A Lei Complementar n. 207/79 ( Lei Orgânica da Polícia Civil do Estado de São Paulo ), estabelece em seu art. 63, LIII:
“São transgressões disciplinares:
LIII – exercer comércio ou participar de sociedade comercial, salvo como acionista, cotista ou comanditário.”
As condutas vedadas aos policiais civis são duas, a saber:
a) “exercer comércio”;
b) “participar de sociedade comercial”.
A simples leitura do dispositivo legal demonstra claramente que a vedação é absoluta no que tange à primeira conduta ( “exercer comércio” ), sendo porém relativa quanto à segunda ( “participar de sociedade comercial ” ), pois que excepciona as possibilidades de participação do policial nas qualidades de acionista, cotista ou comanditário.
A “mens legis” é bastante clara, visando impedir que o funcionário venha a efetivamente exercer atividades extras que possam, eventualmente, resultar em prejuízo ao serviço público. Por isso nada impede que o funcionário participe de uma sociedade, desde que isso não implique em atos de gerência ou quaisquer atividades profissionais que possam direta ou indiretamente afetar o bom desempenho de sua função pública.
De outra banda é interessante lembrar que o Direito Privado divide-se basicamente em dois grandes ramos, quais sejam, o Direito Civil e o Direito Comercial. Este o ensinamento de Washington de Barros Monteiro[1]:
“Direito privado, por seu turno, é o conjunto de preceitos reguladores das relações dos indivíduos entre si ( ‘privatum, quod ad singulorum utilitatem’ ). Subdivide-se em direito civil e direito comercial, disciplinando este a atividade das pessoas comerciantes e aquele, a dos particulares em geral.”
Firmada essa distinção primária, observa-se com facilidade que o art. 63, LIII sob comento somente se refere às atividades atinentes ao segundo ramo supra mencionado ( Direito Comercial ).
O dispositivo tem cunho tipificador de transgressão disciplinar, com a conseqüente carga punitiva no caso de sua violação.
Há autores que chegam a falar na existência de um “Direito Penal Administrativo”, “para aludir a sanções de natureza administrativa, análogas às penais por atingirem ao indivíduo com a cominação de um mal proporcional ao ato cometido, como acontece, por exemplo, com as sanções disciplinares.”[2] Não obstante a impropriedade passível de ser apontada nessa terminologia[3], forçoso é reconhecer que as garantias constitucionais deverão sempre fazer-se presentes quando se tratar de qualquer espécie de punição. Os Princípios da Legalidade, do Contraditório e da Ampla Defesa são aplicáveis, inclusive por disposição constitucional expressa, ao ordenamento jurídico como um todo ( CF, art. 5º,II, XXXIX, LIV e LV ), logicamente abrangendo as normas cogentes de Direito Administrativo.
Hely Lopes Meirelles[4] apresenta o “princípio da legalidade objetiva” que “exige que o processo administrativo seja instaurado com base e para preservação da lei. ( … ). Todo processo administrativo há que embasar-se, portanto, numa norma legal específica para apresentar-se com ‘legalidade objetiva’, sob penal de invalidade”.
Nota-se que no âmbito punitivo – disciplinar deve-se obedecer às mesmas diretrizes da legalidade e da tipicidade que orientam o Direito Penal. Afinal, ontologicamente não há diferença entre as estruturas repressivas, regendo-se ambas por fundamentos bem aproximados.
O chamado “modelo garantista” preconizado pelo autor peninsular Luigi Ferrajoli, com seus axiomas, dentre os quais avulta o velho conhecido “Nullum crimen sine lege”[5], pode perfeitamente adequar-se ao sistema punitivo – disciplinar, de modo que lições comuns ao Direito Penal ( sentido estrito ) podem ser transplantadas ao âmbito administrativo.
Assim sendo, a dissertação de Frederico Marques[6] sobre o significado do Princípio da Legalidade tem plena e oportuna aplicação neste tópico:
“O princípio da legalidade tem significado político e jurídico: no primeiro caso, é garantia constitucional dos direitos do homem, e, no segundo, fixa o conteúdo das normas incriminadoras, não permitindo que o ilícito penal seja estabelecido genericamente sem definição prévia da conduta punível e determinação da ‘sanctio juris’ aplicável.
A teoria da tipicidade lhe deu forma técnico – jurídica, de maneira a admitir como fato punível só a ação e evento enquadráveis numa definição prévia formulada pelo legislador descrevendo as condutas delituosas. Daí o ilícito penal ser descontínuo e delimitado às hipóteses previstas na lei, pelo que não é possível a construção dogmática de figuras criminosas mediante analogia. ( … ).
A não previsão de uma conduta nas normas que modelam o ilícito penal em figuras especiais previamente descritas traz como conseqüência considerar-se lícito, no Direito Penal, qualquer outro comportamento humano que nessas figuras não se enquadre. A omissão do legislador não significa aí a existência de lacuna, porquanto não prevista a hipótese pelo legislador, esta é considerada penalmente lícita.”[7]
Neste diapasão expõe Nelson Hungria[8] que “os Códigos Penais modernos, segundo um conceito aparentemente paradoxal de von Liszt, são a ‘Magna Charta libertatum’ dos delinqüentes. O princípio central de quase todos eles é o da ‘legalidade rígida’: o que em seus textos não se proíbe é penalmente lícito ou indiferente. ‘Permittitur quod non prohibetur’.”
Após esta breve digressão, podemos retornar especificamente ao temário da Lei Complementar 207/79, desde logo concluindo, “mutatis mutandis”, que tal diploma, ao definir os ilícitos administrativos passíveis de sanções disciplinares, tipificando e individualizando condutas, traça os limites do “jus puniendi” da Administração. Ou seja, são puníveis apenas as condutas ali previstas e aplicáveis as penas previamente cominadas. Fatos atípicos, mesmo análogos ou que possam parecer carecedores de repressão, não justificam a penalidade administrativa. Em suma, ao servidor policial civil é permitida qualquer conduta não expressamente proibida pela Lei Orgânica.
No caso do art. 63, LIII, o que é vedado é o exercício do comércio ou da participação ativa em sociedade comercial.
Retornando aos conceitos antes mencionados sobre a divisão do Direito Privado em Civil e Comercial, temos que as sociedades também podem revestir-se de uma das duas naturezas.
Ora, uma sociedade é a “conjunção voluntária e declarada, de esforços e recursos, ou só de esforços, ou só de recursos”, o que constitui o chamado “contrato de sociedade”.[9] Este vem cristalinamente definido no art. 1363 do Código Civil:
“Art. 1363. Celebram contrato de sociedade as pessoas que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos, para lograr fins comuns.”
Na realidade o conceito civil de sociedade pode ser considerado universal no Direito Privado, apenas ocorrendo distinção da sociedade comercial no que se refere aos fins colimados, mais especificamente à atividade a ser desenvolvida.
Rubens Requião[10] faz bem esta distinção ao asseverar:
“Nessa ordem de pensamento destinaríamos a palavra ‘sociedade’ para designar a entidade constituída por várias pessoas, com objetivos econômicos. Em virtude da diversificação do direito privado ( dicotomia ), em direito civil e direito comercial, seriam as sociedades de uma ou outra natureza, conforme seu objeto: ‘sociedade comercial’ para a prática constante de atos de comércio; ‘sociedade civil’, para a prática de atos civis com fins econômicos ( ex. sociedade imobiliária, agricultura, prestação de serviços, etc. ).” ( grifo nosso ).
A pedra de toque da distinção, conforme se vê, está na prática de “atos de comércio” e são esses atos que são realmente vedados pelo art. 63, LIII da LC 207/79 ao policial civil, pois que se refere ao “exercício do comércio” e à participação ativa em sociedade comercial, o que eqüivale ao primeiro verbo, ou seja, o efetivo exercício da atividade comercial, considerado incompatível com a função policial.
Mas, afinal, o que são atos de comércio?
Com a resposta desta questão poderemos definir em cada caso concreto a incidência ou não da norma insculpida no art. 63, LIII, da Lei Complementar 207/79, tendo em conta o Princípio da Legalidade. Se não caracterizados atos de comércio, teremos uma sociedade civil que não encontra previsão no dispositivo proibitivo acima. Apenas reforçando, mesmo que caracterizada a prática de atos de comércio, e, portanto, de sociedade comercial, mas sendo a participação do servidor não ativa ( acionista, cotista ou comanditário ), excluída também estará a norma por sua expressa exceção.
O mesmo Rubens Requião[11] aponta “as imprecisões da teoria dos atos de comércio”, apresentando a perplexidade da doutrina perante a árdua missão de construir um conceito nítido e unitário.
Alfredo Rocco[12] desenvolve seu estudo no sentido de indagar o conceito fundamental que inspirou o legislador na elaboração do elenco de atos de comércio, que são enumerados nos textos legais. Em síntese, concluindo essa pesquisa quanto ao antigo Código Comercial Italiano, assim se manifesta o comercialista:
“Ora, nós vimos que o conceito comum, que se acha imanente em todas as quatro categorias de atos intrinsecamente comerciais: na compra para venda e ulterior revenda, nas operações bancárias, nas empresas e na indústria de seguros, é o conceito de troca indireta ou mediata, da interposição na efetivação da troca. ( … ). Todo o ato de comércio pertence a uma dessas quatro categorias; é, pois, um ato em que se realiza uma troca indireta ou por meio de interposta pessoa, isto é uma função de interposição na troca.” Finalmente chega à seguinte definição: “É ato de comércio todo ato que realiza ou facilita uma interposição na troca.”
Para Gaston Lagarde[13] “o ato de comércio é um ato de intermediação na circulação de riquezas.”[14]
Esta fluidez na definição dos atos de comércio levou os sistemas legislativos a procurarem estabelecer casuisticamente os atos que a lei reputa comerciais.[15]
Não foi este, porém, o caminho adotado pelo legislador pátrio. O nosso Código Comercial abandonou a técnica enumerativa, adotando um critério subjetivo para a conceituação, assentando o seu sistema na definição de comerciante, exposta no seu artigo 4º : “Ninguém será reputado comerciante para efeito de gozar da proteção que este Código liberaliza em favor do comércio, sem que se tenha matriculado em algum dos Tribunais do Comércio do Império e faça da mercancia profissão habitual.”
Com a extinção dos Tribunais do Comércio pelo Decreto 2662, de 9 de outubro de 1875, suas atribuições administrativas passaram para as Juntas Comerciais ( Lei 4726, de 13 de julho de 1965, regulamentada pelo Decreto 57651, de 19 de janeiro de 1966 ). Portanto, pelo atual ordenamento a figura do comerciante dependerá da inscrição na Junta Comercial e da habitualidade da mercancia.
Um vetusto Regulamento n. 737, datado de 1850 é, talvez, um dos poucos parâmetros para uma delimitação dos atos de comércio, muito embora não taxativa, mas meramente exemplificativa . Mesmo assim seu art. 19 traz uma enumeração que pode ser bastante elucidativa, prescrevendo:
“Considera-se mercancia:
§ 1º – a compra e venda ou troca de efeitos móveis ou semoventes, para vender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar seu uso;
§ 2º – as operações de câmbio, banco e corretagem;
§ 3º – as empresas de fábricas, de comissões, de depósito, de expedição, consignação e transporte de mercadorias, de espetáculos públicos;
§ 4º – os seguros, fretamentos, riscos, e quaisquer contratos relativos ao comércio marítimo;
§ 5º – a armação e expedição de navios.”
Desse modo, na esteira de Requião[16] pode-se concluir que “o sistema do Código de 1850 é ‘subjetivo’, pois assenta na figura do comerciante, não evitando, porém, o tempero ‘objetivo’, enumeração legal dos atos de comércio, para esclarecer o que seja ‘mercancia’, elemento radical na conceituação do comerciante.”
Considerando todo o exposto e analisando os casos de policiais civis envolvidos na exploração do ramo da segurança privada, podemos notar que se trata de atividade de prestação de serviços. Malgrado a existência de compensação financeira ou lucro, claro está que este elemento isolado não tem o condão de emprestar a uma sociedade o caráter de “comercial”, pois que as sociedades e os atos civis também podem ter finalidade lucrativa.
Nas empreitadas de segurança privada existe uma prestação direta de um serviço mediante determinada remuneração, tratando-se de atividade de índole precipuamente civil.
Verificando com vagar os critérios, embora fugidios, da conceituação dos atos de comércio, constata-se sem muito esforço que não há adequação entre a atividade enfocada e os requisitos preconizados pela doutrina ou mesmo pelas normas regulamentares ( “intermediação na circulação de riquezas”; “interposição na troca”; ou mesmo similitude aos atos elencados no Decreto 737, de 1850 ).
A prestação dos serviços de segurança privada é atividade civil e, conseqüentemente, a sociedade para sua consecução é de caráter civil, regida nos termos dos artigos 1363 e seguintes do Código Civil Brasileiro.
Portanto, inaplicável à espécie a transgressão disciplinar prevista no art. 63, LIII , da Lei Complementar n. 207/79 ( Lei Orgânica da Polícia Civil do Estado de São Paulo ) que menciona o exercício do comércio e sociedade comercial, devendo a responsabilidade funcional, se existente, recair sobre outros argumentos e dispositivos legais. Tal decorre de comezinho princípio de hermenêutica que dita a regra de que quando palavras dotadas de significado técnico são empregadas no texto legal, devem ser interpretadas em seu sentido técnico estrito e não comum ou de modo ampliativo.[17] Esta é a única possibilidade exegética respeitante das garantias constitucionais, especialmente no que toca ao Princípio da Legalidade, corolário fundamental do limite ao poder do Estado em face dos indivíduos ( CF, art. 5º, II e XXXIX ).
Informações Sobre o Autor
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.