Alguns aspectos polêmicos da recuperação judicial

 1. Delineamento da recuperação judicial


As repercussões decorrentes da crise internacional proporcionaram um aumento substancial no número de pedidos de recuperação judicial no país em 2009. A Lei n° 11.101/2005, conhecida como a nova Lei de Falência e de Recuperação de Empresas, extinguiu as concordatas no país e introduziu no ordenamento jurídico nacional a recuperação judicial de empresa. Trata-se de um benefício legal à disposição do empresário individual e da sociedade empresária em crise e que exploram regularmente a atividade econômica há mais de dois anos.


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A recuperação judicial objetiva a superação da crise empresarial, permitindo a continuidade da atividade econômica para evitar a falência, tendo por finalidade, nos termos do art. 47 da Lei n° 11.101/2005,  a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e do interesse dos credores no intuito de promover a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.


O processo de recuperação judicial é promovido por iniciativa do próprio empresário em crise, que apresenta perante o Poder Judiciário o pedido do benefício. Verificando o atendimento a todos os requisitos legais, o juiz defere o processamento da recuperação judicial, abrindo-se prazo para os credores realizarem as habilitações de crédito perante o administrador judicial e para o devedor apresentar o plano de recuperação judicial.


Neste plano, o devedor apresentará os meios que serão utilizados para a superação da crise. Normalmente o plano prevê a dilação para o pagamento das dívidas, redução no valor a ser pago, venda de filiais, dentre outros meios apresentados, em caráter exemplificativo, no art. 50 da lei de regência. Ressalta-se que, com exceção das dívidas trabalhistas, na recuperação judicial comum não há limite legal para a dilação no pagamento das dívidas, existindo casos em que o pagamento supera amplamente o prazo de cinco anos. Não resta dúvida que os meios de recuperação previstos no plano impõem sacrifícios aos credores, sendo, muitas vezes, a única forma que alguns deles possuem para garantir o recebimento dos seus créditos.


O plano de recuperação judicial é submetido à aprovação dos próprios credores que, diante da apresentação de objeções consistentes ao plano, provocam a convocação da Assembléia Geral de Credores para a realização da sua análise. A rejeição do plano implica na determinação legal da convolação da recuperação judicial em falência, o que, de certa forma, conduz a sua aprovação pelos credores ou a apresentação de alterações ao plano, sujeitas a anuência expressa da recuperanda.


Interferências no projeto de lei durante a sua tramitação no Congresso Nacional afastaram da recuperação judicial as dívidas decorrentes de contratos de arrendamento mercantil (leasing), de alienação fiduciária e de adiantamento de contrato de câmbio para exportação, dentre outras previstas no art. 49 da Lei n° 11.101/2005. Durante o prazo de 180 dias, contados do deferimento do processamento da recuperação judicial, é vedada a retirada do estabelecimento da recuperanda dos bens de capital essenciais ao exercício da atividade empresarial, existindo decisões estendendo este prazo para assegurar a preservação da empresa.


Não havendo objeções dos credores ou aprovado o plano de recuperação judicial pela Assembléia Geral de Credores, a recuperanda deve apresentar certidões negativas de débitos tributários para permitir o deferimento da recuperação judicial. Diante da notória dificuldade no atendimento à exigência legal, vista como sanção política, a recuperação judicial vem sendo deferida sem a exigência prevista, conforme entendimento consolidado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.


Deferida a recuperação judicial, a recuperanda e os credores sujeitos ao plano ficam vinculados ao seu cumprimento, ingressando o processo de recuperação judicial no período de observação de dois anos, em que o juiz, o administrador judicial e o comitê de credores, caso exista, fiscalizam o cumprimento das obrigações pela recuperanda. Durante este período, a recuperação judicial transforma-se em falência no caso de descumprimento de qualquer obrigação prevista no plano pela recuperanda.


O fim do período de observação de dois anos determina o encerramento do processo de recuperação judicial. Caso o plano apresente obrigações com o cumprimento previsto para após o encerramento do processo, hipótese frequente, referidas obrigações continuarão sob a fiscalização dos credores, constituindo o plano de recuperação judicial título executivo judicial. O cumprimento de todas as obrigações previstas no plano pela recuperanda assegura o êxito da recuperação judicial,  do contrário, o devedor poderá ter a falência determinada.


2. Alguns pontos polêmicos da recuperação judicial


O presente artigo destaca alguns aspectos polêmicos identificados na recuperação judicial com a finalidade de promover o debate jurídico. A Lei n° 11.101/2005 permite o surgimento de inúmeros questionamentos em diversos pontos, muitas vezes pelo fato da questão não se encontrar disciplinada de forma específica na lei, outras vezes em decorrência da necessária interpretação sistemática de seus artigos com a finalidade de assegurar o pleno êxito da recuperação judicial, nos termos do art 47, diante das alterações introduzidas no projeto de lei por influência do setor financeiro.


Diante dos inúmeros pontos polêmicos, o artigo destaca, neste momento, apenas cinco. As questões referentes à cessão fiduciária de créditos, possibilidade de inclusão no plano de recuperação judicial dos créditos financeiros excluídos pelo art. 49, §§3° e 4º,  remuneração do administrador judicial e a reserva de 40%, cessão de crédito e direito de voto, novação recuperacional, representação dos credores trabalhistas na Assembleia Geral de Credores, suspensão das ações propostas contra avalistas e fiadores da recuperanda, prorrogação dos prazos previstos na lei, nulidade ou anulabilidade das deliberações dos credores ou da Assembleia Geral de Credores, abuso do direito de voto, dentre outros pontos polêmicos, embora aqui mencionados, não foram abordados nesta oportunidade, ficando apenas consignados.


2.1. Litisconsórcio ativo na recuperação judicial


A Lei n° 11.101/2005 não trata da possibilidade do pedido de recuperação judicial apresentado por mais de um devedor, entretanto, são inúmeros os casos de litisconsórcio ativo em recuperação judicial. Ao tratar do tema, Ricardo Brito Costa conclui:


“A formação do litisconsórcio ativo na recuperação judicial, a despeito da ausência de previsão na Lei n° 11.101/2005, é possível, em se tratando de empresas que integrem um mesmo grupo econômico (de fato ou de direito). Nesse caso, mesmo havendo empresas do grupo com operações concentradas em foros diversos, o conceito ampliado de ‘empresa’ (que deve refletir o atual estágio do capitalismo abrangendo o ‘grupo econômico’), para os fins da Lei n° 11.101/2005, permite estabelecer a competência do foro do local em que se situa a principal unidade (estabelecimento) do grupo de sociedades. O litisconsórcio ativo, formado pelas empresas que integram o grupo econômico, não viola a sistemática da Lei n° 11.101/2005 e atende ao Princípio basilar da Preservação da Empresa. A estruturação do plano de recuperação, contudo, há de merecer cuidadosa atenção para que não haja violação de direitos dos credores” (COSTA, 2009, P. 182)


No caso de grupo de empresas, não há na lei previsão que obrigue a presença de todas as sociedades empresárias integrantes do grupo econômico no processo de recuperação judicial, que pode abranger uma ou algumas delas. No caso, o litisconsórcio formado no pólo ativo da recuperação judicial será facultativo, constituindo-se de acordo com a vontade das partes.


A opção das devedoras pelo litisconsórcio ativo exige a apresentação de um único plano de recuperação judicial e submete todas as sociedades empresárias às conseqüências decorrentes da sua aprovação ou rejeição. Nesse sentido, se por um lado a aprovação do plano beneficia todas as sociedades empresárias integrantes do grupo, havendo a rejeição do plano, ou outra hipótese prevista no art. 73 que determine a convolação da recuperação judicial em falência, todas as sociedades empresárias integrantes do litisconsórcio estarão sujeitas à sentença de falência e às conseqüências decorrentes.


A possibilidade do litisconsórcio ativo na recuperação judicial, quando afastada, fundamenta-se na regra de competência presente no art. 3° da Lei n° 11.101/2005, que define como competente para o deferimento da recuperação judicial o Juízo do local do principal estabelecimento do devedor. Por se tratar de regra de competência absoluta, não admite prorrogação voluntária.


De acordo com a regra de competência, a jurisprudência tem negado a formação do litisconsórcio ativo na recuperação judicial na hipótese das sociedades empresárias não possuírem o principal estabelecimento no mesmo foro. Conforme se verifica nas seguintes decisões da Câmara Reservada à Falência e Recuperação, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:


“Agravo de instrumento. Recuperação judicial requerida em litisconsórcio por duas sociedades empresárias distintas, cada uma delas com sede social em comarcas diversas. Alegação de serem integrantes do mesmo grupo econômico. Decisão que determina a emenda da inicial em razão da inviabilidade do litisconsórcio ativo. Natureza contratual da recuperação judicial que impõe se facilite a presença dos credores na assembleia-geral para examinar o plano da devedora. A distância entre os estabelecimentos principais das empresas requerentes causa dificuldades incontornáveis à participação dos credores, notadamente os trabalhadores, nos conclaves assembleares realizados em comarcas distintas. Princípio da preservação da empresa e da proteção aos trabalhadores, ambos de estatura constitucional que, se em conflito, devem ser objeto de ponderação para a prevalência do mais importante. Tutela dos trabalhadores em razão da hipossuficiência. Manutenção da decisão que repeliu a possibilidade do litisconsórcio ativo no caso vertente, mantida a possibilidade da emenda da inicial para que cada uma das empresas requeira a medida recuperatória individualmente, observada a regra da competência absoluta do art. 3o, da LRF. Precedente da Câmara. ‘Manutenção da liminar para obstar a suspensão do fornecimento de serviços de telefonia por débitos anteriores ao requerimento da recuperação, que se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial. Agravo provido, em parte, revogado o efeito suspensivo, com determinação de imediato processamento da recuperação judicial’. (TJSP, Ag. I. n° 6453304400. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 15.09.2009).


“Apelação. Recuperação Judicial requerida em litisconsórcio por três sociedades empresárias distintas, cada uma delas com sede social em Estados diversos da Federação (São Paulo, Minas Gerais e Bahia). Alegação de serem integrantes do mesmo grupo econômico. Deferimento do processamento da recuperação judicial. Posterior constatação da inviabilidade do processamento da medida em litisconsórcio ativo, em face da existência de credores distintos, domiciliados em Estados diferentes. Reconhecimento da incompetência absoluta do juiz requerida inicialmente a recuperação judicial. Extinção do processo, sem resolução do mérito, por força do indeferimento da inicial. Matéria de ordem pública, sobre a qual não ocorre preclusão nas instâncias ordinárias. Soberania da assembleia-geral de credores restrita à deliberação sobre o plano de recuperação judicial, mas não sobre pressupostos ou condições da ação. Natureza contratual da recuperação judicial que impõe se facilite a presença dos credores na assembleia-geral para examinar o plano da devedora. A grande distância entre os estabelecimentos principais das empresas requerentes causa dificuldades incontornáveis à participação dos credores, notadamente os trabalhadores, nos conclaves assembleares realizados em Estados diversos da Federação. Princípio da preservação da empresa e da proteção aos trabalhadores, ambos de estatura constitucional que, se em conflito, devem ser objeto de ponderação para a prevalência do mais importante. Tutela dos trabalhadores em razão da hipossuficiência. Extinção do processo de recuperação judicial, sem resolução do mérito, mantida, situação que não impede que cada uma das empresas requeira a medida recuperatória individualmente, observada a regra da competência absoluta do art. 3o, da LRF. Apelo das empresas desprovido. Apelação de credora que se insurgiu contra o processamento da recuperação no juízo original. Pretensão à condenação das devedoras em honorários advocatícios. Inviabilidade. Inteligência do art. 5o, II, da Lei n° 11.101/2005. Não incidência de honorários sucumbenciais na recuperação judicial extinta. Apelo da credora improvido.” (TJSP. Apelação sem Revisão n° 6252064200. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 09.06.2009)


2.2. A recuperação judicial e o produtor rural


De acordo com o art. 1° da Lei n° 11.101/2005, a Lei disciplina  a recuperação judicial, a falência e a recuperação extrajudicial do empresário e da sociedade empresária. O art. 966 do Código Civil de 2002 define empresário de acordo com a teoria italiana da empresa, prevendo:


“Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.


Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”


Por sua vez, o art. 982 do referido diploma legal define sociedade empresária:


“Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e , simples, as demais.


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Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.”


De acordo com o tratamento previsto no Código Civil de 2002, que tem como base o Código Civil italiano de 1942, quem se dedica à atividade rural poderá ingressar no regime empresarial por opção, mediante a realização do arquivamento no Registro Público de Empresas, a cargo das Juntas Comerciais. Nesse sentido, o art. 971 do Código Civil:


“Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.”


Conforme se verifica, o produtor rural possui a opção de ingressar no regime empresarial e, fazendo essa opção por meio do arquivamento na Junta Comercial, fica equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito ao registro (entenda-se o descrito no art. 966, CC 2002). Estando equiparado ao empresário, estará sujeito a todas as obrigações previstas aos empresários, sujeitando-se à falência e aos seus efeitos, inclusive no âmbito penal. Por outro lado, gozará de todos os benefícios previstos aos empresários, podendo requerer recuperação judicial e extrajudicial.


De acordo com ordenamento jurídico vigente, para o produtor rural obter o deferimento do processamento da recuperação judicial precisará ter optado pelo regime empresarial, por meio do arquivamento na Junta Comercial. A ausência do arquivamento no Registro Público de Empresas afasta do produtor rural a possibilidade da recuperação judicial, já que nesse caso não se enquadra no art. 1° da Lei n° 11.101/2005, conforme dispõe o art. 971 c/c o art. 966 do diploma civil. Além disso, o produtor rural que não realizou a opção pelo regime empresarial não preenche os requisitos previstos no art. 51 da Lei n° 11.101/2005, notadamente o previsto no inciso V (certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas).


Nesse sentido, as seguintes decisões:


“Recuperação judicial. Ação ajuizada por produtores rurais que não estão registrados na Junta Comercial. ‘O empresário rural será tratado como empresário se assim o quiser, isto é, se se inscrever no Registro das Empresas, caso em que será considerado um empresário, igual aos outros’. ‘A opção pelo registro na Junta Comercial poderá se justificar para que, desfrutando da posição jurídica de empresário, o empresário rural possa se valer das figuras da recuperação judicial e da recuperação extrajudicial, que se apresentam como eficientes meios de viabilizar a reestruturação e preservação da atividade empresarial, instrumentos bem mais abrangentes e eficazes do que aquele posto à disposição do devedor civil (concordata civil – Código de Processo Civil, artigo 783)’. Só a partir da opção pelo registro, estará o empresário rural sujeito integralmente ao regime aplicado ao empresário comum. Sentença mantida. Apelação não provida.” (TJSP. Apelação n° 994092930317. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel Des. Romeu Ricupero. DJ 06.04.2010)


“Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Pedido formulado por produtor rural não inscrito na Junta Comercial. Conhecimento de agravo tirado contra decisão que defere o processamento da recuperação judicial. Decisão que reconhece que o produtor rural é empresário rural inscrito no CNPJ e tem legitimidade para requerer a recuperação. Precedente do STJ que admite a recorribilidade da decisão que examina a legitimidade ativa do requerente da recuperação judicial. Produtor rural que não se vale da faculdade do art. 971 do Código Civil não é equiparado a empresário para os fins do art. 1o da Lei n° 11.101/2005 e não atende ao requisito do art. 48 do mesmo diploma legal. A inscrição do produtor rural no CNPJ-Receita Federal, não o equipara a empresário para fins do direito à recuperação judicial. Agravos conhecidos e providos para reformar a decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial. Extinção do processo de recuperação judicial, sem resolução de mérito, com base no art. 267, I, do CPC.” (TJSP. Ag. I. n° 6481984200. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 15.09.2009)


Em relação ao arquivamento do produtor rural na Junta Comercial a fim de atender às exigências legais e obter o deferimento do processamento da recuperação judicial, questiona-se a possibilidade do produtor rural realizar a opção imediatamente antes da apresentação do pedido de recuperação judicial. Nessa hipótese, considera-se o período de desenvolvimento da atividade como produtor rural sem registro na Junta Comercial para atender ao requisito previsto no art. 48 da Lei n° 11.101/2005, que exige o exercício regular da atividade econômica há mais de 2 anos?


O Tribunal de Justiça de São Paulo já sinalizou a possibilidade no caso de grupo empresarial, conforme se verifica abaixo, resta saber se o mesmo entendimento será adotado para a atividade econômica desenvolvida antes do arquivamento na Junta Comercial como  produtor rural.


“Agravo de Instrumento. Recuperação judicial. Pronunciamento judicial que apenas defere o processamento da recuperação judicial. Recurso pretendendo a revogação do deferimento, sob a alegação central de não exercício regular da atividade empresária pela recuperanda há mais de dois anos no momento do pedido. Ato que tem a natureza de decisão interlocutória com potencial para causar gravame aos credores e terceiros interessados, além de poder afrontar a lei de ordem pública. Alteração do entendimento que proclamava a irrecorribilidade do ato previsto no artigo 52 da Lei n° 11.101/2005. Agravo conhecido. Falta de recolhimento do porte de retorno equivalente a preparo incompleto, que não autoriza a imediata aplicação da deserção, configurada hipótese de insuficiência. Agravante que, intimado, complementa do preparo com o recolhimento do porte de retorno. Deserção não reconhecida. O requisito do artigo 48, ‘caput’, da Lei n° 11.101/2005, ‘exercício regular das atividades empresariais há mais de dois anos no momento do pedido de recuperação judicial’, não exige inscrição na Junta Comercial por tal período mínimo. Integrando a requerente da recuperação judicial grupo econômico existente há 15 anos, e sendo constituída há menos de dois anos mediante transferência de ativos das empresas do grupo para prosseguir no exercício de atividade já exercida por tais empresas, é de se ter como atendido o pressuposto do biênio mínimo de atividade empresarial no momento do pedido. Agravo conhecido e desprovido, mantida a decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial” (TJSP. Ag. I. 6041604800. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 04.03.2009)


2.3. A definição do valor do bem gravado e o voto do credor com garantia real na análise do plano de recuperação judicial


Cumpre ressaltar, ainda, uma questão que desperta interesse na definição dos votos na Assembleia Geral de Credores. Trata-se do credor com garantia real, que na análise do plano de recuperação judicial, nos termos dos arts. 41 e 45 da Lei n° 11.101/2005 vota na classe II (credores com garantia real) até o limite do valor do bem dado em garantia, votando na classe III (credores quirografários, privilégio especial, privilégio geral, subordinados) pelo valor que excede o limite de garantia.


Para a votação do plano de recuperação judicial o art. 45  estabelece o sistema da dupla maioria, dividindo os credores em três classes, previstas no art. 41. Nas classes II (credores com garantia real, até o limite do bem gravado) e III (credores quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados, credores com garantia real pelo valor que excedeu a garantia), a proposta deverá ser aprovada por credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembléia e, cumulativamente, pela maioria simples dos credores presentes. Na classe I (credores trabalhistas ou decorrentes de acidente do trabalho), a proposta deverá ser aprovada pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor do crédito.


O quadro abaixo demonstra a divisão dos credores e os quoruns exigidos para a aprovação do plano de recuperação judicial:


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Conforme se verifica, o credor com garantia real vota na classe II até o limite do valor do bem gravado, votando com os credores da classe III pelo valor do crédito que supera o valor do bem dado em garantia. Diante da divisão legal estabelecida, é importante definir o valor do bem dado em garantia na hipótese dele não ser manifestamente superior ao valor do crédito, já que o resultado referente à análise do plano na Assembleia Geral de Credores poderá depender da diferença apurada. Nesse contexto, constata-se que a legislação não prevê, de forma específica, o momento da definição do valor do bem dado em garantia, nem mesmo o critério a ser utilizado.


De acordo com o art. 9°, II, da Lei n° 11.101/2005, a habilitação de crédito deverá conter “o valor do crédito, atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial, sua origem e classificação”. Na falência, o art. 83, §1°, estabelece que o valor do bem gravado corresponderá à importância efetivamente arrecadada com a sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado.


Ao tratar do voto do credor na Assembleia Geral de Credores, o art. 38, parágrafo único, determina que para fins exclusivos de votação em assembleia, o crédito em moeda estrangeira será convertido para moeda nacional pelo câmbio da véspera da data da realização da assembleia.


Nesse contexto, parece que a melhor solução é a realização da avaliação do bem gravado pelo valor de mercado, considerando a data da distribuição do pedido de recuperação judicial. Estabelecido o momento para a realização da avaliação, surge outra questão, a quem compete a realização da avaliação: ao credor com garantia real, à recuperanda ou ao administrador judicial?


Nos termos do art. 9°, II, caberia ao credor com garantia real apresentar a avaliação do bem no momento da habilitação do crédito, mediante a apresentação de laudo fundamentado elaborado por empresa especializada ou por três peritos, utilizando-se como referência legal para esse critério o art. 8° da Lei n° 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações). Entretanto, não há previsão legal específica para a respectiva exigência.    


Outra solução possível para o caso é a realização da avaliação pelo próprio administrador judicial. A exemplo do ocorre na falência, nos termos do art. 108 da Lei n° 11.101/2005, caberia ao administrador judicial proceder à avaliação do bem gravado e,  não se encontrado habilitado para fazê-lo, contrataria avaliadores, de preferência oficiais, mediante autorização judicial, conforme disposto no art. 22, III, “h”, da lei de regência.


Ressalta-se, ainda, o disposto no art. 53, III, da Lei n° 11.101/2005, prevendo que o plano de recuperação judicial deverá conter “laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.” De acordo com referido dispositivo, os valores dos bens do devedor são definidos no plano de recuperação e ficam sob a responsabilidade da recuperanda.


No caso, o valor constante no laudo de avaliação subscrito por profissional legalmente habilitado ou por empresa especializada, desde que estabeleça avaliação individual para os bens da recuperanda, poderá ser o documento utilizado para atender ao disposto no art. 41, § 2°, da Lei n 11.101/2005.


Seja qual for o entendimento a ser adotado pela jurisprudência, a avaliação conferida ao bem sempre estará sujeita à impugnação por qualquer interessado. No caso do bem gravado apresentar valor manifestamente superior ao valor do crédito, a importância da definição do critério, forma e momento da avaliação perdem a importância, já que o voto do credor, nesse caso, será considerado apenas na classe II pelo valor do seu crédito.


2.4. Os créditos excluídos da recuperação judicial e a possibilidade da manutenção do bem objeto de alienação fiduciária ou de arrendamento mercantil na posse da recuperanda após o prazo de 180 dias


A Lei n° 11.101/2005, em atendimento aos interesses das instituições financeiras, exclui da recuperação judicial alguns créditos de origem financeira, conforme se observa no art. 49, §3°:


 “Art. 49.


§3°. Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o §4° do art. 6° desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”                         


Ao comentar o art. 49, §3°, assevera Manoel Justino Bezerra Filho:


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“Esta disposição foi o ponto que mais diretamente contribuiu para que a Lei deixasse de ser conhecida como ‘lei de recuperação de empresas’ e passasse a ser conhecida como ‘lei de recuperação do crédito bancário’, ou ‘crédito financeiro’, ao estabelecer que tais bens não são atingidos pelos efeitos da recuperação judicial. (…)


Ficará extremamente dificultada qualquer recuperação, se os maquinários, veículos, ferramentas, etc. com os quais a empresa trabalha e dos quais depende para seu funcionamento, forem retirados.”


(BEZERRA FILHO, 2005. p. 136)


De acordo com o art. 49, §3° c/c o art. 6°, §4°, da Lei n° 11.101/2005, com o deferimento do processamento da recuperação judicial verifica-se a suspensão das ações e execuções em face da Recuperanda, sendo vedado, no prazo de 180 dias, a retirada do estabelecimento da Recuperanda de bens de capital essenciais à atividade empresarial.


Durante o prazo previsto, a lei assegura que a Recuperanda seja mantida na posse do bem essencial ao desenvolvimento da empresa. No caso, é evidente que o prazo legal de 180 dias é extremamente exíguo e insuficiente para qualquer superação de crise que tenha exigido o pedido de recuperação judicial e causado a suspensão dos pagamentos.


Analisado de forma isolada, o prazo legal de 180 dias mostra-se improrrogável. Entretanto, tratando-se de bem de capital essencial ao desenvolvimento da atividade empresarial pela Recuperanda, a retirada do bem do seu estabelecimento poderia impedir que a finalidade da recuperação judicial fosse alcançada de forma efetiva, frustrando-se o art. 47 da Lei n° 11.101/2005.


Diante das dificuldades decorrentes da aplicação dos arts. 49, §3° e 6°, §4°, da lei de regência, que colocam em risco o êxito da recuperação judicial no país, existem decisões judiciais e entendimentos doutrinários que não admitem a retirada dos bens essenciais da Recuperanda, mesmo após o decurso do prazo de 180 dias.


Justifica-se esse posicionamento com base no art. 47 da Lei n° 11.101/2005, que corresponde ao artigo mais importante da legislação, conforme amplamente divulgado pelos especialistas no tema. Referido dispositivo legal determina a finalidade da recuperação judicial a partir de princípios indicados pelo legislador, conforme se observa: 


“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.


A relevância do art. 47 foi expressada por Newton de Lucca da seguinte forma:


 “Trata-se do artigo que instituiu a maior novidade da NLF. Pode-se dizer, em certo sentido, que ele traduz o espírito que terá enfornado toda a nova disciplina jurídica que acaba de ser dada à estampa em fevereiro do corrente ano de 2005.”


(DE LUCCA, 2005. p.202)


Calixto Salomão Filho, ao se referir à Lei n° 11.101/2005, conclui:


“Pressupõe e inclui princípios que não podem ser negados ou descumpridos, qualquer que tenha sido o grupo de interesses que mais influenciou sua elaboração. (…) é também necessário reconhecer que a recuperação de empresas pressupõe princípios e objetivos que não podem ser desconsiderados. O principal deles é o da preservação da empresa, expressamente declarado no art. 47 da Lei 11.101/2005, de 9 de fevereiro de 2005 (nova Lei de Falências), como princípio da recuperação de empresas.”


(SALOMÃO FILHO, 2007. p.42.)


O princípio da preservação da empresa foi expressamente aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência n° 79.170-SP. Na oportunidade, foi apreciado pelo STJ se o juízo diverso do da recuperação judicial teria competência para apreciar pedido de reintegração de posse contra a devedora, quando já transcorrido o prazo de 180 dias previsto na legislação.


No caso, a Corte entendeu que o art. 47 “estabelece, inequivocamente, o objetivo de preservar a supremacia do interesse público sobre o interesse privado”, de forma que o destino do patrimônio da recuperanda “não pode ser afetado por decisão prolatada em juízo diverso do que é competente para a recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso do plano de recuperação, ainda, que ultrapassado o prazo de suspensão”. Do contrário, estaria sendo violado o princípio da preservação da empresa, previsto expressamente no art. 47 da Lei n° 11.101/2005.


O julgado do Superior Tribunal de Justiça,  acima indicado, é transcrito abaixo:


CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES. PRAZO DE CENTO E OITENTA DIAS. USO DAS ÁREAS OBJETO DA REINTEGRAÇÃO PARA O ÊXITO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO.1.  O caput do  art. 6º, da Lei 11.101/05 dispõe que “a decretação da falência ou deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário”. Por seu turno, o § 4º desse dispositivo estabelece que essa suspensão “em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação”.2. Deve-se interpretar o art. 6º desse diploma legal de modo sistemático com seus demais preceitos, especialmente à luz do princípio da preservação da empresa, esculpido no artigo 47, que preconiza: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.3. No caso, o destino do patrimônio da empresa-ré em processo de recuperação judicial não pode ser atingido por decisões prolatadas por juízo diverso daquele da Recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso de seu plano de recuperação, ainda que ultrapassado o prazo legal de suspensão constante do § 4º do art. 6º, da Lei nº 11.101/05, sob pena de violar o princípio da continuidade da empresa.4. Precedentes: CC 90.075/SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 04.08.08; CC 88661/SP, Rel. Min, Fernando Gonçalves, DJ 03.06.08. 5. Conflito positivo de competência conhecido para declarar o Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central de São Paulo competente para decidir acerca das medidas que venham a atingir o patrimônio ou negócios jurídicos da Viação Aérea São Paulo – VASP.” (STJ. CC 79170/SP. Rel. Min. Castro Meira. S1 Primeira Seção. DJ 10.09.2008)”

Conforme se verifica, o julgado do Superior Tribunal de Justiça permite verificar que na busca da preservação da empresa as regras de natureza formal aplicadas ao processo de recuperação judicial (v.g. art. 49, §3° c/c art. 6°, §4°) podem ser relativizadas quando a sua aplicação colocar em risco a execução do plano de recuperação e o êxito da finalidade precípua prevista no art. 47 da Lei n° 11.101/2005. No caso exposto, cumpre ressaltar que o direito do credor restringido para assegurar a finalidade da recuperação judicial não ocorreu de forma definitiva, apenas a suspensão da sua eficácia foi prorrogada.   


O entendimento que determina a manutenção da posse de um bem do devedor em um contrato de arrendamento mercantil ou de alienação fiduciária não é inusitada, conforme se verifica nas seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça:


 “AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL CUMULADA COM REINTEGRAÇÃO DE POSSE – TUTELA ANTECIPADA – BENS INDISPENSÁVEIS AO FUNCIONAMENTO DA EMPRESA – PRECEDENTES. Admissível se mostra a justificativa da recorrente quanto à necessidade de permanecer com os bens arrendados, considerando-se, ademais, que não se depara com demonstração em contrário, no que concerne à indispensabilidade do maquinário para a continuidade da atividade da empresa. Recurso especial provido.” (STJ. REsp n° 603.721. 3ª T. Rel. Min. Castro Filho. DJ 04.05.2004. v.u.)


“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. PERMANÊNCIA DO BEM NA POSSE DA DEVEDORA. PRECEDENTES DA CORTE. 1. A jurisprudência da Corte tem entendido ser possível permanecer o bem na posse da devedora até o julgamento da demanda, quando essencial ao desenvolvimento de suas atividades produtivas, até mesmo em estágio de medida cautelar para conferir efeito suspensivo a recurso especial.


2. Recurso especial conhecido e provido.”(STJ. REsp. n° 573.704-SP. 3ª T. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. DJ 29.06.2004. v.u.)


“AGRAVO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – BUSCA E APREENSÃO – PERMANÊNCIA DOS BENS EM POSSE DO DEVEDOR. Em se tratando de maquinaria indispensável à atividade do devedor,porquanto meios necessários à obtenção de recursos para seu sustento, bem como para o pagamento do débito, é lícito que tais bens permaneçam em sua posse, enquanto se discute questões de fundo, tanto em ação revisional ou como matéria de defesa. Inexiste, no caso, ofensa ao art. 3.º do Decreto-Lei n.º 911/69.”(STJ. AGA n.º 225.784/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ de 23/10/2000)


Conforme se verifica, mesmo nos casos em que a devedora não se encontra em processo de recuperação judicial, prestigia-se a manutenção da posse do bem objeto da lide, quando essencial à atividade empresarial da devedora. Justifica-se referido entendimento pelo fato da retirada do bem, seja no caso de reintegração de posse, seja na hipótese de busca e apreensão, interromper o desenvolvimento da atividade empresarial e agravar a situação de crise da devedora. Se mantida na posse do bem essencial, por meio da exploração da empresa a devedora conseguiria meios de realizar o pagamento do próprio bem.


 Transportando a questão para o âmbito de interesses de um processo de recuperação judicial o tema ganha proporções ainda maiores, diante das consequências decorrentes perante os demais credores, trabalhadores e parceiros comerciais da Recuperanda.


O risco da paralisação do desenvolvimento da atividade econômica pela remoção de bem essencial à cadeia produtiva atinge diretamente a finalidade da recuperação judicial, expressamente prevista no art. 47 da Lei n° 11.101/2005, não se mostrando a solução adequada no presente caso, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, acima exposto.


A justificativa para a permanência do bem arrendado no estabelecimento da Recuperanda, sob a sua posse, mostra-se amplamente admissível, considerando-se os interesses envolvidos. Por outro lado, não se vislumbra desvantagem significativa para o  credor nesse caso, afinal, o interesse é no recebimento do valor devido, não no bem propriamente considerado.


Nesse sentido, o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no precedente n° 990.09.228.565-3, com a seguinte ementa:


 “BUSCA E APREENSÃO – recuperação judicial da empresa Ré – o processamento da recuperação judicial suspende o curso de todas as ações propostas pelos credores, pelo prazo improrrogável de 180 dias (Lei n° 11.101/05, art. 6°, § 4°) – exceção legal do credor proprietário fiduciário que não se aplica in casu, uma vez que se trata de bem de capital essencial à atividade empresarial – inteligência art. 49, §3° da Lei n° 11.101/05 – suspensão da execução da liminar de busca e apreensão mantida – RECURSO DO AUTOR NÃO PROVIDO.”


Do voto do acórdão, destaca-se:


 “In casu, o bem alienado fiduciariamente é um caminhão (fls. 29), e considerando que a Agravada/Ré é uma transportadora, verifica-se que o bem integra o rol de bens excepcionados no art. 49, § 3° da Lei n° 11.101/05. Com efeito, permitir a apreensão de bens em contrariedade ao disposto no art 49, § 3o da Lei n° 11.101/05, militaria contra a finalidade da Lei n° 11.101/05, que pretende conjugar o pagamento dos credores com a continuidade das atividades da empresa. Dessa forma, e acolhendo também o parecer da Douta Procuradoria Geral de Justiça, não há que se falar em reforma da decisão agravada, que deve ser mantida tal como proferida Nesse sentido, a jurisprudência:


‘Agravo de Instrumento. Alienação Fiduciária. Máquinas. Empresa devedora em recuperação judicial. Pretensão da agravante à concessão da liminar para busca e apreensão dos bens. Inadmissibilidade durante o prazo de 180 dias. Inteligência dos arts. 49, parágrafo 3°, e artigo 6°. parágrafo 4°. da Lei n° 11.101/2005. Máquinas (“centrífugas completas marca Westfalia Separator. modelo HDD 80-05-107”), consideradas bens de capital essenciais à atividade empresarial da recuperanda. Decisão mantida. Agravo desprovido.’ (TJSP, 29a Câmara de Direito Privado Agravo de Instrumento 992090803590 (1293387900) Relator(a). Pereira Calças Data do julgamento 26/08/2009)


‘Agravo de instrumento – Alienação fiduciária – Busca e apreensão – Devedora fiduciária em recuperação judicial Permanência dos bens em mãos do devedor – Admissibilidade – Veículos indispensáveis à sua atividade – Aplicação do artigo 49, § 3° da Lei n° 11.101/2005 – Recurso desprovido.’(TJSP, 26ª Câmara de Direito Privado Agravo de Instrumento 992090469240 (1261960002) Relator(a) Andreatta Rizzo. Data do julgamento 12/08/2009)’


‘AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. LEI DE FALÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL, Se o objetivo da recuperação judicial é justamente superar a crise econômica-financeira pela qual passa o devedor, primordial a manutenção do veículo alienado em sua posse, por ser essencial para o exercício de suas atividades. Decisão mantida. Recurso improvido.’ (TJSP, 26ª Câmara de Direito Privado Agravo de Instrumento 1262105006 Relator(a): Felipe Ferreira Data do julgamento’ 29/04/2009) Ante o exposto, CONHEÇO e NEGO PROVIMENTO ao agravo de instrumento interposto pelo Autor, mantendo a r. decisão agravada.”


o mesmo sentido:


“ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO – Bem alienado fiduciariamente – Pessoa jurídica em recuperação judicial – Diante da essencialidade do bem alienado fiduciariamente, deve o mesmo permanecer com a pessoa jurídica empresária em recuperação judicial – Interpretação sistemática dada ao art. 6°, “caput” com o art. 47, ambos da Lei 11.101 /05. – Agravo provido. (TJSP. Ag. I. 990.09345481-5. 25ª Câmara de Direito Privado. Rel. Antonio Benedito Ribeiro Pinto. DJ 12.04.2010)


2.5. A apresentação de objeções ao plano e a convocação da Assembléia Geral de Credores


A questão da convocação da Assembléia Geral de Credores (AGC) mediante a simples apresentação de objeções ao plano é matéria enfrentada pela doutrina. Trata-se de questão relativamente recente e que desperta interesse em razão da apresentação de objeções, em alguns casos, ocorrer como mero cumprimento de protocolo de conduta e, em outros casos, como ato que pode caracterizar, até mesmo, abuso de direito.


O art. 55 da Lei n° 11.101/2005 prevê que qualquer credor pode apresentar objeção ao plano. Entretanto, é evidente que a objeção deve conter  fundamentos relevantes que justifiquem a sua apresentação, devendo o objetor especificá-los e comprová-los de forma adequada, do contrário, as objeções ao plano tornar-se-ão meios meramente procrastinatórios nos processos de recuperação judicial. 


A objeção deve ser elaborada de forma criteriosa e responsável pelo credor, diante da possibilidade de configurar abuso de direito e, dependendo do caso, caracterizar até mesmo litigância de má-fé, em razão dos interesses relacionados e da conseqüência prevista no art. 56, caput, da Lei n° 11.101/2005:


“Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará assembléia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação”


Diante da respectiva previsão legal, surgem as seguintes indagações: a) a apresentação de objeções por credores não sujeitos ao plano exige, necessariamente, a convocação da Assembléia Geral de Credores pelo juiz?  b) a apresentação de objeções por credores não sujeitos ao plano, contendo elementos que podem ser facilmente solucionados diante de manifesto equívoco, exige necessariamente a convocação da Assembléia Geral de Credores pelo juiz?


 Sem dúvida trata-se de questões de grande complexidade, que exige análise cuidadosa e voltada para a finalidade da lei, diante dos interesses envolvidos. A princípio, considerando exclusivamente o disposto no art. 56, caput, a resposta seria positiva para as duas perguntas apresentadas acima. Entretanto, quando analisamos os dispositivos legais em conjunto, a clareza do art. 56 desaparece e a certeza da afirmativa apresentada antes, não resiste ao disposto no art. 45, §3°:


“§3°. O credor não terá o direito a voto e não será considerado para fins de verificação de quorum de deliberação se o plano de recuperação judicial não alterar o valor ou as condições originais de pagamento de seu crédito”


Nesse sentido, assevera o consagrado Magistrado Manoel Justino Bezerra Filho, ao comentar o art. 45 da Lei n° 11.101/2005:


“O §3° estipula, ainda, que apenas tem direito a voto nas deliberações sobre o plano de recuperação o credor cujo crédito vier a ser alterado em seu valor ou nas condições de pagamento. Se o crédito não sofre qualquer alteração, o respectivo credor não tem direito a voto, além de não poder ser computada sua presença para fins de verificação de quorum”. 


(BEZERRA FILHO, 2005. p. 126)                                      


De acordo com os dispositivos apresentados, qualquer credor poderá apresentar objeção ao plano, mas, não é qualquer credor que poderá votar na Assembléia Geral de Credores nas deliberações referentes ao plano. A convocação da Assembléia Geral de Credores estabelece ônus para a Recuperanda e também para os credores sujeitos ao plano, retardando o deferimento da recuperação judicial e o respectivo início dos pagamentos previstos, além das despesas impostas à Recuperanda (convocação e realização da AGC) e aos credores (viagens e hospedagens).


O respeitado jurista Adalberto Simão Filho, ao tratar do sistema de aprovação tácita do plano de recuperação judicial, enfrenta a questão, apresentando entendimento inovador:


Este sistema é criado a partir do artigo 55 da lei, que concede a qualquer credor a possibilidade de manifestar ao juiz a sua objeção ao plano de recuperação judicial. O credor poderá objetar o plano, no curso do prazo de 30 (trinta) dias contados ou da publicação da relação de credores de que trata o § 2º do artigo 7º, ou da publicação do aviso do artigo 53 sobre o recebimento do plano de recuperação, caso na primeira hipótese ainda não se tenha o plano nos autos.


Esta objeção ao plano de recuperação, quando formulada nos moldes da lei, leva à necessidade de convocação de Assembléia Geral de credores por parte do Juiz.


Contudo, a lei não menciona acerca da natureza da objeção que possa levar o juiz à convocação da assembléia. Será qualquer objeção de ordem formal ou material que gerará esta conseqüência? Pensamos que não. Pode haver objeção que não se relaciona efetivamente ao plano de recuperação, mas sim a questões de diversas ordens que possam envolver o credor que objetou e a devedora, concernentes ao negócio jurídico subjacente.


Ainda, pode ser apresentada como objeção, alguma inconformidade por parte de credor que sequer é concorrente na recuperação judicial.


Pode ainda o devedor, prontamente, refutar os argumentos de objeção a demonstrar que os mesmos não são válidos, gerando o conformismo daquele que objetou.


Nestes casos e assemelhados, entendemos pela desnecessidade da convocação da assembléia de credores por parte do juiz.


A objeção tem aqui a intelecção de contrariedade e esta contraposição deve ser formulada pelo credor diretamente sobre o plano de recuperação judicial, seu conteúdo, consistência e fundamento, gerando assim, a necessidade de convocação de Assembléia Geral.


Todavia, uma vez não havendo objeção de qualquer credor ou, ainda, solucionados os temas que possam ter gerado objeção com uma posição favorável daquele que objetou, após o curso do prazo previsto no artigo 55, o juiz concederá a recuperação judicial, por ter entendido ter sido o plano aprovado tacitamente. A este conjunto de providências que redundam na aprovação do plano, demos a denominação de sistema de aprovação tácita e o seu fundamento se encontra na primeira parte do caput do artigo 58 da lei”.  (SIMÃO FILHO, 2009. pp. 49-50)


Considerando a conseqüência decorrente da apresentação de objeção ao plano, que pode ser realizada por qualquer credor, o juiz deve analisar o conteúdo da objeção para verificar se a mesma apresenta fundamentos relevantes que justifiquem a sua apresentação, devendo o objetor especificá-los e comprová-los de forma adequada, do contrário, as objeções ao plano tornar-se-ão meios meramente procrastinatórios nos processos de recuperação judicial. 


O  art. 56 da Lei n° 11.101/2005 deve ser interpretado em consonância com os demais dispositivos legais, de forma a não servir de meio protelatório a favor de devedor mal intencionado ou para atender pretensões infundadas de credor, em detrimento dos legítimos interesses dos demais credores. 


Nesse contexto, ressalta-se a importância do Juiz na identificação das referidas questões. A Lei n° 11.101/2005 atribui poderes, funções e atribuições maiores e mais amplos ao juiz na condução do processo de recuperação da empresa. Nesse sentido, o art. 58, §1°, demonstrando que o juiz mantém o poder de decisão nos autos, prevê situação na qual, mesmo rejeitado o plano pela Assembléia Geral de Credores, o juiz poderá conceder a recuperação pretendida pelo devedor.


Ao tratar da atuação do juiz no processo de recuperação judicial, Jorge Lobo ressalta:


Na ação de recuperação judicial, o juiz exerce poder-fim, portanto de cunho jurisdicional, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 52, caput; 55, caput; 56, §4°; 58, caput e §1°; 63; exerce poder-meio, por conseguinte instrumental, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 51, §§ 1° e 3°; 52, III e V e §1°; 53, parágrafo único; 65, caput e § 2°, e exerce poder administrativo, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 52, I, II e IV, §1°; 60; 66; 69, parágrafo único.


É curial que, ao exercer os poderes de caráter jurisdicional, instrumental ou administrativo, o juiz não é um órgão passivo, mero homologador das decisões da assembléia geral ou do comitê de credores ou do administrador judicial, pois, ao ordenar o processamento da ação, proferir despachos, decisões e sentenças, superintender a administração da empresa em crise, enfim, presidir o processo de recuperação, deve fazê-lo com tirocínio, competência e plena liberdade, formando sua convicção, seu ‘livre convencimento’, de acordo com as provas dos autos, ciente de que seus atos estão sujeitos a recurso de agravo.”  (LOBO, 2007. p.171)


Manoel Justino Bezerra Filho, ao comentar o art. 56 da Lei n° 11.101/2005, ressalta os poderes do juiz para verificar se as objeções apresentadas são suficientes para motivar a convocação da Assembléia Geral de Credores:


“Terá o juiz que se valer de seu poder de direção do processo e examinar, para formação de conhecimento provisório sobre a viabilidade (ou não) de existência do crédito e, a partir da convicção, também provisória, que formar, decidir se deve ou não convocar a assembléia-geral”  (BEZERRA FILHO, 2005. p.165)


Ressaltando a necessidade de ser atribuído ao julgador atuação além dos limites literais da lei para assegurar o princípio da preservação da empresa, a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:


“Agravo de Instrumento – Recuperação Judicial – Aprovação do Plano – Critérios. Ao julgador há de ser dado certo campo de atuação além dos limites literais da lei para que prevaleça o princípio da manutenção da empresa que revele possibilidade de superar a crise econômico-financeira pela qual esteja passando – Quanto à previsão de pagamento em ações de sociedade anônima, evidente que não se confunde com constrangimento do Agravante a associar-se, não só porque o Agravante não precisa participar ativamente da nova sociedade, usando as ações como valores mobiliários, como porque poderá livremente negociá-las. Agravo desprovido. (TJSP. Ag. Inst. 6577334600. Rel. Lino Machado. DJ 27.12.2009)


3.Conclusão


Conforme se observa, a Lei n° 11.101/2005 apresenta importantes pontos que permitem questionamentos e entendimentos conflitantes, principalmente diante dos inúmeros conflitos de interesses presentes no processo de recuperação judicial, exigindo do aplicador do Direito a interpretação sistemática da legislação em atenção à finalidade prevista no art. 47. Por outro lado, referido dispositivo, denominado por alguns como o “espírito da lei” e por outros como sendo o seu “coração”, deve ser aplicado dentro dos limites necessários à segurança jurídica.


O estabelecimento desse limite constitui o ponto de maior dificuldade, correspondendo ao desafio imposto para assegurar que o princípio da preservação da empresa seja utilizado como um instrumento de interpretação das normas que disciplinam a recuperação judicial, para assegurar a finalidade da legislação e a função social da empresa. O princípio da preservação da empresa não pode ser adotado de forma absoluta e descriteriosa, não prevalecendo sempre que colidir com outros princípios e normas, notadamente os que fundamentam o interesse da coletividade dos credores, de forma a impedir de maneira definitiva e concreta o exercício dos seus direitos.


A Lei n° 11.101/2005 apresenta dispositivos legais que exigem a aplicação ajustada pela doutrina e pela jurisprudência para o efetivo atendimento à finalidade prevista em seu art. 47, de forma a assegurar os fins previstos para a recuperação judicial, em especial a preservação da empresa e os seus fins sociais. Nesse contexto, o direito do credor deve ser compreendido no âmbito da recuperação judicial, analisando-se os demais fatores envolvidos, não parecendo adequada a interpretação literal e isolada de qualquer  dispositivo da Lei n° 11.101/2005.


 


Referências bibliográficas

BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova Lei de Recuperação  e Falências Comentada. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005.

COSTA, Ricardo Brito. Recuperação judicial: é possível o litisconsórcio ativo? In: Revista do Advogado – Recuperação Judicial: temas polêmicos. Ano XXIX. n° 105. São Paulo: AASP. Setembro de 2009.

DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord). Comentários à nova Lei de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo: Quartier Latin. 2005.

LOBO, Jorge. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. TOLEDO, Paulo F. C. Salles de & ABRÃO, Carlos Henrique (coord.). São Paulo: Saraiva. 2007.

SALOMÃO FILHO, Calixto. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antonio Sérgio A. de Moraes (Coord.). Comentários à lei de recuperação de emrpesas e falência – Lei 11.101/2005 – artigo por artigo. 2 ed. São Paulo: RT. 2007.

SIMÃO FILHO, Adalberto. Interesses transindividuais dos credores nas assembléias gerais e sistemas de aprovação do plano de recuperação judicial. In DE LUCCA, Newton & DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (Coord.). Direito Recuperacional: Aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Quartier Latin. 2009. 


Informações Sobre o Autor

Marcelo Gazzi Taddei

Advogado, Parecerista, Mestre em Direito pela UNESP de Franca, SP, Professor de Direito Empresarial, Direito do Consumidor e Direito Civil I da UNIP – Universidade Paulista, de São José do Rio Preto, SP e Professor de Direito Empresarial da ESA – Escola Superior de Advocacia de São José do Rio Preto, SP


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