Resumo: O endosso próprio consiste no ato jurídico cambial pelo qual o credor de um título de crédito transfere a posse e a propriedade do mesmo a terceira pessoa. Ao lado dessa espécie de endosso, o ordenamento jurídico brasileiro internalizou regra constante da Lei Uniforme de Genebra (cuja natureza jurídica é a de Tratado Internacional) prevendo a figura do endosso-caução. Esse instituto, por sua vez, caracteriza-se por não produzir o principal efeito jurídico do endosso próprio, qual seja, o de transferir a propriedade do título e do respectivo crédito ao endossatário; o traço diferenciador do endosso-caução consiste na transferência da posse do título de crédito para o endossatário, a título de garantia do adimplemento de uma dívida que o endossante possui perante aquele. Por tal razão, dentre outras peculiaridades de seu regime jurídico, essa espécie de caução serve para viabilizar o penhor sobre títulos de crédito.
Palavras-chaves: Títulos de crédito. Endosso. Endosso-caução
Abstract: The endorsement in the act itself is legal currency for which the creditor of a credit transfer possession and ownership of it to another person. Beside this kind of endorsement, the Brazilian legal system internalized rule in the Uniform Law of Geneva (which is the legal nature of international treaty) providing for the endorsement given bond. This institute, in turn, is characterized by not producing the main legal effect of the endorsement itself, namely to transfer the property title and his claim to the endorsee, the distinguishing feature of endorsement bond is the transfer of ownership the debt claim to the endorsee, as security for a debt of adimplemento that the endorser has before him. For this reason, among other peculiarities of its legal system, this kind of security serves to make the pledge on securities.
Keywords: Evidence of credit. Endorsement. Endorsement bond
Sumário: 1. Definição de endosso. 2. Espécies de endosso. 3. O regime jurídico do endosso-caução.
1 – Definição de endosso
Segundo Fabio Ulhoa Coelho, endosso é o ato cambial “pelo qual o credor de um título de crédito com a cláusula à ordem transmite os seus direitos a outra pessoa“[1].
Pelo endosso, o endossante deixa de ser o titular do crédito documentado no título de crédito, o qual passa para a esfera jurídica do endossatário. Assim, tem-se no ato cambial de endosso a intervenção de duas partes: o endossante, que é aquele que confere o endosso; e o endossatário, que é a pessoa que recebe o título de crédito endossado.
2 – Espécies de endosso
O conceito acima transcrito refere-se ao endosso próprio, que é aquele ato cujo objeto é a transferência da propriedade do titulo de crédito em favor do endossatário.
Ao lado desse gênero de endosso, o ordenamento jurídico pátrio prevê outras espécies desse ato cambial, que são agrupadas para fins classificatórios no gênero de endosso impróprio, que, mais uma vez usando dos ensinamentos do ilustre professor acima mencionado, é aquele que “destina-se a legitimar a posse de certa pessoa sobre um título de crédito, sem lhe transferir o direito creditício“[2].
O endosso impróprio tem aplicação em situações em que é preciso dissociar a titularidade do direito constante do título de crédito, da posse da cártula que documenta o mesmo, a fim de possibilitar que terceira pessoa diversa daquela que é proprietária do título de crédito exerça algum ou alguns dos direitos decorrentes do referido título, tais como protestá-lo, cobrá-lo ou dar quitação.
A qualificação do endosso como impróprio deve-se exatamente à sua peculiaridade de não produzir o efeito principal inerente ao endosso que é o de transferir a titularidade do crédito documentado no titulo creditório.
São espécies de endosso impróprio o endosso-mandato e o endosso-caução.
O endosso-mandato é o ato que possibilita ao endossatário imputar à outra pessoa a tarefa de realizar a cobrança do crédito representado pelo título, sendo o endossatário investido na condição de mandatário do endossante, consoante prescreve o art. 18 da Lei Uniforme de Genebra[3] [03].
O endosso-caução é previsto no art. 19 da Lei Uniforme de Genebra com a seguinte redação, ad litteram: “Art. 19. Quando o endosso contém a menção “valor em garantia”, “valor em penhor” ou qualquer outra menção que implique uma caução, o portador pode exercer todos os direitos emergentes da letra, mas um endosso feito por ele só vale como endosso a título de procuração.”
3 – O regime jurídico do endosso-caução
Também chamado de endosso-garantia ou endosso pignoratício, o endosso-caução é o instrumento jurídico adequado para a instituição de penhor sobre o título de crédito.
Em uma dada relação jurídica, credor e devedor podem pactuar por estabelecer como garantia do adimplemento da obrigação a instituição de penhor (espécie de direito real sobre coisa alheia que tem por objeto bem móvel, que passa a ser vinculado à satisfação do crédito garantido). E os títulos de crédito, por ostentarem natureza jurídica de bem móvel, são bens idôneos a serem objeto de penhor.
De regra, a garantia pignoratícia aperfeiçoa-se com a entrega física do bem móvel de propriedade do devedor ao credor, que passa a desfrutar da posse legítima do bem.
Quando o bem dado em garantia consubstanciar-se em título de crédito, a constituição da garantia real representada pelo penhor exigirá o ato de endosso-caução (endosso-garantia ou endosso pignoratício), quando far-se-á a entrega do título de crédito ao credor caucionado, doravante endossatário, sem que se transfira a titularidade do crédito representado pelo título de crédito, sendo o endossatário investido na condição de credor pignoratício do endossante.
Nesse sentido, comentando o endosso-caução e a possibilidade de um título de crédito ser dado em penhor, ensina mais uma vez o professor Fábio Ulhoa Coelho, in verbis:
“(…) Essa garantia pode recair, se as partes concordarem, sobre bens móveis (caso em que se denomina penhor), entre as quais se consideram os títulos de crédito. Como a garantia pignoratícia se constitui, via de regra, pela efetiva tradição da coisa empenhada (CC/2002, art. 1.431; CC/16, art. 768), faz-se necessária a entrega da letra de câmbio ao credor (caucionado), sem que se transfira a titularidade do crédito representado pela cambial. O ato que viabiliza a constituição da garantia é o endosso-caução, praticado pelo endossante-caucionário em favor do endossatário-caucuionado. (…).[4]“
Comunga do mesmo entendimento o mestre Fran Martins:
“O endossatário pignoratício ao receber o título, pode praticar todos os atos necessários para a defesa e conservação dos direitos emergentes da letra, de que está de posse. Não sendo, contudo, o proprietário do título, não pode o endossatário pignoratício transferi-lo a outro na qualidade de proprietário. Daí dizer a lei que qualquer endosso por ele feito valerá apenas como endosso-mandato, não como endosso próprio ou translativo.”[5]
Por sua vez, a jurisprudência consagra os mencionados ensinamentos doutrinários, conforme demonstra a ementa do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais colacionada abaixo:
“EMENTA: SECURITIZAÇÃO DE DÍVIDA. EMPRÉSTIMO CONCEDIDO PELO REQUERIDO À COOPERATIVA. SUBEMPRÉSTIMO AO AUTOR COOPERADO. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE OS CONTENDORES. ILEGIMITIDADE PASSIVA AD CAUSAM. ENDOSS0-CAUÇÃO. PROPRIEDADE DO TÍTULO NÃO TRANSFERIDA. GARANTIA AO CRÉDITO DO ENDOSSATÁRIO. Se não há relação jurídica entre a instituição financeira requerida, que concedeu financiamento à cooperativa, e o autor cooperado, que se beneficiou com o subempréstimo, o reconhecimento da ilegitimidade passiva ad causam é medida que se impõe. O endosso-caução lançado na cédula emitida pelo requerente não transfere ao banco endossatário a propriedade do título, mas apenas a sua posse, como forma de garantia do crédito.” (processo 1.0073.04.015536-5/001(1). Publicação: 02/02/2007).
Insta ressaltar que durante o período em que o endossatário tem a posse do título de crédito que lhe fora dado em caução, tendo a posse desse bem sem sua propriedade, o mesmo tem o dever de zelar pela conservação dos interesses que defluem do mencionado título de crédito, sendo que o art. 1.453 do Código Civil lhe impõe o dever de “praticar os atos necessários à conservação e defesa do direito empenhado e cobrar os juros e mais prestações acessórias compreendidas na garantia“, e o art. 1.455 do mesmo codex dispõe que “deverá o credor pignoratício cobrar o crédito empenhado, assim que se torne exigível.”
Representando caução ou garantia de uma obrigação principal entre o devedor-endossante e o credor endossatário, o endosso-caução (endosso-garantia ou endosso pignoratício) cessará o seu efeito jurídico se houver o adimplemento dessa obrigação pelo endossante, quando haverá o dever de restituição da posse da caução representada pelo título de crédito; caso contrário, se a obrigação principal caucionada pelo título de crédito for inadimplida pelo endossante, a propriedade do titulo de crédito será consolidada em favor do endossatário, que passará a dispor juntamente da posse e da propriedade do título de crédito, a teor do que prescreve o parágrafo único do art. 1.455 do Código Civil, que prevê que “estando vencido o crédito pignoratício, tem o credor direito a reter, da quantia recebida, o que lhe é devido, restituindo o restante ao devedor; ou a excutir a coisa a ele entregue“.
Assim, ocorrendo o inadimplemento da obrigação principal, o endossatário, como proprietário dos direitos inscritos na cártula, poderá exigir judicialmente tais direitos subjetivos decorrentes do titulo de crédito endossado, atuando como legitimado ativo ordinário em eventual cobrança em juízo, uma vez que estará defendendo interesses próprios.
Por fim, cabe ressaltar, que a matéria “títulos de créditos”, embora regulamentada no novo Código Civil em seus artigos 887 e seguintes, a priori regula-se pelos dispositivos previstos nas respectivas leis específicas, sendo que o endosso-caução (endosso-garantia ou endosso pignoratício) rege-se pelo disposto no art. 19 da Lei Uniforme de Genebra (incorporada ao ordenamento jurídico interno por meio do Decreto nº 57.663, de 24 de janeiro de 1966 – DOU 31.01.1966, ret. DOU 02.03.1966), uma vez que a normatização trazida pelo Código Civil acerca dos títulos de crédito tem caráter suplementar, consoante institui o art. 903[6].
Em que pese o caráter meramente suplementar da normatização conferida pelo Código Civil aos títulos de créditos, quanto ao endosso-caução tem-se que a previsão normativa do art. 918 do referido codex vai ao encontro do que prevê o art. 19 da Lei Uniforme de Genebra, não se configurando qualquer antinomia entre tais normas.
Referências Bibliográficas
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume I. Editora Saraiva. São Paulo. 7.º ed. 2003.
MARTINS, Fran. Títulos de Crédito – Letra de Câmbio e Nota Promissória, vol. 1, Editora Forense, 2000.
PIMENTEL, Carlos Barbosa. Direito Comercial. Editora Campus. 5.ª ed. 2006.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Editora Saraiva. São Paulo. 20.ª ed. 1991.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – V – Direitos Reais. Editora Atlas. São Paulo. 4.ª ed. 2004.
Informações Sobre o Autor
Anderson Ricardo Gomes
Procurador da Fazenda Nacional lotado em Marília/SP Pós-graduando em Direito Público pela UnB – Universidade de Brasília