As decisões judiciais como objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental

Resumo: O presente artigo trata das decisões judiciais enquanto objeto da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental, à luz da evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.


Palavras-chave: Argüição de descumprimento de preceito fundamental.   Decisões judiciais. Cabimento.


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Sumário: Resumo; 1. Hipóteses legais de cabimento da ADPF; 2. Das decisões judiciais como objeto da ADPF; 2.1 Da suspensão dos efeitos de decisões judiciais como objeto do pedido liminar em ADPF; 2.2 Das decisões judiciais como objeto de impugnação em ADPF; 3. Conclusões; Referências Bibliográficas.


1. Hipóteses legais de cabimento da ADPF


A Constituição da República de 1988, com as alterações decorrentes da Emenda Constitucional nº 03, de 1993, assim dispõe em seu art. 102, § 1º, in verbis:


“Art. 102. (…)


§ 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. (Transformado em § 1º pela Emenda Constitucional nº 3, de 17/03/93)”


Cuida-se de inovação no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que o instituto da argüição de descumprimento de preceito fundamental não havia sido previsto nas Constituições anteriores.


Trata-se de norma de eficácia limitada[1], de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, que depende de normatividade futura que lhe aperfeiçoe a aplicabilidade.


A respeito da classificação da norma do art. 102, §1º da Constituição Federal, no que se refere à sua aplicabilidade, assim definiu o Supremo Tribunal Federal, in verbis:


“DIREITO CONSTITUCIONAL, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ART. 102, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. DECRETO ESTADUAL DE INTERVENÇÃO EM MUNICÍPIO. Arts. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil e art. 126 do Código de Processo Civil. 1. O § 1º do art. 102 da Constituição Federal de 1988 é bastante claro, ao dispor: “a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. 2. Vale dizer, enquanto não houver lei, estabelecendo a forma pela qual será apreciada a argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente da Constituição, o S.T.F. não pode apreciá-la. 3. Até porque sua função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, “caput”). E é esta que exige Lei para que sua missão seja exercida em casos como esse. Em outras palavras: trata-se de competência cujo exercício ainda depende de Lei. 4. Também não compete ao S.T.F. elaborar Lei a respeito, pois essa é missão do Poder Legislativo (arts. 48 e seguintes da C.F.). 5. E nem se trata aqui de Mandado de Injunção, mediante o qual se pretenda compelir o Congresso Nacional a elaborar a Lei de que trata o § 1º do art. 102, se é que se pode sustentar o cabimento dessa espécie de ação, com base no art. 5º, inciso LXXI, visando a tal resultado, não estando, porém, “sub judice”, no feito, essa questão. 6. Não incide, no caso, o disposto no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual “quando a lei for omissa, o Juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. É que não se trata de lei existente e omissa, mas, sim, de lei inexistente. 7. Igualmente não se aplica à hipótese a 2a. parte do art. 126 do Código de Processo Civil, ao determinar ao Juiz que, não havendo normas legais, recorra à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito, para resolver lide “inter partes”. Tal norma não se sobrepõe à constitucional, que, para a argüição de descumprimento de preceito fundamental dela decorrente, perante o S.T.F., exige Lei formal, não autorizando, à sua falta, a aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito”. 8. De resto, para se insurgir contra o Decreto estadual de intervenção no Município, tem este os meios próprios de impugnação, que, naturalmente, não podem ser sugeridos pelo S.T.F. 9. Agravo improvido. Votação unânime.”[2]


Desse modo, nota-se que o constituinte transferiu ao legislador infraconstitucional a atribuição de regulamentar a argüição de descumprimento de preceito fundamental.


Nesse sentido, em 03 de dezembro de 1999 foi editada a Lei nº 9.882, dando conformação legal e definindo as regras procedimentais da argüição de descumprimento de preceito fundamental, estabelecendo em seu art. 1º, in verbis:


“Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.


Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental:


I – quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;”


Analisando o dispositivo legal, constata-se que foram previstas duas hipóteses de argüição de descumprimento de preceito fundamental: a) argüição direta ou autônoma, para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público; b) argüição incidental ou por derivação, quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.


Nesse sentido é o magistério de Kildare Gonçalves Carvalho:


“São duas as modalidades de argüição: 1. A denominada argüição autônoma, prevista no art. 1º da Lei n. 9.882/99, que constitui processo objetivo, devendo ser utilizada quando as ações constitucionais não forem cabíveis ou se revelarem inidôneas para afastar ou impedir lesão a preceito fundamental, sem qualquer outro processo judicial anterior; 2. Argüição incidental, de que trata o inciso I do parágrafo único do art. 4º da Lei 9.882/99, paralela a um processo judicial já instaurado, e que surge em sua função. Representa ela um mecanismo destinado a provocar a apreciação do Supremo Tribunal sobre controvérsia constitucional relevante que esteja sendo discutida no âmbito de qualquer juízo ou tribunal, quando inexistir outro meio idôneo para sanar a lesividade ao preceito fundamental.”[3]


Portanto, a argüição de descumprimento de preceito fundamental é um instrumento de controle concentrado de constitucionalidade cujo objeto foi ampliado em relação aos demais, posto que foram incluídos como passíveis de controle os atos não normativos, as leis ou atos anteriores à Constituição Federal de 1988 e as leis e atos municipais[4].


2. Das decisões judiciais como objeto da ADPF


O tratamento das decisões judiciais no âmbito da argüição de descumprimento de preceito fundamental deve ser realizado em dupla dimensão, pois as mesmas podem ser objeto tanto de pedido liminar de suspensão de seus efeitos, quanto de pedido final de mérito.


2.1 Da suspensão dos efeitos de decisões judiciais como objeto do pedido liminar em ADPF


Nos termos do art. 5º da Lei nº 9.882, de 1999, o Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental. Nos casos de extrema urgência ou de perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, a liminar poderá ser concedida pelo relator, ad referendum do Tribunal Pleno.


E, conforme preceitua o § 3o do referido dispositivo legal, excepcionadas as hipóteses de coisa julgada, o pedido liminar poderá versar sobre três diferentes medidas, quais sejam: a) a suspensão do andamento de processos; b) a suspensão dos efeitos de decisões judiciais; c) a suspensão de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental.


Depreende-se, assim, que, por expressa previsão legal, é lícita a concessão de medida liminar para determinar a suspensão dos efeitos de decisões judiciais ainda não transitadas em julgado.


Neste sentido, as liminares concedidas pelo Supremo Tribunal Federal nas argüições de descumprimento de preceito fundamental nºs 10, 33, 47, 53, 54, 77, 79 e 130, nas quais foram liminarmente suspensos os efeitos de decisões judiciais. Ressalte-se que, nas citadas argüições de descumprimento de preceito fundamental as decisões judiciais não figuravam como objeto central da impugnação, havendo, tão-somente pedido de suspensão liminar de seus efeitos.


2.2 Das decisões judiciais como objeto de impugnação em ADPF


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Certo é que a ampliação do objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental em relação aos demais instrumentos de controle de constitucionalidade decorreu precipuamente da abertura semântica da expressão “ato do Poder Público”, constante do art. 1º da Lei nº 9.882, de 1999.


Desta forma, a questão central a ser enfrentada diz respeito à inclusão das decisões judiciais dentre os atos do Poder Público sem natureza normativa impugnáveis por meio de argüição de descumprimento de preceito fundamental.


De início, vale notar que, mesmo naquelas hipóteses que envolvem contrariedade direta à Constituição Federal, a matéria não é pacífica.


O cerne da controvérsia reside na interpretação a ser dada à norma prevista no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882, de 1999, segundo a qual não será admitida a argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.


Neste ponto, é imperioso verificar a evolução da orientação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no que se refere à interpretação acerca do princípio da subsidiariedade como condicionante à propositura da argüição de descumprimento de preceito fundamental.


Inicialmente, o entendimento do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente seria admitida após o esgotamento de todos os meios judiciais aptos a sanar a lesividade.


Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento realizado em 18.05.2000, negou seguimento à ADPF nº 3, ajuizada pelo Governador do Estado do Ceará, na qual eram questionadas reiteradas decisões do Tribunal de Justiça daquele Estado.


Eis os termos do voto do Relator Min. Sidney Sanches:


“(…) Vê-se, pois, que ainda há meios judiciais eficazes para se sanar a alegada lesividade das decisões impugnadas. E sem sua utilização pela parte interessada, não é admitida a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, nos termos do referido § 1º do art. 4º da Lei nº 9.882, de 03.12.1999.”[5]


Para André Ramos Tavares, a prevalência da interpretação do conceito de subsidiariedade dada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF nº 3 acarretaria a impossibilidade de manejo da argüição de descumprimento de preceito fundamental, in verbis:


“O embaraço está na circunstância de que sempre haverá algum meio capaz de sanar a lesividade a preceito fundamental. Isso porque o modelo brasileiro admite o controle judicial difuso-concreto amplo, a ser realizado no seio de qualquer meio judicial “comum”.


Assim, a análise preliminar da subsidiariedade como cabimento residual levaria a uma conclusão genérica pela impossibilidade imanente do uso da ADPF. Se a Lei exclui o cabimento da ADPF quando houver “qualquer outro meio”, e sendo um meio eficaz o controle difuso-concreto promovido em qualquer ação comum (individual ou coletiva), o uso da ADPF restaria bloqueado.”[6]


Ocorre que, em 29 de outubro de 2003, quando do julgamento da ADPF n. 33, o Supremo Tribunal Federal, modificou seu entendimento no tocante ao princípio da subsidiariedade, como se verifica do voto do Exmo. Sr. Ministro Gilmar Mendes, in verbis:


“(…) À primeira vista poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manejar, de forma útil, a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão (recurso constitucional) e no direito espanhol (recurso de amparo), acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático.


De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial.


Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade – inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão -, contido no § 1º do art. 4º da Lei nº 9.882, de 1999, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global.


Nesse sentido, se se considera o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta, inclusive, da legitimação ativa), meio eficaz de sanar a lesão parece ser aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. (…)


Assim, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade – isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata -, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental.”[7] 


Nota-se, assim, que o julgamento da ADPF nº 33 constitui importante marco hermenêutico da subsidiariedade aplicável à argüição de descumprimento de preceito fundamental, na medida em que nesta decisão a aplicação do requisito subsidiariedade restringiu-se aos demais processos objetivos já previstos no sistema constitucional.


Com fundamento na referida decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 33 pode-se afirmar ser possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental nos casos não abrangidos pela ação direta de inconstitucionalidade (p. ex: direito municipal em face da Constituição; direito anterior à Constituição ou posterior já revogado ou com efeitos já exauridos) ou pela ação declaratória de constitucionalidade (p. ex: declaração de constitucionalidade de normas estaduais e municipais).


Desta forma, com esta nova interpretação da subsidiariedade o Supremo Tribunal Federal erigiu a argüição de descumprimento de preceito fundamental a meio rápido e eficaz de resolução de controvérsias pela Corte Constitucional, assegurando segurança jurídica e pacificação social.


Neste sentido, em 21 de junho 2007, o Ministro Joaquim Barbosa, em decisão monocrática, conheceu da ADPF nº 114 e concedeu medida liminar, considerando que, apesar de o objeto de impugnação daquela argüição de descumprimento de preceito fundamental ser um conjunto de decisões judiciais, não incidiria a vedação do princípio da subsidiariedade.


No referido caso, o Estado do Piauí ajuizou argüição de descumprimento de preceito fundamental ao argumento de que diversas decisões da justiça trabalhista contrariavam norma constitucional de preceito fundamental relacionado aos princípios que regem a Administração Pública, especialmente no tocante à observância de normas orçamentárias.


Vejamos os termos da decisão monocrática:


“Como se vê, trata-se de alegação de ofensa a preceito fundamental decorrente de um conjunto de atos jurisdicionais do poder público federal. (…)


Com efeito, no caso, parece estar demonstrado que as vias processuais atualmente disponíveis à administração estadual não resolveriam a contento, e a tempo, o problema suscitado.


É que a execução dos convênios em questão depende de atuação da administração estadual viabilizada por uma fonte específica de recursos, depositados em contas bancárias específicas. Sobre esses recursos têm sido efetuados bloqueios decorrentes de decisões em vários processos em curso na justiça trabalhista. A interposição de diversos recursos, com o risco de decisões díspares não se mostra apta a sanar a alegada ofensa a preceito fundamental, ao menos não de forma eficaz. Se a execução dos convênios se faz pela execução de planos de trabalho, um único bloqueio de recursos resultará na incompletude da obra como um todo, que é objeto do convênio. (…)


Não que essa regra, isoladamente considerada, seja por si só, um preceito fundamental que mereça amparo pela via da ADPF. Mas sugere, concretamente, um desígnio maior da Constituição Federal, no que exige a concretização de outras garantias. Em exame preliminar, entendo que essa norma constitucional revela num ponto específico a conjunção de outros princípios entre os quais identifico: (i) o princípio constitucional da eficiência da administração pública, e o da continuidade dos serviços públicos – art. 37; (ii) rigorosa repartição tributária entre entes federados – capítulo VI do Título VI, da Constituição Federal-, interessando observar que, independentemente do fato de ser a COMDEPI a executora do objeto de alguns dos convênios, na condição de interveniente, o repasse de verbas federais se faz a título de execução em conjunto, de competências materiais atribuídas simultaneamente à União e aos estados-mebros; (iii) ainda como decorrência da repartição tributária, vinculação desses recursos repassados à sua “origem” federal, o que legitima, até mesmo, a fiscalização de sua aplicação pelo Tribunal de Contas da União – art. 71, VI, da Constituição Federal.


Vale notar, ainda, que os convênios são a manifestação de decisões do poder público sobre políticas públicas relevantes. Nesse caso, as ordens de bloqueio, fundadas em direitos subjetivos individuais, significam o mero retardo, por via imprópria, da execução dessas políticas públicas. Essa consideração reforça, por outro lado, a utilidade da via da ADPF para examinar em controle objetivo a contraposição institucional entre direitos individualizados à atuação do poder público, especialmente no que tange à destinação de recursos públicos.  (…)


Ante o exposto, e sem prejuízo de reflexão mais aprofundada na matéria quando da apreciação do mérito da presente argüição, defiro o pedido de liminar (…)”[8]


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Verifica-se, pois, que o Supremo Tribunal Federal, na citada decisão monocrática proferida na ADPF nº 114, entendeu que seria possível o ajuizamento de argüição de descumprimento de preceito fundamental contra um conjunto de decisões judiciais, desde fosse suscitada lesão ao interesse público e a questão não pudesse ser resolvida com a agilidade e uniformidade necessárias nas vias processuais disponíveis à Administração Pública.


Reforçando o entendimento de necessidade de cumulação dos requisitos interesse público e necessidade de rápida e uniforme solução da controvérsia, em 16 de outubro de 2007, em decisão monocrática, o Ministro Eros Grau revogou a liminar que havia sido concedida na ADPF nº 117, e não conheceu da ação, ao argumento de que a questão a ser decidida não era relevante, além de não haver violação a interesse público, mas somente a interesse privado. No caso, a Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL) havia ajuizado argüição de descumprimento de preceito fundamental impugnando um conjunto de decisões judiciais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, proferidas em ações ajuizadas por filiados da Confederação contra alterações promovidas no estatuto social da Confederação em Assembléia Geral Extraordinária.[9]


Recentemente, em 11 de março de 2009, ao analisar a ADPF nº 101, proposta pelo Presidente da República contra um conjunto de decisões judiciais que permitiam a importação de pneus usados, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, conheceu da argüição de descumprimento de preceito fundamental[10].


Entendeu a Corte Maior que a multiplicação de várias decisões judiciais conflitantes sobre determinada matéria acaba violar o princípio da segurança jurídica, configurando ameaça a preceito fundamental.


Assim, ao conhecer da ADPF nº 101 o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que é cabível a argüição de descumprimento de preceito fundamental para impugnação de um conjunto de decisões judiciais conflitantes, desde que: a) não seja cabível ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade; b) haja lesão ao interesse público; c) a questão não possa resolvida com a agilidade e uniformidade necessárias nas vias processuais comuns; d) ocorra ameaça ao princípio da segurança jurídica.


Diante disso, sempre que houver um conjunto de decisões judiciais conflitantes, e, cumulativamente, estiverem presentes todos os requisitos acima elencados, será cabível a argüição de descumprimento de preceito fundamental.


Por fim, cabe esclarecer que a decisão proferida na argüição de descumprimento de preceito fundamental não alcançará as decisões judiciais conflitantes já transitadas em julgado.


3. Conclusões


Por todo o exposto, podem ser extraídas as seguintes conclusões:


a) A Constituição da República de 1988 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a argüição de descumprimento de preceito fundamental, transferindo ao legislador infraconstitucional a atribuição de regulamentá-la e aperfeiçoar-lhe a aplicabilidade.


b) Nesse sentido, em 03 de dezembro de 1999 foi editada a Lei nº 9.882, dando conformação legal e definindo as regras procedimentais da argüição de descumprimento de preceito fundamental.


c) No que se refere às decisões judiciais, seu tratamento no âmbito da argüição de descumprimento de preceito fundamental deve ser realizado em dupla dimensão, pois podem tanto ser objeto de pedido liminar de suspensão de seus efeitos, quanto de pedido final de mérito.


d) Quando as decisões judiciais forem objeto de pedido liminar em arguição de descumprimento de preceito fundamental, o Supremo Tribunal Federal poderá, por decisão da maioria absoluta de seus membros, deferir o pedido liminar. Nos casos de extrema urgência ou de perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, a liminar poderá ser concedida pelo relator, ad referendum do Tribunal Pleno. Neste sentido, as liminares concedidas pelo Supremo Tribunal Federal nas argüições de descumprimento de preceito fundamental nºs 10, 33, 47, 53, 54, 77, 79 e 130, nas quais foram liminarmente suspensos os efeitos de decisões judiciais. Ressalte-se que, em tais casos as decisões judiciais não figuravam como objeto central da impugnação, havendo, tão-somente pedido de suspensão liminar de seus efeitos.


e) No que se refere ao cabimento de argüição de preceito fundamental que tenha por objeto principal um conjunto de decisões judiciais, o cerne da controvérsia reside na interpretação a ser dada à norma prevista no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882, de 1999, segundo a qual não será admitida a argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.


f) Inicialmente, o entendimento do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que a argüição de descumprimento de preceito fundamental somente seria admitida após o esgotamento de todos os meios judiciais aptos a sanar a lesividade.


g) Ocorre que, quando do julgamento da ADPF n. 33, o Supremo Tribunal Federal modificou seu entendimento, passando a entender que a aplicação do requisito subsidiariedade deve restringir-se aos demais processos objetivos previstos no sistema constitucional.


h) Tal entendimento foi confirmado em decisão monocrática proferida na ADPF nº 114, na qual se entendeu que seria possível o ajuizamento de argüição de descumprimento de preceito fundamental contra um conjunto de decisões judiciais, desde fosse suscitada lesão ao interesse público e a questão não pudesse ser resolvida com a agilidade e uniformidade necessárias nas outras vias processuais disponíveis à Administração Pública.


i) No julgamento da ADPF nº 117 foi reforçado o entendimento de necessidade de cumulação dos requisitos interesse público e necessidade de rápida e uniforme solução da controvérsia.


j) Ao conhecer da ADPF nº 101 o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que é cabível a argüição de descumprimento de preceito fundamental para impugnação de um conjunto de decisões judiciais conflitantes, desde que: a) não seja cabível ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade; b) haja lesão ao interesse público; c) a questão não possa resolvida com a agilidade e uniformidade necessárias nas vias processuais comuns; d) ocorra ameaça princípio da segurança jurídica.


k) Conseqüentemente, sempre que exista um conjunto de decisões judiciais conflitantes e, cumulativamente, estejam presentes todos os requisitos elencados na alínea “j” destas conclusões, será cabível a argüição de descumprimento de preceito fundamental.


l) A decisão proferida na argüição de descumprimento de preceito fundamental não alcançará as decisões judiciais conflitantes já transitadas em julgado.


 


Referências Bibliográficas

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 13. ed. Belo Horizonte. Del Rey, 2007, p. 430.

NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 310.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 83.

TAVARES, André Ramos. Repensando a ADPF o complexo modelo brasileiro de controle da constitucionalidade. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos/andre_ramos2.pdf> Acesso em: 05 abr. 2009.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 3 QO, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 18/05/2000, DJ 27-02-2004 PP-00020 EMENT VOL-02141-01 PP-00001.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 33, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 07/12/2005, DJ 27-10-2006 PP-00031 EMENT VOL-02253-01 PP-00001 RTJ VOL-00199-03 PP-00873.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.  ADPF n. 101, Relator (a):  Mina. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, decisão 11-03-2009, DJ 16-03-2009.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.  ADPF n. 114, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, decisão monocrática de 21-06-2007, DJ 27-06-2007.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.  ADPF n. 117, Relator(a):  Min. EROS GRAU, decisão monocrática de 16-10-2007, DJ 22-10-2007.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pet 1140 AgR, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 02/05/1996, DJ 31-05-1996 PP-18803 EMENT VOL-01830-01 PP-00001.

 

Notas:

[1] SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 83.

[2] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pet 1140 AgR, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 02/05/1996, DJ 31-05-1996 PP-18803 EMENT VOL-01830-01 PP-00001.

[3] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 13. ed. Belo Horizonte. Del Rey, 2007, p. 430.

[4] Neste sentido: NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 310.

[5] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 3 QO, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 18/05/2000, DJ 27-02-2004 PP-00020 EMENT VOL-02141-01 PP-00001.

[6] TAVARES, André Ramos. Repensando a ADPF o complexo modelo brasileiro de controle da constitucionalidade. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos/andre_ramos2.pdf> Acesso em: 05 abr. 2009.

[7] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 33, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 07/12/2005, DJ 27-10-2006 PP-00031 EMENT VOL-02253-01 PP-00001 RTJ VOL-00199-03 PP-00873.

[8] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.  ADPF n. 114, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, decisão monocrática de 21-06-2007, DJ 27-06-2007.

[9] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.  ADPF n. 117, Relator(a):  Min. EROS GRAU, decisão monocrática de 16-10-2007, DJ 22-10-2007.

[10] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.  ADPF n. 101, Relator (a):  Mina. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, decisão 11-03-2009, DJ 16-03-2009.


Informações Sobre o Autor

Gisele de Assis Campos

Procuradora do Estado de Sergipe, Especialista em Direito Público


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