Aplicabilidade do Direito do Consumidor aos leilões virtuais

Resumo: O presente trabalho analisa a possibilidade de incidência do Código de Defesa do Consumidor aos contratos eletrônicos celebrados através de sites de leilões virtuais, apontando tendências doutrinárias e jurisprudenciais relativas ao tema.


Sumário: 1. Introdução; 2. A importância da confiança nos contratos eletrônicos; 3. A dinâmica dos sites de leilões virtuais; 4. Da incidência do Código de Defesa do Consumidor; 5. Conclusão.


1. Introdução


O número de usuários da internet cresce a cada dia. Cada vez mais surgem opções de compra e venda, bem como contratação de serviços através do meio eletrônico. A facilidade de contratar sem sair de casa, entretanto, pode constituir um problema para o consumidor. A dúvida no tocante às garantias do contratante ainda impede que algumas pessoas se recusem a utilizar o meio eletrônico, o que se revela um impedimento ao progresso e à implementação de novas tecnologias.


Sob esse prisma, garantir o consumidor que celebra contratos por via eletrônica, não significa apenas dar concretude ao princípio da dignidade humana e observar os ditames constitucionais de proteção ao consumidor. Se fosse apenas isso, já seria o suficiente para justificar maiores estudos do tema. O que está em jogo, contudo, ao se proporcionar maiores garantias aos contratantes é a própria evolução científica, já que quanto maior o número de usuários, maiores serão as necessidades de investimento em pesquisas objetivando a melhoria do meio virtual, proporcionando um ambiente cada vez mais seguro.


O que tem ocorrido é que os contratos celebrados em sites especializados em intermediação de compra e venda e contratação de serviços, especialmente os que adotam o modelo de leilão virtual têm gerado grande número de ações judiciais, ante a postura dos empresários, que insistem na tese de que não se responsabilizam pela relação de consumo travada entre vendedor e comprador em suas páginas corporativas, ao argumento de que são apenas intermediários, não integrando o contrato. Tamanha é a repercussão do assunto que há inúmeras páginas na internet dedicadas a reclamações dos consumidores lesados.


É bem verdade que alguns provedores atuam apenas como intermediários, não sendo partes do contrato. Têm a função de estabelecer contato entre comprador e vendedor, muitas vezes usuários cadastrados no “site”. Também é freqüente que a intermediação seja realizada entre usuários não cadastrados e muitas vezes sem qualquer manifestação formal de uma das partes nesse sentido. É o que ocorre quando se faz uma pesquisa em um “site de busca” e surgem algumas opções de endereços eletrônicos que na verdade pagam para aparecer em destaque na relação de sites.


Em alguns casos, no entanto, o próprio usuário acessa deliberadamente um site de anúncios, que serve apenas como um jornal de classificados. Por outro lado, também é verdade que no regulamento de alguns serviços de intermediação eletrônica, como Mercado Livre, Ebay, Amazon, dentre outros, tal atividade é remunerada mediante percentual do valor contratado, o que torna a questão mais complexa e demanda maior estudo.


Diante desse quadro, como ficaria a situação de um usuário que comprasse, efetuasse o devido pagamento e não recebesse sua mercadoria, ao constatar que o vendedor utilizou cadastro de informações falsas? É preciso analisar a questão com bastante cautela, sob pena de se penalizar excessivamente o empresário, de um lado, ou de se chegar ao outro extremo de responsabilizar o próprio consumidor, impondo a esse o prejuízo.


Questão que deve ser enfrentada é a das normas aplicáveis à espécie. Necessário se faz investigar se tais contratos eletrônicos seguiriam as regras utilizadas para os contratos em geral (Código Civil), bem como as do Direito do consumidor (Lei 8.078/90) ou se haveria necessidade de normatização para suprir eventuais lacunas.


Antes, contudo, faz-se necessário abordar a questão da confiança, tema que se demonstra muito mais importanto quando se analisa os chamados contratos eletrônicos, diante das incertezas proporcionadas pelo meio virtual.


2. A importância da confiança nos contratos eletrônicos


A confiança é tratada em sede doutrinária geralmente como decorrência do princípio da boa-fé objetiva. No dizer de Menezes Cordeiro:


“exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de actividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efectivas. O princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela”[1]


Cláudia Lima Marques, citando Karl Larenz, reconhece na confiança um “princípio imanente de todo o Direito (Vertrauensprinzip). Segundo referida autora, trata-se de um “princípio diretriz das relações contratuais”, sendo assim merecedor de proteção (Vertrauenschutz), fonte autônoma de responsabilidade (Vertrauensshaftung).[2]


O tema da confiança não é simples. Sobre o assunto, leciona Manuel Antonio de Castro Portugal Carneiro da Frada[3]:


 “A confiança não é, em Direito, um tema fácil. As dificuldades que ele coloca transcendem em muito a necessidade de delimitação do âmbito, já de si problemática. Não existe nenhuma definição legal de confiança a que possa socorrer-se e escasseiam referências normativas explícitas a propósito. O seu conceito apresenta-se fortemente indeterminado pela pluralidade ou vaguidade de empregos comuns que alberga, tornando difícil traçar com ele as fronteiras de uma investigação jurídica. Tanto mais que transporta uma certa ambiguidade de princípio por se poder referir, tanto à causa, como aos efeitos de uma regulação jurídica.”


A realidade é que cada atitude perpetrada pelas partes na relação negocial (atos, dados ou omissões) dá início a expectativas legítimas que precisam ser tuteladas. Nesse sentido, “confiança é aparência, informação, transparência, diligência e ética no exteriorizar vontades negociais”.[4]


Segundo Frada[5], a confiança, como proteção das expectativas, apresenta-se com autonomia e especificidade em relação ao próprio negócio jurídico, sendo seu campo legítimo de ação aquele em que os efeitos jurídicos de uma conduta não não podem ser atribuídos ao exercício da liberdade de autodeterminação da pessoa:


“Se o sistema da protecção da confiança se confundisse com o negócio, tal implicaria a perda da sua independência dogmática. Os ataques persistentes à vontade humana enquanto critério e limite do negócio jurídico, e a procura alternativa de alicerçar uma eficácia jurídico-negocial na confiança, hoje em voga, franqueiam no fundo portas a tentações hegemônicas do negócio de absorver a doutrina da confiança. A determinação e delimitação do âmbito desta última representa portanto uma tarefa dogmática imprescindível. (…)Há que se destrinçar devidamente entre aqueles efeitos que decorrem da autodeterminação dos sujeitos e do exercício da sua autonomia privada, e as consequências que se lhes impõem (heteronomamente) por força de valorações do direito objectivo – nesse sentido, ex lege (emprestando a esta expressão um alcance vasto) – de modo a acautelar as expectativas alheias.”


Evidentemente, a autonomia da responsabilidade pela confiança não pode ser admitida de forma extremada, como se nenhuma relação guardasse com o negócio jurídico. Ao contrário, a tutela da confiança possibilita colmatar lacunas de proteção que não são devidamente tratadas pela teoria do negócio jurídico, complementando-a. Nesse sentido, o negócio representa uma forma, dentre outras, do vasto campo abrangido pela teoria da responsabilidade pela confiança.[6] Não se trata meramente de um princípio jurídico a ser hierarquizado, complementado, combinado e harmonizado com outros princípios ou normas, passível de concretização através de subprincípios e valores. Deve-se entender a confiança como verdadeira teoria jurídica organizada em torno desse princípio. [7]


A doutrina germânica estabelece distinção, especialmente no tocante à responsabilidade pré-contratual, entre confiança nas declarações e confiança na conduta não comunicativa, de que são exemplos o venire contra factum proprium e a verwirkung (supressio)[8], normalmente relacionadas no Direito pátrio à boa-fé objetiva, como demonstra o seguinte julgado:


Ementa: administrativo. Serviço publico de fornecimento de energia elétrica. Contrato de mutuo firmado pelo usuário e a concessionária. Correção monetária. Clausula contratual. Principio da boa-fé. Limitação do exercício do direito subjetivo. “supressio”. 1. A “supressio” constitui-se em limitação ao exercício de direito subjetivo que paralisa a pretensão em razão do principio da boa-fé objetiva. Para sua configuração, exige-se (i) decurso de prazo sem exercício do direito com indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido e (ii) desequilíbrio, pela ação do tempo, entre o beneficio do credor e o prejuízo do devedor. Lição de Menezes cordeiro. 2. Não caracteriza conduta contraria a boa-fé o exercício do direito de exigir a restituição de quantia emprestada depois de transcorridos mais de quinze anos se tal não gera desvantagem desproporcional ao devedor em relação ao beneficio do credor. Hipótese em que o mutuo não só permitiu a expansão da rede publica de concessionário de serviço publico de energia elétrica como também a exploração econômica do serviço mediante a cobrança da tarifa, sendo que esta, a par da contraprestação, engloba a amortização dos bens reversíveis. Ausente, portanto, desequilíbrio entre o valor atualizado a ser restituído e o beneficio fruído pelo apelado durante todo este tempo, não ha falar em paralisação do direito subjetivo. 3. Conquanto tenha o contrato de mutuo firmado entre o usuário e a concessionário do serviço publico de energia elétrica para custeio das despesas a cargo desta de implantação do fornecimento estabelecido que a quantia seria restituída sem correção monetária, tem direito o usuário de receber o montante atualizado pena de arcar com os encargos que devem ser suportados pela concessionária e para cuja prestação e remunerado na forma do contrato de concessão. Recurso provido por ato do relator. Art-557 do CPC. Precedente do stj. (nove fls.) (apelação cível nº 70001911684, segunda câmara cível, tribunal de justiça do rs, relator: desembargadora Maria Isabel de Azevedo Souza, julgado em 04/12/2000)


Frada arremata sua tese de doutoramento sobre o tema em comento defendendo o que denomina uma “teoria pura da confiança na responsabilidade civil”, retirando-a do contexto da boa-fé objetiva:


“Desta forma, importa reconhecer que a responsabilidade pela confiança constitui, dentro do sistema global da imputação de prejuízos, um corpo específico. Intercalada embora de algum modo entre os paradigmas do contrato e do delito, não se confunde com a responsabilidade por violação de deveres não contratuais e aquilianos (como os inspirados na boa fé). O espaço das responsabilidades intermédias apresenta-se nesse sentido heterogéneo, sulcado por trilhos dogmáticos diferenciados.” [9]


No que pertine ao comércio eletrônico, a questão da confiança é muito mais do que uma tutela individualista, apresentando um plus de tutela solidarista. Ora, a Internet é um novo espaço negocial, dotado de uma função social e criar mecanismos de proteção à confiança no rede significa fomentar uma recente e inovadora atividade econômica. Nesse sentido, a confiança destaca-se como verdadeiro paradigma de implementação e sedimentação do novo meio comercial:


“…o Direito pode ajudar a estabelecer este novo paradigma, se conseguira estabelecer a necessária proteção qualificada do usuário-leigo, através de exigências de mais informação e transparência, mas cooperação quanto à possibilidade de arrependimento e reflexão, mais segurança nas formas de pagamento no meio eletrônico e mais cuidado com relação aos dados coletados neste meio. A confiança é – em minha opinião – o paradigma novo necessário para realizar ‘este passo adiante’, de adaptar nosso atual Direito do Consumidor a este novo modo de comércio.”[10]


Na realidade, a proteção à confiança é imprescindível, levando-se em conta que as crescentes inovações tendem a provocar uma insegurança nos usuários desse novo mundo virtual, livre, veloz e globalizado, marcado pelas características do mundo pós-moderno: ubiqüidade, velocidade e liberdade:


“Como ensina Erik Jayme, o ‘mundo pós-moderno é caracterizado pela comunicação (kommunikation) e por não ter mais fronteiras. De outra parte, não são apenas os meios tecnológicos que permitem a troca rápida de informação e imagens, mas também a vontade (Wille) e o desejo (Wunsch) de se comunicar dessas pessoas. Esse desejo emerge como valor comum. Para o mestre de Heidelberg, as características de nosso tempo (pós-moderno) são a ubiqüidade, a velocidade e a liberdade, todas elas encontráeis neste novo meio de comunicação de de comércio que é a Internet. Erik Jayme conclui que o consumidor/usuário experimenta neste meio livre, veloz e global uma nova vulnerabilidade, daí a importância de revistar as linhas da boa-fé no comércio e adaptá-las ao comércio eletrônico.”[11]


No mesmo sentido, Lorenzetti, ao analisar o comércio eletrônico, afirma que existe um “sistema especialista”, indestrinçável ante sua complexidade técnica, anônimo diante da impossibilidade de se conhecer o responsável, situação que se apresenta particularmente nos contratos coligados.[12] O mesmo sentimento parece se expressar nas palavras de Erik Jayme:


“No que concerne às novas tecnologias, a comunicação, facilitada pelas redes globais, determina uma maior vulnerabilidade daqueles que se comunicam. Cada um de nós, ao utilizar pacificamente seu computador, já recebeu o choque de perceber que uma força desconhecida e exterior invadia o seu próprio programa, e o fato de não conhecer seu adversário preocupa ainda mais.”[13]


Em um contexto tão complexo, que levaria ao esgotamento psicológico do indivíduo diligente segundo os comportamentos contratuais clássicos, o padrão de comportamento do “homem médio deve ser revisto, levando-se em conta que na Internet o indivíduo age precipuamente com base na confiança inspirada pela aparência gerada pelo “sistema especialista”. [14]


Um dos sistemas adotado para estabelecer a confiança em contratos eletrônicos celebrados através de plataformas disponibilizadas por sites de comércio eletrônico é o feedback, assim definido por Guilherme Martins:


“Trata-se de informações disponibilizadas pelos próprios consumidores no site de venda, em espaço próprio para tanto, permitindo-se a todos os usuários, mediante uma votação, avaliar os serviços de cada ofertante. Em certos casos, se um ofertante obtiver um conceito baixo, o sistema poderá inclusive suspendê-lo automaticamente das operações no site.”[15]


Evidentemente, o feedback tem caráter essencial para a segurança, tanto do comprador quanto do vendedor. Referida essencialidade de demonstra mais cristalina quando as transações eletrônicas realizadas são aquelas classificadas como contratos C2C (contratos de consumidor a consumidor), como as que são realizadas em sites de leilões virtuais. É exatamente nesse feedback que se vislumbra cristalina possibilidade de responsabilização do provedor da plataforma de leilões virtuais, tendo em vista que na celebração dos contratos tanto comprador quanto vendedor se baseiam nas informações disponibilizadas no site.


3. A dinâmica dos Sites de leilões virtuais


Os sites de leilões virtuais constituem atividade muito popular na Internet, tendo em vista a possibilidade de o consumidor ter acesso a opções de compra de forma organizada.


“O leiloeiro ou casa de leilões pode ser aquele que vende os produtos oferecidos a lances, o que se assemelha mais aos leilões tradicionais, o que facilita o pagamento e a responsabilização, assim como as garantias do contrato. E existe ainda o ‘leilão por co-shopping’, que não é um leilão stricto sensu, mas que trabalha com descontos, conforme o número de consumidores que se interessa por um produto ou grupo de produtos. Neste caso, o leiloeiro serve de plataforma comercial na Internet para o ‘encontro’ do grupo de interessados” [16]


Nesse tipo de negociação, um usuário se cadastra como vendedor junto ao “site” passando a vender produtos ou serviços para usuários cadastrados como compradores. Apenas após a concretização do leilão, o site fornece os dados para contato entre vendedor e comprador.


No que tange aos chamados sites de leilões virtuais, em que ocorrem diversas negociações de compra e venda (ou permuta, em alguns casos), a questão da confiança se demonstra mais crítica. Torna-se difícil identificar adequadamente os usuários de determinado portal, o que pode trazer insegurança principalmente para os compradores.


Com efeito, nas hipóteses em que o intermediário meramente disponibiliza sua plataforma para que os vendedores possam oferecer seus produtos e serviços, utilizando diversos nomes de usuário (nickname), pode ocorrer de um usuário inabilitado por receber o pagamento e não entregar a mercadoria continuar vendendo através de um segundo cadastro, colocando em risco novos compradores. Faz-se necessário, portanto, um mecanismo para diminuir essa insegurança.


Justamente nesse ponto surgem questões tormentosas. O que ocorrerá caso o comprador deposite o dinheiro na conta do vendedor e não receba o produto? Sites como Mercado Livre, Arremate e Ebay, dentre outros, têm regras internas no sentido de que não se responsabilizam por esse tipo de situação. Uma vez demandados judicialmente, é comum alegarem que simplesmente divulgaram um anúncio, não tendo integrado a relação contratual. Trata-se de mais um problema surgido no bojo dos contratos eletrônicos, dentre outros que ainda não tiveram o adequado tratamento jurídico. Com efeito:


“O surgimento e desenvolvimento dos novos meios de comunicação que possibilitaram a formação de relações contratuais à distância, notadamente através da utilização da rede de computadores Internet, tornaram ainda mais fácil a concretização da idéia da sociedade de massa global, acentuando-se a massificação das operações econômicas. Este novo instrumento na realização dos contratos, porém, apesar de facilitar o consumo, fez surgir uma série de questões a respeito da tutela efetiva dos direitos dos consumidores.”[17]


4. Da incidência do Código de Defesa do Consumidor


A doutrina já vem a longa data admitindo a responsabilização do fornecedor de produtos ou serviços que utiliza a Internet como meio para atingir grande massa de consumidores. Embora exista entendimento no sentido de que as normas do Direito do Consumidor não se aplicariam aos contratos eletrônicos, havendo necessidade de leis específicas, entende-se mais coerente o defendido por Flávio Alves Martins, pela aplicabilidade das normas consumeiristas às relações contratuais estabelecidas pela Internet:


“Logo, dificilmente será afastada a responsabilidade de quem explora a prestação de serviços ou vende produtos por site, salvo se houver a culpa concorrente do próprio consumidor, prevista nos arts. 12, parágrafo 3o, inciso III, e 14, parágrafo 3o, inciso II, do CDC como, por exemplo, no caso de uma pessoa acessar um site em que sabia da invasão deste e, mesmo assim, o faz com a finalidade de sofrer algum dano para, posteriormente, buscar uma indenização.”[18]


Nas relações contratuais estabelecidas por meio eletrônico através da modalidade leilão virtual, importa ressaltar que é exatamente esse intermediário, o leiloeiro virtual que fornece senhas de identificação, registra os usuários em seu portal e controla a identificação de vendedores e compradores, sendo responsável inclusive por enviar ao vendedor a identificação e dados para contato do comprador.


Tendo em vista o absoluto controle das transações por eles intermediadas, bem como o fato de receberem quantias fixas ou percentuais pelos serviços disponibilizados, a melhor conclusão parece ser a de que os fornecedores de serviços de comércio eletrônico na modalidade leilão virtual estão plenamente sujeitos às normas do Código de Defesa do Consumidor, como assevera Guilherme Magalhães Martins:


“A definição legal de serviço (art. 3º, § 2º, Lei 8.078/90) inclui, além dos fornecedores por meio eletrônico, os chamados intermediários do comércio eletrônico, em especial os provedores de Internet e os certificadores”.[19]


Colhe-se do mesmo autor ensinamento diretamente relacionado ao presente trabalho, no sentido de que deve ser considerado fornecedor o leiloeiro, tanto o que organiza leilões diversos, disponibiliza seus recursos tecnológicos (marketplace) para que terceiros ofereçam bens ou façam lances, pagando um valor fixo ou percentual quanto o que vende diretamente produtos em seu site.[20]


No tocante ao comércio eletrônico, vale ressaltar, não se pode pretender uma análise tradicional das relações contratuais. Impende observar a lição de Cláudia Lima Marques, que analisa com propriedade a necessidade de um novo olhar para a figura dos sujeitos envolvidos no negócio eletrônico:


“O sujeito consumidor é agora um destinatário final contratante (art. 2º do CDC), um sujeito ‘mudo’ na frente de um écran, em qualquer tempo, em qualquer língua, com qualquer idade, identificado por uma senha (PIN), uma assinatura eletrônica (chaves-públicas e privadas), por um número de cartão de crédito ou por impressões biométricas, é uma coletividade de pessoas, que intervém na relação de consumo (por exemplo, recebendo o compact disc (CD) de presente, comprado por meio eletrônico, ou o grupo de crianças que está vendo o filme baixado por Internet, ex vi parágrafo único do art. 2º do CDC) ou a coletividade afetada por um spam ou marketing agressivo (art. 29 do CDC) ou todas as vítimas de um fato do serviço do provedor de conteúdo, que enviou um vírus ‘destruidor’ por sua comunicação semanal, ou todas as pessoas cujos números da conta corrente ou do cartão de crédito e senha foram descobertos pelo hacker ou cracker que atacou o computador principal do serviço financeiro, ou do fornecedor de livros eletrônicos (e-books) – art. 17 do CDC.”[21]


Com efeito, é muitas vezes difícil identificar na contratação celebrada por meio da internet a existência de um consumo final, como salienta Lorenzetti:


“É difícil determinar em muitos casos, com uma precisão mínima, se ocorre um ‘consumo final’, ou constatar a existência de elementos positivos que a norma exige para a sua incidência”[22]


Além disso, o próprio meio de celebração do contrato eletrônico engendra uma situação normalmente desigual entre os contratantes, uma vez que o consumidor deverá apresentar conhecimento mínimo sobre o funcionamento da Internet e do próprio site do fornecedor, sem contar o problema da perfeita compreensão de um idioma estrangeiro:


“A contratação eletrônica de consumo por meio da Internet certamente acentua a vulnerabilidade do consumidor, pois todo o controle informacional, técnico e de linguagem está plenamente concentrado do lado do fornecedor. Tal situação é ainda evidenciada por fatores como a própria autoria da mensagem, a identidade e a localização do fornecedor.” [23]


Cláudio Lima Marques aduz que referida situação de controle concentrada no fornecedor, bem como os demais fatores “são momentos de vulnerabilidade do consumidor”. [24] Referida desigualdade tende a gerar uma mitigação do finalismo no tocante aos contratos eletrônicos[25].


No tocante ao fornecedor, a definição da Lei 8.078/9 encontra-se em seu art. 3º:


“Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”


O critério adotado exclui da condição de  fornecedor aquele que realiza contratos eletrônicos de consumidor para consumidor, denominados C2C. Pode-se concluir, então, que o usuário de um site de leilões virtuais que cadastra um livro para venda não poderá ser considerado fornecedor. Em outras palavras: não haverá, nesse caso, relação de consumo, por dois motivos: ausência de fornecedor profissional e ausência de consumidor. Tal assertiva parece correta, especialmente utilizando-se a definição finalista de consumidor, já que não existe vulnerabilidade entre vendedor e comprador, in casu.


Ressalte-se, outrossim, que os intermediários do comércio eletrônico, vale dizer, as sociedades que disponibilizam a plataforma de leilões virtuais, não escapam à definição legal ora analisada, como bem salienta Guilherme Martins:


“A definição legal de serviço (art. 3º, § 2º, Lei 8.078/90) inclui, além dos fornecedores por meio eletrônico, os chamados intermediários do comércio eletrônico, em especial os provedores de Internet e os certificadores”.[26]


Colhe-se do mesmo autor ensinamento diretamente relacionado ao presente trabalho, no sentido de que deve ser considerado fornecedor o leiloeiro, tanto o que organiza leilões diversos, disponibiliza seus recursos tecnológicos (marketplace) para que terceiros ofereçam bens ou façam lances, pagando um valor fixo ou percentual quanto o que vende diretamente produtos em seu site.[27]


Parece correta a conclusão de Cláudia Lima Marques ao afirmar que os leilões virtuais constituem verdadeira atividade comercial, tendo em vista a existência de remuneração direta, na forma de percentual da transação realizada, ou indireta, através de publicidade, convênio com provedores ou ganhos pelos impulsos telefônicos.[28] Por esse motivo, arremata a autora que deve ser aplicado à espécie, vale dizer, leilões realizados por empresários (art. 966 do Código Civil) tanto o Código de Defesa do Consumidor quanto, no que couber, o Código Civil.


Embora se entenda que os leilões C2C (consumidor a consumidor) não caracterizem uma relação de consumo, não se pode invocar a exclusão da disciplina consumerista. Isso porque normalmente tais negócios jurídicos são realizados na plataforma (marketplace) disponibilizada pelo intermediário, provedor específico desse tipo de serviços. Aplicar-se-ia, portanto, apenas o Código Civil tão-somente na hipótese não muito usual de um consumidor, em sua página pessoal, ou através de seu e-mail, por exemplo, promover um leilão virtual. Nesse sentido:


“Aos leilões ‘privados’, consumidor-consumidor, aplicam-se apenas as regras gerais do Código Civil, mas se acontecerem de forma ‘organizada’, em espaços organizados para tal, na Internet, ou com a participação de fornecedor ou moderador-profissional, não serão mais caracterizados como leilões privados, aplicando-se as regras de proteção do consumidor e da concorrência.” [29]


A Jurisprudência demonstra uma tendência de aplicar o entendimento da responsabilização do intermediário às hipóteses tratadas no presente trabalho, como se vê dos julgados a seguir transcritos:


“AÇÃO DE COBRANÇA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. LEILÃO. ENTREGA DE VEÍCULO DIVERSO DO OFERECIDO. LEGITIMIDADE PASSIVA DO LEILOEIRO. RESPONSABILIDADE DO MESMO PELO ABATIMENTO DO PREÇO, OBSERVADO O VALOR DO VEÍCULO OFERECIDO E O VALOR DO VEÍCULO EFETIVAMENTE ENTREGUE AO COMPRADOR.


O leiloeiro é legitimado passivo para a demanda, porque integra a cadeia de fornecedores, nos termos do art. 3º, caput, do CDC, sendo, portanto, responsável solidariamente com a proprietária do bem por eventual vício do produto, tendo, no caso, o autor, optado por ajuizar a demanda contra o leiloeiro.


Demonstrado que, no caso, não foi cumprido o dever de informar adequada e previamente o comprador acerca do real estado do veículo, oferecendo, via Internet, veículo diverso do que efetivamente foi entregue ao autor, fato que não é negado pelo recorrente, limitando-se a alegar que o contrato previa a entrega do produto no estado que se encontrava, contribuindo para o prejuízo do adquirente, devido abatimento do preço, levando-se em conta a diferença entre o valor do veículo oferecido e o veículo efetivamente entregue ao comprador.


Precedentes .


RECURSO DESPROVIDO. (Recurso Cível Nº 71001194471, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Maria José Schmitt Santanna, Julgado em 28/02/2007)”


Direito Privado. Compra e venda. Via internet. Mercado Livre. Legitimidade passiva. Auferição de lucro. Código de Defesa do Consumidor. Indenização. Dano moral. Descabimento. Dano material. Cabimento. Restituição quantias pagas.


APELAÇÃO CÍVEL. COMÉRCIO ELETRÔNICO. COMPRA E VENDA DE APARELHO CELULAR VIA INTERNET. NÃO-ENTREGA DE MERCADORIA. LEGITIMIDADE DO SITE QUE DISPONIBILIZA A REALIZAÇÃO DE NEGÓCIOS E RECEBE UMA COMISSÃO DO ANUNCIANTE, QUANDO CONCRETIZADO O NEGÓCIO. DEVOLUÇÃO DA QUANTIA PAGA. DANOS MORAIS DESCONFIGURADOS. CASO CONCRETO. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME.


Súmula


Proc. nº 70026228668


9ª Câmara Cível do TJRS


Relator: Léo Romi Pilau Júnior


Julgamento: 29/10/2008


Advogados da parte vencedora: Nathalia Folha Mendes, Eduardo Luiz Brock e Solano de Camargo


Num Processo: 2003.03.1.014088-5


Reg. Acórdão: 186533


Relator Juiz: JOÃO EGMONT LEÔNCIO LOPES


Apelante(s): EBAZAR COM. BR. LTDA


Advogado(s): FABIANA VILHENA MORAES SALDANHA


Apelado(s): RICARDO ANDRADE DO CONTO


Advogado(s): DEFENSORIA PÚBLICA


Origem: 1 JECC-CEILÂNDIA – RESTITUICAO


EMENTA


CIVIL – CONSUMIDOR – COMPRA E VENDA DE APARELHO CELULAR VIA INTERNET – NÃO ENTREGA DE MERCADORIA – DEVOLUÇÃO DAS PARCELAS PAGAS – SOLIDARIEDADE PASSIVA DO SITE QUE DISPONIBILIZA A REALIZAÇÃO DE NEGÓCIOS E RECEBE UMA COMISSÃO DO VENDEDOR/ANUNCIANTE, QUANDO CONCRETIZADO O NEGÓCIO –


1. Doutrina. “Os contratos de fornecimento de produtos ou de prestação de serviços, dos quais constituem exemplo aqueles celebrados entre provedores de acesso à internet e os seus clientes, encontram-se sujeitos, (….) às mesmas proteções ordinariamente dirigidas à tutela dos consumidores, em relação à eventual aquisição de bens no mundo real. (…….) Não se pode olvidar que os contratos realizados pela Internet são contratos de adesão, daí porque as limitações na interpretação de tal espécie de contrato são, evidentemente, aplicáveis. Por isso é que devem ser consideradas nulas todas as disposições que alterem o equilíbrio contratual das partes, ou que liberem unilateralmente as partes de suas obrigações legais, como é o caso das cláusulas de não indenizar.” (Vitor Fernandes Gonçalves, A Responsabilidade Civil na Internet, R. Dout. Jurisp. TJDF 65, pág. 86).


2. O serviço prestado pela ré, de apresentar o produto ao consumidor e intermediar negócio jurídico por meio de seu site e receber comissão quando o negócio se aperfeiçoa, enquadra-se nas normas do Código de Defesa do Consumidor (art. 3º, §2º, da Lei 8078/90).


3. É de se destacar que a recorrente não figura como mera fonte de classificados, e sim, participa da compra e venda como intermediadora, havendo assim, solidariedade passiva entre a recorrente e o anunciante, nos termos do Parágrafo único do art. 7o do Código do Consumidor.


4. Merece confirmação sentença que condenou a intermediadora a indenizar consumidor pelo não recebimento de produto adquirido (aparelho de telefone celular) em site de internet de responsabilidade daquela (intermediadora), aqui Recorrente.


5. Sentença mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos.


DECISÃO


CONHECER E NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, SENTENÇA MANTIDA, POR UNANIMIDADE.”


5. Conclusão


Não restam dúvidas, diante dos argumentos já expostos, de que as normas de proteção do consumidor incidem nos chamados leilões virtuais, não existindo lacuna legal alguma na hipótese analisada. O intermediário que disponibiliza sua plataforma para a realização de nogócios eletrônicos entre terceiros, reforçando a confiança dos usuários de seu marketplace através de mecanismos de feedback, influi na decisão das partes.


Além disso, normalmente esse provedor de leilões virtuais receberá um valor fixo ou percentual pela transação realizada, bem como outro a título de publicidade, sem contar eventuais quantias recebidas em função do serviço de pagamento virtual também oferecido através de sua plataforma. Assim, embora o proprietário do site não seja parte na relação negocial entre comprador e vendedor, deve ser considerado fornecedor, estando, conseqüentemente, sujeito à incidência das normas do Código de Defesa do Consumidor.


 


Referências

CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra : Almedina, 1997.

FRADA, Manuel Antonio de Castro Portual Carneiro da. Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil. Coimbra: Almedida, 2004.

JAYME, Erik. O direito internacional privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGDir./UFRGS, vol. 1, n. 1.

MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: RT, 2004.

MARTINS, Flávio A. Defesa do Consumidor na Rede. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano V, nº 5, 2004.

MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade Civil por Acidente de Consumo na Internet. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

 

Notas:

[1] CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra : Almedina, 1997. p. 1234.

[2] MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: RT, 2004. p. 32.

[3] FRADA, Manuel Antonio de Castro Portual Carneiro da. Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil. Coimbra: Almedida, 2004. p. 17.

[4] MARQUES. Op. Cit. p. 33.

[5] Op. Cit. p. 67.

[6] FRADA, Op. Cit. p. 74-75.

[7] FRADA, Op. Cit. p. 903.

[8] FRADA, Op. Cit. p. 74-75.

[9] FRADA, Op. Cit. p. 904.

[10] MARQUES. Op. Cit. p. 33-35.

[11] MARQUES. Op. Cit. p. 40-41.

[12] LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio eletrônico. Trad. Fabiano Menke. São Paulo: RT, 2004. p. p. 281-282.

[13] JAYME, Erik. O direito internacional privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PPGDir./UFRGS, vol. 1, n. 1, p. 86.

[14] Lorenzetti. Op. Cit. p. 283.

[15] MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade Civil por Acidente de Consumo na Internet. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 77.

[16] MARQUES. Op. Cit. p. 217.

[17] Ibidem, p. 51

[18] MARTINS, Flávio A. Defesa do Consumidor na Rede. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano V, nº 5, 2004, p. 156.

[19] Op. Cit. p. 72.

[20] Op. Cit. p. 72.

[21] Marques. Op. Cit. p. 63-64.

[22] Op. Cit. p. 382.

[23] Martins. Op. Cit. p. 68.

[24] Op. Cit. p. 73.

[25] Martins. Op. Cit. p. 68.

[26] Op. Cit. p. 72.

[27] Op. Cit. p. 72.

[28] Op. Cit. p. 218

[29] MARQUES. Op. Cit. p. 218


Informações Sobre o Autor

Sandro José de Oliveira Costa

Procurador Federal. Professor Universitário e Mestrando em Direito (Faculdade de Direito de Campos)


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