Resumo: O presente artigo busca desenvolver uma análise crítica do princípio da precaução, teórica e jurisprudencialmente. Objetiva-se trabalhar também a questão inseparável entre Direito a Informação, Precaução e a identificação dos Organismos Geneticamente Modificados frente ao consumidor. [1]
Resumé: L’article a pour but develloper l’analyse critique sûr le Principe de Precautión, téorique et jurisprudentielle. Il a pour but aussi, travailler avec trois question inseparable: le Droit d’information, Precautión et identification des Organismes Genétiquement Modifiés.
Sumário: 1. Introdução 2. Breve noção sobre Organismos Geneticamente Modificados e a questão de sua rotulagem 3. O Princípio da Precaução 3.1 Histórico 3.2 Conceito 3.3 Avaliação de riscos 3.4 Gestão de risco 4. O Direito à Informação 5. Críticas ao Princípio da Precaução (tal como assumido no Ordenamento Brasileiro) 6. Rotulagem obrigatória dos OGM: Legislação brasileira 7. Breve entendimento jurisprudencial 8. Conclusão
1. Introdução
O princípio da precaução, desde sua tardia introdução no ordenamento jurídico brasileiro (por meio do princípio 15 da Declaração Rio de Janeiro/92, redigida durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do mesmo ano – ECO/92)[2], vem sendo associado ao Direito Ambiental. O próprio Ordenamento assim o faz expressamente, ao enumerá-lo dentre os princípios gerais do Direito Ambiental Brasileiro, no art. 2º, inc. IV do Decreto 5.098/2004[3].
Parece, no entanto, ser o momento de expandir a aplicação deste princípio para outros ramos do Direito Civil, principalmente, quando considerada sua articulação com o princípio da Informação. Neste artigo, tentar-se-á demonstrar a aplicação do princípio, a partir de suas diretrizes gerais (doutrinariamente construídas), ao Direito do Consumidor e à espinhosa questão referente aos Organismos geneticamente modificados (OGM) e sua regulação no Brasil, passando, inclusive, pela questão da rotulagem, ponto obrigatório ligado ao tema.
Duas vertentes podem servir como base para este aumento de importância da idéia de precaução:
Em um primeiro momento, deve-se levar em conta a idéia de vulnerabilidade do consumidor, segundo a qual, este é, na maioria das vezes, a relação mais fraca no contrato de consumo[4]. Assim, para que haja igualdade, é necessário que o Estado aja no interesse da Justiça e, antes de tudo, da própria Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. XXXII, propiciando uma intervenção nesta relação contratual, fornecendo à parte mais fraca, elementos dos quais possa se utilizar para que faça um consumo esclarecido. Isto é, busca-se colocar em patamares iguais situações diferentes.
Um segundo momento a ser lembrado é a crescente massificação por que passa a sociedade atualmente[5]. Com o surgimento e desenvolvimento cada vez mais veloz da tecnologia, as relações entre pessoas passam a ser mais fugazes e superficiais, além de se realizarem em números crescentes; o tempo antes utilizado para uma negociação, hoje em dia, vem sendo progressivamente reduzido. O contrato de adesão (ou de massa) aparece aqui como o principal instrumento da relação de consumo, em que a única opção que resta a ser feita pela parte é a de concordar ou não com as cláusulas do negócio jurídico.
Assim, evitam-se atrasos desnecessários, mas também criam-se diversos empecilhos, sendo um deles o aumento do alcance dos danos derivados da relação consumerista. O mesmo bem, decorrente de uma produção em massa, causará a um amplo espectro de pessoas um mesmo efeito que poderá ser apenas econômico (como é o caso do vício do produto) ou físico (como é o caso do fato do produto). Neste caso, é atacado o Direito à Saúde (art. 196 da Constituição Federal), merecendo, portanto, uma proteção integral do Ordenamento Jurídico, à qual tem como aliados o Direito à Informação e o Princípio da Precaução.
Buscar-se-á também uma análise crítica sobre o próprio modo como vem sendo implementado aquele princípio no Ordenamento Nacional e alguns pontos que merecem reflexão em sua elaboração teórica, sempre trazendo à colação a pesquisa jurisprudencial, como meio de auxílio.
Este artigo terá por base a experiência doutrinária e jurisprudencial internacional, com especial atenção para a legislação européia, e a sua (ainda) pequena utilização no Brasil.
2. Breve noção sobre organismos geneticamente modificados e a questão de sua rotulagem[6]
Os organismos geneticamente modificados (OGM) são aqueles obtidos a partir da transferência de genes de um ser vivo para outro, geralmente de espécies diferentes, por meio da transgenia.[7] São, portanto, variedades que tiveram seu genoma alterado a partir da introdução de DNA proveniente de outro ser vivo, contendo uma sequência promotora, um gene estrutural e terminal. A seqüência estrutural permitirá que o organismo transgênico expresse a característica relevante desejada, uma vez que determinará a produção de uma proteína nova[8], que pode, por exemplo, tornar uma variedade vegetal resistente a certo tipo de herbicida, como é o caso da soja Roundup Ready, um tipo de semente de soja que foi desenvolvida pela Monsanto na década de 80, resistente a herbicidas à base de glifosato.
Técnica da Transgenia:
É importante estabelecer as principais distinções entre o melhoramento tradicional e a transgenia (técnica do DNA recombinante). As técnicas tradicionais estão restritas ao cruzamento sexual, entre seres da mesma espécie, apresentando, o organismo obtido, invariavelmente, metade do código genético das variedades parentais que o originaram.[9] A transgenia, por sua vez, é uma técnica aprimorada e economicamente relevante, uma vez que possibilita o controle específico dos genes que serão transferidos (melhoramento pontual), além de permitir a expressão de genes cujas características são conhecidas com antecedência sem que ocorra a mistura entre os códigos genéticos das variedades parentais.[10]
Cabe destacar que os OGM sofrem uma alteração em sua estrutura físico-química, passando a constituir uma nova espécie, denominada cultivar.[11]
Em que pese permitir a transgenia a alteração genética de qualquer espécie, o presente artigo científico cingir-se-á tão-somente às variedades vegetais no que concerne à questão da rotulagem obrigatória dos OGM como mecanismo de garantir ao consumidor uma escolha baseada num juízo esclarecido.
Imperioso, nessa linha, o questionamento largamente suscitado acerca da necessidade do estabelecimento de limites, tendo em vista o desconhecimento das conseqüências que podem advir de um avanço descontrolado, de modo a proceder a avaliação ética de tais intervenções a fim de que o homem seja sempre respeitado em sua dignidade, em seu valor de fim e não de meio. Isso significa zelar pelo primado do princípio da dignidade da pessoa humana, concebido a partir do imperativo categórico de Kant, como algo inerente a qualquer ser humano[12], sob o pálio da Bioética.
Ainda que inexistam estudos conclusivos acerca da beneficência dos organismos geneticamente modificados não só para o meio ambiente, mas para a saúde do ser humano, já existem evidências concretas dos riscos do consumo desse tipo de alimento. Como exemplo, pode ser citado o caso emblemático do milho transgênico Starlink, produzido pela Aventis CropScience USA Holding, Inc., geneticamente modificado para produzir a proteína Cry9C, com características pesticidas que fazem com que este milho seja mais resistente a certos tipos de insetos, de acordo com o guia produzido nos Estados Unidos pela Food and Drug Administration (FDA), divulgado no site do milho Starlink, descontinuado desde 06 de junho de 2008.[13]
De acordo com o guia, a Agência Norte-Americana de Proteção Ambiental, Environmental Protection Agency (EPA), autorizou o milho Starlink para ser utilizado apenas como ração animal. O uso na alimentação humana não foi permitido por questões não-resolvidas acerca do potencial alergênico da proteína Cry9C. Ocorreu que, mesmo com a restrição, houve combinação do milho Starlink com o milho amarelo usado na alimentação humana. Em alguns casos, adiciona o guia, a proteína Cry9C foi detectada em sementes de milho de outras variedades e até mesmo nos milhos provenientes dessas sementes. Tal exemplo demonstra a importância da rotulagem obrigatória dos OGM.
No entanto, a rotulagem dos produtos que contenham organismos geneticamente modificados em sua composição, como forma de assegurar ao consumidor o direito de escolha com base em um juízo esclarecido encontra empecilhos que incluem a questão da multiplicidade dos agentes reguladores e fiscalizadores da matéria, aparentes conflitos de competência, divergências interpretativas, destacando o papel do Poder Judiciário no sentido de zelar pela aplicação dos dispositivos legais que impõem a rotulagem.
3. O Princípio da Precaução
3.1 Histórico
O Princípio da Precaução, que formalmente surge para o direito na década de 1970, principalmente na Alemanha sob o nome de Vorsorgeprinzip, é, para alguns doutrinadores, o desenvolvimento de uma linha filosófica e política iniciada por Aristóteles, na Grécia Antiga, que une noções éticas e políticas na busca por superar a deficiência do saber. Sua denominação derivaria do verbo latino praecavere, designando uma atitude diante de um risco configurando um ato de efetiva prudência[14].
Para Pierre Bechmann e Véronique Mansuy, a forma moderna do princípio da precaução pode ser atribuída ao pensador alemão Hans Jonas, que propunha, em seu livro Le Príncipe Responsabilité: Une éthique pour la civilisation technologique. Pour une éthique du futur, o resgate da ética da responsabilidade de Max Weber, isto é, expunha a necessidade de uma ética de antecipação e a introdução de dever perante as gerações futuras, o que configuraria um dever moral[15].
O Vorsorgeprinzip, como enunciado da política de meio ambiente alemã da década de 1970, segundo Paulo Affonso Leme Machado, buscava concretizar a idéia de que se poderia evitar danos ambientais através do um planejamento mais cuidadoso na instalação e na difusão de atividades potencialmente capazes de degradar o meio ambiente.[16]
A sua primeira grande aparição ocorreu no Ato de Poluição do Ar de 1974, que determina a responsabilização do possuidor de planta industrial que não evitar o dano ambiental ao não se utilizar de todas as técnicas mais avançadas disponíveis capazes de diminuir a emissão de gases poluentes.
A partir de então, o princípio da precaução se difundiu rapidamente, tanto no direito interno de diversos países quanto no âmbito internacional. Em 1987, o princípio da precaução se mostra presente na Declaração de Conferência Internacional do Mar Norte. Em 1992, é consagrado definitivamente com o seu aparecimento em diversos tratados e convenções, tais como o Tratado de Maastricht sobre a União Européia, marco crucial no processo de unificação econômica e política européia, e a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que se realizou no Rio de Janeiro e consagrou o conceito de desenvolvimento sustentável.[17]
3.2 Conceito
O princípio da precaução pode ser definido, de acordo com Paulo Affonso Leme Machado, citando o Comunicado da Comissão relativa ao princípio da precaução, como sendo:
“A invocação do princípio da precaução é uma decisão exercida quando a informação científica é insuficiente, não conclusiva ou incerta e haja indicações de que os possíveis efeitos sobre o ambiente, a saúde das pessoas ou dos animais ou a proteção vegetal possam ser potencialmente perigosos e incompatíveis com o nível de proteção escolhido.”[18]
A Declaração da Conferência das Nações unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92, em seu capítulo 35, parágrafo 3 da Agenda 21, refere-se a sua aplicação através das idéias de risco irreversível:
“Ante a ameaça de dano irreversível ao meio ambiente, a falta de completo conhecimento científico não deve ser usada como justificativa para postergar a adoção de medidas que se justificam por si mesmas. O enfoque baseado no princípio da precaução pode servir como base para políticas relativas a sistemas complexos que ainda não são completamente compreendidos e cujas conseqüências não podem ainda ser previstas.[19]” (tradução do autor)
Poder-se-ía dizer que o princípio da precaução foi incorporado no ordenamento jurídico pátrio no art. 225, parágrafo primeiro em seus incisos IV e V, da Constituição Federal, e na Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938 de agosto de 1981. Esta última introduziu como meta da administração pública nacional a busca por compatibilizar o desenvolvimento econômico e social com a conservação da qualidade do meio ambiente, assim como a preservação dos recursos naturais, com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida (art. 4º, incisos I e VI). Ademais, introduziu como instrumento preventivo a avaliação dos impactos ambientais de acordo com o artigo 9º, inciso III.
Destarte, a prevenção passa a ter fundamento no direito positivo nessa lei pioneira na América Latina. Incontestável passou a ser a obrigação de prevenir ou evitar o dano ambiental, quando o mesmo pudesse ser detectado antecipadamente. Contudo, o Brasil, em 1981, ainda não atingira claramente o direito da precaução.
3.3 Avaliação de risco
Pode-se afirmar, todavia, que não é viável a aplicação do princípio da precaução sem necessariamente haver a realização de um procedimento científico prévio de identificação e avaliação dos riscos. É nessa etapa que
“o risco deve ser definido, avaliado e graduado. Essa afirmação é menos elementar do que aparenta. Ela é uma etapa essencial para a racionalização dos riscos, devendo conduzir a separar o risco potencial do fantasma e da simples apreensão. Ela impõe que não haja satisfação com pressuposições vagas, com as quais se acomoda geralmente a atitude de abstenção. Requer a realização de perícias freqüentemente longas e custosas”[20].
Segundo o Department of Health and Human Services, a análise de risco é um processo subjetivo e envolve condições físicas, biológicas e boas práticas laboratoriais. O pesquisador deve realizar uma avaliação inicial do risco de acordo com o grupo a que o risco se insere. Para tal, considerar-se-á diversos fatores como nível de virulência, patogenidade, estabilidade ambiental, toxidade, atividade fisiológica e alergenicidade[21].
A avaliação de riscos, de acordo com o Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Européias, em sua decisão de 11 de setembro de 2002, pode ser definida como um processo científico que consiste em identificar e caracterizar um perigo, a avaliar a exposição e a caracterizar o risco, ou seja, analisar o grau de probabilidade dos efeitos adversos de um certo produto ou método para a saúde humana e da gravidade destes efeitos potenciais.
Nestes termos, a avaliação científica dos riscos deve fornecer à autoridade pública, através de pareceres elaborados por peritos, informações fiáveis e sólidas que lhe permitam desenvolver sua política econômica, social e ambiental, do contrário, estar-se-ia adotando medidas arbitrárias. Assim, “a autoridade pública competente deve velar por que as medidas que toma, mesmo que se tratem de medidas preventivas, sejam baseadas numa avaliação científica dos riscos tão exaustiva quanto possível tendo em conta as circunstâncias específicas do caso concreto”[22].
Portanto, Pierre Bechmann e Véronique Mansuy ao interpretar a Comunicação da Comissão Européia afirmam que a avaliação dos riscos, como recurso científico, constitui, um dever, uma obrigação das autoridades públicas de que suas decisões atinjam o mais alto nível de proteção da saúde pública e do meio ambiente ao se fundamentarem nos melhores e mais recentes dados científicos disponíveis no âmbito nacional e internacional[23]. A avaliação pode, de acordo com os autores franceses, ser dividida em quatro etapas sucessivas, podendo todas serem diretamente afetadas pela evolução do conhecimento.
Segundo a União Européia, o primeiro passo para uma avaliação consistente dos prováveis males que se suspeita derivem de certo produto é a “identificação do risco”, ou seja, pesquisadores renomados devem buscar revelar se há presença ou existência de agentes capazes de gerar efeitos desfavoráveis à saúde dos consumidores. Posteriormente, faz-se necessária a “caracterização do perigo” através da qual se procura determinar em termos quantitativos e /ou qualitativos a natureza e a gravidade dos efeitos prejudiciais.
Segue-se o estudo com a “avaliação da exposição ao risco”, em outras palavras, devem os cientistas buscar avaliar quantitativa e/ ou qualitativamente a probabilidade de exposição do ser humano ao agente em estudo. Por fim, chega-se à etapa da “caracterização do risco”, isto é, elabora-se uma estimativa quantitativa e/ ou qualitativa, levando-se em consideração as incertezas inerentes ao exercício, à probabilidade, à freqüência e à gravidade dos efeitos desfavoráveis, potenciais ou conhecidos suscetíveis de se produzir para meio ambiente e a saúde humana.
Em nível nacional, Sônia Barroso Brandão Soares explicita a necessidade de realização de avaliação de risco de qualidade a fim de evitar danos potencialmente irreparáveis à saúde humana decorrentes direta ou indiretamente do consumo de alimentos transgênicos.
“Fazer uma avaliação dos riscos significa utilizar-se de procedimento para sintetizar o conjunto de informações disponíveis e os julgamentos científicos sobre as novas tecnologias, como, por exemplo, a das sementes transgênicas, com o objetivo de determinar a possibilidade de efeitos adversos em humanos, outras espécies e ecossistemas a partir da exposição a um determinado produto específico. A avaliação de riscos deve proporcionar a mais completa informação possível aos responsáveis por controlar e prevenir os riscos, especificamente àqueles que estabelecem políticas e normas”[24].
A Resolução CONAMA nº 1/1986 estabelece que o estudo de impacto ambiental desenvolverá:
“a análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazo; temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benéficos sociais’ (art. 6º, II)”[25].
Os pesquisadores da EMBRAPA e da Universidade Federal Fluminense consideram ainda essencial valer-se do princípio da equivalência substancial, isto é, ao elaborar-se o relatório com os resultados das pesquisas realizadas acerca dos riscos, deve-se estimar o risco à saúde pública do produto, estabelecendo uma comparação do seu similar não transgênico a fim de verificar o real impacto da sua introdução na dieta humana.
“A avaliação de segurança de determinado alimento geneticamente modificado (AGM) é estabelecida a partir de sua equivalência substancial. Tal abordagem não se destina à caracterização da segurança absoluta, meta praticamente inatingível para qualquer alimento. O objetivo é garantir que o AGM seja tão seguro quanto seus análogos convencionais”[26].
A avaliação de segurança, portanto, busca responder questões estruturais, que incluem uma multiplicidade de fatores, a título de exemplo, poder-se-ia citar: identidade, fonte e composição do organismo geneticamente modificado, efeitos do seu processamento ou coção, possíveis efeitos secundários do gene, o impacto da sua introdução na dieta[27].
Para Paulo Affonso Leme Machado, não se pode falar em princípio da precaução sem que haja um procedimento prévio de identificação e avaliação do risco, afirmando se tratar de uma etapa indispensável para a racionalização dos riscos, afastando as simples apreensões.
“Na avaliação de riscos, são analisados os riscos e os danos certos e incertos, previstos e não previstos no projeto. Essas análises hão de levar em conta os valores constitucionais de cada país, onde, na maioria das vezes, já está inserido o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e um direito ao meio ambiente sadio, daí decorrendo a aceitação ou não aceitação dos riscos e dos danos”[28].
Contudo, esclarece o ilustre ambientalista que os pareceres devem se pautar nos princípios da excelência, da independência e da transparência. Nesse mesmo sentido, o Rapport de la Commission Coppens insiste que “os interesses dos experts cientistas que participem na decisão sejam conhecidos de modo transparente, especialmente suas ligações com os empreendedores da tecnologia avaliada”[29].
3.4 Gestão de Risco
Enquanto o domínio da avaliação de riscos é a ciência, a gestão de risco incorpora elementos não-científicos às considerações, podendo ser vista como um processo político. Sempre que a análise de risco se insurge contra incertezas científicas, o princípio da precaução pode ser adotado de modo a possibilitar a adoção de medidas apropriadas a fim de se alcançar níveis aceitáveis de proteção. Em outras palavras, o princípio da precaução é um instrumento de gestão de risco baseado nos dados obtidos através da avaliação de risco. Apesar de ser conveniente haver uma comunicação entre ambas as fases, elas são essencialmente autônomas.
A Comissão Européia, em 1º de fevereiro de 2000, através de uma comunicação afirmou que “a escolha da resposta a dar perante uma determinada situação resulta imediatamente de uma decisão eminentemente política, que depende do nível de risco ‘aceitável’ pela sociedade que se deve sujeitar ao risco”[30]. Desta forma, a aceitabilidade de determinado risco está condicionada não apenas aos resultados derivados de estudos avaliativos, mas também por fatores sócio-econômicos[31].
O Tribunal de Primeira Instância da União Européia definiu nível aceitável de risco como sendo “o limiar crítico de probabilidade dos efeitos adversos para a saúde humana e da gravidade desses efeitos potenciais – que não são mais considerados aceitáveis por determinada sociedade”[32].
É de vital importância, na visão do Tribunal europeu, para a aplicação do princípio da precaução, que haja clara definição dos objetivos políticos que devem ser perseguidos por todas as instituições estatais dentro de suas competências, impondo-se, portanto, a fixação do nível de risco aceitável. Pierre Bechmann e Véronique Mansuy esclarecem que caberá à autoridade pública, confrontada com uma avaliação de risco fundada sobre domínios insuficientes, inexistentes ou controversos, decidir se permanece inerte ou se adota comportamento pró-ativo, significa dizer, será de sua competência decidir se corre ou não o risco potencial[33].
Os autores franceses ressaltam que no caso de julgar-se necessário atuar, imprescindível é que se adotem medidas efetivas, proporcionais e não discriminatórias, visando prevenir o risco a um custo economicamente aceitável. A OMC entende serem proporcionais as intervenções que, mediante raciocínio lógico, aparentem ser suficientes diante dos resultados obtidos pela avaliação.
4. O Direito à informação
Enquanto há menos de um século levava-se meses para que uma informação cruzasse o Oceano Atlântico, com o desenvolvimento dos meios de telecomunicação hoje as trocas são instantâneas, tornando o direito à informação de vital importância, principalmente no que diz respeito às novas tecnologias e suas conseqüências. Sendo este, portanto, na atualidade, considerado como um dos principais direitos dos cidadãos. O ilustre doutrinador José Afonso da Silva, citando Freitas Nobre, assevera com probidade:
“a relatividade de conceitos sobre o direito à informação exige uma referência aos regimes políticos, mas, sempre, com a convicção de que este direito não é um direito pessoal, nem simplesmente um direito profissional, mas um direito coletivo”. Isso porque se trata de um direito coletivo da informação ou direito da coletividade à informação. O direito de informar, como aspecto da liberdade de manifestação de pensamento, revela-se um direito individual, mas já contaminado de sentido coletivo, em virtude das transformações dos meios de comunicação, de sorte que a caracterização mais moderna do direito de comunicação, que especialmente se concretiza pelos meios de comunicação social ou de massa, envolve a transmutação do antigo direito de imprensa e de manifestação de pensamento, por esses meios, em direitos de feição coletiva”[34].
A Constituição Federal de 1988, elevando-o à categoria de direito e garantia fundamental, em seu artigo 5º incisos XIV e XXXIII, adotou essa distinção ao dispor que, sendo todos iguais perante a lei, independentemente de qualquer distinção,
“XIV – têm assegurado a todos o acesso à informação;
XXXIII – têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.”
A vulnerabilidade do consumidor é, na atualidade, universalmente aceita. A Organização das Nações Unidas (ONU) pronunciou-se nesse sentido na Resolução nº 39/248, de 10 de abril de 1985, reconhecendo que os consumidores se encontram em posição de desequilíbrio em termos econômicos, nível educacional e poder aquisitivo, o que se contrapõe ao seu direito de acesso a produtos seguros e inofensivos[35].
No Brasil, essa tomada de consciência teve início com a Constituição Federal de 1988, no art. 5º, inciso XXXII que assegura que o Estado promoverá a defesa do consumidor. Desta forma, cabe ao Poder Público, por meio da União, Estados ou Municípios proporcionar instrumentos protetivos visando garantir a efetivação do direito do cidadão, assumindo uma postura mais dirigista. Assinala Ada Grinover:
“o Estado, que não é mais visto como garantidor externo da sociedade, como regulador da disciplina das relações interindividuais, torna-se parte ativa no processo econômico e social, cabendo-lhe a tarefa de organizar e recompor diretamente a sociedade civil, mediante a redistribuição da plus valia a camadas cada vez mais amplas da população. O neoliberalismo se propõe, assim, à tutela de valores sociais, e não mais os do indivíduo abstratamente considerado. Na medida em que o fenômeno econômico perde suas leis naturais e reclama a ação dirigista do homem, a economia torna-se resultante de intervenções manifestamente políticas. De outro lado, solicitações institucionais e sociais provocam tendências antagônicas com relação às classes dominantes, num panorama de conscientização das classes emergentes”[36].
É nesse contexto que surge, em âmbito infraconstitucional, o Código de Defesa do Consumidor com o objetivo de reequilibrar as relações de consumo, impondo o respeito à dignidade, à saúde e segurança do consumidor, pela da proteção de seus interesses econômicos e a observância do princípio da transparência. Poder-se-ia dizer que as técnicas legislativas de proteção do consumidor almejam garantir uma autonomia real da vontade do contratante mais fraco[37], de modo a concretizar a função social dos contratos dentro dos parâmetros de transparência e boa-fé.
O Parlamento Europeu, em dezembro de 2000, por meio de Fichas Técnicas, apresentou sua política relativa aos consumidores, estabelecendo que a capacidade de auto-proteção do consumidor está diretamente relacionada com os conhecimentos de que é detentor. Para tanto, acredita ser imperioso aprimorar as normas de informação sobre os produtos, estabelecendo orientações gerais que incluam a transparência da informação sobre os produtos, o desenvolvimento dos serviços de informação do consumidor e testes comparativos mais freqüentes dos produtos[38].
Nesse mesmo sentido, como reflexo do novo princípio básico norteador das relações consumeiristas, instituído pelo art. 4º, caput, do Código de Defesa do Consumidor, o da transparência, tem-se o desenvolvimento de um novo dever, o de informar. O dever de informar, antes considerado apenas um dever acessório ou anexo, transforma-se, com o advento da Lei 8.078 de 1990, em seu art. 6º, inciso III, em um dever essencial, em um ônus atribuído aos fornecedores.
Cláudia Lima Marques, ao tratar do tema, assevera com cristalina clareza:
“A ratio legis do Código de Defesa do Consumidor é justamente valorizar este momento de formação do contrato de consumo, que passamos a analisar. A tendência atual é de examinar a “qualidade” da vontade manifestada pelo contratante mais fraco, mais do que a sua simples manifestação: somente a vontade racional, a vontade realmente livre (autônoma) e informada, legitima, isto é, tem o poder de ditar a formação e, por conseqüência, os efeitos dos contratos entre consumidor e fornecedor”[39].
José Carlos Maldonado de Carvalho, citando Roberto Senise Lisboa, esclarece que a transparência “é a clareza qualitativa e quantitativa da informação que incumbe às partes conceder, reciprocamente, na relação jurídica, o que somente pode ser alcançado pela adoção de medidas que importem no fornecimento de informações verdadeiras, objetivas e precisas ao consumidor”[40].
O ideal da transparência, portanto, termina por inverter as posições tradicionais de sujeito ativo e passivo nas relações de consumo. O consumidor, que anteriormente devia atuar de forma ativa a fim de conseguir informações necessárias e suficientemente confiáveis acerca de conhecimentos técnicos e das qualidades do produto ou serviço para realizar um bom negócio, passou, após a publicação do Código de Defesa do Consumidor, a uma posição notadamente mais confortável, a de detentor de um direito subjetivo de informação (art. 6º, inciso III). Por outro lado, o fornecedor se viu obrigado a abandonar sua atitude passiva, informando não apenas sobre as características do produto ou serviço como sobre o conteúdo do contrato.
Jorge de Miranda Magalhães expõe com probidade que a transparência significa
“a correção e clareza da informação quanto ao produto ou serviço a ser vendido ou prestado, como também sobre o contrato a ser firmado, sobre tudo na fase pré-contratual, ou fase negocial, dos contratos de consumo, onde deve aparecer a lealdade, a boa-fé, o não engodo ao consumidor”[41].
Tal mudança de papeis busca possibilitar ao consumidor informações claras e precisas sobre as características principais do produto, tais como qualidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, ressaltando o art. 31 do Código de Defesa do Consumidor, tratar-se apenas de um rol exemplificativo, posto que deve ser devidamente informado qualquer possibilidade de risco à saúde e segurança do consumidor. Ademais, no caso de risco à saúde ou à segurança, o dever de informar, pela sua nocividade e periculosidade, é reforçado pelo pela disposição do art. 9º do mesmo código.
A fim de tornar efetivo o direito à informação, o Código de Defesa do Consumidor inclui a falha ou falta na informação como vício do produto ou serviço:
“art. 18 – Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de (…), assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes no recipiente, da embalagem, da rotulagem ou mensagem publicitária”
O artigo acima transcrito, de acordo com os ensinamentos de Cláudia Lima Marques, tem sua aplicação limitada apenas àquelas situações em que exista um vínculo contratual original entre o consumidor e o fornecedor direito. Contudo, os danos decorrentes de relações extracontratuais ou à saúde, sofridos pelos consumidores, denominados vícios de insegurança, também são sancionados com fundamento na responsabilidade objetiva:
“Quanto à falha na informação sobre produtos perigosos ou nocivos, pode ela ensejar a combinação dos dois regimes de responsabilidade. O consumidor pode exigir qualquer das hipóteses do art. 18, em relação ao produto adquirido, e, caso tenha sofrido alguma espécie de dano (mesmo moral) em virtude do defeito de informação, poderá pedir o ressarcimento com base no regime extracontratual do art. 12 ss do CDC”[42].
Conclui-se, portanto, ser essencial a realização de uma análise de risco confiável e abrangente de modo a fornecer, seja ao Poder Público, seja ao consumidor, informações idôneas e consistentes acerca dos possíveis danos que possam decorrer da utilização de certo produto ou atividade.
5. Críticas ao princípio da precaução (tal como assumido pelo Ordenamento Brasileiro)[43]
Na visão aqui apresentada não pode passar despercebido o fato de que o princípio da precaução ainda não parece estar completamente incorporado pela realidade jurídica brasileira, ainda apresentando contornos bastante fluidos. Neste ponto, pode-se apresentar três críticas ao modo como foi assumido pela legislação nacional (todas interrelacionadas):
Uma primeira crítica a ser apresentada se mostra em relação à própria positivação do princípio na legislação. Até hoje, este princípio parece ser regido por três textos principais, quais sejam, a Constituição Federal (art. 225, parágrafo1º, incs. IV), Declaração da ECO/92 (princípio 15) e Dec. 5.098/04 (art. 2º, inc. IV). Dentre eles, o que mais se pronuncia sobre o tema é o segundo, pois os outros dois apenas enunciam, respectivamente, um instrumento para se fazer cumprir o princípio e o coloca como princípio geral do Direito Ambiental.
Pouco se tem prestado atenção para a idéia de precaução no âmbito legislativo. Sua construção tem sido decorrência da obra doutrinária, o que acaba por levar a um grande incômodo, pois a própria doutrina vem reconhecendo que ainda não se chegou a um consenso preciso quanto à existência de um padrão concreto de aplicação do princípio.
Ora, não se trata de criar um conceito legal e imutável, como já foi feito inúmeras vezes em relação a outras matérias, pois isso só levaria à impossibilidade de desenvolvimento futuro. Todavia, não se pode deixar ao arbítrio a aplicação do princípio da precaução, sob pena de se perverter seu sentido, como é o que vem acontecendo com o Princípio da Diginidade da Pessoa Humana (art. 1º, inc. III da Constituição Federal), invocado em todas situações, por mais distantes que sejam de seu sentido real.
Outro argumento a ser ressaltado, é o de que o princípio 15 da ECO/92 trabalha com fórmulas demasiadamente amplas para que se tenha uma concretização precisa ao caso concreto. No seu texto original:
“Para que o ambiente seja protegido, será aplicada pelos Estados, de acordo com as suas capacidades, medidas preventivas. Onde existam ameaças de riscos sérios ou irreversíveis não será utilizada a falta de certeza científica total como razão para o adiamento de medidas eficazes em termos de custo para evitar a degradação ambiental.”
Dentro desta redação, o que seriam “ameaças de riscos sérios ou irreversíveis”? o que se pode denominar de certeza “científica total”? Novamente, não se trata aqui de tolher completamente o alcance do princípio, mas de alertar para o fato de que o Ordenamento trabalha com cláusulas abertas, que, para que sejam concretizadas, merecem um trabalho sistemático. Talvez, a aplicação da noção de “diálogo das fontes”, conforme determinada pela ilustre professora Cláudia Lima Marques tenha aqui uma aplicação essencial. Nos dizeres da autora:
“‘Diálogo’ porque há influências recíprocas, “diálogo” porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitindo uma opção por uma das lei em conflito abstrato – uma solução flexível e aberta de interpenetração” (…)[44]
Assim, uma aplicação muito ampla do princípio da precaução poderia inviabilizar o desenvolvimento científico, pois abarcaria qualquer forma de risco científico (é inerente à atividade científica esta noção). E uma aplicação muito restrita poderia inviabilizar, ao contrário, a própria existência do princípio, pois qualquer risco poderia ser tolerado para o “bem” da ciência.
No dizer de Elcio Patti Junior:
“O Princípio da Precaução está baseado no provérbio popular “de que é melhor prevenir do que remediar”. Não existe, no entanto, um texto padrão para este princípio. As diferentes formulações do Princípio da Precaução prescrevem apenas que se devem tomar medidas preventivas antes de uma completa certeza científica. (…)
As diferentes versões do Princípio da Precaução apresentam uma lacuna, pois elas deixam de responder às críticas e as questões de quanto e como a precaução deve ser aplicada em um dada circuntância”[45].
O princípio da precaução carrega (ou deve carregar) consigo, antes de tudo, uma atitude prática e não meramente retórica.
Por fim, uma crítica a ser levantada é o fato do princípio, do modo como vem sendo ventilado, deixar margem ao arbítrio judicial, pois, como foi a experiência do Código Civil de 2002, a utilização da técnica das cláusulas abertas deixa uma grande margem de discricionariedade para aplicação da lei ao caso concreto, o que pode, inclusive, levar a excessos por parte do julgador. Ao que parece, esta é uma situação que não é albergada por um Estado de Direito.
6. Rotulagem obrigatória dos OGMs: Legislação brasileira
Em seguida, serão apresentados os dispositivos legais que tratam especificamente da obrigatoriedade da rotulagem dos produtos que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, que demonstra ser “uma importante ferramenta de proteção ao consumidor, principalmente por oferecer condições de rastreabilidade ao produto final”.[46]
A Resolução RDC Nº 259-ANVISA/MS/2002 constitui regulamento técnico a ser aplicado à rotulagem de todo alimento que seja comercializado, qualquer que seja sua origem, embalado na ausência do cliente, e pronto para oferta ao consumidor[47], levando em consideração a necessidade de aprimoramento do controle sanitário dos alimentos, com o objetivo de proteger a saúde da população.[48]
No Brasil, a exemplo do que ocorre na União Européia, existe uma legislação específica tendente a regulamentar a rotulagem específica dos alimentos transgênicos.
O artigo 40, da Lei Federal 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança), prevê que os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento.
O Decreto 5.591, de 22 de novembro de 2005, que regulamenta a Lei Federal 11.105/05, trouxe a previsão da rotulagem obrigatória dos alimentos transgênicos ou derivados, na forma de decreto específico.
O Decreto Federal 4.680/03, de relevância inquestionável à análise que se pretende proceder neste artigo, regulamenta o direito à informação contido no Código de Defesa do Consumidor, dispondo no caput do seu artigo 2º que na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, com presença acima do limite de um por cento do produto, o consumidor deverá ser informado da natureza transgênica desse produto.
Lembra Sônia Barroso Brandão Soares que o Decreto Federal referido revogou disposição anterior (Decreto 3.871 de 18 de julho de 2001), que estabelecia o limite percentual de 4% para que fosse efetuada a rotulagem de produtos embalados. O Decreto Federal 4.680/03 não especifica dessa forma, referindo-se o artigo 2º, portanto, tanto aos produtos embalados, como para produtos a granel ou in natura que contenham ou sejam produzidos a partir de OGMs, consoante seu parágrafo1º.[49]
Além disso, lembram Lavínia Pessanha e John Wilkinson que ficam isentos de rotulagem todos os produtos derivados de animais que foram alimentados com rações transgênicas, uma vez que somente estas últimas deverão ser rotuladas, não tendo definido a norma procedimentos de rastreabilidade, impedindo que o consumidor saiba que está consumindo produto in natura ou processado a partir de animais que consumiram ração transgênica.[50]
A Medida Provisória 113, de 26 de março de 2003, estabelece no artigo 2º que na comercialização da soja de que trata o art. 1º (safra de soja 2003), bem como dos produtos ou ingredientes dela derivados, deverá constar, em rótulo adequado, informação aos consumidores a respeito de sua origem e da possibilidade da presença de organismo geneticamente modificado, excetuando-se as hipóteses previstas nos parágrafos 4º e 5º, do art. 1º (soja cujos produtores ou fornecedores tenham obtido a certificação de que se trata de produto sem a presença de organismo geneticamente modificado, expedido por entidade credenciada ou que vier a ser credenciada, em caráter provisório e por prazo certo, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, devendo esta certificação constar da rotulagem correspondente, e a hipótese da safra de soja do ano de 2003 produzida em regiões nas quais comprovadamente não se verificou a presença de organismo geneticamente modificado, mediante portaria do Ministro de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento).
Ressalte-se que o parágrafo1º, do artigo 2º, da Medida Provisória 113 de 2003 não condicionou a rotulagem da soja da safra 2003 ao limite de 1% previsto pelo Decreto 4.680/03, exigindo a presença em rótulo das informações sobre a possibilidade da presença de OGM.
O parágrafo1º, do artigo 2º, do Decreto Federal 4.680/03 determina, ainda, que tanto nos produtos embalados como nos vendidos a granel ou in natura, o rótulo da embalagem ou do recipiente em que estão contidos deverá constar, em destaque, no painel principal e em conjunto com o símbolo a ser definido mediante ato do Ministério da Justiça.
Sobre o símbolo em questão trata a Portaria Nº 2.658, de 22 de dezembro de 2003, do Ministério da Justiça. O regulamento para seu emprego, aplicado de maneira complementar ao disposto no regulamento Técnico para Rotulagem de Alimentos Embalados, aprovado pela resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária de Nº 259, de 20 de setembro de 2002, já mencionada, foi estabelecido com vistas a definir a sua forma e dimensões mínimas, para compor a rotulagem tanto dos alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal embalados como nos vendidos a granel ou in natura, que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, na forma do Decreto n.º 4.680, de 24 de abril de 2003. Isso significa que a Portaria, basicamente, define o layout do “T” indicativo da presença de OGM.
Os símbolos deverão ser apresentados da seguinte maneira, de acordo com o anexo da Portaria Nº 2.658/03:
“3.1 – O símbolo terá a seguinte apresentação gráfica, nos rótulos a serem impressos em policromia:
3.2 – O símbolo terá a seguinte apresentação gráfica, nos rótulos a serem impressos em preto e branco:
3.3 – O símbolo deverá constar no painel principal, em destaque e em contraste de cores que assegure a correta visibilidade.
3.4 – O triângulo será eqüilátero.
3.5 – O padrão cromático do símbolo transgênico, na impressão em policromia, conforme apresentado no item 3.1, deve obedecer às seguintes proporções:
3.5.1 – Bordas do triângulo e letra T: 100% Preto.
3.5.2 – Fundo interno do triângulo: 100% Amarelo.
3.6 – A tipologia utilizada para grafia da letra T deverá ser baseada na família de tipos “Frutiger”, bold, em caixa alta, conforme apresentada no item 3.1.”
Ressalte-se, ainda, que, no âmbito internacional, o Brasil faz parte da Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB, assinada pelo governo brasileiro no Rio de Janeiro, em 05 de junho de 1992, durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – CNUMAD (Rio 92). De acordo com informações obtidas no site da COP 8/MOP3, a Convenção é o principal fórum mundial na definição do marco legal e político para temas e questões relacionados à biodiversidade, tendo sido assinada por 168 países e ratificada por 188 países, tendo estes últimos se tornado Parte da Convenção.[51]
O site mencionado se refere ao Protocolo de Cartagena como um dos mais importantes marcos legais e políticos mundiais que orientam a gestão da biodiversidade em todo o mundo, estabelecendo as regras para a movimentação transfronteiriça de organismos geneticamente modificados (OGMs) vivos.[52]
O Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, primeiro acordo firmado no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica, considera o conteúdo do princípio da precaução inserido no Princípio 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e tem por objetivo, nos termos do seu artigo 1º, contribuir para assegurar um nível adequado de proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguros dos organismos vivos modificados resultantes da biotecnologia moderna que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta os riscos para a saúde humana, e enfocando especificamente os movimentos transfronteiriços.
É importante mencionar a discussão travada durante a 3ª Reunião das Partes do referido Protocolo (MOP-3) marcada pela oposição entre a cúpula do governo que defendia uma identificação específica dos carregamentos trasfronteiriços de OGMs, a partir da expressão “contém transgênicos” e o Ministério da Agricultura (MAPA) e representantes do agronegócio que propugnavam por uma rotulagem difusa, resumida na expressão “pode conter transgênicos”. A proposta final apresentada pelo governo brasileiro foi aquela favorável a uma rotulagem clara, porém, com a fixação de um prazo de 4 (quatro) anos para que a identificação fosse efetuada.[53]
7. Breve entendimento jurisprudencial
Em seguida, serão mencionadas algumas decisões que determinaram a rotulagem dos produtos transgênicos.
3.2.1 Agravo de Instrumento nº 2003.029271-3. Terceira Câmara de Direito Público. Relator: Desembargador Rui Francisco Barreiros Fortes. Data: 13/04/2004. Tribunal de Justiça de Santa Catarina.[54]
Neste caso, a Unilever Bestfoods Brasil Ltda. interpôs Agravo de Instrumento contra a decisão do Juiz de Direito da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital, que deferiu liminar nos Autos da Ação Civil Pública n. 023.03.367971-4, determinando o recolhimento do produto “Sopa de Carne com Macarrão Conchinha Knorr”, ao argumento da ausência de aviso de que continha OGMs em sua fórmula, proibindo sua comercialização no Estado de Santa Catarina até que o produto fosse rotulado, indicando não só a existência de organismos geneticamente modificados em sua composição, como também sua porcentagem.
De acordo com a Unilever Bestfoods Brasil Ltda. a decisão monocrática negou vigência ao Decreto Federal nº 4.680/03, que estabelece a rotulagem somente dos produtos cuja composição transgênica ultrapasse o limite de 1%. Foi também sustentada pela empresa, no recurso ora analisado, a suspensão da eficácia da Lei Estadual nº 12.128/02 pelo Decreto Federal nº 4.680/03 porque, ao disporem sobre o mesmo assunto, o Decreto Federal teria revogado a Lei Estadual anterior. Outrossim, foi questionada a constitucionalidade da mesma Lei do Estado de Santa Catarina, ao argumento de que esta trataria de matéria de competência exclusiva de lei federal.
O Desembargador Rui Francisco Barreiros Fortes não só negou provimento ao recurso como deferiu o pedido de liminar na Ação Civil Pública. Segundo o Magistrado, o fundamento do fumus boni juris está consubstanciado no disposto nos artigo 5º, XIV e XXXII, que eleva o direito de informação e a proteção do consumidor à categoria de direitos fundamentais, e no disposto no artigo 170, V, da Constituição Federal, bem assim nos artigos 6º e 31, do Código de Defesa do Consumidor que prevêem, de modo geral, respectivamente, a proteção à saúde do consumidor contra os riscos advindos de produtos nocivos e a necessidade de serem apresentadas informações claras, corretas e ostensivas sobre as características dos produtos e serviços.
Continuando seu voto, o eminente Desembargador revela a insignificância do argumento de que o Decreto Federal nº 4.680/03 revogou a Lei do Estado de Santa Catarina nº 12.128/02 ao afirmar que mesmo que tenha ocorrido tal revogação, o Decreto Federal não é idôneo para revogar o Código de Defesa do Consumidor, muito menos a nossa Lei Maior, que elenca a proteção do consumidor no rol dos direitos fundamentais, elevando a discussão, portanto, ao patamar constitucional.
Frisa, ainda, que acima de qualquer discussão acerca da legislação que trate da rotulagem de produtos que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados devem sempre estar os princípios e direitos elencados na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor, até porque, a legislação federal ou estadual que trate do tema deve ser proveniente desses preceitos.
Adentrando a possibilidade jurídica da coexistência dos dois dispositivos (Decreto Federal nº 4.680/03 e Lei do Estado de Santa Catarina nº 12.128/02), o Desembargador Rui Fortes opina favoravelmente, pois ambas tratam do mesmo assunto, qual seja, o direito à informação, distinguindo-se apenas no que concerne ao percentual de OGM necessário para a rotulagem. O Decreto Federal nº 4.680/03 prevê o limite de 1% e a Lei Estadual é silente, o que, para o eminente Relator não constitui hipótese de inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 12.128/02, pontuando que faz parte do âmbito de competência concorrente dos Estados-membros a reprodução, na essência, dos ditames da norma geral (determinar a rotulagem dos produtos que contenham OGMs), adequando, porém, os preceitos gerais às peculiaridades estaduais. Nesse sentido, na opinião do Magistrado, é permitido à lei estadual não determinar o percentual de OGM para que seja procedida a rotulagem.
O Relator questiona a forma específica de que trata do assunto o Decreto Federal nº 4.680/03, que deveria, em verdade, ter se limitado a dispor acerca da matéria de maneira geral, sem a imposição de limites, pondo em cheque a real motivação do legislador federal; “se a defesa dos interesses das grandes multinacionais implantadas em nosso País, ou a defesa dos direitos constitucionais dos cidadãos brasileiros”. De fato, procedente a preocupação do Magistrado, uma vez que o principal argumento dos representantes das multinacionais, inclusive da Unilever Bestfoods Brasil Ltda. para justificar a ausência da rotulagem é o de que seus produtos não superam o limite de 1% de OGM estabelecido pelo Decreto Federal nº 4.680/03.
O Voto prossegue, fazendo menção à ausência de pesquisas científicas conclusivas que possibilitem afirmar serem os OGM totalmente inofensivos à saúde do consumidor, ainda que em índices mínimos nos alimentos, adicionando que o direito de o consumidor saber pelo que exatamente está optando não pode ser condicionado a índices ou outros óbices, não podendo este, portanto, ser induzido em erro pela ausência de menção da composição transgênica do produto na embalagem.
Importante mencionar a vedação do artigo 37, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor à publicidade enganosa, mesmo que por omissão, capaz de induzir o consumidor a erro.
O Desembargador afirma, nessa linha, que, apesar de a perícia técnica feita no produto “Sopa de Carne com Macarrão Conchinha Knorr” pela Fundação Oswaldo Cruz não ter detectado a quantidade de substância transgênica presente, o produto deve ser rotulado com o objetivo de indicar a presença de substância transgênica, ressaltando que não foi proibida a venda do produto, mas tão-somente determinada sua rotulagem.
O periculum in mora foi identificado pelo Magistrado em função do risco do consumo indiscriminado dos produtos que possuem OGMs, destacando as restrições a esse tipo de produto efetuadas por países da União Européia como Inglaterra, França e Alemanha.
Nos termos do voto do relator, decidiu a Terceira Câmara de Direito Público, por votação unânime, negar provimento ao recurso.
3.2.2 Processo nº 583.00.2007.218243-0. 3ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo. Distribuído em 29/08/2007.[55]
Trata-se de liminar concedida pelo Juiz da 3ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo na Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Estado de São Paulo para determinar a rotulagem dos óleos de soja produzidos e comercializados pela Bunge Alimentos S.A. e pela Cargill Agrícola S.A.. Em sua decisão, o Juiz Antônio Manssur Filho faz alusão ao conteúdo dos artigos 6º, III e 31, do Código de Defesa do Consumidor e 40 da Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança), bem assim à sua regulamentação contida no Decreto Federal 4.680/03 e na Portaria nº 2.658/03, do Ministério da Justiça.
Pontua que a concessão da medida liminar justifica-se pela prova produzida nos autos de que as requeridas fazem uso de soja geneticamente modificada para a produção de óleos de soja, “pouco importando a quantidade de referido vetor na composição do produto. Se há utilização de produtos transgênicos na composição dos alimentos colocados no mercado, o consumidor deve ser devidamente informado a esse respeito. É o quanto basta”.
Nesse sentido, foi concedida tutela específica, em sede antecipatória, para que as requeridas, no prazo de 30 dias, promovessem a adequação de suas respectivas linhas de produção de modo a inserir nos rótulos dos óleos produzidos a partir de então as expressões definidas pelo artigo 2º, parágrafo 1º, do Decreto Federal 4.680/03, acompanhadas do símbolo definido pela Portaria nº 2.658/03, do Ministério da Justiça.[56]
3.2.3 Processo nº 2007.36.02.000701-5. Vara Federal Única de Rondonópolis.[57]
O Juiz Federal Francisco Alexandre Ribeiro concedeu medida liminar requerida pelo Ministério Público Federal para determinar à Bunge Alimentos S.A. a inclusão nos rótulos e documentos fiscais relativos aos alimentos/ingredientes produzidos a partir de soja transgênica, por intermédio de sua filial de Rondonópolis, da respectiva informação nesse sentido, nos termos do Decreto 4.680/03, no prazo de 30 dias.
A Bunge Alimentos S.A., em sua defesa, alegou que seus produtos não contêm traços de soja transgênica, razão pela qual não estaria sujeita à obrigação de rotular seus produtos, de acordo com o Decreto Federal 4.680/03.
Quanto à tese da ré Bunge Alimentos S.A., o Juiz Federal Francisco Ribeiro esclarece que esta se dá em razão da interpretação isolada do disposto no artigo 2º, caput, do Decreto Federal 4.680/03, em especial do trecho que dispõe acerca da necessidade de rotulagem apenas quando a composição transgênica do produto ultrapassar o limite de 1%.
Ocorre que, para o Magistrado, a ré ignorou a superveniência de lei especial sobre o assunto, Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança), cujo artigo 40 preceitua que “Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento”.
Continua a tecer sua decisão, extraindo o fumus boni juris da seguinte explicação:
“O Decreto 4.680/03 enquanto ato normativo, por força do princípio da legalidade, é absolutamente subordinado à lei em sua função de regulamentá-la, não podendo inovar na ordem jurídica, nem muito menos contrariá-la, razão por que, com a Edição da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/05), restou revogada qualquer disposição legal ou regulamentar com ela incompatível (…)” (Negrito nosso)
O periculum in mora, para o Magistrado, não se refere ao direito objetivo de ser informado, mas a subjacente direito subjetivo coletivo dos consumidores em saber o que está comprando para exercer o seu juízo de valor acerca dos transgênicos.
8. Conclusão
Expostos os tópicos acima, não resta mais a fazer, do que submeter ao julgamento da doutrina a importância da aplicação do princípio da precaução no Ordenamento Nacional.
Tem-se como certo que este é um princípio que representa muito para o Direito nacional, pois traz em seu bojo diversas idéias novas que ainda podem ser melhor desenvolvidas, ajudando a alcançar-se um patamar de maior segurança nas relações jurídicas e, principalmente, na convivência em sociedade.
Procurou-se aqui aliar uma análise teórica e prática acerca do princípio da precaução e da matéria relativa aos Organismos Geneticamente modificado, sempre tomando por base o fato de que é a experiência o campo de surgimento e aplicação do Direito.
Notas:
Informações Sobre os Autores
Flavio Alves Martins
Prof. Adjunto de Direito Civil na UFRJ e na UNIGRANRIO. Professor do Programa de Mestrado da UNIFLU. Coordenador Projeto Impacto social e efeitos jurídicos decorrentes das novas tecnologias nas relações privadas
Leonardo Delarue de Souza Lourenço
Bacharel em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ
Mônica Gesto Otero
Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ
Patrícia da Rocha Canosa
Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ