A família brasileira vem sofrendo grandes modificações, por conta dessas modificações, muitas divergências doutrinárias são apontadas e uma das situações que gera certa polêmica é a imposição dos impedimentos matrimoniais para a caracterização da união estável. O presente trabalho tem o intuito de levantar as implicações que podem surgir em relação aos casos concretos.
1. Introdução
O Novo Código Civil trata da União estável em capítulo próprio entre os artigos 1723 e 1727 e, salienta o artigo 1723 que a união estável pode ser considerada como a relação entre homem e mulher estabelecida com a convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família.
Apesar de não delimitar o conceito de união estável, o Novo Código Civil ressalta os elementos configuradores para o seu reconhecimento. E, dentre os elementos elencados pela nova legislação, além daqueles acima citados, está a questão da ausência de impedimentos matrimoniais, exceto no caso de separados de fato e separados judicialmente (art. 1723 § 1º)
Podemos dizer, então, que com o advento do Novo Código Civil, as pessoas impedidas de se casar também são impedidas para constituir união estável. E é neste sentido que passamos a estudar a aplicação dos chamados impedimentos matrimoniais.
2. Estudo dos impedimentos matrimoniais (art. 1521 NCC)
Sabemos que para a celebração do casamento civil é essencial a verificação da existência ou não de impedimentos matrimoniais, que proíbem a sua celebração, causando a invalidade (nulidade absoluta) do casamento que foi realizado sem a sua verificação.
O artigo 1521 do NCC determina o seguinte:
Art. 1521. Não podem casar:
I. Os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil.
II. Os afins em linha reta.
III. O adotante com quem foi o cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante.
IV. Os irmãos, unilaterais ou bilaterais e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive.
V. O adotado com o filho do adotante.
VI. As pessoas casadas.
VII. O cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Passaremos neste momento a estudar cada um dos impedimentos mencionados.
No caso do inciso I: Os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil. Nos parece que esta é uma questão que não suscita dúvidas, é uma questão fundamentada na moral e bons costumes, além de questões genéticas que possam ocasionar gerações defeituosas. Aqui se enquadra a proibição da relação entre pais e filhos, netos e avós etc., tanto no parentesco consangüíneo como no parentesco pela adoção (parentesco civil)
No inciso II: Os afins em linha reta. Os afins são aqueles parentes que recebemos pelo evento casamento ou união estável. Ou seja, são os parentes do cônjuge ou companheiro que passam a ser considerados como parentes por afinidade do outro cônjuge ou companheiro. Assim, só existe relação de parentesco por afinidade entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro. Não cabe afinidade entre os parentes destes dois. Trata-se de uma ficção jurídica e portanto, só poderá ser aplicada quando determina a lei.
Em assim sendo, são considerados parentes por afinidade em linha reta aqueles que são parentes ascendentes, por exemplo: pais (sogro e sogra); avós, bisavós e etc., e parentes descendentes: filhos (enteado e enteada); netos, bisnetos e etc.
Isso quer dizer que, por exemplo, sogro e nora, sogra e genro, madrasta e enteado e padrasto e enteada não podem constituir casamento ou união estável, mesmo depois de dissolvido o vínculo anterior, uma vez que de acordo com o artigo 1595 § 2° do Novo Código Civil, a afinidade não se extingue nem mesmo com a dissolução do casamento ou fim da união estável. Tal situação, provavelmente foi escolhida como impedimento por questões morais e não propriamente questões genéticas. A afinidade em linha reta como impedimento matrimonial, portanto, segue a pessoa para o resto da sua vida. E, na verdade, esta é a única conseqüência do parentesco por afinidade, ou seja, a existência de impedimentos matrimoniais e agora também para a formação de união estável.
Esclareça-se que a afinidade em linha reta não se extingue mesmo após a dissolução do casamento ou união estável, mas a linha colateral (ex: irmãos (cunhados), primos, tios, sobrinhos e etc.) se extingue com o fim do casamento ou união estável. Portanto, não existe impedimento matrimonial ou de constituição de união estável entre os cunhados, por exemplo.
Ressalta-se ainda que, se antes do Novo Código Civil, a afinidade, por lei, só era aplicada nas relações matrimoniais, tal situação, sem dúvida nenhuma, possibilitou durante muitos anos a formação de entidades com caraterísticas de família, que apesar de impedidas para o matrimônio não estavam legalmente impedidas de constituir união estável. E agora, o que fazer com estas uniões que do dia para a noite se tornaram expressamente proibidas? Será possível simplesmente desconsiderar a existência dessas uniões? Não podemos negar a existência de fato, mas qual será o melhor e mais adequado tratamento jurídico para estes caso? Este sem dúvida vai ser um problema a ser resolvido pelo nosso judiciário. E, acredito, não vai ser um trabalho nada fácil para nossos mais renomados Juizes.
No inciso III: O adotante com quem foi o cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante. Consideramos ser desnecessário este inciso, uma vez que se trata da relação de afinidade em linha reta entre os filhos adotivos e o cônjuge do seu adotante. Se a Constituição Federal de 1988 determina a igualdade entre filhos naturais e civis, não deveria a lei fazer referência expressa ao adotado, que se enquadra perfeitamente na definição de filho.
Por outro lado, no inciso IV: Os irmãos, unilaterais ou bilaterais e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive. Detectamos aqui um impedimento de ordem moral e genética. Sabemos que considera-se incestuosa a relação entre irmãos, além disso, a relação íntima e carnal entre colaterais de segundo grau (irmãos unilaterais ou bilaterais) pode ocasionar problemas genéticos na prole advinda desse relacionamento. Portanto, bastante salutar que a lei proíba o casamento e a união estável entre estas pessoas.
Contudo, no que se refere aos colaterais de terceiro grau (tios e sobrinhos), encontramos um certo impasse. Tais casamentos a partir do Decreto-Lei. 3200/41 passaram a ser viáveis desde que com a apresentação de exames pré-nupciais que favoreciam a relação entre estes parentes. De uma foram bastante técnica, não se queria dizer que estavam afastadas todas as possibilidades de problemas genéticos na eventual prole nascida dessa relação, mas ao menos se estabelecia um certo critério para a celebração desses casamentos.
Ocorre que, existe uma discussão doutrinária acerca da aplicabilidade do Decreto-Lei 3200/41 após a vigência do Novo Código Civil. Teria a nova legislação civil revogado o Decerto anterior? A maioria da nossa doutrina moderna tem entendido que, por ser norma especial o Decerto não foi revogado pela nova legislação civil e continua tendo aplicação. Logicamente que esta é a posição da maioria da doutrina e, em não sendo pacífico este entendimento, poderá haver interpretação diferenciada. Podemos dizer, entretanto, que a lei civil atual, ou seja o Novo Código Civil tecnicamente veda o casamento e a união estável entre parentes colaterais de 3° grau, apesar da existência do Decreto-Lei mencionado.
Em sendo assim, não podemos esquecer que estes casamentos foram aceitos durante muito tempo na nossa sociedade e voltar atrás seria um retrocesso que ocasionaria, sem dúvida nenhuma, o surgimento de relações à margem do direito, tidas como ilegais, mas formadas de fato. Portanto, consideramos que sob este aspecto, melhor seria considerar viável o casamento e a união estável entre tios e sobrinhos, desde que respeitados os requisitos do Decreto-Lei 3200/41.
Seguindo o mesmo raciocínio do inciso III, o inciso V determina o impedimento entre: O adotado com o filho do adotante. Novamente nos colocamos contrários à especificação de um inciso para tratar apenas do adotado. Ora, o filho do adotante nada mais é do que o irmão do adotado e tal situação não merece um inciso especial para excluí-lo da relação matrimonial e da união estável, posto que a situação já está prevista no inciso IV.
O inciso VI é sem dúvida o que gera maior problemática ao se aplicar na união estável. Determina o inciso VI que são proibidas de se casar: As pessoas casadas.
Tal inciso precisa ser estudado conjuntamente com o § 1° do artigo 1723. Isto porque o parágrafo 1° do mencionado artigo, exclui do rol de impedimentos para a constituição de uma união estável o separado de fato e o separado judicialmente.
Para o casamento, tal inciso não gera nenhuma dúvida. O direito brasileiro veda a bigamia ou a poligamia e por conseqüência também veda o casamento de pessoas ainda casadas e que não se desvincularam do casamento, seja por morte seja por uma decisão judicial favorável (nulidade, anulação e divórcio). Mas o problema se encontra justamente com a união estável. Ou seja, o artigo 1723 § 1° quer dizer que uma pessoa ainda casada, ou melhor, que ainda possui impedimento por vínculo, poderá constituir nova família pela união estável?
Dizemos que há diferença entre separação de fato e separação judicial. A separação de fato se reflete na vontade dos cônjuges em não mais viverem como marido e mulher e que se separam fisicamente, ou seja, de corpos, sem o reconhecimento judicial. Já a separação judicial se estabelece com o reconhecimento da insuportabilidade da vida conjugal por sentença judicial. Tal separação judicial pode acontecer de forma amigável ou litigiosa e seus requisitos estão presentes no artigo 1571 a 1782 do Novo Código Civil.
A grande questão fica para a separação de fato. O que é separação de fato, ou melhor, em qual situação podemos considerar a separação de fato que possa ocasionar a formação de nova família pela união estável? O problema ocorre justamente porque a separação de fato não é reconhecida pelo judiciário e torna-se questão de avaliação dos fatos oferecidos.
Antes do Novo Código Civil muito se discutia se era necessário, para a configuração da união estável, a aplicação dos impedimentos matrimoniais, inclusive da questão do existência ou não do vínculo conjugal.
A Lei 8971/94 fazia referência direta ao estado civil das partes para a configuração da união estável. O art. 1º da mencionada lei exigia que a união fosse estabelecida entre pessoas solteiras, viuvas, separadas judicialmente ou divorciadas. Tal disposição levou muitos a entenderem que, exceto no caso do separado judicialmente, que ainda mantém vínculo conjugal e portanto impedimento para se casar, as partes deveriam ser desimpedidas para contrair novas núpcias.
Posteriormente, com a edição da Lei 9278/96 a situação continuou obscura, deixando, inclusive, a nova lei de mencionar sobre o estado civil das partes como fazia a lei de 1994. O que deu a possibilidade de entendimento diversificado na doutrina e jurisprudência a respeito de ser aceita ou não a relação não matrimonial com a presença de impedimento matrimonial por vínculo. O posicionamento dominante foi no sentido de que só não deveriam ser aceitas as relações impróprias, desleais e paralelas a uma outra união ou casamento já estabelecido. Ou seja, se não havia mais constância de casamento, a existência tão somente do vínculo não impedia o reconhecimento da família de fato.
Tais dúvidas existiam por causa do significado de separação de fato. E, nos parece, a nova legislação seguiu o entendimento doutrinário e jurisprudencial.
De acordo com Ney de Mello Almada[i], “entende-se por separação de fato a situação resultante da quebra da coabitação, praticada por um dos cônjuges ou ambos, à revelia de intervenção judicial, e em caráter irreversível”.
A questão a ser ressaltada e que ainda causa imensa discussão doutrinária e jurisprudencial é se a separação de fato rompe com os deveres recíprocos do casamento, principalmente quanto às obrigações de fidelidade e coabitação entre os cônjuges.
O casamento se mantém basicamente com a comunhão de vida e a affectio maritalis, mas sabemos também que os relacionamentos entre pessoas, principalmente com envolvimento amoroso, são complexos e não raramente as pessoas que juraram casamento e amor eterno não conseguem estabelecer uma vida comum prolongada e o casamento passa a ser, na verdade, apenas um vínculo formal.
Entretanto, mesmo havendo a possibilidade do rompimento da sociedade e do vínculo conjugal através da separação judicial e do divórcio, muitos casais continuam “casados” sem promover oficialmente essa ruptura, passando a viver, na maioria das vezes, em casas separadas e com novos relacionamentos amorosos.
Ressaltamos, ainda, que juridicamente, apenas depois de uma sentença judicial de uma autoridade competente ou da morte de um dos cônjuges é que pode ser considerada a dissolução do vínculo conjugal de forma definitiva. Isso porque o casamento como ato formal e solene deve observar determinada solenidade para que seja desconstituído, e, além do fato natural morte, somente o Poder Público através do Poder Judiciário poderá realizar essa desconstituição, por meio de procedimento legal.
Ocorre que a sociedade em que vivemos é dinâmica e o Direito para ser justo tende a acompanhar os valores da sociedade a que se destina, portanto cabe ao jurista e ao julgador do Direito, na falta de texto legal proibitivo e de acordo com o caso concreto, aplicar a norma jurídica da forma a alcançar a melhor justiça.
Tendo em vista tal alegação, a maioria dos estudiosos do Direito de família aceitaram a tese do rompimento dos direitos e deveres do casamento, com a simples separação de fato[ii]. Entendimento que também foi traçado pela jurisprudência mais recente dos nossos melhores tribunais[iii], a ponto de ser abraçada pelo Novo Código Civil.
A fundamentação para essa tese favorável ao rompimento dos deveres conjugais com a separação de fato é a inexistência de efetiva comunhão de vida. Nesse sentido, se não há mais a comunhão de vida e conseqüente vontade de permanecer em casamento constituindo uma família, não há que se falar em dever conjugal.
Essa separação de fato, contudo, deve ter ânimo de definitiva, ou seja, é necessário demonstrar que não se trata de mera separação temporária sem maiores conseqüências, e sim que são remotas as possibilidades de restauração do matrimônio.
Lembramos que apesar de não estar separado judicialmente, o separado de fato poderá requerer rompimento do vínculo conjugal pelo divórcio, observando-se o prazo previsto em lei (2 anos). Ora, se é possível o rompimento pelo divórcio, não seria possível reconhecer a suspensão dos direitos e deveres do casamento na separação de fato prolongada?
Teresa Arruda Alvim Pinto[iv] com extrema propriedade tratou da questão, partindo do princípio de que existe diferença entre constância e existência do casamento. Para a mencionada autora, a existência do casamento é demarcada pela relação jurídica, ou seja, pelo vínculo matrimonial estabelecido no momento da celebração do casamento, por outro lado, a constância se determina pela convivência, pela comunhão de vida, que é justamente o “combustível” do casamento. Um casamento sem vontade (affectio maritalis) é um casamento meramente formal.
Percebemos, então, que grande parte da nossa doutrina é adepta ao rompimento dos direitos e obrigações oriundos do matrimônio com a confirmação da separação de fato, demarcando a atuação do Direito moderno na proteção dos fatos reais da vida, assim, o Direito “cada vez mais protege as situações reais e cada vez menos, as situações meramente formais.” [v]
Mas não podemos deixar de lado as posições contrárias a este entendimento, posto que mesmo separado de fato, os cônjuges estão ligados pelo vínculo jurídico do casamento. Contudo, verificamos que o Novo Código Civil seguiu o entendimento de que é melhor reconhecer as famílias que de fato se formam, mesmo com a existência de impedimento matrimonial, por meio do afastamento do impedimento por vínculo. De outra forma, não seriam poucos os casos de uniões que não poderiam ser adequadas como entidade familiar pela presença do impedimento conjugal e que estariam tão somente qualificadas como concubinato (artigo 1727 NCC), situação não reconhecida como entidade familiar e que se encontra regida pelas normas do Direito das obrigações e não do Direito de família.
Para terminar o presente estudo, lembramos do inciso VII do art. 1521 que determina: O cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Tal situação, baseada em condutas éticas e morais, impede que uma pessoa que tenha sido envolvida na condenação pelo homicídio, em tese doloso, contra o seu consorte possa se casar ou constituir união estável como a pessoa que contribuiu ou concorreu para a prática do homicídio ou tentativa de homicídio. Entendemos que tal situação tem alto interesse social, afastando idéias diabólicas que possam surgir em casos extremos e que fogem a qualquer regra de boa conduta e respeito à vida.
Concluímos que, os impedimentos matrimoniais são essenciais para a celebração de um casamento livre de máculas que estejam ligadas a questões morais, éticas e de ordem genética e que afetem o interesse da família brasileira.
O fato do Novo Código Civil ter ampliado a abrangência do rol dos impedimentos matrimoniais para a configuração da união estável, nos dá a idéia de que as uniões estáveis a serem reconhecidas, deverão seguir os mesmos fundamentos da família matrimonial, sem entretanto serem equiparadas ao casamento em seus efeitos. Mas por outro lado, o que fazer com as relações que fatalmente irão se formar e que não poderão ser reconhecidas pelo judiciário como família legítima? Vejamos como exemplo o caso da união entre afins na linha reta. Podemos dizer que se a lei veda estas uniões como família legítima elas não irão ocorrer?
Em nosso sentir, engana-se quem acredita que a lei sempre impõe uma certa conduta à toda a sociedade. Portanto, só o tempo irá nos dizer qual foi o resultado da aplicação dos impedimentos matrimoniais também na união estável.
Informações Sobre o Autor
Ana Elizabeth Lapa Wanderley Cavalcanti
Mestre e Doutora em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, advogada em São Paulo, professora dos cursos de graduação e pós-graduação em direito das FMU