à isonomia, sacrificando demasiadamente a segurança jurídica representada pela proteção à coisa julgada”[19].
Ainda neste sentido, aponta o autor os dizeres de Helenilson Cunha Pontes, ora transcritos:
“a manutenção dos regulares efeitos jurídicos dos atos praticados anteriormente à pronúncia de inconstitucionalidade, além de exigência do princípio da unidade da Constituição e do equilíbrio entre segurança jurídica e supremacia da Constituição, é resultante também da consideração de outros princípios e regras jurídicos (confiança e boa-fé, irretroatividade maligna, proteção ao exercício regular do direito, regra do art. 146 do CTN)”[20].
2. Possibilidade de propositura de Ação Rescisória pela Fazenda Pública em matéria tributária.
Para um melhor esclarecimento da questão em enfoque, faz-se necessário o exame da possibilidade de ajuizamento de Ação Rescisória pela Fazenda Pública contra decisão favorável ao contribuinte, em razão de posterior manifestação da Suprema Corte em sentido contrário ao decidido.
Parte da doutrina sustenta que, caso se permitisse, pela via da Ação Rescisória, a reforma de uma decisão proferida a favor do contribuinte, em consonância com a jurisprudência então prevalecente, ainda que posteriormente haja entendimento jurisprudencial que consagre tese em sentido contrário, a autoridade da coisa julgada material seria seriamente comprometida.
Segundo tal entendimento, estaria vedada a Ação Rescisória em matéria tributária, sempre que o contribuinte tivesse a seu favor uma decisão transitada em julgado de declaração de inconstitucionalidade, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da segurança jurídica.
Todavia, em exame jurisprudencial da matéria, constata-se que o entendimento acima explicitado não prospera. Corroborando tal assertiva, pode-se citar decisões do Superior Tribunal de Justiça acerca da procedência do pleito rescisório da Fazenda Pública do acórdão que entendeu por inconstitucional a majoração das alíquotas do Finsocial para as empresas prestadoras de serviços, tendo em vista a posterior declaração de constitucionalidade da referida exação pelo Plenário do STF. Confira-se:
“AÇÃO RESCISÓRIA. ART. 485, V, DO CPC. FINSOCIAL. MAJORAÇÃO DE ALÍQUOTA. EMPRESAS PRESTADORAS DE SERVIÇO. CONSTITUCIONALIDADE. SÚMULA N. 343/STF. NÃO-INCIDÊNCIA.
1. É cabível ação rescisória para desconstituir acórdão que tenha deixado de aplicar determinado dispositivo de lei por considerá-lo inconstitucional, sobrevindo decisão do STF que atesta sua constitucionalidade. Hipótese que não se subsume no enunciado da Súmula n. 343/STF.
2. É devida a contribuição para o Finsocial pelas empresas dedicadas exclusivamente à prestação de serviços nos moldes previstos nos arts. 7º da Lei n. 7.787/89, 1º da Lei n. 7.894/89 e 1º da Lei n. 8.147/90.
3. Recurso especial provido”. (STJ – REsp 449828 / DF; 2ª Turma; Rel. Min. Eliana Calmon; DJ 03.10.2005, p. 166).
“PROCESSUAL CIVIL. LEI Nº 7.787/89. FINSOCIAL. CONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO STF. AÇÃO RESCISÓRIA. SÚMULA 343/STF. NÃO-INCIDÊNCIA.
1. Entendimento consagrado na Suprema Corte no sentido de que são constitucionais a cobrança do FINSOCIAL sobre a receita bruta das empresas prestadoras de serviços, por meio do art. 28 da Lei nº 7.738/89, assim como as majorações da alíquota da referida contribuição.
2. É rescindível por literal violação à lei o acórdão que julga inconstitucional lei que, ao fim, o Supremo Tribunal Federal vem a declarar constitucional, ainda que à época da prolação da decisão a questão se achasse controvertida.
3. Recurso especial provido”. (STJ REsp 462963 / DF -; 2ª Turma; Rel. Min. Castro Meira; DJ 05.09.2005, p. 339).
As decisões das Ações Rescisórias relativas à CSLL também servem de exemplo para ilustrar o alegado. Veja-se:
“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO DE PESSOAS JURÍDICAS. CONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 1º A 7º DA LEI N. 7.689/88, DECLARADA PELO STF. SÚMULA N. 343/STF. INAPLICABILIDADE.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido do cabimento de ação rescisória fundada no art. 485, inciso V, do CPC, quando a interpretação controvertida recai sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinado dispositivo de lei, hipótese em que se afasta a Súmula n. 343 do STF.
2. Reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade dos arts. 1º a 7º da Lei n. 7.689/88, as disposições neles contidas deveriam ter sido observadas, já que em pleno vigor. Como não o foram, houve, no acórdão rescindendo, expressa violação de literal disposição de lei, razão pela qual merece a ação rescisória ser julgada procedente.
3. Recurso especial provido”. (STJ REsp 265060 / SP; 2ª Turma; Rel. Min. João Otávio de Noronha; DJ 01.02.2006, p. 472).
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO LÍQUIDO – CSLL. CONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 1º A 7º DA LEI 7.689/88, DECLARADA PELO STF. SÚMULA 343/STF. INAPLICABILIDADE. AGRAVO PROVIDO.
1. Esta Corte já consolidou o entendimento no sentido de ser cabível ação rescisória quando o tema discutido envolver constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei, sendo inaplicável, portanto, o óbice da Súmula 343/STF.
2. O STF declarou a constitucionalidade dos arts. 1º a 7º da Lei 7.689/88, devendo-se acolher pedido rescisório de acórdão que, de modo expresso, entender que a lei é inconstitucional (RE 138.284/CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 28.8.1992, e Resolução 11/95 do Senado Federal).
3. Agravo regimental provido. (STJ – AgRg no REsp 548582 / PE; 1ª Turma; Rel. Min. Denise Arruda; DJ DJ 01.02.2006, p. 435).
À vista do exposto, infere-se que, regra geral, é possível a propositura de Ação Rescisória pela Fazenda Pública, em matéria tributária, visando desconstituir uma decisão que julga inconstitucional lei que, posteriormente o STF declara constitucional.
3. Efeitos da Ação Rescisória.
A Ação Rescisória tem como escopo rescindir a decisão transitada em julgado, propiciando, nas hipóteses cabíveis, o rejulgamento da causa. Depreende-se desse objetivo a possibilidade de coexistência de dois tipos de pedido na Ação Rescisória: pedido rescindente e pedido rescisório. O primeiro (judicium rescindens) refere-se ao mérito da rescisória, ou seja, se há na decisão rescindenda algum dos vícios elencados no art. 485 do CPC, que autorize sua desconstituição. Sua natureza será, pois, sempre desconstitutiva ou constitutiva negativa. Já o segundo (judicium rescissorium) diz respeito ao mérito da ação cuja sentença se pretende rescindir, vale dizer, trata-se de pedido de novo julgamento da ação rescindenda que será realizado pelo próprio tribunal, caso este julgue procedente a Ação Rescisória. Terá tal pedido a mesma natureza jurídica da sentença substituída.
Cumpre ressaltar que o pedido rescisório é cabível apenas em algumas hipóteses, como no caso de violação de literal disposição de lei material (art. 485, V). Ademais, o rejulgamento da causa está adstrito ao pedido da ação cuja decisão fora rescindida.
Sobre o alcance do pedido rescisório, vale citar os ensinamentos de Ernane Fidélis dos Santos[21], no sentido de que o novo julgamento tem o condão de fazer com que, caso a decisão rescindida já tenha sido executada, as coisas voltem ao estado anterior, por força de nova execução. Eis seus dizeres:
“O pedido que se pode cumular ao de rescisão é apenas o de novo julgamento da causa. Não se comporta, na rescisória, pedido específico de condenação à devolução de coisa, dinheiro, indenização por serviço prestado etc., quando já tiver havido execução da sentença ou acórdão rescindendos. Mas, na consideração de que, declarada a rescisão do ato jurídico judicial, tudo volta ao estado anterior, o iudicium rescissorium poderá gerar efeitos secundários que também autorizam execução. O autor da rescisória fora condenado, como réu, a pagar quantia em dinheiro, ou a entregar imóvel que tinha em sua posse. No novo julgamento, o acórdão da rescisória deu pela improcedência do pedido condenatório, ou ao de reivindicação. Como efeito secundário da decisão, que é declaratória, muito lógico que, já tendo havido execução, por outra se façam voltar as coisas ao estado anterior, isto é, que se permita ao autor fazer, através do processo executório, o imóvel voltar a sua posse, e a se reembolsar da quantia que pagou indevidamente, em execução, com os acessórios que lhe são peculiares”.
No mesmo sentido é a lição de Pontes de Miranda[22], segundo a qual a prestação jurisdicional que fora entregue em ação anterior será desfeita, em caso de êxito do juízo rescisório. Noutros dizeres, sendo julgado procedente o pleito rescisório, os efeitos decorrentes da decisão rescindida desfazem-se de forma ex tunc, a fim de que a situação volte a seu estatus quo. Isso porque, com o trânsito em julgado da sentença rescindente, tudo que fora rescindido é retirado do mundo jurídico, ou seja, a sentença que anteriormente era eficaz, deixa de existir, prevalecendo, portanto, o novo julgamento proferido em sede do juízo rescisório. Pertinente, pois, a seguinte observação apontada mais adiante pelo autor em comento:
“Há um ponto que merece atenção: a execução ou cumprimento da sentença rescindenda, se advém a rescisão com a desconstituição completa, não pode beneficiar a quem recebeu algo do efeito sentencial. Daí, não se pode dizer que o réu, vencido na sentença proferida em ação de reivindicação, não está obrigado a restituir os frutos da coisa reivindicada auferidos no período entre a data da sentença rescindenda e a sentença rescindente”.
Trazendo os ensinamentos supratranscritos especificamente para o campo do Direito Tributário, pode-se inferir que a Fazendo Pública, logrando êxito em Ação Rescisória ajuizada para desconstituir decisão sobre a qual se amparava o contribuinte para não recolher um determinado tributo, estaria autorizada a lançar todos os débitos originados sob a égide da decisão rescindida, respeitado o prazo decadencial.
Contudo, há quem entenda que nos casos em que a Fazenda Pública é vencida e, posteriormente, reconhece-se a constitucionalidade da norma que a sua sentença individual havia afirmado como inválida, tal declaração de constitucionalidade não poderia produzir efeitos pretéritos, tendo em vista a garantia do cidadão da vedação à irretroatividade das leis.
A propósito, vale mencionar o entendimento de Hugo de Brito Machado Segundo e Raquel Cavalcanti Ramos Machado[23], sobre a questão em análise:
“Assim, quer na hipótese de o cidadão restar vencido, com o reconhecimento de que um tributo é devido, quer na hipótese de a Fazenda Pública restar vencida, com o reconhecimento de que um tributo não é devido, a posterior alteração da jurisprudência é motivo para que promova a ação de revisão ou modificação da coisa julgada, com eficácia ex nunc. Se o erro da decisão transitada em julgado for evidente – o que não depende, necessariamente, de sua adequação à jurisprudência – poderá ser rescindida, podendo a decisão proferida na rescisória ter efeitos ex tunc, mas isso é uma outra questão. Por economia processual, parece-nos que se a rescisória for oposta, ao invés da ação de revisão/modificação da coisa julgada, pode ser conhecida, de sorte a que a rescisão do julgado somente opere efeitos ex nunc, como seriam os feitos da ação revisional (mais apropriada no caso) de que cuida o art. 471 do CPC”.
Tratando especificamente dos efeitos da rescisória quando a matéria de fundo é de direito tributário, há opiniões doutrinárias no seguinte sentido:
“ Os efeitos de sentença tributária em ação rescisória seriam ex nunc em razão do artigo 156 do Código Tributário Nacional que prevê, como hipótese de extinção do crédito tributário, a decisão judicial passada em julgado, ou seja, a ação rescisória não tem o condão de fazer renascer o crédito tributário extinto. Assim aborda o assinto Sacha Calmon Navarro Coelho, argumentando que há limites de direito material á ação rescisória na área de direito tributário, pois, compreende que nem mesmo a ação rescisória – quando se tratar de interpretação da norma tributária ou seja de pura “quaestio juris” – tem o condão de fazer renascer um crédito tributário já extinto, pois a obrigação tributária (a relação jurídica) legalmente inexiste. Inexiste não porque a sentença rescindenda assim determinou, mas senão porque uma lei complementar da Constituição – lei material – determinou este efeito para a sentença definitiva: o fim da obrigação e do crédito tributário correspondente”[24].
Entretanto, por meio do exame jurisprudencial da matéria, verifica-se que, como a Ação Rescisória possibilita um rejulgamento da questão, a decisão nela proferida é que passará a reger as situações jurídicas por ela abarcadas, sejam elas pretéritas ou futuras. Dessa forma, a decisão proferida em sede de Ação Rescisória pode gerar efeitos retroativos, visto que irá substituir a decisão rescindida em todos os seus aspectos. A título ilustrativo, confira-se a parte dispositiva da decisão proferida pelo TRF da 1ª Região, quando do julgamento da Ação Recisória nº 2002.01.00.019531-3/MG[25], que retrata a possibilidade de efeito retroativo da sentença rescisória:
“Pelo exposto, na esteira, portanto, desses precedentes do STJ, do STF e desta 2ª Seção, JULGO PROCEDENTE o pedido rescisório e DECLARO rescindido o acórdão da T4/TRF1 nos autos da AC nº 96.01.34886-7/MG (AD nº 94.0004165-9 – 6ª Vara/MG).
De conseqüência, rejulgando a causa, julgo procedente, em parte, o pedido, para declarar que as empresas, vendedoras de mercadorias (mercantis) e/ou vendedoras de mercadorias e serviços (mistas) estão : a) obrigadas a recolher o FINSOCIAL, à alíquota de 0,5% prevista no Dl nº 1.940/82 e art. 56 do ADCT, de OUT 88 até vigência da LC nº 70/91; b) eximidas do cumprimento do art. 9º da Lei nº 7.689/88 e das majorações de que tratam as Lei n. 7.738/89 (art. 28), Lei n. 7.787/89 (art. 7º), Lei n. 7.894/89 (art. 1º) e Lei n. 8.147/90 (art. 1º); c) obrigadas a pagar a Contribuição Social Sobre o Lucro (CSSL), instituída pela Lei n. 7.689/88, a partir de MAR 89.
CONDENO a ré à restituição das custas em ambos os feitos e à verba honorária de 10% sobre o valor da causa na ação ordinária e de R$ 1.000,00 na rescisória.
AUTORIZO à autora, após o trânsito em julgado, o levantamento do depósito prévio”.
Com relação aos efeitos futuros de uma decisão posterior em sentido contrário àquela obtida pelo contribuinte em determinado momento, há que se ressaltar, que, em se tratando de relação continuativa, de trato sucessivo, a coisa julgada opera efeitos sob o influxo da cláusula rebus sic standibus, o que significa dizer que a permanência de seus efeitos fica subordinada à permanência do fato jurígeno e da correspondente norma que o regulamenta. Assim, alterado o fato ou alterada a norma que o suporta, a relação jurídica primitiva se modifica, cessando, por isso mesmo, os efeitos da coisa. Nesses casos, para reanalisar questões já decididas não seria necessário o ajuizamento da Ação Rescisória, sendo suficiente para tanto a propositura da ação revisional, prevista no art. 471, I, do CPC[26]. Há ainda, quem sustente que, na relação jurídica tributária, as sentenças continuativas favoráveis ao contribuinte perderão automaticamente a sua eficácia com a alteração das circunstâncias então vigentes, pois proferidas com a ressalva implícita da referida cláusula rebus sic standibus.
4. Conclusões
Aplicando-se o que fora exposto ao caso em estudo, pode-se concluir o seguinte:
(a) Uma eventual alteração do entendimento do STF sobre a constitucionalidade de uma norma legal, de forma desfavorável ao contribuinte, pode gerar efeitos futuros para este, inclusive sem a propositura de Ação Rescisória. Ou seja, a decisão já transitada em julgado que lhe concede um direito poderá perder a eficácia em razão do ajuizamento de ação revisional por parte da Fazenda Pública, ou, ainda, segundo alguns, poderá parar de gerar efeitos automaticamente, tendo em vista a cláusula rebus sic standibus que lhe é implícita.
(b) Admitindo-se o cabimento da Ação Rescisória, tem-se que a sua procedência ensejaria novo julgamento da ação, cuja decisão será rescindida, gerando, possivelmente, efeitos retroativos. Explica-se. Caso a Ação Rescisória, ajuizada pela Fazenda Pública, seja julgada procedente, haverá a desconstituição da decisão que concedia o direito, e sua conseqüente substituição por outra que lhe negue tal direito. Baseado nessa nova decisão, o Fisco poderia lançar todo o débito que, “indevidamente”, não foi quitado.
Informações Sobre o Autor
Larissa Ferreira da Silva
Acadêmica de Direito